Gnarus Revista de História - Número 1

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Sumário Ao leitor ............................................................................................................................................................................ 3 Fernando Gralha4 O Paraíso Perdido: apontamentos sobre a Teoria da História e os Historiadores......................................................... 5 Marcus Cruz5 As ideias não correspondem aos fatos: Luzes sobre a Idade Média ............................................................................ 10 Bruno Gonçalves Álvaro e Rafael Costa Prata Um convite à leitura de “Caminhos e fronteiras” ......................................................................................................... 16 Sergio Chahon A(s) Reforma(s) Urbana(s) do Rio de Janeiro no início do século XX ........................................................................... 23 Cristiane Jesus de Oliveira Pimentel Conflito Ibérico-Holandês: Portugal em destaque........................................................................................................ 27 Felipe Castanho Entrevista:....................................................................................................................................................................... 32 Carlo Ginzburg (Jessica Corais e Fernando Gralha) História no tempo presente: Nazismo........................................................................................................................... 35 Jessica Corais Fotografia e História – Reflexões Introdutórias ............................................................................................................ 40 Ana Maria Mauad A Memória e o Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel ............................................................................... 45 Allan Pereira de Oliveira Realengo: a construção de um bairro e as correntes que divergem sobre a origem de seu nome ............................ 48 Elizabeth Bertoldi e Nathália Guimarães No escuro do cinema: Reflexões sobre as relações entre cinema e História............................................................... 50 Fernando Gralha


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AO LEITOR

A

memória tem dois lados, a lembrança e o esquecimento. Diz a mitologia grega, que ao morrer todo ser humano, comum ou ilustre, deveria ir para o Hades, mundo dos mortos, o acesso a tal mundo se dava por um rio, nele se encontrava o barqueiro Caronte, que mediante ao pagamento de um óbulo (moeda grega antiga) carregava o morto à sua última morada. O rio se chamava Lethe (esquecimento, em grego), o interessante da história é que este rio em um determinado ponto continha uma bifurcação, dividindo o mesmo em dois braços, um mais caudaloso e tranquilo e outro mais estreito e de navegação difícil, o primeiro mantinha o nome, Lethe, o segundo chamava-se A-Letheia (o que não é esquecido). A decisão para onde levar o incauto morto, não cabia a Caronte, este consultava uma titânida que morava justamente na bifurcação do rio, Mnemósyne (deusa do que entendemos por “memória”), a deusa decidia para que lado Caronte deveria levar seus passageiros, quem era destinado ao braço do esquecimento, lugar escuro, silencioso, inundado, vagaria a esmo, sem sentido, sem lembranças, sem cores, sem alegria e lentamente, mergulhado no esquecimento de tudo, aos poucos perdia sua consciência e deixava de ser, já quem era selecionado para o braço ALetheia, chegaria à ilha dos Bem-Aventurados, estes são os que seriam lembrados ao longo dos tempos pelo mundo dos vivos, conservando sua

consciência, sua identidade, sua individualidade, uma forma de imortalidade. Mas qual era o critério de Mnemósyne? Como ela decidia de forma justa quem merecia o esquecimento e quem era destinado à imortalidade? A titânida consultava as suas nove filhas, as Musas, fruto da união entre Mnemósyne (a Memória) e Zeus (a Luz da Razão).

As musas Clio, Euterpe e Talia, por Eustache Le Sueur


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Eram Calíope (a Poesia épica), Euterpe (a Música de sopro), Clio (História), Melpomene (a Tragédia), Terpsicore (a Dança), Erato (a Música de cordas), Polimnia (o Canto), Urânia (Astronomia) e Tália (Comédia). Observando com cuidado, percebemos que as Musas são as personificações das formas discursivas do universo humano: as Artes, a História, a Ciência. Elas cantavam, representavam ou narravam a vida do morto à sua mãe, a partir de dados que recolhiam sobre ele com outras divindades, como Diké (a Justiça) e Sophrosyne (a “justa medida”), dentre outras. A partir da representação discursiva que as Musas faziam, apresentando uma representação do morto, Mnemósyne decidia o seu destino.

“levar o conhecimento”. O conhecimento é um nascer, um surgir algo que não havia, o conhecer é um gerador de nascimentos” É esta nossa ambição nesta empreitada, narrar a História, fazer conhecer, dar voz a professores e alunos, divulgar a produção acadêmica historiográfica e estimular a produção do fazer conhecer, da construção da memória, que nos livre do esquecimento, do não ser. Esperamos que nos acompanhem nesta viagem pelo rio da A-Letheia. Fernando Gralha

Para a maioria das almas, as Musas nada tinham que pudesse ser cantado, dançado ou narrado. Esses eram fadados ao esquecimento (Lethe), o terrível esquecimento de si, a perda da consciência e da identidade pessoal, e o triste esquecimento por aqueles que permaneceram no mundo dos seres vivos. Para poucos, as Musas tinham material para comporem os seus cantos, a suas danças ou as suas narrativas. Esses, que eram raros, eram destinados ao “não-esquecimento”. Portanto para sobreviver na memória, alcançar a bem aventurança, era preciso fazer, lembrar e narrar. Esta História me foi contada em uma aula das professoras da Unirio Claudia Beltrão e Patrícia Horvart, historiadoras e filósofas de mão cheia, e foi esta história mitológica que nos inspirou a batizar nossa Revista: Gnarus. Citando Ferreira 1 ... “Narrar nos remete para narro (fazer, conhecer, contar), um verbo derivado de gnarus, que significa ‘que conhece’, ‘que sabe’. Fundamentalmente, narrar é levar ao conhecimento e também ‘contar’, ‘dizer’. Gnarus tem a mesma raiz etimológica de nosco, ‘conhecer’, ‘tomar conhecimento’, ‘começar a conhecer’, ‘aprender a conhecer’. Acrescentando o prefixo cum a nosco, temos o verbo cognoscere, que significa “conhecer”. Narrar é essencialmente 1

FERREIRA, C. Bereshit: O início da narratividade hebraica bíblica. Phoînix, Rio de Janeiro: n. 13, p. 67-83, 2007.

Caronte ilustrado por Gustave Doré, para a Divina Comédia.


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Teoria da História

O PARAÍSO PERDIDO: APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA DA HISTÓRIA E OS HISTORIADORES Por Marcus Cruz

O

grande historiador inglês da Guerra Fria Edward Hallet Carr em seu singelo e denso livro “Que é a história?”, que reúne seis conferências proferidas em 1961 na Universidade de Cambridge em homenagem ao historiador Georges Macaulay Trevelyan, utiliza uma imagem para demonstrar o total e amplo desinteresse dos historiadores, no caso do século XIX, pela discussão dos aspectos teóricos da história: “Esta era uma idade da inocência e os historiadores caminhavam no Jardim do Paraíso, sem um fragmento de filosofia para cobri-los, nus e sem vergonha diante do deus da história. Desde então conhecemos o Pecado e experimentamos a Expulsão do Paraíso; os historiadores que hoje fingem prescindir da filosofia da história estão meramente tentando, inútil e auto conscientemente, como membros de uma colônia de nudista recriar o Jardim do Paraíso em seu subúrbio ajardinado”2

Seguindo ainda a imagem de Carr o número de historiadores que desejam, procuram e tentam ser nudistas é espantosamente grande. Julio Aróstegui, Professor Titular de História Contemporânea da Universidade Complutense de Madrid lamenta em obra recentemente lançada no Brasil que “Essas questões [metodologia, filosofia ou teoria da história], como sabemos, não tem na universidade espanhola – e curiosamente, muito menos nas faculdades de História – um estatuto próprio definido”3 Neste pequeno artigo gostaria enquanto docente que ministra disciplinas da área de Teoria e Metodologia da História voltar minhas reflexões para examinar o lugar das questões de ordem teórica e conceitual, para a importância dos problemas inerentes aos procedimentos metodológicos do conhecimento histórico na formação do jovem historiador seja do bacharel, seja do licenciado. A conclusão que se impõe após este íntimo e pessoal certame é de que por um lado as discussões dos aspectos teóricos e metodológicos da História são essenciais não apenas para os neófitos, mas para todos os integrantes do campo historiográfico. No entanto, por outro lado, é incontestável a pequena frequência e baixa densidade do debate conceitual e epistemológico entre os historiadores. Em um texto no final do século XX, que serve de introdução à coletânea Passados Recompostos. Campos e Canteiros da História, Jean Boutier e Dominique Julia afirmam: “Em que pensam os historiadores? A questão parecerá a muitos uma piada pois, ao contrário do que ocorre com os filósofos, não se espera dos historiadores que sejam virtuoses do conceito, nem que elaborem complexas arquiteturas teóricas”4. A visão dos autores 3

2

CARR, Edward Hallet. Que é historia? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p.21

ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica. Teoria e método. Bauru, SP: EDUSC, 2006. p.12. 4 BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique. Em que Pensam os Historiadores? In BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique (org).


Página |6 corrobora nossa perspectiva de que o debate teórico, conceitual e metodológico no campo historiográfico tem sido sistematicamente relegado a um segundo plano pelos historiadores ou até mesmo, o que é pior, sequer tem sido enfrentado pelos artesãos da oficina da História.

mostrava buracos e roturas, lá estava, na altura própria, a ampla e macia almofada do evolucionismo para os dissimular. A História sentia-se à vontade na corrente destes pensamentos fáceis; aliás, muitas vezes o disse comigo, os historiadores não tem necessidades filosóficas muito grandes.”6

Esta não é uma postura é nova e, portanto, não pode ser atribuída apenas aos historiadores contemporâneos, como podemos notar pelas palavras de Henri Berr no livro La Synthèse en Histoire. Essai critique et théorique, publicado em 1911: “A crise da História... o estado inorgânico dos estudos históricos...provém do fato de que um número excessivo de historiadores jamais refletiu sobre a natureza de sua ciência” 5. A análise do fundador da Revue de Synthèse Historique, apesar de centenária, infelizmente, continua atual e válida.

Representante da segunda “geração” dos Annales, Braudel assumi postura muito próxima de seu orientador de tese na aula inaugural do College de France de 1950 afirma sobre a filosofia da história: “Certamente, não nessa falência da filosofia da história, preparada muito tempo antes e em cujas ambições e conclusões precoces ninguém mais aceitava, mesmo antes do início deste século”7. A preocupação central dos historiadores ligados ao programa annalista se centravam em questões de ordem metodológica, ou seja, estabelecer procedimentos para o ofício do historiador como podemos perceber nesta outra passagem retirada da mesma aula inaugural citada a pouco:

Tal situação vivenciada e característica do campo historiográfico data dos primórdios do estabelecimento deste, nas primeiras décadas dos oitocentos quando o historicismo, no bojo da tradição histórica alemã, na busca de fundar uma ciência histórica rejeita firmemente a filosofia da História, especialmente aquela formulada por Georg Wilhelm Friedrich Hegel. A opção hegemônica na historiografia do século XIX foi afirmar que o historiador não é um teórico, que sua ocupação não é filosofar, mas sim, uma vez retirados dos documentos, narrar os acontecimentos como realmente aconteceram (wie es eigentlich gewesen) na célebre e sempre citada fórmula de Leopold von Ranke. Apesar da postura extremamente crítica em relação à produção histórica realizada pelos historiadores historicistas e metódicos as correntes historiográficas do século XX mantiveram uma resistência quase instintiva às questões teóricas e conceituais inerentes ao conhecimento histórico, podemos citar como exemplo deste posicionamento o grupo dos Annales. Em todas as “gerações” desta escola encontramos posturas de rejeição ao debate teórico. Comecemos por um dos fundadores dos Annales d’histoire économique e sociale: “A sua filosofia? Feita de qualquer maneira, com fórmulas tiradas do Auguste Comte, do Taine, do Claude Bernard que se ensinavam nos liceus, se Passados Recompostos. Campos e Canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: Editora FVG, 1998. p.21. 5 BERR, Henri. La Synthèse en histoire. Essai critique et théorique. Paris, Félix Alcan, 1911. p.15.

“Uma história nova só é possível pelo enorme levantamento de uma documentação que responde a essas novas questões. Duvido mesmo que o habitual trabalho artesanal do historiador esteja na medida de nossas atuais ambições. Com o perigo que isso pode representar e as dificuldades que a solução implica, não há salvação fora dos métodos do trabalho em equipes”8 As declarações outro ilustre representante dos Annales, Georges Duby, são ainda mais reveladoras acerca do lugar secundário, ou mesmo do não lugar da reflexão teórica nesta perspectiva historiográfica. Em entrevista a Guy Lardreau, o medievalista Frances marca bem claramente sua posição: “Tentemos ver como é que se trabalha. Você é filósofo, eu sou historiador; não tenho muito gosto pelas teorias; o meu ofício, faço-o, e não reflito por aí além sobre ele. Penso que temos que partir do concreto, da maneira de fazer, de trabalhar – na oficina”9. Essa atitude, porém, não se limita aos Annales ela se encontra disseminada mesmo entre autores que se debruçam sobre a história da escrita da história. Na

6

FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Presença, 1984. p.16. 7 BRAUDEL, Fernand. Posições da história em 1950. In BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a Historia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978. p. 21. 8 Idem. p.26. 9 DUBY, Georges; LARDREAU, Guy. Diálogos sobre a Nova História. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989. p. 36.


Página |7 introdução de sua obra, bastante conhecida, sobre a historiografia Charles Olivier Carbonell afirma:

progressivamente às descobertas, uma linguagem sobretudo sem flutuações nem equívocos”11

“O objetivo desta curta síntese é expor de um ponto de vista histórico – isto é situando-a constantemente no seu contexto – a diversidade dos modos de representação do passado no espaço e no tempo. Assim, falar-se-á mais de Heródoto do que de Platão, de Suetónio do que de Cícero, de Mabillon do que de Rousseau, de Mommsen do que de Dilthey, de Lucien Febvre do que de Raymond Aron...”10.

A preocupação central de Bloch é com a mobilidade da significação dos vocábulos ao longo do tempo e as dificuldades que isto traz para o trabalho historiográfico. No entanto, podemos observar também a percepção do autor de que além das questões do sentido das palavras, estas remetem para algo mais profundo, para uma problemática que o historiador não pode ser furtar de enfrentar:

Em suma, entendemos ser uma marca distintiva da tanto na constituição, quanto na consolidação do campo historiográfico, a marginalização do debate epistemológico. No entanto, a crise paradigmática que atingiu o pensamento histórico no último quartel do século XX pode se apresentar como uma oportunidade para o adensamento das discussões teóricas entre os historiadores. Diante da demolidora e desconstrutora crítica que atingiu e abalou o paradigma historiográfico iluminista, na denominação utilizada por Ciro Flamarion Cardoso, é mais do que necessário, é urgente que a comunidade acadêmica histórica proponha e realize um intenso e franco debate se não para estabelecer um novo paradigmática historiográfico pelo menos para refletir acerca do ofício dos historiadores no que parece ser um novo regime de historicidade.

“Estimar que a nomenclatura dos documentos possa bastar completamente para fixar a nossa seria o mesmo, em suma, que admitir que nos fornecem a análise toda pronta. A história, nesse caso, não teria muito a fazer. Felizmente, para nossa satisfação, não é nada disso, eis por que somos obrigados a procurar em outro lugar nossas grandes estruturas de classificação. Para fornecê-las, todo um léxico já nos é oferecido, cuja generalidade se pretende superior às ressonâncias de qualquer época particular. Elaborado, sem seu objetivo preestabelecido, pelos retoques de várias gerações de historiadores ele reúne elementos de data e de proveniência muito diversos.” [grifo nosso]12

A questão que podemos nos colocar é, após aceitarmos a necessidade da realização deste debate, qual o escopo destas discussões? Entendemos que a reflexão historiográfica deve privilegiar a construção de um aparato conceitual, ou seja, a elaboração de um conjunto de instrumentos analíticos que possibilitem aos historiadores se dedicarem ao objetivo primordial, qual seja a explicação dos processos históricos de transformação social. Marc Bloch na sua derradeira obra Apologia da História ou o ofício de historiador já clamava pela necessidade do pensamento histórico estabelecer o que ele denomina de nomenclatura: “Pois toda análise requer primeiro, como instrumento, uma linguagem apropriada capaz de desenhar com precisão os contornos dos fatos, embora conservando a flexibilidade necessária para se adaptar

Bloch, portanto, afirma a necessidade dos historiadores buscarem nossas grandes estruturas de classificação. Mas o que seriam essas grandes estruturas de classificação? Em nossa interpretação entendemos que o autor salienta a necessidade da pesquisa histórica construir um instrumental analítico, em outras palavras um conjunto de conceitos que permitam a explicação dos processos históricos. A constituição de um campo de conhecimento ocorre, na maioria das vezes, concomitantemente com a construção dos conceitos que irão não somente estabelecer os parâmetros analíticos da disciplina, em algumas situações a partir de complexos sistemas formais, mas também individualizar a área de saber em relação as demais. Como afirma Julio Aróstegui: “Dessa forma, sempre que um certo tipo de estudo da realidade define com a devida clareza seu campo, seu âmbito, seu objeto, quer dizer, o tipo de fenômenos a que se dedica, e se vai desenhando a forma de neles penetrar, ou seja, seu método, surge a necessidade de estabelecer uma distinção, pelo menos relativa, entre esse campo que se pretende conhecer – a sociedade, a 11

10

CARBONELL, Charles Olivier. Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987. p.6.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro : Jorge zahar, 2001. p.135. 12

Idem, p. 143.


