A “pátria pequena” e os valores humanitários

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27 de Março de 2013

Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua As melhores imagens da sua História

A “pátria pequena” e os valores humanitários

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m 1977, Pátria pequena veio juntar-se ao já extenso rol de publicações de João de Araújo Correia. Tal designação traz à lembrança títulos como Pátria (1896), de Guerra Junqueiro, ou A minha pátria (1906), de Ana de Castro Osório. Distancia-se deles, no entanto, ao circunscrever um recorte daquela que, por contraste, poderá ser considerada a pátria grande. Esse retalho corresponde, como o autor esclarece na nota introdutória, à “vila e concelho do Peso da Régua”, aos quais também dedica o livro. Num primeiro plano, este título, à semelhança de Terra ingrata ou Montes pintados, fornece a representação de um espaço, cuja exiguidade é várias vezes referida ao longo da obra. A “pátria pequena” de João de Araújo Correia é, porém, muito mais do que um território, pois esta figuração metafórica expressa sobretudo a relação profunda que o escritor mantém com este local. Quando declara “Aqui nasci, aqui vivo e aqui morrerei sem espírito provinciano”, faz dele uma espécie de casa onde passou a sua vida, convertendo-o num espaço íntimo da maior importância na sua geografia sentimental. Enraizado no seu torrão natal para a vida e para a morte, nem por isso deixa o autor de o transcender. “Sem espírito provinciano”, ele é um cidadão do mundo fiel às suas origens, mas de vistas alargadas. Somada à sua estreita ligação ao meio onde decorreu a sua existência, esta característica legitima o projecto que desenvolve nos diversos textos coligidos em Pátria pequena. Na nótula de abertura, o autor apresenta-os como “setas de papel disparadas pelo meu arco, sempre insofrido, contra fealdades e vícios de cunho provinciano” que afectam a Régua e arredores. Como dirá na crónica “De boa mente”, onde realiza o balanço de três anos de publicações mensais no Vida por vida, “não mira outro alvo que não seja quanto a deslustre ou prejudique”. Na identificação desassombrada das males de que a sua terra padece, o escritor reguense parece transferir para a sua “pátria pequena” aquele comportamento tão típico dos portugueses, que, como diz Barry Hatton, “são mais críticos de si mesmos do que os estrangeiros”. No entanto, é a sua afeição por ela e o seu espírito

cívico que assim o determinam: “É admissível e até louvável que o natural da Régua diga mal da sua terra por amor, isto é, com o intuito de a corrigir de algum defeito grave ou esvoaçante pecha que a deslustre” (“Pobre Régua”). À semelhança de José Correia de Magalhães, que cita em “Música de Poiares”, João de Araújo Correia pretende “fazer da Régua uma vila perfeita”. Tal aspiração, partilhada “por quem se distin[gue] do barro comum”, não será alheia à responsabilidade associada ao estatuto de capital do Douro, pois, como o escritor recorda em “Escolas técnicas”, “A Régua é o Douro, região com características de autêntica província. É a capital do país vinícola mais célebre do mundo”. A denúncia com objectivos terapêuticos traduz-se num retrato da Régua no século XX, uma vez que, embora redigidos na segunda metade deste século, os textos não excluem a con-

vocação do passado recente. Notese, no entanto, que os antecedentes desta actividade remontam ao Sem método (1938), a obra inaugural do autor. De facto, nas “notas críticas de certeiro jacto” de que fala Vergílio Correia no prefácio da 1ª edição, João de Araújo Correia identifica na sua terra chagas como o descaso pela memória, o esquecimento de vultos ilustres que nela nasceram ou viveram, a ausência de estruturas básicas de saúde e de assistência social, o desperdício de potencialidades turísticas e agrícolas, o bairrismo estéril, a descaracterização de hábitos (num prenúncio de globalização) e a fúria arboricida. Cerca de vinte anos depois, estes temas regressam nos textos recolhidos em Pátria pequena. É caso para dizer que se mudam os tempos mas não se mudam as vontades. Daí que, em “Alvitres”, o autor ironize: “Parece-nos a nós […] que os nossos estímulos, a bem do nosso meio,