Página |8 composição da matéria, ávida, os números, a mente humana, etc. – e o conjunto acumulado de conhecimento e de doutrinas sobre tal campo. A criação de um vocabulário específico para uma determinada área de conhecimento começa aí: na forma de diferenciar na linguagem um certo objeto de conhecimento e a disciplina cognoscitiva científica que dele se ocupa”13 Paradoxalmente no momento em que a História se estabelecia enquanto um campo de conhecimento, isto é ao longo do século XIX, a rejeição radical da filosofia da história limitou ou mesmo afastou as discussões teóricas e epistemológicas do processo de constituição área do saber, fazendo que os historiadores dos oitocentos se voltassem fundamentalmente para a criação de procedimentos metodológicos que garantiriam a cientificidade e a legitimidade da História. É candente, portanto, a necessidade dos historiadores se lançarem destemidamente ao debate teórico e ao refinamento conceitual de seus instrumentos de análise. No entanto, essas discussões precisam superar certa atitude bastante comum na historiografia do século XX que, muitas vezes, sob o manto legitimador da interdisciplinaridade, a rigor, o que fez foi saquear, importar, sem uma reflexão crítica mais aprofundada, conceitos de outras ciências sociais. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o conceito de conjuntura oriundo da economia, ou o de estrutura, tomado do estruturalismo levistraussiano, ou mais recentemente com a noção de cultura da antropologia simbólica, especialmente aquela proposta por Clifford Geertz.

exercício intelectual, que contribua para o refinamento teórico do campo”14 Esta proposta apresenta-se como de grande interesse pelo própria tipologia do conhecimento histórico que possui um caráter auto reflexivo que o diferencia no conjunto da Ciências Sociais, ou seja o trabalho do historiador exige um continuo e constante exercício de memória, de retomada da produção do conhecimento já produzido acerca da temática da pesquisa. Ao contrário de um físico que lê o Philosophiae naturalis principia mathematica de Newton, publicado em 1687, nos dias de hoje apenas por curiosidade, um historiador contemporâneo lê, por exemplo, History of the Decline and Fall of the Roman Empire de Edward Gibbon publicado entre 1776 e1788 com interesse historiográfico. Isto significa dizer que em decorrência da característica auto reflexiva de conhecimento histórico, os historiadores dialogam com as obras históricas do passado, os historiadores que nos antecederam ainda são nossos interlocutores, o que torna pertinente e fecunda a perspectiva de investigação da história da escrita da História como campo de debate da teoria da História.

O debate teórico que se impõe não pode ser realizado sem o estabelecimento de diretrizes capazes de não somente nortear as discussões, mas também de criar as condições para um certame frutífero e produtivo. Um caminho que nos parece particularmente fecundo visando atingir o objetivo de adensar o debate teórico do campo histórico é o proposto por Arno Wheling, ou seja a história da escrita da história se constituir como um “laboratório” de uma epistemologia histórica. Nas palavras do próprio autor: “Laboratório, sem nenhum travo fisicalista, porque se trata da possibilidade de aplicação das categorias e dos procedimentos epistemológicos a determinados tipos de fontes - as obras historiográficas – com caráter de 14 13

AROSTEGUI. Op. cit. 27.

WHELING, Arno. Historiografia e epistemologia histórica IN MALERBA, Jurandir (org). A História Escrita. Teoria e história da historiografia. São Paulo Contexto, 2006. p. 175.


Página |9 Desta forma a história da escrita da História passaria ser integrada à história da ciência, assumindo a condição de lócus por excelência de formulação de uma epistemologia histórica. Pois como afirma Wheling: “O ‘território do historiador’, assim como o dos demais campos científicos é composto por uma rede em que interagem questões epistemológicas, metodológicas e empíricas, só seccionáveis e distintas por artifício lógico; mas é inegável que as questões de natureza epistemológica, nos diferentes campos científicos, por sua vez articulam-se, como epistemologias ‘setoriais’ que são, à epistemologia geral e dão o tom da abordagem científica do campo.”15 A construção de uma teoria da história, de uma epistemologia histórica configura-se, pelo menos assim nos parece, como uma tarefa premente e da qual os historiadores não podem se furtarem sob a pena de reduzirem a História a um mero jogo de linguagem ou um amontoado de descrições densas. Não pretendemos oferecer uma resposta definitiva para a questão proposta, mas levantar possibilidades de reflexão, que nos parecem especialmente pertinentes em um momento em que na história os problemas relativos a construção de uma teoria da história necessitam assumir uma relevância central para o campo historiográfico. Gostaria de finalizar voltando à imagem inicial tomada de Edward Hallet Carr acerca da perda da inocência dos historiadores quanto às questões teóricas concernente à História. Como no celebre poema de John Milton, Paraíso Perdido, os historiadores foram expulsos do Jardim do Éden e teremos que refletir teoricamente com o suor de nossos rostos e com dores de parto elaborar nossos conceitos, mas a redenção nos aguarda.

Marcus Cruz: Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professor Adjunto na área de Teoria da História do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso. Membro fundador do VIVARIUM – Laboratório de Estudos da Antiguidade e Medievo.

15

Idem, ibidem.

Edward Hallett Carr (1892–1982)


P á g i n a | 10

Ensaio

AS IDEIAS NÃO CORRESPONDEM AOS FATOS: LUZES SOBRE A IDADE MÉDIA Por Bruno Gonçalves Álvaro e Rafael Costa Prata “A rica escola medieval francesa, apesar de seus sucessos científicos, parece não ter mudado nada nos meios de comunicação e nas ideias transmitidas. Às vezes me sinto desencorajado ao reencontrar intactos os dois clichês vindos dos séculos XVIII e XIX: de um lado a Idade Média obscurantista e, como contraste, a Idade Média “dos trovadores”, suave. Jacques Le Goff, 2003 [2005].

N

ão é novidade que a Idade Média, período

França no ano de 2003 e traduzido para nossa língua

comumente conhecido como o intermédio

em 2005, ainda hoje, apesar de quase 10 anos, o que foi

entre a Antiguidade e a Modernidade, é uma

vaticinado pelo reconhecido medievalista continua

parte da história da humanidade que desperta repulsa

sendo uma imagem recorrente, inclusive, na imprensa

ou admiração. Curiosidade ou desprezo.

do nosso país.

Seja a utilização negativa de termos e expressões

Frente a isso, inspirados a partir de uma crônica do

como “isso é muito medieval...”, “essa política feudal

jornalista e cineasta brasileiro Arnaldo Jabor, publicada

em que nos encontramos...” no linguajar corriqueiro, ou

em julho de 2012, decidimos expor como, ainda hoje,

a construção heroica e romântica dos cavaleiros em

mesmo,

em

tese,

as

mais

bem

reluzentes armaduras figurando nas telas de cinema, fica evidente que este período histórico está continuamente em pauta. A dualidade que se coloca, acreditamos, jamais se encerrará: A Idade Média sombria construída pelo chamado Renascimento e perpetuada pelo Iluminismo é tão prejudicial quanto àquele Medievo fantasioso do

Romantismo do século XIX. A epígrafe que inicia este breve ensaio foi retirada do livro Em busca da Idade Média,16 fruto de uma série de conversas entre Jacques Le Goff e Jean-Maurice de Montremy, o mesmo foi lançado originalmente na 16

LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

Capa do livro de Justo L. Gonzalez

informadas


P á g i n a | 11 personalidades do Brasil juntamente com aqueles que

Atualmente, não faltam manuais de qualidade,

produzem informação e formações de opiniões nos

traduzidos ou mesmo redigidos em português, no

veículos midiáticos continuam a reproduzir ideias que

auxílio de mestres e estudantes – sejam aqueles

já há muito tempo não correspondem aos fatos.

interessados por enveredar na especialidade ou mesmo

Antes de qualquer coisa, cabe ressaltar que não se

conhecer um pouco mais o tema.17

trata de uma crítica aos autores que porventura aqui

Diante do volume editorial dedicado ao período,18

citaremos, tampouco, uma busca por um academicismo

não seria considerável questionar por que ainda nos

utópico que ignora as reais lacunas entre o que é

deparamos muito mais no nosso dia a dia com as duas

produzido em termos de pesquisa nas Humanidades e o

faces estereotipadas da Idade Média do que com os

que efetivamente chega à população. Até porque é

esforços por sua desconstrução?

evidente que o tema reside em questões mais profundas e delicadas como, por exemplo, nos perguntarmos onde reside o problema ao fato de que, apesar de quase um século de Estudos Medievais desprendidos

das

duas

faces

que

colocamos

inicialmente – a obscura e a dourada – ainda hoje, nos parece, que, ao menos, por nossa experiência docente, o trabalho de desconstruir a famosa Idade das Trevas é tão

constante

quanto

desmitificar

o

Medievo

fantasioso. Porém, neste texto, em especial, focaremos

Vejamos dois exemplos significativos, colhidos na Internet, do uso do período medieval como metáfora para uma crítica a que se tem chamado de regresso da sociedade contemporânea: O primeiro deles, escrito pelo já citado jornalista Arnaldo Jabor e, por fim, o recente “Manifesto em Defesa da Civilização”,19 um abaixo-assinado

reproduzido

pela

publicação

eletrônica multimídia Carta Maior e alojado no site Petição Pública.20

apenas na representação equivocada de Idade Média

“O tempo atual é Renascença ou Idade Média?”.

como momento de regresso da humanidade e o moto-

Com esta indagação Arnaldo Jabor iniciou seu texto

contínuo que é a sua utilização para exemplificar as mazelas gerais pelas quais passa a contemporaneidade. Sempre o mais do mesmo: A Idade Média ontem e hoje O tema em questão não é novidade para pesquisadores de História Medieval nem

para

estudantes de graduação em História nos seus primeiros passos do curso. É comum o docente, principalmente se especialista na área, iniciar seus encontros discutindo a trajetória historiográfica da pesquisa acadêmica sobre o período medieval. É fundamental lançar bases aos futuros professores para, deste modo, iniciar as reflexões temáticas mais gerais, como Império Carolíngio, Papado Medieval, Cruzadas, etc.

17

Podemos citar, entre outros: BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América . São Paulo: Globo, 2006; LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2005; _____; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP; São Paulo, SP: EDUSC; Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2v.; FRANCO JR., Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006, entre

outros, inclusive, abordando, também, a Idade Média Oriental. 18 Não estamos levando em consideração aqui a qualidade dos trabalhos. Mas, não podemos ignorar que, atualmente, em qualquer prateleira de lojas e livrarias há, no mínimo, um livro, acadêmico ou não, que verse sobre o tema Idade Média. Sem contar, as inúmeras produções cinematográficas que não de hoje lotam as salas de cinema. Atualmente, é possível verificar, inclusive, um novo nicho mercadológico: as séries de TV. 19 Abaixo-assinado MANIFESTO EM DEFESA DA CIVILIZAÇÃO. Disponível em: <http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2012N30206>. Acesso em: 19 de out. 2012, 22:45. 20 <http://www.peticaopublica.com.br>. Acesso em: 19 de out. 2012, 22:45.


P á g i n a | 12 publicado em sua coluna no Site do Estadão, no dia 17 de Julho de 2012. Em

sua

21

reflexão,

não é algo de ordem tão recente, de modo que não deve ser creditado com exclusividade a colunistas que,

intitulada

As ideias não

correspondem mais aos fatos, ele procurou apontar quais seriam as características principais do atual cenário político brasileiro e, de maneira geral, também o sul-americano. O conhecido colunista sacramentou

como Arnaldo Jabor, se utilizam dessa recorrente “analogia” principalmente quando procuram denegrir alguma estrutura contemporânea, seja ela referente ao quadro político, econômico, social, e em outros casos até religioso.24

que no atual quadro é tão difícil visualizar algo positivo,

Mais recentemente, o site Carta Maior, reproduziu

a paisagem é tão assoladora que ela imediatamente

na íntegra o texto de uma petição pública, intitulada

nos coloca diante de um suposto dilema: Estamos

Manifesto em Defesa da Civilização, e que, segundo,

diante de uma “Renascença ou Idade Média, progresso

informação da publicação multimídia, foi elaborado

ou regresso?”.22

“por um grupo de economistas formados pela

Segundo ele sua “angústia filosófica” se manifestava

daquela

maneira

porque,

em

Unicamp”.25

sua

No texto da petição, elaborado, segundo nos

percepção, cada vez se torna evidente que dentro do

parece, como uma crítica a atual situação da economia

cenário político “a barbárie das coisas invadiu o mundo

global, os autores relatam a situação caótica na qual

23

dos homens”.

está envolta, praticamente, toda a Europa e, ainda, os

Fica claro que o recurso utilizado por Jabor para caracterizar, ou melhor, para descaracterizar o

EUA. Parte do texto sacramenta a dura realidade econômica atual:

conturbado cenário político atual, foi o de recorrer a já

Em toda zona do euro cresce a prática medieval de

costumeira metáfora incidente sobre a Idade Média,

anonimamente abandonar bebês dentro de caixas nas

talvez,

atitude

portas de hospitais e igrejas. A Inglaterra do Lord

comparativa, se tornaria mais fácil para o público leitor,

Beveridge, um dos inspiradores do Welfare State, vem

compreender com perfeição a “profundidade” de sua

cortando

crítica.

especializados para idosos e doentes terminais. Cortes

por

entender

que,

com

essa

Como ressaltamos no início, não é nenhuma novidade associar a Idade Média a ideia de um período marcado por um notável regresso intelectual. Em contrapartida, o período posterior, a Renascença, ficou caracterizado como o momento de advento das luzes, do progresso e do resgate do ideal da Antiguidade Clássica. Entretanto, esta dualidade, por nós já frisada, 21

JABOR, Arnaldo. As ideias não correspondem mais aos fatos. ESTADÃO.COM.BR, São Paulo, 17 de jul. 2012. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,as-ideiasnao-correspondem-mais-aos-fatos-,901284,0.htm>. Acesso em: 19 de out. 2012, 22:51. 22 Idem. 23 Idem.

recorrentemente

alguns

serviços

substantivos no valor das aposentadorias e pensões constituem uma realidade cada vez mais presente para muitos integrantes da chamada comunidade europeia. Por toda a Europa, museus, teatros, bibliotecas e universidades públicas sofrem cortes sistemáticos em seus orçamentos. Em muitas empresas e órgãos públicos é cada vez mais comum a prática de trabalhar sem receber. Ainda oficialmente empregado é possível, 24

Sobre isso ver, entre outros, GUERREAU, Alain. El futuro de un pasado: La Edad Media en el siglo XXI. Barcelona: Crítica, 2002. 25 DA REDAÇÃO. Economistas da Unicamp lançam Manifesto em Defesa da Civilização, Carta Maior, São Paulo, 19 de out. 2012. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/ templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21110&fb_sourc e=message>. Acesso em: 19 de out. 2012, 23:19.


P á g i n a | 13 ao menos, manter a esperança de um dia ter seus

Parece-nos que mesmo após todo o século XX, tanto

vencimentos efetivamente pagos. Em pior situação está

para Jabor como para estes que redigiram tal

o desempregado. Grande parte deles são jovens

manifesto, a despeito aqui dos seus objetivos finais e

altamente qualificados.

26

dos temas especificamente abordados, suas percepções

É curioso observarmos que diante da atual conjuntura,

principalmente,

da

Europa,

renasce

constantemente a célebre máxima de comparar o atual contexto com os tempos “medievais”, principalmente, a partir

dos

escritos

deixados

pelos

“heroicos

combatentes” revolucionários que no famoso decreto de 11 de Agosto de 1789, afirmou “A Assembleia

Nacional destruiu completamente o regime feudal”.27 Em contrapartida, ressurge, também, nos países

certamente se aproximam ideologicamente, no que tange ao objetivo pragmático de sua utilização, aos criadores do “rotulo” do Medievo como um espaço cronológico onde reinou a anarquia social, cultural, política e econômica. No entanto, como sabemos, suas origens devem, ser procuradas em um passado longínquo: primeiramente nas penas dos humanistas do século XIV e XV e, a partir deste passo inicial, atingir posteriormente, com mais intensidade e reflexo, os escritos dos iluministas no século XVIII.30

europeus ou mesmo a léguas de distância, como nos EUA, discursos que exaltam, por exemplo, uma unificação Europeia aos moldes do que foi a Cristandade nos tempos medievais para a defesa de um inimigo externo28 ou, como pudemos testemunhar na “Cruzada” convocada por George W. Bush logo após os ataques de 11 de setembro de 2001. Ainda em referência ao texto, sem dúvidas pertinente, reproduzido pela Carta Maior, é possível ler já no seu parágrafo final: “A civilização precisa ser

defendida! As promessas da modernidade ainda não foram entregues”.29 É interessante a proximidade, ao menos nesse ponto, entre a tal “angústia” de Arnaldo Jabor e a convocatória de luta pela tomada das promessas da modernidade que ainda não estão em nossas mãos. Capa do livro de Régine Pernoud 26

Idem. Ressaltamos que o texto do abaixo-assinado também pode ser lido em: <http://www.peticaopublica.com.br/? pi=P2012N30206>, conforme nota 6, deste artigo. 27 BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1982. p. 12. 28 Como não relembrar do anúncio de TV produzido pela União Europeia no qual uma mulher branca, vestida com um uniforme composto pelas cores da EU (azul e amarelo) é cercada e ameaçada por lutadores de artes marciais típicas de países componentes do chamado BRICs (no qual se inclui o Brasil)? 29 DA REDAÇÃO, op. cit.

Não foram poucos os que se empenharam a esse favor. Um exemplo paradigmático, de tantos que poderiam ser citados, é o caso do filósofo iluminista Voltaire (1694-1778), que enxergava o Medievo como 30

Ver: RIU, Manuel. ¿Qué es la Edad Media?. In: _____. La Alta Edad Media (Del siglo V al siglo XII). Barcelona: Montesinos, 1989. p. 9-25.


P á g i n a | 14 um

período

marcado

predominantemente

pelo

domínio implacável da Igreja sobre os homens,

historiadores quase sempre observaram que é preciso dissipar algumas imagens convencionais.32

impedindo-os de seguirem sua marcha natural evolutiva, de forma que aquele período deveria ser esquecido e, principalmente, superado em todas as suas estruturas.

A essa altura fica claro que, seja Arnaldo Jabor ou os economistas preocupados com a crise econômica e seus impactos no mundo, o que subjaz é um desconhecimento – intencional ou não – dos recentes

Hoje, entretanto, admite-se, que esta construção

(velhos) avanços que a historiografia dedicada a Idade

sobre a Idade Média é resultado imediato de um

Média tem alcançado e aqui nos resta o incômodo

interesse ideológico, uma realidade superada que não

questionamento que pode vir à tona ao mais atento

pode ser de forma alguma tomada como um referencial

leitor: Mas, de quem é a culpa?

para compreender a complexa realidade histórica do

Conclusões

momento em questão, de modo que, em virtude destas problemáticas, já tem sido feito há um longo tempo um trabalho

de

desconstrução

por

iluministas, tampouco, os românticos do século XIX,

especialistas no assunto, a fim de conferir novas luzes

como Walter Scott ou Victor Hugo. Não deve pesar

ao Medievo, possibilitando ao período um quadro mais

sobre

coerente, equilibrado e diferente do que as luzes do

historiadores cerrados em suas salas de aulas e

século XVIII refletiram nele.

empreendido

Ora, não se trata de culpar os renascentistas, os

31

Média que carece da boa vontade da imprensa ou mesmo dos muitos formadores de opiniões, que têm surgido na busca por conhecer aquilo que tem sido produzido sobre o assunto, amparados pelo advento da Internet e de suas redes sociais. O próprio Iluminismo com

generalizações

ou

aqueles

o

egocentrismo

dos

escritórios e que se esquecem do principal: o diálogo.

Contudo, em nossa opinião, não é apenas a Idade

sofre

estes

que

acabam

por

descaracterizá-lo. Sobre isso ressalta Tzvetan Todorov:

Ao contrário, essas duas principais faces da Idade Média devem ser constantemente motivo de interesse dos especialistas e objeto diário no esforço de diminuir a lacuna entre os resultados das nossas pesquisas e o cotidiano que nos cerca. E isso é trabalho do historiador atuante e consciente de que o estudo da Idade Média (ou de todo e qualquer período do passado) não trará soluções para o tempo presente, mas, certamente, contribuirá um pouco mais para sua compreensão.33

Não é fácil dizer em que consiste exatamente o projeto das Luzes e isso por duas razões. Primeiro, as Luzes são uma época de conclusão, de recapitulação, de síntese – e não de inovação radical. As grandes ideias das Luzes não tem origem no século XVIII;

Trata-se na verdade de observar o período medieval sob um prisma mais objetivo em suas especificidades, que visa não compactuar seja com um olhar demasiadamente negativo, ou de outro modo lúdico,

quando elas não vêm da Antiguidade, trazem os traços da Idade Média, do Renascimento e da época Clássica. As Luzes absorvem e articulam opiniões que, no passado, estavam em conflito. É por isso que os 31

Ver sobre isso: AMALVI, Christian. Idade Média. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP; São Paulo, SP: EDUSC; Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2v. V. 1. p. 537-551.

32

TODOROV, Tzvetan. O Espírito das Luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008. p. 13. 33 Conforme afirma Jacques Le Goff: “A Idade Média

certamente não me trouxe soluções para o tempo presente. Em compensação, ela trabalhou em mim tanto quanto eu trabalhei nela – e trabalhou em mim como homem militante tanto no século XX como agora no XXI. Para adaptar uma fórmula de Stanislas Fumet, há uma história da Idade Média em minha vida, nas “dádivas” que a história faz ao historiador. A história me empurrou para a ação.” LE GOFF, op. cit., p. 19.


P á g i n a | 15 renunciando, em todo caso, a proselitismos de qualquer

veloz e falamos discursos antigos. As ideias não

ordem.

correspondem mais aos fatos (...)” e isso se aplica, sem

Como afirma a medievalista brasileira Néri de Barros Almeida:

dúvidas, àqueles que ainda vislumbram a Idade Média como

um

período

tenebroso

ou

de

sóis

resplandecentes em armaduras cavalheirescas, quando,

A Europa econômica se tornou realidade no início

no fim, o que nos resta é, finalmente, aceitar que os

do século XXI e tende a se impor como modelo de

homens e mulheres que viveram no Medievo foram,

relações políticas, culturais e sociais. Os fundamentos

simplesmente, humanos, demasiado humanos e uma

desta Europa unificada economicamente, no entanto,

das muitas similitudes que poderíamos encontrar entre

são buscados com grande insistência nos domínios da

eles e nós é a de depositar em um passado longínquo, e

política e da cultura. Há os que protestam uma Europa

que sempre nos escapa, a metáfora do desespero.

ancestral nascida da Antiguidade ou na Idade Média,

Porém, hoje nós sabemos que isso é atribuir à História

outros, afirmam que cabe à Europa atual debelar os

um tribunal que não lhe pertence e isso nós não

males do nacionalismo que por duas vezes ameaçaram

devemos deixar escapar, pois, como um dia afirmou um

boa parte dos países da região. Neste panorama a

dos mais importantes medievalistas do século passado:

Idade Média se torna muitas vezes terreno de

“A história continua”.35

argumentação e debate. Afinal, a assim chamada Idade das Trevas, se tornou, pelo “obscurecimento” que a fama lhe legou, capaz de mimetizar paisagens contemporâneas. Dessa forma pode ser tomada como o terreno de nascimento dessa Europa cultural, ou das especificidades “étnicas” que engendram as realidades nacionais e seus conflitos sangrentos. Problemas estes, latentes na historiografia dos séculos XIX e XX. Essas apropriações e interpretações da Idade Média, grassam como verdadeiras, naturalizadas no senso comum

Bruno Gonçalves Álvaro: Professor Assistente II de História

formado pelo ensino tradicional.34

Antiga e Medieval do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe. Graduado em História

Como salientamos e como demonstrado por

pelas Faculdades Integradas Simonsen. Mestre e doutorando

Almeida, a Idade Média está efetivamente em pauta,

em História pelo Programa de Pós-Graduação em História

cabe, desta forma, aos historiadores se debruçarem não

Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

somente nos temas que a envolve, mas, também, no seu

Pesquisador do Vivarium – Laboratório de Estudos da

passado e presente historiográficos. Isso é fundamental

Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste).

para o ofício do historiador.

Rafael

De maneira conclusiva, como afirmou Arnaldo Jabor, “a rapidez do mundo atual, para o bem ou para o

mal, nos deixa para trás. Vivemos uma modernidade

Costa

Prata:

Graduando

em

História

pela

Universidade Federal de Sergipe. Monitor da disciplina História Medieval I e integrante do Vivarium – Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste).

34

ALMEIDA, Néri de Barros. Apresentação. In: _____. (Org.). A Idade Média entre os séculos XIX e XX: Estudos de Historiografia. Campinas, SP: Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2008. p. 7-9. p. 7.

35

DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ Editora UFRJ, 1993. p. 158.


P á g i n a | 16

Resenha

UM CONVITE À LEITURA DE “CAMINHOS E FRONTEIRAS” Por Sergio Chahon

C

aminhos e fronteiras, obra de autoria de

(1945) e Índios e mamelucos na expansão paulista

Sérgio Buarque de Holanda publicada pela

(1949), texto que serviu de embrião para o livro em

primeira vez em 1957, é mais do que um

pauta. A leitura de Caminhos e fronteiras, no entanto,

estudo sobre a história de São Paulo ao tempo dos

não se limita a lançar luz sobre a história da sociedade

bandeirantes. É, também, uma das obras mais ricas e

paulista ao tempo dos bandeirantes; coloca-nos ainda

complexas de nossa historiografia, tanto do ponto de

em contato com uma das obras mais ricas e complexas

vista dos temas nela explorados quanto dos métodos

da historiografia brasileira, tanto no que se refere às

utilizados por seu autor. Em Caminhos, S. B. de Holanda

questões e possibilidades temáticas por ela ensejadas

persegue o objetivo de apresentar a história dos

quanto no tocante aos métodos e perspectivas de

antigos habitantes de Piratininga como a da formação de uma civilização, um conjunto cultural original, resultante da interação entre duas culturas: a adventícia, identificada aos europeus e seus descendentes, e a nativa, associada aos diferentes povos indígenas com os quais os primeiros vão entrando em contato. Nas considerações oferecidas por Holanda, combinamse a atenção aos detalhes da vida material

e

desvelamento

cotidiana de

traços

e

o de

mentalidade e valores capazes de lançar luz sobre grandes totalidades culturais.

análise escolhidos por seu autor. Em artigo recente, no qual se propõe a traçar um panorama da produção historiográfica referente à cultura no Brasil colonial, a historiadora Laura de Mello e Souza reserva a Caminhos e

fronteiras um lugar especial. Vindo depois de obras pioneiras, como

Capítulos de história colonial (1907) de Capistrano de Abreu e

Vida e morte do bandeirante (1929) de José de Alcântara Machado de Oliveira, o livro de S. B. de Holanda assinala, segundo Mello e Souza, a consolidação definitiva

desse

último

como

A 1ª edição de Caminhos e fronteiras remonta ao

historiador da cultura, voltado para o “estudo

ano de 1957. Nessa obra, Sérgio Buarque de Holanda

minucioso das técnicas e práticas inscritas na vida

dá prosseguimento a seus estudos sobre a sociedade

cotidiana” (Souza in Freitas, 2001, p.24). Ao lado de

que, ao tempo do Brasil-Colônia, floresceu no planalto

outros trabalhos fundamentais do mesmo autor, como

de Piratininga, na antiga capitania de São Vicente –

Raízes do Brasil (1936), Visão do paraíso (1959) e

focalizando, em particular, o fenômeno da expansão

Formação da literatura brasileira (1959), Caminhos e

dos bandeirantes paulistas pelos caminhos do sertão.

fronteiras representaria ao mesmo tempo o próprio

Antes de 1957, já publicara, por exemplo, Monções

nascimento, em sua forma mais plena e amadurecida,


P á g i n a | 17 de uma história da cultura no Brasil. Sua publicação,

Ainda no prefácio de Caminhos e fronteiras, Sérgio

além de lançar luz sobre a história dos antigos paulistas,

Buarque de Holanda julga necessário definir os traços

contribuiria decisivamente, portanto, para o advento

gerais dessa civilização mameluca, isto é, mestiça,

de uma reflexão sobre o papel da cultura na formação

valendo-se, para tanto, de palavras já gravadas nas

social brasileira enfim desvinculada tanto do “brilhante

primeiras páginas de Monções:

tom ensaístico” até então dominante quanto de certa superposição

entre

a

disciplina

histórica

e

a

antropologia – da qual ainda se ressentiria, por sinal, a obra fundadora de Gilberto Freyre (Idem, p.29 e 37).

(...) a lentidão com que no planalto paulista se vão impor costumes, técnicas ou tradições vindos da metrópole

(...)

terá

profundas

consequências.

Desenvolvendo-se com mais liberdade e abandono do

Em Caminhos e fronteiras, de forma, talvez, mais

que em outras capitanias, a ação colonizadora realiza-

acabada do que em escritos anteriores, S. B. de

se, aqui, por uma contínua adaptação a condições

Holanda persegue o objetivo de apresentar a história

específicas do meio americano. Por isso mesmo não se

dos antigos habitantes da capitania de Martim Afonso

enrija logo em formas inflexíveis. Retrocede, ao

como a da formação de uma civilização, um conjunto

contrário, a padrões primitivos e rudes: espécie de

cultural original, resultante da interação complexa

tributo pago para um melhor conhecimento e para a

entre duas culturas: a adventícia, identificada aos

posse final da terra. Só aos poucos, embora com

europeus, sobretudo portugueses, e seus descendentes,

extraordinária consistência, consegue o europeu

e a nativa, associada aos diferentes povos indígenas

implantar num país estranho algumas formas de vida

com os quais os primeiros vão entrando em contato. É

que trazia do Velho Mundo. Com a consistência do

interessante observar como, no prefácio de Caminhos,

couro, não a do ferro ou do bronze, dobrando-se,

nosso autor confere à ideia de “fronteira” uma

ajustando-se, amoldando-se a todas as asperezas do

abrangência que transcende o significado mais usual do

meio (Idem, p.10).

termo, relacionado

a considerações de ordem

eminentemente geográfica. Contraposto, enquanto signo da fixação das populações no espaço, à noção de “caminho”, ligada por sua vez ao incessante mover-se dos paulistas pelos rios e veredas do sertão, o termo em questão alude também a toda a sorte de adaptações e arranjos culturais resultantes do convívio entre adventícios e povos nativos. Eis a ideia de “fronteira” que serve de orientação ao livro de Sérgio Buarque: “Fronteira (...) entre paisagens, populações, hábitos, instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam, ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos ou simbióticos, ora a afirmar-se, ao menos enquanto não a superasse a vitória final dos elementos que se tivessem revelado mais ativos, mais robustos ou melhor equipados” (Holanda, 1994, p.12-3).