Ana Ribeiro

O bem comum mais precioso é o homem. Como quem diz: somos nós todos. João de Araújo Correia, Pátria pequena já não têm conta. /O que conta é o efeito que produziram. Matematicamente, é igual a zero. Poderá haver maior consolação?”. No entanto, a indiferença que acolhe as suas sugestões não faz esmorecer o seu zelo, como bem revela uma alusão à “Parábola do semeador” na crónica “De boa mente”: “Que faz porém quem nada mais deseja que ser semeador? Semeia… Se a semente cair em bom terreno, muito bem… se cair em mau terreno, paciência…” . Espécie de Cristo a pregar no deserto, só o amor inquebrantável à sua terra justifica que, entre 1956 e 1974, apesar de algumas interrupções, persista na sua intervenção cívica nas páginas do Vida por vida, o jornal dos Bombeiros locais. Por outro lado, diz também muito do meio que o envolve o facto de, durante quase vinte anos, nele continuar o escritor a encontrar motivos que justificam a sua acção pedagógica, reincidindo até em alguns, como a defesa das árvores e a imperiosa necessidade de criar espaços verdes na Régua, a inaceitável decadência das termas do Moledo, a urgência de preservar os miradouros e de os tornar lugares convidativos à contemplação da paisagem, o resgate do esquecimento de reguenses de vulto como Vieira da Costa e Maximiano de Lemos e a falta de educação e de civismo que afecta alguns dos seus conterrâneos. Não quer isto dizer, no entanto, que a pena de João de Araújo Correia seja atraída apenas pelo lado negro da sua terra. Como afirma em “Pobre Régua”, “Criticar é apreciar, é distinguir, na coisa criticada, os valores negativos e positivos”. Por isso se revolta, na mesma crónica, contra aqueles que, munidos de critérios desajustados, deixam escapar aquilo que torna um local único, conferindolhe uma identidade própria: “Quem sai da cidade sem nada na cabeça, mas com a bitola do Porto ou de Lisboa, diz mal da Régua como diz mal de Mirandela. Diz mal das terras pequenas, porque não são grandes. Do gracioso e do pitoresco não cura. Só lhe praz o colossal”. Mais uma vez, a “pátria pequena” inspira ao autor dos Contos bárbaros um patriotismo idêntico ao dos portugueses pelo seu país natal, os quais, no dizer de Barry Hatton, “são facilmente susceptíveis a estrangeiros desaprovadores”.

SEMANÁRIO INDEPENDENTE DEFENSOR DO ALTO DOURO

Pequena, mas não desprezível, a pátria de João de Araújo Correia detém, pois, potencialidades que deve explorar sem, contudo, se descaracterizar. É neste sentido que vão as sugestões do autor, as quais, numa dialéctica entre tradição e inovação, pretendem abrir caminho para um futuro alternativo a um presente pouco auspicioso. Tal como ele a vê em meados do século passado, a sua pátria carece de atractivos quer para os naturais, quer para quem a visite: não tem um parque, não tem vida cultural, não tem monumentos, não tem locais de onde se possa desfrutar a bela paisagem envolvente, não tem escolas que possam contribuir para o desenvolvimento da região, não tem asseio nem maneiras, não tem uma rede local de transportes públicos, não oferece espaços agradáveis de alojamento e restauração, é barulhenta, tem muitos carros e condutores incumpridores... Nada há de fatal, no entanto, neste cenário, pois, na óptica do escritor, não faltam recursos ao concelho da Régua para mudar de rumo. A começar pelas condições naturais, propícias ao turismo e à floricultura, por exemplo. Para além da natureza, também o passado é apresentado, sem contradição, como uma fonte de renovação. A ele se hão-de ir recuperar iniciativas como a parada agrícola, a tourada, as bandas de música ou os grupos de teatro, ou seja, aspectos que fazem da terra do nosso contista mais do que um entreposto vinícola. Ela pode também embelezar-se recuperando trechos como a estrada do Rodo, com as suas amoreiras. Desse passado fecundo, do qual se traça um retrato eufórico, deverá manter-se ainda a tradição dos queijinhos e do requeijão fornecidos pelas aldeias vizinhas, e ícones como o barco rabelo e o carro de bois, “relíquias da nossa terra ameaçadas de morte”. A memória e identidade locais também não podem dispensar os “reguenses ilustres”, imortalizados em nomes de ruas ou em monumentos. O antigo jornal diário também deve ser ressuscitado, para “defesa e ilustração” da capital do Douro. Enfim, a criação de escolas técnicas e o exemplo de outras terras são alguns dos estímulos para que a Régua deixe de ser uma “princesa indolente”. (continua no próximo número)

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