Neste pequeno trecho, verdadeiramente lapidar, encontram-se

resumidas

algumas

das

principais

premissas analíticas que se fazem presentes ao longo de toda a obra em estudo. Em primeiro lugar, a situação histórica e geográfica peculiar da sociedade que se ia formando no planalto, periférica em relação ao sistema colonial – cujo centro, até o séc. XVIII, eram as terras da “marinha” – e ligada por vínculos muito frouxos à metrópole portuguesa. Uma situação que imprime à ação colonizadora nessas paragens uma peculiar “liberdade” e “abandono”, abrindo larga margem a improvisos e adaptações. Em segundo lugar, a estreita ligação entre a forma assumida pela sociedade paulista e as pressões e desafios originados do “meio americano”, isto é, a natureza circundante, com destaque para os naturais da terra. Pobre em comparação com as regiões de agricultura do litoral, a


P á g i n a | 18 capitania de São Vicente condena seus habitantes a

Por outro lado, se a cultura material e o cotidiano

uma existência de privações e escassez crônicas; é este

servem ao mesmo tempo como cenário e matéria-

fato, mais do que uma suposta bravura inata ou espírito

prima para a produção de uma nova civilização em

aventuroso, que explicaria a vocação dos paulistas

terras paulistas, é a virtual onipresença do elemento

antigos para o caminho, para o espaço aberto que

indígena no contexto estudado por nosso autor que

“convida ao movimento”, e não para a fixação nas

fornece o combustível necessário à mesma produção.

grandes propriedades, simbolizada pela solidez das

Ilana Blaj, em artigo sobre S. B. de Holanda enquanto

casas-grandes da zona açucareira. Em terceiro lugar,

historiador da cultura material, exprime bem essa ideia

como resultado da combinação entre as duas premissas

ao situar lado a lado a interação constante entre meio-

anteriores, a maior abertura das gentes de São Vicente

sociedade-cultura

à adoção de “padrões primitivos e rudes” ou seja,

português-mameluco, apontando ambas como fatores

utensílios, técnicas, costumes e atitudes derivados, em

geradores de uma síntese histórica genuinamente nova:

grande parte, da tradição cultural dos povos indígenas.

a “cultura paulista em suas inúmeras sedimentações

Relacionada à última premissa, uma percepção

e

aquela

outra

entre

índio-

provisórias” (Blaj in Candido, 1998, p.36).

notável de S. B. de Holanda sobre o caráter particular

Tema sempre recorrente em Caminhos e fronteiras

da síntese cultural operada no planalto vicentino:

é, não por acaso, o das relações entre portugueses e

acossado por uma natureza, a princípio, francamente

seus descendentes e as diversas nações indígenas

hostil, o colono paulista aceita, sim, o rebaixamento de

estabelecidas na região de Piratininga e espalhadas

seus padrões de civilidade, o esquecimento de “formas

pelo sertão (caiapós, guaicurus, carijós, etc.). Relações

de vida” importadas da Europa; mas o faz de maneira

íntimas, cotidianas e muitas vezes tensas, nas quais os

seletiva, procurando resguardar ao máximo os ideais e

homens e mulheres nativos assumem diferentes papéis:

valores relacionados à sua versão própria da sociedade

escravos a serviço dos senhores brancos, na qualidade

e da família. Aqui se encontra o significado último da

de “negros da terra”, continuamente apresados pelas

ênfase concedida aos aspectos da chamada “cultura

expedições bandeirantes; agentes da resistência nas

material”, tão marcante em Caminhos e fronteiras: tal

lutas contra o próprio extermínio, ameaça permanente

ênfase não se deveria a quaisquer preferências

aos paulistas enfurnados nas veredas e rios do interior;

particulares de seu autor pelos mesmos aspectos, mas à

guardiões e mestres dos segredos da natureza,

sua convicção de que no plano das atitudes,

portadores

ferramentas e técnicas aplicadas no dia a dia os colonos

indispensáveis à sobrevivência no sertão hostil. Este

e seus primeiros descendentes ter-se-iam mostrado

último papel reservado ao elemento indígena é o que

“muito mais acessíveis a manifestações divergentes da

ganha maior destaque nas páginas de Caminhos. Nelas,

tradição europeia” (Idem, p.12). Assim, se o planalto

o colonizador e seus descendentes são reduzidos com

paulista, mais do que as ricas terras do litoral, revela-se

frequência à condição de aprendizes e de dependentes

nas páginas de Caminhos como o espaço privilegiado

do gentio da terra – sem deixar de acrescentar, por

das trocas, adaptações e soluções culturais, o mesmo

outro lado, aspectos de suas próprias tradições e

ocorre com os domínios da vida material e cotidiana,

mentalidades

em contraste com o mundo das ideias e da cultura

habilidades ameríndias.

letrada.

de

ao

uma

astúcia

aprendizado

e

das

sensibilidade

práticas

e

Mais do que nas duas partes posteriores de que se compõe o livro, é em “Índios e mamelucos na expansão


P á g i n a | 19 paulista” que o papel-chave dos naturais da terra na

Em “Iguarias de bugre”, S. B. de Holanda retrata a

criação de novas sínteses culturais por parte das

ampla adoção pelos colonos brancos e mestiços dos

populações adventícias transparece de forma mais

métodos indígenas de aproveitamento do mundo

nítida e sugestiva. Já em “Veredas de pé posto”, o

animal e vegetal para a obtenção dos meios de

primeiro dos nove artigos de que se compõe este

subsistência. Nesse artigo, nosso autor destaca a

núcleo, S. B. de Holanda sublinha de forma

considerável influência dos primeiros habitantes do

emblemática a importância da influência indígena

país sobre os hábitos alimentares dos paulistas, em

sobre os primeiros colonizadores do planalto. No caso

particular durante as entradas, ocasiões em que a fome

desses últimos, diz-nos o autor, a marca do “chamado

era companheira inseparável da aventura:

selvagem” não representa “uma herança desprezível e que deva ser dissipada ou oculta, não é um traço negativo e que cumpre superar; constitui, ao contrário, elemento fecundo e positivo, capaz de estabelecer poderosos vínculos entre o invasor e a nova terra” (Holanda, 1994, p.21). Como a ilustrar essas palavras, recheiam este artigo descrições e análises que celebram o papel do índio enquanto “mestre e colaborador inigualável nas entradas”. A esse mestre nativo deveriam os brancos e mamelucos não apenas o conhecimento das longas trilhas que cortam o sertão, mas até mesmo lições sobre o jeito mais apropriado de percorrê-las, caminhando em fila simples “com os pés para a frente” a fim de distribuir melhor, a cada passo, o peso do corpo sobre a planta e os dedos dos pés (Idem, p.34).

arrancar à natureza o máximo de recursos que, com sua existência andeja, lhes era lícito esperar dela. Onde não fossem grandes as possibilidades de escolha, cumpria admitir o que era proporcionado sem maior trabalho (...) Quando sujeito a condições semelhantes, o próprio europeu, para sobreviver, devia acolher esses recursos e aceitar, em muitos casos, as mesmas técnicas e ardis inventados pelo gentio. Não só de cobras e outros bichos que rastejam, mas ainda de sapos, ratos, raízes de guaribá ou guareá, grelos de samambaia, sustentava-se o viandante perdido em sertões de escasso mantimento, os ‘sertões famintos’, de que falam alguns roteiros (Idem, p.56). No artigo intitulado “Caça e pesca”, deparamo-nos

No tocante à descoberta de fontes de água durante as andanças pelo mato, tema contemplado em “Samaritanas do sertão”, os índios e, por decorrência, os sertanistas que deles descendem, aparecem em

Caminhos e fronteiras como dotados de uma “extraordinária

Os índios tinham tido tempo e oportunidade para

capacidade

de

observação

da

natureza”. Concebendo os sentidos mobilizados nessa observação em sua dimensão histórica e cultural, S. B. de Holanda eleva esses desbravadores do sertão à categoria de “rudes topógrafos” que, “por algum sinal só perceptível a olhos experimentados, sabem dizer com certeza a senda que há de levar a alguma remota aguada” (Idem, p.36-7).

com certa passagem que permite ressaltar como, em

Caminhos e fronteiras, a marca do gentio da terra sobre a nova civilização que se ia formando no planalto não se limitou à incorporação de táticas e recursos naturais, impregnando, inclusive, a própria subjetividade do homem do sertão. Nessa passagem, S. B. de Holanda exalta a “vivacidade dos sentidos que caracteriza as populações rústicas nas brenhas incultas”, fruto de uma “comunhão assídua com a vida íntima da natureza”. Assim se explicaria a “inventiva fértil e pronta”, a “imaginação sempre alerta” e a “atenção quase divinatória” das quais eram portadores os paulistas daqueles tempos, e que tanto assombram os ditos “civilizados” de hoje em dia (Idem, p.67-8).


P á g i n a | 20 A tal ponto chega, nas considerações oferecidas em

Um bom exemplo do método de análise adotado

Caminhos, a mescla entre as contribuições culturais

por Holanda, que parte dos detalhes da vida material

indígenas e europeias, que se torna praticamente

para compreender traços de mentalidade, valores,

impossível delimitar com precisão a fronteira entre

chegando ao vislumbre de toda uma civilização, pode

umas e outras. Tal impossibilidade, a testemunhar a

ser encontrado nas considerações com que se abre o

acuidade e a complexidade da análise de S. B. de

artigo “Frotas de comércio”, no qual são retomados

Holanda, fica especialmente patente em um trecho do

temas e preocupações tratados anteriormente na obra

artigo “Botica da natureza”, no qual o mesmo autor

Monções. Eis como, nesse artigo, nosso autor apresenta

procura investigar a formação histórica do que chama

o chamado “monçoneiro”, comerciante que percorria

de “medicina sertaneja”:

os rios transportando mercadorias até as áreas de

Não faltam, finalmente, aspectos de nossa medicina rústica e caseira que dificilmente se poderiam filiar, seja a tradições europeias, seja a hábitos

indígenas.

provavelmente

das

Aspectos próprias

surgidos circunstâncias

mais que

mineração, e cujo advento viria a assinalar o declínio do bandeirismo em sua forma mais tradicional: É inevitável pensar que as longas jornadas fluviais tiveram uma ação disciplinadora e de algum modo amortecedora

sobre

o

ânimo

tradicionalmente

presidiram ao amálgama desses hábitos e tradições. A

aventuroso daqueles homens. A própria exiguidade das

soma de elementos tão díspares gerou muitas vezes

canoas das monções já era um modo de se organizar o

produtos imprevistos e que em vão procuraríamos na

tumulto, de se estimular a boa harmonia ou, ao menos,

cultura dos invasores ou na dos vários grupos

a momentânea conformidade das aspirações em

indígenas. Tão extensa e complexa foi a reunião desses

choque. A ausência dos espaços ilimitados, que

elementos, que a rigor não se poderá dizer de nenhum

convidam ao movimento, o espetáculo incessante das

dos aspectos da arte de curar, tal como a praticam

florestas ciliares, que interceptam à vista o horizonte, a

ainda hoje os sertanejos, que é puramente indígena

abdicação necessária das vontades particulares onde a

(...) ou puramente europeu (Idem, pp.78-9).

vida de todos está nas mãos de poucos ou de um só,

Sobre Caminhos e fronteiras, nunca é demais destacar como, valendo-se de um largo uso de fontes primárias, S. B. de Holanda se mostra sempre atento aos aspectos mais rotineiros da realidade histórica, em especial àquelas práticas e costumes cotidianos que mais facilmente poderiam passar despercebidos a um

tudo isso terá de influir poderosamente sobre os aventureiros que demandam o sertão longínquo. Se o quadro daquela gente aglomerada à popa de um barco tem em sua aparência qualquer coisa de desordenado, não é a desordem de paixões em alvoroço, mas a de ambições metódicas e submissas (Idem, p.136).

olhar mais distraído. Mas essa preocupação com o

De maneira semelhante, o cultivo do milho e seu

pormenor, com o aparentemente insignificante, não faz

amplo consumo em toda a capitania dão forma, na

de Caminhos uma obra meramente descritiva. Pois em

interpretação de Sérgio Buarque, a toda uma

suas páginas a descrição é sempre o primeiro passo

“civilização do milho”, refletida na presença de

para o estabelecimento de relações lógicas que,

“monjolos” usados para pilar seus grãos em todas as

partindo do particular em direção ao geral, permitem

áreas alcançadas pelos paulistas em sua expansão

desvelar grandes totalidades culturais.

(Idem, p.181-203). Também as redes em que costumeiramente se deitavam os homens do planalto não são apenas redes, mas símbolos da existência


P á g i n a | 21 andeja desses homens, já que, enquanto mistos de

escolha de drogas extraídas da fauna e da flora nativas

móveis caseiros e veículos de transporte, as mesmas

quanto de amuletos e ainda dos medicamentos

adequam-se tanto ao “recesso do lar” quanto ao

chamados “bezoartico”, frutos da crença, tradicional

“tumulto da praça pública”, tanto à “morada da vila”

na Europa, no poder curativo de certas pedras

quanto ao “sertão remoto e rude”. São, nesse sentido,

existentes nas entranhas de animais selvagens. Por

contrastadas “com a cama e mesmo com o simples

outro lado, nas mesmas páginas citadas nos deparamos

catre de madeira, trastes ‘sedentários’ por natureza, e

com situações nas quais o impacto da experiência

que simbolizam o repouso e a reclusão doméstica”

diária, da incorporação de novas atitudes e hábitos pela

(Idem, p.247).

gente sertaneja acaba por influir poderosamente sobre

Por sua capacidade de articular o particular ao geral, o material ao “espiritual” (mentalidades, valores, etc.), S. B. de Holanda, em Caminhos e fronteiras, ocupa

lugar

historiográfica dos anos 50 – e isso tanto no Brasil

espécie de adaptação quase fisiológica às situações

quanto fora dele. Assim é que Laura de Mello e Souza,

mais perigosas (...) Representa, em primeiro plano,

no artigo citado, reconhece a essa obra o mérito de

uma verdadeira educação moral, cujas consequências

manter-se

meio-caminho

não podem ser apreciadas de modo abstrato, e

extremamente sugestivo”, evitando as tentações

independentemente das condições particulares que a

decorrentes de duas tendências comuns à época: de um

suscitaram. Dessa forma se explicará melhor o que

lado,

“sobre

acima ficou dito sobre a atitude quase benévola com

determinação”, do econômico sobre a sociedade e a

que, em muitos meios sertanejos, ainda é costume

cultura; de outro, a ideia, oriunda da historiografia

encarar alguns crimes violentos, particularmente os de

francesa, de uma instância mental autônoma e

morte. Atitude tanto mais estranhável, quanto é,

grandemente descolada das práticas e costumes

precisamente em tais meios, que a noção de uma lei

cotidianos (Souza in Freitas, 2001, p.26).

moral inflexível e absoluta consegue impor-se com

defesa

espécie

da

meio

de

determinação,

à

exemplo, que a contínua prática da selva não estimula somente essa

“numa

em

intitulado “frechas, feras, febres” pode-se ler, por

produção

a

original

concepções e valores de matriz europeia. No artigo

ou

Dessa forma, é possível observar, nas páginas de Caminhos, os traços de mentalidade herdados pelos adventícios

de

seus

ancestrais

maior facilidade, e onde há delitos considerados aviltantes e desprezíveis, como o furto (Idem, p.120-1).

portugueses

De acordo com Laura de Mello e Souza, a influência de

concorrendo para orientar a seleção das técnicas

S. B. de Holanda no âmbito dos estudos culturais

adotadas e para conferir um significado próprio aos

“talvez não se tenha feito notar de imediato”. A razão

arranjos culturais que se iam realizando no planalto.

deste fato, segundo a autora, residiria na preferência

Exemplos desse fenômeno podem ser colhidos na

da historiografia de fins dos anos 50 por trabalhos mais

análise de Holanda sobre a “farmacopeia rústica” do

econômicos, tributários dos modelos de análise

sertão, cujo acervo teria sido formado em parte graças

instaurados por Caio Prado Jr. e Celso Furtado (Souza

à adoção pelos paulistas de um critério “a que se pode

in Freitas, 2001, p.28). Seria preciso esperar até o final

chamar analógico, derivado da tendência para procurar

da década de 70, época em que as correntes da

entre os produtos da terra elementos já conhecidos no

história das mentalidades e da cultura começam a

Velho Mundo” (Holanda, 1994, p.79). Semelhante

ganhar força em nosso país, para que Caminhos e

critério, como ressalta o autor, fez-se presente tanto na

fronteiras e outros escritos de Sérgio Buarque viessem


P á g i n a | 22 a ocupar merecidamente o seu lugar enquanto referências indispensáveis a todos os interessados no conhecimento da história da cultura no Brasil. Destacar a plena atualidade de tais escritos e aproximá-los das novas gerações de estudantes de História e das demais ciências sociais é tarefa que se impõe aos professores e pesquisadores do presente. Quase 50 anos passados desde a sua 1ª edição, é tempo ainda de ler Caminhos e fronteiras. Referências bibliográficas: BLAJ, Ilana. “Sérgio Buarque de Holanda: historiador da cultura material”. In: Antonio Candido (org.). Sérgio

Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramos, 1998. pp. 29-48. DIAS, Maria Odila Leite da Silva (org.). História/Sérgio

Buarque de Holanda. São Paulo: Ática, 1985. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. ____________________ . Monções. 3ª ed. ampliada. São Paulo: Brasiliense,1990. SOUZA, Laura de Mello e. “Aspectos da historiografia da cultura sobre o Brasil colonial”. In: Marcos Cezar de Freitas (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 2001. pp.17-38.

Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Universidade de São Paulo, 1988.

Sergio Chahon: Doutor em História pela UFF, Professor

das Faculdades Integradas Simonsen, Professor da Universidade Gama Filho e autor do livro "Os Convidados para a Ceia do Senhor: as Missas e a Vivência Leiga do Catolicismo na Cidade do Rio de Janeiro e Arredores (1750-1820)."


P á g i n a | 23

Artigo

A(S) REFORMA(S) URBANA(S) DO RIO DE JANEIRO NO INÍCIO DO SÉCULO XX Por Cristiane de Jesus Oliveira Pimentel


P á g i n a | 24

O

Rio de Janeiro foi a primeira cidade brasileira a passar por uma ampla reforma urbana na sua área central, ainda no início do século XX. Durante muito tempo essa Reforma foi vista de maneira simplista, ou seja, por muitos anos a historiografia tradicional36 nos fez pensar que esta foi fruto de uma simples associação entre o Governo Federal e a municipalidade, na qual o Presidente da República, recém-eleito, Rodrigues Alves, seria o idealizador do projeto, enquanto o Prefeito Pereira Passos, escolhido por ele, seria o executor. Esta visão coloca as obras de melhoramento do porto e as obras de saneamento e embelezamento do centro da cidade e de alguns bairros da zona sul como sendo integrantes de um mesmo projeto.

De maneiras distintas, mas não contraditórias, um conjunto de obras teve como responsável o Governo Federal enquanto o outro ficou a cargo do Governo Municipal. As condições de salubridade da capital além de urgentes melhoramentos materiaes reclamados, dependem de um bom serviço de abastecimento de águas, de um systema regular de esgotos, de drenagem do solo, da limpeza pública e do asseio domiciliar. Parece-me, porém, que o serviço deve começar pelas obras de melhoramentos do porto, que tem de constituir a base do systema e hão de concorrer não só para aquelle fim utilíssimo, como evidentemente para melhorar as condições do trabalho, as do comercio, e, o que não deve ser esquecido, as de arrecadação de nossas rendas.38

Atentemos, então, para alguns esclarecimentos com a finalidade de distinguirmos dentro da Grande Reforma, dois projetos completamente antagônicos, a saber, o da Reforma Federal, que seria pensado sob uma visão mecanicista, enquanto o da Reforma Municipal teria uma visão organicista 37 , com ideais completamente diferentes. 36

Entendemos como historiografia tradicional sobre a Reforma urbana da cidade do Rio a corrente, que retrata de maneira condenatória a imagem do prefeito Pereira Passos, ou seja, basicamente a produzida na década de 80, onde podemos citar os seguintes trabalhos: BRENNA, Giovanna Rosso Del. O Rio de Janeiro de Pereira Passos. Uma Cidade em Questão II. Rio de Janeiro: Index, 1985; ABREU, Maurício de. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLAN-Rio/ Zahar, 1988; BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira

Passos: Um Hausmann Tropical. A Renovação Urbana na Cidade do Rio de Janeiro no Início do Século XX. Rio de

Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1992; CARVALHO, Lia de Aquino. Habitações Populares. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995; ROCHA, Osvaldo Porto. A Era das Demolições. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Cultura. Departamento Geral de Documentação e Informação cultural. Divisão de Editoração, 1995; entre outros. 37 Com relação a esta visão mecanicista, André Azevedo que nos esclarece que (...) “A organização viária da urbe deve dar-se em uma relação de parte com parte, por uma razão funcionalista. Nesta perspectiva, a ordenação viária operase de maneira causal, isolando a solução de uma demanda urbana da cidade enquanto um todo. Assim, de acordo com esta visão, a parte pode ganhar uma relevância maior que o todo integrado da urbe, alcançando ela mesma importância superior ao conjunto urbano, uma vez que ocuparia uma função primordial na cidade, como foi o caso da obra do porto no contexto da reforma urbana federal”. Já a visão organicista “idealiza a cidade como um corpus continente de diversos órgãos vitais, no qual é fundamental a ligação destes mesmos órgãos para o funcionamento harmônico do corpo urbano. Nesta perspectiva, a ideia de integração urbana rege o processo de urbanização, pois a cidade passa a ser vista com suas funções interligadas, uma vez que é

Pereira Passo na inspeção das obras no Flamengo (1906). Foto de Augusto Malta percebida como uma totalidade, um verdadeiro organismo que justifica o sentido de existência dos diversos órgãos interligados que o sustentam. Ou seja, em uma intervenção urbanística, o projeto de reordenamento não deve ter razão de existência se não concorrer para uma função integrativa da cidade”. AZEVEDO, André Nunes de. Da Monarquia à

República: um estudo dos conceitos de civilização e progresso na cidade do Rio de Janeiro entre 1868 e 1906;

orientador: Antonio Edmilson Martins Rodrigues. – Rio de Janeiro: Departamento de História, 2003. p. 267 - 268. 38 Ver: “Mensagem”, Correio da Manhã, 04/05/1903. BRENNA, Giovanna Rosso Del. O Rio de Janeiro de Pereira Passos. Uma Cidade em Questão II. Rio de Janeiro: Index, 1985. p. 51


P á g i n a | 25 A Reforma Federal teria, então, como princípio básico a expectativa em torno da obtenção de “um cenário decente e atraente aos fluxos do capitalismo internacional, tão refreados pelas precárias condições da capital, quanto ambicionado pelas elites atreladas aos grandes interesses exportadores instalados no governo da união”39. Para o Presidente Rodrigues Alves, a Reforma seria o projeto primordial da sua administração, não apenas pela questão da salubridade que a muito era debatida por médicos e sanitaristas40, mas também para atender ao desenvolvimento econômico do país. Para além da questão da salubridade, a Reforma era também uma forma de legitimação do regime republicano que se encontrava extremamente desgastado diante da grande maioria da população brasileira. Soma-se a isso, a necessidade de ampliar o comércio externo, tanto pela pressão da elite cafeeira, que necessitava de grandes empréstimos para o desenvolvimento dos seus negócios, quanto para um maior equilíbrio das finanças por parte do Governo Federal. André Azevedo cita ainda, um quarto fator, a saber, “a tentativa de responder à crise da capitalidade41 do Rio de Janeiro, 39

MARINS, Paulo César Garcez. “Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras”. IN: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio . São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 143. 40 Segundo Benchimol, foram justamente os higienistas, os primeiros a formular um discurso articulado sobre as condições de vida na cidade, propondo intervenções mais ou menos drásticas para restaurar o equilíbrio daquele “organismo” urbano que consideravam doente. BENCHIMOL, Jayme Larry. O Haussmanismo na Cidade do Rio de Janeiro. In: AZEVEDO, André Nunes de (org.).Rio de Janeiro: Capital e Capitalidade. Rio de Janeiro: Departamento Cultural/ Sr-3 UERJ, 2002. p. 129). 41 Segundo este autor, a “Capitalidade é um fenômeno tipicamente urbano que se caracteriza pela constituição de uma certa esfera simbólica originada de uma maior abertura às novas ideias por parte de uma determinada cidade, o que confere à esta um maior cosmopolitismo relativo às suas congêneres e uma maior capacidade de operar sínteses a partir das diversas ideias que recepciona. Este conjunto simbólico que se desenvolve nas vicissitudes das experiências históricas vividas por esta urbe, identifica a cidade como espaço de consagração dos acontecimentos políticos e culturais de uma região ou país, tornando-a uma referência para as demais cidades e regiões que recebem a sua influência. Esta esfera simbólica evolui, sendo redimensionada ao sorver novas experiências, constituídas e constituidoras da tradição da urbe”. AZEVEDO, André Nunes de. A Capitalidade do Rio de Janeiro. Um exercício de reflexão histórica. In: AZEVEDO, André Nunes de. Anais do Seminário Rio de Janeiro: Capital e Capitalidade . Rio de Janeiro: Departamento Cultural/NAPE/DEPEXT/SR-3/UERJ, 2002. p. 45.

revigorando esta propriedade da cidade na perspectiva de fazer da Capital Federal a metonímia de um país que caminharia rumo ao progresso42." Essa reforma era há muito tempo esperada por grande parte da população do Rio de Janeiro e a exaltação ao governo, que tinha por finalidade principal capitaneá-la, é percebida logo quando se dão os primeiros anúncios referentes à obra. Em um artigo do jornal O Commentário, de 1903 nota-se a exaltação ao empreendedor de tão grande obra. Está, enfim, resolvida a importante obra do Porto do Rio de Janeiro. Era uma vergonha continuar o desembarque de mercadorias pelos processos rudimentares que o aumento da importação cada vez mais tornava ridículo. (...) Há cincoenta anos que se projeta a reforma d’esse serviço; mas como tal reforma dependia de grandes obras, foi sendo adiada até que se tornou inadiável. O momento chegou em que o melhoramento se impôs a um governo resoluto para executa-lo.43 Para Rodrigues Alves, a reforma do porto do Rio de Janeiro seria a obra de maior relevância e todas as outras empreendidas pelo Governo Federal seriam pensadas em função desta. Articuladas então ao conjunto de obras executadas pelo Governo Federal, estava o plano de Reforma Urbana Municipal44. Esta consistiu fundamentalmente no alargamento de algumas ruas da cidade com vistas a melhorar a circulação urbana e facilitar a ligação entre os diferentes bairros da cidade. As avenidas constituíam o instrumento principal do plano de remodelação e saneamento municipal, destinado a 42

AZEVEDO, André Nunes de. Da Monarquia à República: um estudo dos conceitos de civilização e progresso na cidade do Rio de Janeiro entre 1868 e 1906; orientador:

Antonio Edmilson Martins Rodrigues. – Rio de Janeiro: Departamento de História, 2003. p.241). 43 Ver: “O porto do Rio de Janeiro”, O Commentário, junho de 1903. BRENNA, Giovanna Rosso Del. O Rio de Janeiro de Pereira Passos. Uma Cidade em Questão II. Rio de Janeiro: Index, 1985. p. 72 44 De acordo com Maurício Abreu , por Reforma Pereira Passos entende-se um grande número de obras públicas que redefiniram de modo radical a estrutura urbana da cidade do Rio de Janeiro durante o governo do prefeito Pereira Passos. Houve uma verdadeira reconstrução do centro da cidade, rompendo com as características de cidade colonial e fazendo emergir novos traçados mais compatíveis com o uso de trens e bondes, em vez de animais e carruagens. ABREU, Maurício. A Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO/Zahar, 1987.


P á g i n a | 26 transformar a Capital da República numa cidade moderna e higiênica. Para tal empreitada o Presidente nomeou a Comissão da Carta Cadastral sob a chefia do engenheiro Alfredo Américo de Souza Rangel que seria escolhido para ordenar o plano de remodelação urbana sob a orientação do prefeito Pereira Passos. “A Reforma Urbana Municipal orientou-se por uma ideia de progresso nos campos da cultura, da ética urbana e da estética, ou seja, por uma ideia de progresso enquanto desenvolvimento de uma civilização”45. No plano de Melhoramentos da Cidade Projetados pelo Prefeito do Distrito Federal Dr. Francisco Pereira Passos observamos claramente os propósitos da Reforma Municipal: Apresentando-vos os planos e orçamentos da abertura de algumas avenidas, alargamento e prolongamento de differentes ruas actuaes e canalização de rios, organizados nessa comissão46 Observa-se então, que o objetivo primordial da Reforma Municipal seria a abertura de vias, ao passo que ao se acompanhar o desenvolvimento do projeto, vê-se que esse objetivo, para além da ideia de ligação das várias regiões da cidade, privilegiava a ideia de higieniza-la. Este ideal de salubridade e higienização do centro comercial e populoso do Rio de Janeiro é cara aos engenheiros públicos desde os tempos imperiais.

Ainda segundo o relatório, as consequências girariam em torno da “maior facilidade de comunicação entre os bairros”, do “estabelecimento de um traçado vantajoso para as grandes linhas de canalização”, “impedimento na valorização de prédios antiquados situados em ruas estreitas”, “facilitação do enxugo do subsolo pela arborização” e, por fim, “despertar o gosto arquitetônico”. Percebemos então que não obstante a Grande Reforma ser, na realidade, fruto de iniciativas Federal e Municipal, ou seja, aconteceram simultaneamente duas reformas urbanas, e que mesmo tendo sido pensadas de maneiras diferentes, as duas tiveram entre si uma ação integradora constituindo-se em fatores complementares para resolução dos problemas de maior importância da Capital Federal naquele momento, ou seja a salubridade e a criação de um aparato moderno para a atração de investimentos externos. Cristiane de Jesus Oliveira Pimentel: Especialista em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Professora tutora no curso de Pedagogia à distância da UFJF, Assistente de orientação no Programa de Pós-graduação Profissional em Gestão e Avaliação da Educação Pública da UFJF.

O problema do saneamento do Rio de Janeiro foi sempre considerado, por todas as auctoridades que dele se têm occupado, como dependendo em grande parte da remodelação architetonica da sua edificação e consequentemente da abertura de vias de communicação amplas e arejadas em substituição das actuaes ruas estreitas, sobrecarregada de um tráfego intenso, sem ventilação bastante, sem arvores purificadoras e ladeadas de prédios anti-hygienicos.47 45

AZEVEDO, André Nunes de. Da Monarquia à República: um estudo dos conceitos de civilização e progresso na cidade do Rio de Janeiro entre 1868 e 1906; orientador:

Antonio Edmilson Martins Rodrigues. – Rio de Janeiro: Departamento de História, 2003. p. 264. 46 Prefeitura do Distrito Federal. Melhoramentos da Cidade Projetados pelo Prefeito do Distrito Federal, Dr. Francisco Pereira Passos. Rio de Janeiro: Typographia da Gazeta de Notícias, 1903. p. 03. 47 Prefeitura do Distrito Federal. Melhoramentos da Cidade Projetados pelo Prefeito do Distrito Federal, Dr. Francisco

.

O caminho aberto para que um cano de pedra levasse para o mar as águas estagnadas da Lagoa de Santo Antônio, deu origem à "Rua do Cano“. A "Rua do Cano" assim foi chamada até 1856, quando foi batizada como 7 de Setembro. Em 6 de setembro de 1906 o Prefeito Pereira Passos lá esteve, inaugurando o trecho que ia da Rua 1º de Março até a Av. Central.

Pereira Passos. Rio de Janeiro: Typographia da Gazeta de Notícias, 1903. p. 03.


P á g i n a | 27

Artigo

CONFLITO IBÉRICO-HOLANDÊS: PORTUGAL EM DESTAQUE Por Felipe Castanho

C

om base na historiografia corrente este artigo tem como objetivo principal apresentar um panorama conciso do conflito entre as Republicas das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos48 e Portugal, ocorrido entre os séculos XVI e XVII. Entretanto não iremos abordar este processo de uma perspectiva exclusiva da América portuguesa, tendo em vista que tal conflito normalmente nos remonta as invasões holandesas no período colonial, pretendemos, portanto realizar um caminho inverso, procurando demonstrar desta maneira à amplitude e dimensão deste conflito que vão além das questões relacionadas à possessão portuguesa na América. O início: Guerra dos Oitenta Anos O conflito ibérico-holandês 1568-1669 é considerado para o brasilianista Boxer, como o primeiro conflito de escala mundial e que este teria se tratado na verdade da “primeira guerra mundial”, pois as batalhas travadas durante o conflito ocorreram em quatro continentes, o que de fato ultrapassa a questão geográfica da Grande Guerra. Assim a guerra não teria sido travada só nos campos de Flandres e no mar do Norte, como também em regiões tão remotas como o estuário do Amazonas, o interior de Angola, a ilha de Timor e a costa do Chile”49. Muitos contestam esta visão dizendo que o número de vítimas da Grande Guerra foi absurdamente superior, mas em contrapartida se compararmos a população neste período com certeza encontraremos um número incomparavelmente inferior. Mas o que verdadeiramente importa é que foi um conflito de grandes proporções e que teria sido travado em todo o império colonial dos Habsburgos e posteriormente nas “conquistas portuguesas”. O início se dá para a Espanha, em 1568 quando Guilherme I de Orange decide afastar o impopular Duque de Alba de Bruxelas, esta atitude não terá muito

apoio e Guilherme I se vê forçado a fugir. Em 1579 a Espanha cria a União de Arras e reforça o catolicismo nos territórios que englobam esta união, lembrando que são territórios onde o protestantismo se afirmava cada vez mais. Em contrapartida Guilherme I une os estados protestantes na União de Utrecht (1581) igualmente denominada República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos, Estados Gerais e ou República Holandesa. A guerra para a Espanha termina com o tratado de Münster (1648) que reconhecia a Independência das Províncias Unidas.

“Herdei-o, comprei-o, conquistei-o” Entretanto o caminho se torna meandroso em 1580 quando ocorre a célebre União Ibérica que resultaria na entrada de Portugal no conflito. Todavia o confronto de verdade chega para Portugal somente por volta de 1598-9 com o ataques das Províncias Unidas as ilhas de São Tomé e Príncipe. A guerra seria mais longa para os portugueses terminando somente em 1668-9 mesmo com movimento de Restauração, que elevaria uma nova dinastia em Portugal, notadamente a dos Braganças (1640-1) – e que consequentemente separaria novamente as Coroas Ibéricas - e com o tratado de paz de Haia sendo assinado em 1661. Como Portugal será o nosso principal objeto de estudo neste artigo, apesar da Espanha ser o pivô desta história - afinal a Holanda havia se revoltado contra esta nação e não contra aquela – iremos nos ater somente a parte lusa da história, e para compreendermos melhor sua participação neste conflito, se faz necessário lançar luzes sobre a União Ibérica. Dois países um só Império , onde o sol nunca se põe

48

Atualmente conhecemos tal país como Holanda, que na verdade é a província mais destacada das sete que são Frísia, Groningen, Güeldres, Overijssel, Utrecht e Zelândia. 49 BOXER, C. R.; O império marítimo português 1415-1825; 3º reimpressão; companhia das letras 2008; página 120.

União Ibérica, assim ficou conhecido o período de união das Coroas espanholas e portuguesa em uma só, ela durou de 1580 até 1640 quando ocorre o período da Restauração. A união e ocasionada quando d. Sebastião – soberano de Portugal – morre em 04 de agosto de


P á g i n a | 28 1578 na batalha de Alcácer Quibir no Marrocos, ele deixa como herdeiro da Coroa o cardeal d. Henrique, porém, já idoso, vem a falecer em janeiro de 1580. Após a morte de d. Henrique abre-se uma crise sucessória, já que o cardeal, mesmo recebendo conselhos neste sentido, não especificou quem deveria sucedê-lo no trono. Filipe II de Espanha reivindicaria a Coroa portuguesa para si, partindo do princípio que sua mãe era portuguesa e seu avô foi d. Manoel o Venturoso. Filipe obtém ainda nos mesmo ano a Coroa portuguesa, e se vangloriava de seu novo Império, onde o sol nunca se punha, “Herdei-o, comprei-o, conquistei-o” (“Yo lo heredé, yo lo compré, yo lo conquisté”). Filipe II não encontrou resistência muito grande entre os portugueses, boa parte da nobreza e do alto clero lhe eram favoráveis, somente encontrando obstáculos em d. Antônio, o Prior do Crato, que chegou a resistir na ilha Terceira situada nos Açores, porém, isso não foi suficiente para impedir a ascensão de Filipe II ao trono português. Com isso d. Antônio acabaria se refugiando na Inglaterra da rainha Isabel. Desde o início se tratava de uma resistência simbólica já que d. Antônio era filho bastardo do infante d. Luis com Violante Gomes, está por sua vez era filha de mercadores cristãos-novos, tal conjuntura fez com que boa parte da nobreza não o apoiasse, ou então hesitasse na sua ascensão como rei, basicamente o clamor por d. Antônio vinha mais de uma origem popular que, diga-se de passagem, não era bem vista pela nobreza.

consultar conselheiros portugueses em todos os assuntos concernentes a Portugal e suas possessões ultramarinas, e a nomear apenas funcionários portugueses para elas. Os espanhóis estavam expressamente proibidos de comerciar ou de se fixar no império português, e os portugueses, no espanhol”51. A União Ibérica perduraria até primeiro de dezembro de 1640 quando Portugal se rebela contra o governo dos espanhóis de Filipe IV. O que não ocorreu por acaso, o movimento separatista ganha força neste período pelo fato de a Espanha iniciar um processo de centralização, o que englobaria Portugal obviamente. Tal processo na Espanha possuiu a influência de d. Gaspar de Guzmán, o conde-duque de Olivares, pregador de um governo ativo e interveniente, dinâmica parecida ocorreria com o governo de d. José em Portugal (1750-1777) que era influenciado por Sebastião José de Carvalho e Melo mais conhecido como marquês de Pombal. Assim quando a centralização se inicia e os impostos começam a recair sobre Portugal, este se “rebela” findando o predomínio da Coroa espanhola sobre a portuguesa, com a ascensão de d. João IV, é dado o início a uma nova dinastia a dos Braganças.

Cabe-nos ainda ressaltar que para além de Filipe II e o Prior de Crato d. Antônio, havia membros ligados à família real que poderiam assumir, como os duques de Parma e de Sabóia e até “Catarina de Medici, advogando os interesses franceses dos Valois, lembrava que a dinastia lusa era capetíngia, pois o primeiro rei de Portugal descendia de linhagem borgonhesa” 50 . Contudo já sabemos o final desta história e Filipe II consegue o sancionamento das Cortes portuguesas em 1581, com o acordo que ficou conhecido como Tratado de Tomar. O tratado acordado instituía que apesar de unidas às Coroas tanto a administração de Portugal quanto a da Espanha deveriam permanecer separadas. Uma sábia decisão, já que dava garantias ao “povo” português das suas liberdades e manutenção dos seus domínios. Além desta decisão “O rei Filipe II de Espanha e Filipe I de Portugal jurou preservar as leis e a língua portuguesa; a 50

MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O Rei no Espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América (1640-1720). São Paulo: Hucitec/Fapesp/Instituto Camões, 2002, p. 74.

Filipe III de Portugal (IV de Espanha)

51

BOXER, op. cit. página 122. Devemos lembrar aqui que apesar de Boxer utilizar a titulação de Filipe II de Espanha e I de Portugal, nunca houve este segundo título e inclusive o monarca somente assinava na primeira forma.


P á g i n a | 29 Portugal em guerra A partir do momento que a união entre as Coroas é concretizada, Portugal também se vê em conflito contra os holandeses. A princípio os portugueses reclamam bastante porque acreditam que se teve alguém que saiu prejudicado da União Ibérica foram eles, isto porque “haviam ganhado de dote uma guerra”. Boxer acredita que estas reclamações não eram justas, pois segundo o autor, mais cedo ou mais tarde o conflito iria ocorrer, já que havia contestações ao fato de Portugal ambicionar ser a única nação soberana a leste do cabo da Boa Esperança, o que a Inglaterra, inclusive, já havia feito no que tange ao monopólio comercial português da Guiné. Todavia é Portugal que mais sofre com a guerra, seu império colonial se localizava majoritariamente em regiões costeiras o que o tornava alvo favorito e mais vulnerável para seu inimigo, desde o momento que México e Peru, vice-reinos espanhóis, se encontravam mais para o interior de seus territórios, e não é a toa que o Brasil reforçará seus portos militarmente, sobre uma possível intervenção da política de Madrid que utilizava a América portuguesa como escudo para as conquistas espanholas na América. Os Estados Gerais possuíam um grande interesse comercial no império colonial português e não obstante atacaram justamente pontos chaves do comércio ultramarino português. Visavam a África ocidental, principalmente a Guiné, região que fornecia além dos escravos sudaneses de “qualidade superior” e que eram mais valorizados que os bantos, dispunha igualmente de ouro. Na Ásia seus focos eram as especiarias com destaque para o “cravo da índia e a noz-moscada das Molucas, a canela do Ceilão (atual Sri-Lanka) e a pimenta da Costa Malabar”. Os holandeses ainda se voltariam para a América portuguesa que contava com o então valorizado açúcar, chegando a ocupar Pernambuco de 1630 à 1654. Os primeiros ataques da República Holandesa, como anteriormente mencionado, na guerra colonial contra Portugal, ocorrem nas ilhas de São Tomé e Príncipe 1598-9, e progressivamente a guerra vai atingindo proporções maiores e não demora o conflito já está ocorrendo em possessões portuguesas da Ásia, África e América. Aos poucos os holandeses vão conquistando importantes vitórias nas conquistas portuguesas. Como característica de todo conflito - que envolve nações até certo ponto em equilíbrio, que perdura por

muito tempo, a guerra luso-neerlandesa é rica de nuances e vicissitudes que ora deixam uma nação numa posição mais confortável, ora outra assume este papel, o tempo todo teremos avanços de territórios por parte dos holandeses e recuos em um segundo momento, ou vice-versa. Durante o conflito foi possível identificar desvantagens que se sobressaem no que se referem à nação lusitana, estas se identificam através de alguns fatores principais. Em primeiro lugar recursos financeiros maiores por parte dos holandeses, não nós esqueçamos de que eles eram subsidiados pelas então “poderosas” Companhia Holandesa das Índias Orientais e posteriormente pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, enquanto Portugal se encontrava debilitado neste aspecto, esta afirmação vem do Próprio Boxer que escreve que as “Províncias Unidas da Holanda Livre eram uma metrópole mais rica do que o empobrecido reino de Portugal”52, além disso desde o século XVI a parte Oriental do império luso já aparentava não ser tão lucrativa. Em segundo lugar a Holanda contava com um número superior de homens, mesmo que ambas as nações possuíssem um número estimado de população semelhante, entre 1,25 e 1,5 milhões de habitantes. Este fator decorre de que Portugal tinha que disponibilizar homens para a Espanha, enquanto a República Holandesa podia contar ainda com soldados alemães e escandinavos. Estes ainda usufruíam de um efetivo naval superior, o ilustre padre jesuíta Antonio Vieira dizia em 1649, mesmo que de forma exagerada, que “os holandeses dispunham de 250 mil marinheiros para tripular os navios, enquanto Portugal não conseguia reunir quatro mil”. Entre várias explicações para o baixo efetivo naval português podemos citar as adversidades que os marinheiros enfrentavam como doenças, advindas da insalubridade dos navios, a questão do soldo que também pesava bastante, pois a princípio a Coroa pagava este antes do embarque e posteriormente esta prática se modifica passando a Coroa pagar após o embarque e não obstante os atrasos desses pagamentos eram constantes. Os marinheiros ainda enfrentavam o preconceito da sociedade portuguesa contra eles, esta não via com bons olhos o ofício de marinheiro que segundos eles eram ignorantes e desprezíveis, a junção desses fatores fazia com que muitos tergiversassem dessa profissão. Os neerlandeses em geral contavam ainda com comandantes de qualidade superior, já que eles 52

BOXER, op. cit. página 127.


P á g i n a | 30 escolhiam seus líderes pelas habilidades demonstradas e competência profissional ao contrário de Portugal que elegia seus chefes navais e militares por status e genealogia de nobreza. Obviamente Portugal contou ao longo da idade moderna com excelentes líderes militares e navais, para isto basta citarmos “O Grande César do Oriente” Afonso de Albuquerque (1453-1515), porém estes casos mais se configuravam como exceção do que regra. Destarte como resultado desta prática Portugal iria sofrer deploráveis derrotas principalmente com os “despreparados” vice-reis de Goa. Insistindo na qualidade dos homens que lutavam pelos dois lados devemos ainda lembrar que boa parte do contingente de soldados rasos contratados pelas Companhias Holandesa das Índias Ocidental e Oriental eram mercenários de origens nórdicas, famosos pela sua robustez e disciplina, um oficial português de serviço na Bahia relatava em 1625 que “Eram todos jovens, homens escolhidos que brilhariam em qualquer infantaria do mundo”53. Em contrapartida os soldados portugueses eram na sua maioria homens advindos de prisões e condenados, recrutados a força, tinham como característica a indisciplina e o despreparo para as batalhas, o número de deserção era grande. Para agravar ainda mais esta situação muitos passavam fome, pois a Coroa, como já observado, se encontrava empobrecida. Batalha no campo teológico Tanto portugueses como holandeses travaram embates memoráveis no campo religioso, além do claro interesse comercial não podemos nos esquecer de que ambas as sociedades confessavam religiões diferentes, católica e protestante respectivamente, e se consideravam os responsáveis pela propagação e afirmação destas. O século XVI havia sido marcado pelas reformas protestantes e pelo advento do concílio de Trento, estes acontecimentos iriam ter seus reflexos nos séculos seguintes, inclusive no século XVII quando ocorre à maior parte do conflito luso-holandês, e acabariam por aumentar as tensões geradas no conflito. Tensões facilmente detectadas por relatos da época fabricados por ambas as nações, enquanto no Sínodo de Dort, em 1618-9 era definido que “a igreja de Roma era “a grande prostituta da Babilônia”, e o papa o verdadeiro anticristo." 54 , em Portugal um cronista escrevia em 1624 “Os holandeses são apenas bons

53 54

BOXER, op. cit. página 130. BOXER, op. cit. página 121.

artilheiros e, além disso, servem somente para serem queimados como hereges desesperados”55. Portanto nesta batalha podemos afirmar que os discípulos de Lutero não conseguiram atingir o nível de seus rivais, principalmente quando se tratava do corpo jesuítico português, e inúmero são os relatos que comprovam a flagrante derrota holandesa no campo teológico, o calvinista escocês Alexander Hamilton queixava-se de que os bantos da região de Zambeze e do litoral moçambicano só comercializavam com os portugueses, pois esses quando acompanhados de “padres” ocasionavam medo nos nativos. De fato a batalha teológica terminou com vitória dos portugueses, seu êxito foi tão grande no que condiz ao proselitismo que em algumas regiões aonde os portugueses haviam se estabelecido durante seu império colonial existem até hoje, por mais que não fiquem tão claras devido ao sincretismo religioso, tradições católicas. Vencedores? Os portugueses possuíam esperança que com a divisão das Coroas, espanhola e portuguesa, em 1641 os holandeses parassem de atacar, esperança que se demonstraria infundada. O primeiro esboço de trégua definitiva viria com o tratado de paz realizado em Haia 1661, contudo os holandeses não o respeitaram e voltaram a atacar possessões no além-mar de Portugal. Não obstante D. João IV procura realizar uma aliança que fortalecesse a Coroa portuguesa e de quebra ajudasse na resolução do conflito contra os holandeses. O rei Bragantino atinge seu objetivo em 1661 quando casa sua filha Catarina de Bragança com Carlos II de Inglaterra, esta aliança é efetuada, mas não sem sacrifícios por parte de Portugal, já que como dote cede Bombaim na Índia e Tânger na África para os ingleses, dote concedido, porém debaixo de protestos da sociedade portuguesa, afinal de contas à aliança ocorria com os hereges ingleses, não é a toa que ulteriormente a este casamento o brio da sociedade portuguesa é abalado. Contando com o apoio dos ingleses, Portugal obtém a paz definitiva em 1669. É importante ressaltarmos que simpatizamos com Boxer quando ele afirma que quando o conflito finalmente se encerra não há vitoriosos perante o quadro geral da guerra, no entanto podemos observar da seguinte forma; vitória holandesa na Ásia, nesta boa 55

Ibidem, p. 121.


P á g i n a | 31 parte das “conquistas” foi perdida como a costa de Malabar, empate na África, aqui a Holanda consegue uma importante vitória na Guiné em contrapartida Portugal retoma em definitivo a Angola com a liderança de Salvador Correia de Sá, e põe fim ao que ficou conhecido como Brasil Holandês com a expulsão dos holandeses de Pernambuco em 1654. Apesar da superação de Portugal neste episódio o que de fato fica marcado é que após este conflito, e outros, o Estado da Índia vai aos poucos perdendo sua

.

relevância no contexto colonial de Portugal, vindo a ser totalmente substituído no século XVIII pelo Brasil tanto no prestígio quanto comercialmente, pois teria início o “ciclo do ouro” das Minas. A Ásia portuguesa iria declinar vertiginosamente e depois da guerra lusoholandesa tanto o império marítimo português quanto à “Goa Dourada” nunca mais seriam os mesmos, por este e por outros motivos, havendo alterações de vital importância política e comercial no cenário do império marítimo português.

Felipe Castanho: Licenciado pelas Faculdades Integradas Simonsen e pós-graduando na Universidade Gama Filho

Brasão União Ibérica

Fontes Bibliográficas: BOXER, Charles Ralph. A Idade de Ouro do Brasil – Dores de Crescimento de uma Sociedade Colonial. São Paulo. Nova Fronteira, 2000. _____________ A Igreja Militante e a Expansão Ibérica 1440-1770. São Paulo. Companhia das Letras, 2007. ____________ O império marítimo português 1415-1825. São Paulo. Companhia das Letras, 2008. DAROZ, Carlos; Guerra dos oitenta anos – Independência da Holanda (1568-1648). Disponível em: <http://darozhistoriamilitar.blogspot.com/2009/03/guerra-dos-oitenta-anos-independencia.html> acesso em 03/11/2010. MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O Rei no Espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América (1640-1720). São Paulo: Hucitec/Fapesp/Instituto Camões, 2002. v. 1.


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ENTREVISTA: CARLO GINZBURG

O

historiador italiano Carlo Ginzburg indubitavelmente está deixando sua marca na história

da História, obras como “Os Andarilhos do bem”, “História Noturna: decifrando o sabá”, “Mitos, emblemas e sinais”, o emblemático “O Queijo e os Vermes” entre outros fazem

deste professor um dos intelectuais mais notáveis da Itália e do Mundo. Suas obras já foram traduzidas em quinze línguas diferentes. Seus estudos pioneiros sobre a redução da escala e a consequente relevância de pequenos contextos dentro de outros grandes revolucionaram a forma da análise documental. Ginzburg é leitura obrigatória para todos aqueles que pretendem entender os processos da produção historiográfica. Ao conceder a Gnarus sua primeira entrevista a um referencial da produção historiográfica internacional, faz com que nós passemos a considera-lo uma espécie de padrinho da revista. Esperamos que aproveitem tanto quanto nós.


P á g i n a | 33 1 - O que o levou a se interessar pela História? Esta pergunta foi feita a mim muitas vezes: eu não estou certo se respondi da mesma forma. Hoje minha escolha, eu acho, que é influenciada por uma mistura de elementos muito diferentes: ambiental (relacionado à família, social, etc.) e condicionada (casualidade). Mas isso acontece com todos, sempre, para qualquer escolha. Quando menino, eu lia romances, então comecei a ficar interessado pela pintura. Por algum tempo, pensava em ser pintor e romancista (minha mãe era uma escritora), logo percebi que me tornaria um pintor medíocre ou um romancista medíocre, então eu desisti. Quando comecei a faculdade, em Pisa, gostaria de me tornar um historiador de arte, mas eu conheci um professor que mesmo sem querer me fez mudar de ideia. Se tivesse estudado em uma faculdade há cem quilômetros de distância, em Florença, teria insistido naquele projeto e minha vida seria diferente (ai está a casualidade, ou talvez não). Poucos meses depois ele veio a Pisa, para um seminário de um professor de história na Universidade de Florença - um grande estudioso, Delio Cantimori. Com ele, passei uma semana inteira lendo e comentando uma página de um historiador, Jakob Burckhardt. Que a leitura lenta eu nunca esqueci. Logo, li “Les Rois Thaumaturges” do Marc Bloch que me fez perceber que havia livros de história muito diferentes do que imaginava. Assim nasceu a minha escolha. Mas, retrospectivamente, eu percebi que ser historiador me permitiu me ocupar de muitas coisas, incluindo pinturas, romances, escrever sobre a relação entre História e ficção escrita - os temas que tinham me atraído quando era jovem. Eu me considero muito sortudo.

3 - No Brasil a História “está na moda”, um grande aumento do número de publicações deste gênero são destinadas ao público em geral. Como o senhor vê esta popularização da História? Acho que um país como o Brasil, que entrou em um período de mudanças muito profundas e rápidas, isto é, entrou em contato com sua história para entender não apenas como a transformação é possível, mas também compreender como na transformação se perde, de maneira irreversível. Eu não acredito que aquela nostalgia está necessariamente associada com o conhecimento histórico, mas ao sentido de alteração e, portanto, a perda, assim como a conquista do novo.

2 - O seu livro ""Il Formaggio and I Vermi" (O Queijo e os Vermes) se tornou um enorme sucesso. Você esperava tamanha repercussão? Como foi escrever este livro? Absolutamente não, mas devo dizer que, quando eu escrevo um livro nunca penso que será um sucesso ou um fracasso. O que tem contribuído para o sucesso de "O queijo e os vermes"? Em primeiro lugar, eu acho que foi o seu protagonista, o moleiro Menocchio: uma figura verdadeiramente extraordinária. Depois, há as questões que estão no centro do livro: o desafio à autoridade, a relação entre cultura oral e escrita. Questões que afetam a todos, em qualquer sociedade, ou quase.

4 - Hoje, qual o lugar da História na sociedade? É difícil generalizar. Existem alguns fenômenos novos, comuns no Brasil, que usam a História para alcançar reivindicações morais ou materiais, em nome da injustiça no passado por determinados grupos (descendentes de escravos ou ex-escravos, por exemplo). Poderíamos falar no geral da historiografia


P á g i n a | 34 identitária. Mesmo quando se trata de reivindicações que eu acredito serem politicamente legítimos, ocorrem dois riscos: o primeiro está relacionado com a noção de identidade, e o segundo aos métodos utilizados na tentativa de se afirmar retroativamente. Quanto ao primeiro ponto: quando falamos de "identidade", em referência a um grupo, um povo, uma nação, um continente, nós construímos uma entidade fictícia, que projeta nos presentes ou passados certos traços culturais ou de outros gêneros. Aqueles que falam de uma "identidade" italiana ou francesa, europeia, brasileira, etc., fazem para excluir este ou aquele grupo, geralmente minorias, usando de argumentos falso-históricos. E aqui chegamos ao segundo ponto: o uso muitas vezes arbitrário da História pelo o que eu chamei de "História de identidade". Como sempre, o discurso sobre o método (os métodos de história, por exemplo) também é mais ou menos diretamente um discurso político. 5 - O que o senhor entende por saber acadêmico? A pesquisa vem das universidades, mas nem sempre é destinada para um público universitário. Ela se espalhou entre um público mais amplo, os resultados de pesquisas realizadas por especialistas (no âmbito da universidade, mas não necessariamente) são legítimos e, se bem conduzidos, muito úteis. Mas é possível propor uma finalidade diferente, entre um contato simultâneo entre uma plateia de especialistas e um público amplo. Isso é o que eu tentei fazer desde o meu primeiro livro (I Benandanti). Não digo que sempre tive êxito nisso. Trata-se de envolver o leitor, não necessariamente o leitor especialista, no processo de investigação. “O Queijo e os Vermes” pode ser visto como uma experiência neste sentido. 6 - É possível ser um historiador e trabalhar um tema sem estar preocupado com a reflexão teórica? Super possível, e na minha opinião, totalmente legítimo. A maioria dos historiadores não fazem perguntas de caráter teórico. Por outro lado, a grande maioria dos que escrevem sobre a teoria da História nunca esteve envolvido na pesquisa histórica empírica. Esta divergência é comum, mas há exceções. Cito o mais brilhante: Marc Bloch, o grande historiador do século XX. Aqueles que leram “La Société féodale e Apologie pour l’histoire” ou “Métier d’historien” (suas reflexões metodológicas postumamente) irá imediatamente entender o que eu quero dizer.

7 - O senhor considera que a metodologia da Microhistória revolucionou a pesquisa historiográfica? "Revolução" é uma palavra muito enfática. Eu diria que a Micro-história fez perguntas, apresentou as dificuldades, abriu uma frente (em pesquisa e na História) a qual nenhum historiador de hoje pode escapar. 8 - Qual conselho o senhor daria para um estudante iniciante no curso de História? Muitos anos atrás, um amigo me fez esta pergunta, eu disse impulsivamente "Leia muitos romances". Hoje, na frente da moda (em baixa, eu penso: Não é mesmo?) que afirma a impossibilidade de distinguir estritamente entre narrativas históricas e histórias de ficção, eu não responderia da mesma forma, por medo de ser mal interpretado. Eu diria: "leia muitos romances e alguns livros de História" e eu acrescentaria: "a realidade, no presente e no passado, nunca é transparente, é opaca. Precisamos aprender a decifrá-la. Algumas romances e alguns livros de História nos ajudam a fazer isso".


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Pesquisa

HISTÓRIA NO TEMPO PRESENTE: NAZISMO Por Jessica Corais

O

jeito de ver e escrever História vem mudando ao longo dos anos. Entender que todos nós somos agentes da história é cada vez mais aproximado para um contexto historiográfico, e o historiador passa então a não ser apenas aquele que dialoga com livros, ele passa a dialogar com gente e com fatos. Esta coluna “História no tempo presente” tem como objetivo apresentar os fatos através da ótica daqueles que, de alguma forma, estão envolvidos com diversos acontecimentos da história mundial. É passado e futuro se misturando entre si e trazendo a tona o presente... No dia 30 de abril de 1945 morria em Berlim um dos maiores ditadores de todos os tempos, Adolf Hitler. O que seria da Alemanha, dos países envolvidos com o nazismo e das gerações futuras pouco se sabia. Hoje, 67 anos depois, a Gnarus - Revista de História, faz uma viagem até alguns países que participaram diretamente do nazismo e apresenta relatos de alguns daqueles que de alguma forma ainda o vivem.

era um desafio para sobreviver. Sobrevivi pela força do amor entre mim e meu irmão e da minha determinação para continuar promessa que dei para o meu irmão. Os nazistas me controlavam fisicamente, mas mentalmente, não podiam me tocar. Apesar dos espancamentos ou fome. Em um ponto Deus se tornou meu melhor amigo. Eu mudei a minha atitude. Toda manhã eu acordava num pesadelo, onde não podia controlar. Mas à noite todos os meus pensamentos estavam nas memórias da minha família e na vida boa. Eu continuei a acreditar quando acordei. Foi apenas um pesadelo. Quando eu caía no sono, era para mim, a realidade. E era um prisioneiro em tempo parcial",

“Ele foi julgado por milhares de anos e está no lugar que merece: no inferno”

O Sobrevivente Como seria para um menino de 13 anos se ver arrancado de sua casa pelo exército nazista e ir para Muhldorf, um dos mais temidos campos de concentração, junto com 20 membros de sua família? Stephen Nasser viveu exatamente esta experiência. Nascido em Budapeste, Hungria, Nasser hoje reside nos Estados Unidos e é o autor do famoso livro "My brother's voice". Quem o vê comemorando no dia 8 de agosto em Las Vegas o "Stephen Nasser Day", uma homenagem da prefeitura da cidade a ele por ter partilhado sua história de vida para o mundo, se lembra de alguns momentos de sua dolorosa infância. Viu seu primo Peter, ainda bebê, e sua mãe Bozsi morrerem, além de seu irmão, Andris, acabar dando os últimos suspiros em seus braços, em Mühldorf. "É difícil imaginar (como era um campo de concentração), mesmo em seu pior pesadelo. Cada dia

declara. Nasser também contou como era sua vida antes do nazismo: "Nós éramos uma família muito unida. Meus avós, e depois seguido por meus pais, tinham uma loja de jóias desde 1875, eles trabalharam duro para isso. Se nenhum antissemita quisesse apontar o dedo, estava tudo ok". Quando questionado quem é Adolf Hitler, Nasser responde: "Hitler usou o seu poder para a destruição de todos os judeus e adversários políticos, igualmente. Para resolver o desastre econômico da Alemanha, ele pegou um bode expiatório: os judeus. Ele foi julgado por milhares de anos e está no lugar que merece: no inferno". Encerrando seus e-mails sempre com a frase "Tenha uma grande vida", Nasser concluiu dizendo como seria


P á g i n a | 36 sua história caso o nazismo não tivesse ocorrido: "Hoje teria uma grande família. Andris, meu irmão, poderia ter sido um médico e eu um arquiteto..." Hitler na Áustria A pátria e o sentimento de nacionalismo são traços marcantes na cultura de qualquer país. Num mundo onde se exaltam os heróis nacionais, a Áustria carrega consigo o rótulo de local de nascimento de Hitler. Para apresentar a maneira como é para um cidadão austríaco esta situação, o doutor Reinhold Wagnleitner, da Universidade de Salzburgo, revelou: "Oficialmente não há nenhum grupo nazista, mas isso não significa que não existam elementos marginais que aparecem ocasionalmente. Estamos conscientes de que Hitler era um austríaco e que temos de estar conscientes de suas políticas criminosas sempre". Sobre como o nazismo se encontra hoje inserido dentro das escolas do país, Wagnleitner revela: "O nacional-socialismo é um grande problema histórico enfrentado na Áustria e tem uma cobertura nas escolas e nos meios de comunicação do país de maneira ampla".

“A II Guerra Mundial, para Polônia, não há absolutamente nenhuma consequência positiva, já negativas são muitas a mencionar” Psicologia Social Estar sem perspectiva de vida, carregando o fardo da culpa por uma guerra e vendo o seu país enriquecendo apenas para poucos - os judeus. Foi este cenário que Hitler encontrou para propagar toda sua ideologia. Um dos mais renomados professores de psicologia das massas, Stephen Reicher é autor de diversos livros, entre eles "A Nova Psicologia da Liderança". Lecionando na Universidade de St Andrews (Reino Unido) de neurociência e psicologia, ele nos traça a questão do poder de liderança que tinha o líder dos nazistas: "Sobre Hitler, a questão é como ele veio a ser visto para o povo alemão. O que é fascinante é a forma como ele, sua biografia e até mesmo a sua personalidade foram todos construídos de forma que ele apareceu como a encarnação viva do "Alemãoness". Isso foi em parte o seu próprio trabalho e em

parte a de Goebbels, que descreveu "O mito Hitler" como sua maior conquista. Uma vez que Hitler tornouse 'Alemanha', então as pessoas poderiam transferir sua paixão para o grupo e também para o próprio Hitler. Quando ele falou para o grupo nos termos com os quais se definira, ele pode experimentar como falar com eles pessoalmente. Naturalmente, a maneira de fazer-se um símbolo do grupo depende da história, cultura e ideologia específicas desse grupo". Campos de concentração Muitos não gostam de falar do nazismo e falar sobre os temidos campos de concentração é algo ainda mais difícil. Comentar sobre o tema vem logo à cabeça as maneiras como milhares de pessoas foram mortas, sejam em câmaras de gás, campos de fuzilamento, etc. Já outros, têm a missão de encarar diariamente este fato. São aqueles que trabalham nos campos de concentração, agora, transformados em museus e Centros de Memória. Este é o caso de Kathrin Helldorfer, que trabalha atualmente no memorial do antigo campo de concentração de Flossenbürg (no mínimo 100 mil prisioneiros e 30 mil mortos)56 como relações públicas do local. Ela conta não apenas alguns de seus sentimentos como também a sensação dos visitantes: "Cada visitante é diferente e, portanto, reage diferente. Isso acontece muito (sobre pessoas que foram prisioneiros neste campo de concentração visitarem o local). Ainda assim, temos muitos membros de família que estão procurando informações sobre seus familiares. Eu acho que os incidentes nos antigos campos de concentração são chocantes o suficiente. Nós tentamos não ser uma câmara de horror, mas sim trazer de volta as histórias individuais de pessoas que tiveram um sofrimento tão terrível aqui. " Dimitri Roden, historiador do atual memorial do campo de concentração Auffanglager Breendonk da Bélgica, fala não apenas qual é a situação no local onde trabalha, mas também o sentimento do nazismo no país: "Nazismo é rejeitado pela população belga, como é o caso da maioria dos países europeus. Todos os nossos visitantes ficam impressionados com a atmosfera e a história do acampamento. Apenas metade dos prisioneiros sobreviveu à guerra (1700 de 3500). A maioria morreu nos campos de concentração no Reich 56

Holocaust, http://holocaust.cz/en/history/camps/flossenbuerg. Acessado em: 5 de outubro de 2012. Às 13h05


P á g i n a | 37 alemão, na prisão de Breendonk Auffanglager". Questionado qual o objetivo de transformar um campo de concentração em museu, Roden declara: "Mostrar os excessos de um regime totalitário". O polonês Dukasz Myszala que trabalha no museu do antigo campo de concentração Majdanek, local de extermínio que matou por volta de 78 mil pessoas e onde o sobrevivente Stephen Nasser, entrevistado acima, foi preso, diz que o nazismo no país é rejeitado de uma maneira geral: "O nazismo como uma atividade política é proibida por lei, e está sendo fiscalizado pela polícia. A sociedade polonesa no total é contra o nazismo. Não há nazismo na Polônia de hoje. A II Guerra Mundial, para Polônia, não há absolutamente nenhuma consequência positiva, já negativas são muitas a mencionar". Dirk Riedel, que trabalha no atual memorial do campo de concentração de Dachau, onde no mínimo 41,500 mil pessoas foram mortas e 200 mil presas, diz que o local é muito visitado por estudantes: "A concentração é dedicada à memória das vítimas. É também um local de trabalho acadêmico e educacional. A história do campo de concentração é o ponto focal. A compreensão desta história é transmitida, principalmente, através da perspectiva dos presos, sem, contudo, ignorar o contexto histórico, as estruturas e processos do terror nazista, bem como a história dos culpados. O objetivo é conseguir uma 'história integrada' que leve as perspectivas das vítimas e seu testemunho para ser inseparável da história global." Como dado adicional, nenhum dos entrevistados acima respondeu sobre o que representa o nazismo e Hitler para eles. Além disso, não há nenhum descendente de nazistas ou judeus neste momento trabalhando em um desses campos de concentração.

O alemão Quais são as consequências que o nazismo traz hoje para um alemão? Como é ver o nazismo 67 anos depois? Para tratar desses assuntos, falamos com Stephan Marks. PHD em História e diretor do projeto de pesquisa História e Memória, presidente da Memória e Aprendizagem e também presidente do Instituto de Freiburg de Educação em Direitos Humanos, além de autor e editor de 11 livros, dentre eles o livro Warum folgten sie de Hitler? Die Psychologie des Nationalsozialismus (Por que eles seguiram Hitler? A Psicologia do nazismo). Marks faz um paralelo entre passado e presente de um povo marcado pelo nazismo. "A grande maioria das pessoas têm atitudes críticas negativas na Alemanha para com o nazismo e estão conscientes sobre as atrocidades cometidas. No entanto, há um pequeno grupo de pessoas que negam os crimes e que tentam propagar nazismo. Além disso, há ainda um certo grau de antissemitismo sutil entre os alemães (talvez 10 ou 20 por cento). As consequências do nazismo são do povo alemão, é e sempre será identificado como o pior crime da história da humanidade. Alguns alemães consideram esta negativa (como um muito pesado "fardo" em ser alemão) - na minha opinião, esta é também uma responsabilidade, uma "chamada", eu poderia dizer, que nos desafia (alemães) a serem mais conscientes e respeitar a dignidade humana. Na minha opinião, muitos alemães não aceitam muito esta herança, ainda não". Um dos fatores que chama a atenção entre aqueles que são descendentes de nazistas é o fato de algum deles optarem por não terem mais filhos, ou seja, fazerem a esterilização. Como é o caso de Bettina Goering e seu irmão, sobrinha-neta de Hermann Goering 57 , o segundo homem mais poderoso do nazismo depois de Hitler. A explicação daqueles que fizeram tal procedimento foi para que não houvesse mais descendentes na família Questionamos Marks sobre este fato de esterilização e o mesmo, que se diz surpreso com a pergunta, declara: "Esta questão é uma surpresa para mim. Ele mostra que já alcançou uma compreensão muito boa do meu país. Minha opinião? Muitos membros da 57

Correio do Brasil, http://correiodobrasil.com.br/nazismofilhos-e-netos-relatam-trauma-de-lidar-com-passadosombrio-na-familia/. Acessado em: 5 de outubro de 2012. Às 14h15.


P á g i n a | 38 minha "geração" (ou seja, alemães nascido na década ou mais após o fim da 2ª Guerra Mundial) fizeram essa vasectomia (inclusive eu). É difícil ter uma 'opinião' sobre isso, porque isso 'aconteceu'. Para muitos de minha geração isto parece ser bastante plausível. Sendo um alemão (em 1960 e 1970) é terrível, me sentia muito mal, então como eu posso fazer isso a um recém-nascido? No entanto (eu tenho 61 anos agora) me sinto diferente e muitos outros alemães também (portanto, os alemães não entrarão em extinção)". Judeu residente na Alemanha Viver num país onde muitos foram mortos e perseguidos pode não ser uma das tarefas mais fáceis para uma pessoa. Dos 500 à 550 mil judeus que existiam antes do nazismo58, números do ano 2002 apontam hoje que sejam 100 mil59 e outros falam de 200 mil. Para contar como é ser judeu e viver na Alemanha, entrevistamos Max Privorozki, presidente da associação judaica de Halle, cidade do país: "Há alguns problemas entre judeus e alemães, mas acho que o relacionamento é ok. Não devemos esquecer que cerca de ¾ hoje da comunidade judaica na Alemanha são antigos judeus soviéticos, como eu. A maioria dos problemas não é entre judeus e alemães, mas sim judeus russos e alemães. Os alemães modernos não são responsáveis por nazistas 1933-1945. Eles são responsáveis pela não repetição desses eventos. E eles fazem (quase) o seu melhor. Há alguns grupos em todas as sociedades que apoiam o nazismo. Eu não gosto deles. É importante que as pessoas e o governo lutem contra esses grupos. E os alemães fazem isso".

“A maioria dos problemas não é entre judeus e alemães, mas sim judeus russos e alemães” Educação na Alemanha Seria impossível falar deste tema sem mencionar a questão da educação. Transmitir informações sobre o nazismo nas escolas alemãs poderia ser um grande desafio principalmente para os professores de História 58

AFP Google, http://afp.google.com/article/ALeqM5g228pNlf6Gu8P3ZfR 3QhuPuZdfpg. 59 BBC Brasil, http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2002/021216_cr escentilmp.shtml.

Sobre a questão dentro da sala de aula, Ulrich Bongertmann, presidente da Associação de Professores de História da Alemanha, comenta como vem sendo trabalhado o tema nas escolas e as maiores dificuldades encontradas: "Estudantes judeus são um desafio pequeno, mas os estudantes palestinos e árabes rejeitam o tema do Holocausto, pois não é um tema que acham importante para si. No geral, está tudo bem. A comunidade judaica tem apenas 200 mil membros e a Alemanha tem 82 milhões de pessoas no total". Bongertmann também nos deu acesso a um documento enviado para todos os professores de História da Alemanha, que são recomendações para o ensino de História Geral. Podemos citar algumas das sugestões: Falar sobre a biografia de Hitler, o darwinismo social, a ideologia nacionalista-racista, o antissemitismo, a ideologia do habitat, a propaganda nazista, o poder sedutor da ditadura, o culto a personalidade, os campos de extermínio, a eutanásia, experimentos humanos no campo de concentração de medicina, o trabalho forçado, os obstáculos para a vida judaica, etc. Além disso, recomenda-se o uso também da História oral e da internet para engrandecimento ainda mais do conhecimento sobre o assunto.

“Alguns alemães consideram esta negativa como um muito pesado "fardo" em ser alemão” Conclusão Para esta pesquisa, foram enviados 198 e-mails tendo buscado entrevistar por volta de 180 pessoas. Destes, 14 pessoas aceitaram falar sobre este assunto. Muitos, alegando problemas particulares e outras dificuldades, declararam não ser possível a entrevista. Com base em tudo que foi descrito acima, podemos concluir que o nazismo, apesar de ter ocorrido há 67 anos ainda é um fator de discussão atual. Explicar o sentimento em países que viveram tão fortemente e o que isto trouxe para estes povos na atualidade é de fato um grande desafio. O que pensa e sente cada entrevistado pode não revelar o sentimento entre todos alemães, judeus,


P á g i n a | 39 austríacos, búlgaros, poloneses e outros povos, mas, sem a menor dúvida, seus pensamentos são compartilhados com pelo menos outros membros de cada sociedade. Apesar do nazismo não existir como forma de governo, existe em forma de pensamento. Sendo ele o repúdio, a vergonha, o temor, a negação e a fuga.

Jessica Corais: Graduanda em História pelas Faculdades Integradas Simonsen, repórter e membro fundadora da Gnarus Revista de História.


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Coluna:

Fotografias da História

FOTOGRAFIA E HISTÓRIA – REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS Por Ana Maria Mauad

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esde as últimas décadas do século XIX a percepção visual do mundo foi marcada pela utilização de dispositivos técnicos para a produção das imagens. A demanda social de imagens foi se ampliando ao longo do século XX, a ponto de podermos contar a sua história através das imagens técnicas, notadamente, a fotografia. Sendo assim, as imagens técnicas na sua dimensão de documentos e monumentos da história contemporânea devem ser trabalhadas a partir da ampliação da noção de testemunho, a maneira de Bloch.

“A fotografia é uma fonte histórica que demanda por parte do historiador um novo tipo de crítica” Tal procedimento engendra alguns desdobramentos teórico-metodológicos, dentre os quais destacamos, os processos de produção de sentido na sociedade contemporânea, com destaque para, os seguintes

aspectos: o papel desempenhado pela tecnologia; a definição do circuito social da produção de imagens técnicas, enfatizando historicidade dos regimes visuais; o papel dos sujeitos sociais como mediadores da produção cultural, compreendendo que a relação entre produtores e receptores de imagens se traduz numa negociação de sentidos e significados; e por fim, a capacidade narrativa das imagens técnicas, discutindose aí a dimensão temporal das imagens, os elementos definidores de uma linguagem eminentemente visual e por fim o diálogo estabelecido entre imagens técnicas e outros textos, tanto de caráter verbal, como não verbal, a partir do princípio de intertextualidade. Deste conjunto de desdobramentos podemos sintetizar os três principais aspectos ao considerarmos as imagens visuais: 1. A questão da produção – o dispositivo que media a relação entre o sujeito que olha e a imagem que elabora. Através dessa atividade de olhar se dá a manipulação de um dispositivo de caráter tecnológico, este possui determinadas regras definidas historicamente.


P á g i n a | 41 2. A questão da recepção – associada ao valor atribuído à imagem pela sociedade que a produz, mas também recebe. Em que medida, este valor está mais ou menos balizado pelos efeitos de realismo da imagem, vai apontar para a conformação histórica de um certo regime de visualidade. Portanto, se a questão da relação da imagem com o seu referente e o grau de iconicidade dessa imagem é uma questão estética, seu julgamento ( ou apropriação) tem a ver com as condições de recepção e como, através dessa recepção, se atribui valor a imagem: informativo, artístico, intimo, etc. 3. A questão do produto – entende-se aí, a imagem consubstanciada em matéria, ainda a capacidade da imagem potencializar a matéria em si mesma, como objetivação de trabalho humano, como resultado do processo de produção de sentido social, como relação social. Compreendida como resultante de uma relação entre sujeitos, a imagem visual engendra uma capacidade narrativa que se processa numa dada temporalidade. Estabelece, assim, um diálogo de sentidos com outras referencias culturais de caráter verbal e não verbal. As imagens nos contam histórias, atualizam memórias, inventam vivências, imaginando a história.

O circuito social da fotografia nos séculos XIX e XX foi caracterizado pelo advento daquilo que denomino de fotografia pública. A noção de fotografia pública associa-se tanto configuração de ação do poder público, por meio da produção de registros de situações, processos e sujeitos que se associam a ação do Estado e criam a memória visual da ação do poder público. Ao mesmo tempo, busca ampliar a noção de documento visual, por entender que qualquer fotografia, ao mesmo tempo em apresenta e representa o mundo visível, por meio de uma linguagem é também o resultado de uma prática social e de uma experiência histórica. Utiliza-se o termo fotografia pública para incluir dentro da análise de fotografias as dimensões de seu circuito social, quer seja definindo a dimensão do espaço público visual, quer seja pela configuração de um publico que visualiza essas imagens. Portanto, conjugamos dentro desta rubrica um conjunto de imagens publicadas em jornais e revistas, mas também, veiculadas em catálogos de exposições e coletâneas de fotógrafos resultantes da sua prática fotográfica: documental e artística. Assim a noção de fotografia pública vem complementar àquela relativa ao espaço doméstico e da intimidade, reservada a esfera privada das relações sociais. O fundamental é perceber, os aspectos desta comunidade de imagens que estruturam uma linguagem visual comum, migrando de campos de produção visual para outros, a partir de um processo de apropriação e rearticulação dos elementos significantes. Fotografia como fonte histórica: leitura e interpretação O testemunho é válido, não importando se o registro fotográfico foi feito para documentar um fato ou representar um estilo de vida. No entanto, parafraseando Jacques Le Goff, há que se considerar a fotografia, simultaneamente como imagem/documento e como imagem/monumento. No primeiro caso, considera-se a fotografia como índice, como marca de uma materialidade passada, na qual objetos, pessoas, lugares nos informam sobre determinados aspectos desse passado - condições de vida, moda, infraestrutura urbana ou rural, condições de trabalho etc. No segundo caso, a fotografia é um símbolo, aquilo que, no passado, a sociedade estabeleceu como a única imagem a ser perenizada para o futuro. Sem esquecer jamais que todo

Foto de Erno Schneider - 1962


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Espaço de trabalho no início do séc. XX. Foto de Augusto Malta – Rio de Janeiro. documento é monumento, se a fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de mundo. Tal perspectiva remete ao circuito social da fotografia nos diferentes períodos de sua história, incluindo-se, nesta categoria, todo o processo de produção, circulação e consumo das imagens fotográficas. Só assim será possível restabelecer as condições de emissão e recepção da mensagem fotográfica, bem como as tensões sociais que envolveram a sua elaboração. Desta maneira, texto e contexto estarão contemplados. Os textos visuais, inclusive a fotografia, são resultado de um jogo de expressão e conteúdo que envolvem, necessariamente, três componentes: o autor, o texto propriamente dito e um leitor. Cada um destes três elementos integra o resultado final, à medida que todo o produto cultural envolve um locus de produção e um produtor, que manipula técnicas e detém saberes específicos à sua atividade, um leitor ou destinatário, concebido como um sujeito transindividual cujas respostas estão diretamente ligadas às programações sociais de comportamento do

contexto histórico no qual se insere, e por fim um significado aceito socialmente como válido, resultante do trabalho de investimento de sentido. No caso da fotografia, é evidente o papel de autor imputado ao fotógrafo. Porém, há que se concebê-lo como uma categoria social, quer seja profissional autônomo, fotógrafo de imprensa, fotógrafo oficial ou um mero amador “batedor de chapas”. O grau de controle da técnica e das estéticas fotográficas variará na mesma proporção dos objetivos estabelecidos para a imagem final. Ainda assim, o controle de uma câmara fotográfica impõe uma competência mínima, por parte do autor, ligada fundamentalmente à manipulação de códigos convencionalizados social e historicamente para a produção de uma imagem possível de ser compreendida. No século XIX, este controle ficava restrito a um grupo seleto de fotógrafos profissionais que manipulava aparelhos pesados e tinha de produzir o seu próprio material de trabalho, inclusive a sensibilização de chapas de vidro. Com o desenvolvimento de indústria ótica e química, ainda no final dos Oitocentos, ocorreu uma estandardização dos produtos fotográficos e uma compactação das câmaras,


P á g i n a | 43 possibilitando uma ampliação do número de profissionais e usuários da fotografia. No início do século XX, já era possível contar com as indústrias Kodak e a máxima da fotografia amadora: “You press the botton, we do the rest”. Paralelamente ao processo de desenvolvimento tecnológico, o campo fotográfico foi sendo constituído a partir do estabelecimento de uma estética que incluía desde profissionais do retrato em busca da feição mais harmoniosa para seu cliente e o paisagista que buscava a nitidez da imagem e a amplitude de planos, até o fotógrafo amador-artista, geralmente ligado às associações fotoclubísticas, que defendia a fotografia como expressão artística, baseada nos mesmos cânones que a pintura (por isso, não poupava a imagem fotográfica de uma intervenção direta, tanto através do uso de filtros, quanto do retoque, entre outras técnicas). Técnica e estética eram competência do autor. À competência do autor corresponde a do leitor, cuja exigência mínima é saber que uma fotografia é uma fotografia, ou seja, o suporte material de uma imagem. Na verdade é a competência de quem olha que fornece significados à imagem. Essa compreensão se dá a partir de regras culturais, que fornecem a garantia de que a leitura da imagem não se limite a um sujeito individual, mas que acima de tudo seja coletiva. A ideia de competência do leitor pressupõe que este mesmo leitor, na qualidade de destinatário da mensagem fotográfica, detenha uma série de saberes que envolvem outros textos sociais. É importante destacar que a compreensão de textos visuais é tanto um ato conceitual, quanto um ato fundado numa pragmática, que pressupõe a aplicação regras culturalmente aceitas como válidas e convencionalizadas na dinâmica social. Percepção e interpretação são faces de um mesmo processo: o da educação do olhar. Existem regras de leitura dos textos visuais que são compartilhadas pela comunidade de leitores. Tais regras não são geradas espontaneamente; na verdade, resultam de uma disputa pelo significado adequado as representações culturais. Sendo assim, sua aplicação por parte dos leitores/destinatários envolve, também, a situação de recepção dos textos visuais. Tal situação varia historicamente, desde o veículo que suporta a imagem até a sua circulação e consumo, passando pelo controle dos meios técnicos de produção cultural, exercido por diferentes grupos que se enfrentam na dinâmica social. Portanto, se a cultura

comunica, a ideologia estrutura a comunicação e a hegemonia social faz com que a imagem da classe dominante predomine, erigindo-se como modelo para as demais. No caso da fotografia, os veículos incluem desde os tradicionais álbuns de retrato até os bytes de uma imagem digitalizada, podendo a circulação limitar-se ao ambiente familiar ou ampliar seus caminhos navegando pela Internet. Já a situação de consumo é direcionada para um destinatário, seja ele um apaixonado que guarda o retrato de sua amada como uma relíquia, seja um banco de memória que armazenará a imagem fotográfica, até que alguém acesse a informação e assuma o papel de leitor/destinatário. Na qualidade de texto, que pressupõe competências para sua produção e leitura, a fotografia uma linguagem que se organiza com base em duas dimensões: expressão e conteúdo. O primeiro envolve escolhas técnicas e estéticas, tais como enquadramento, iluminação, definição da imagem, contraste, cor etc. Já o segundo é determinado pelo conjunto de pessoas, objetos, lugares e vivências que compõem a fotografia. Ambas as dimensões se correspondem no processo contínuo de produção de sentido na fotografia, sendo possível separá-los para fins de análise, mas compreendê-los somente como um todo integrado. Historicamente, a fotografia compõe, juntamente com outros tipos de texto de caráter verbal e nãoverbal, a textualidade de uma determinada época. Tal ideia implica a noção de intertextualidade para a compreensão ampla das maneiras de ser e agir de um determinado contexto histórico: à medida que os textos históricos não são autônomos, necessitam de outros para sua interpretação. Da mesma forma, a fotografia - para ser utilizada como fonte histórica, ultrapassando seu mero aspecto ilustrativo - deve compor uma série extensa e homogênea no sentido de dar conta das semelhanças e diferenças próprias ao conjunto de imagens que se escolheu analisar. Nesse sentido o corpus fotográfico pode ser organizado em função de um tema, tais como a morte, a criança, o casamento etc., ou em função das diferentes agências de produção da imagem que competem nos processos de produção de sentido social, entre as quais a família, o Estado, a imprensa e a publicidade. Em ambos os casos, a análise histórica da mensagem fotográfica tem na noção de espaço a sua chave de leitura, posto que a


P á g i n a | 44 própria fotografia é um recorte espacial que contém outros espaços que a determinam e estruturam, como, por exemplo, o espaço geográfico, o espaço dos objetos (interiores, exteriores e pessoais), o espaço da figuração e o espaço das vivências, comportamentos e representações sociais. Do ponto de vista temporal, a imagem fotográfica permite a presentificação do passado, como uma mensagem que se processa através do tempo, colocando, por conseguinte, um novo problema ao historiador que, além de lidar com as competências acima referidas, deve lidar com a sua própria competência, na situação de um leitor de imagens do passado. Retomamos, neste ponto, a pergunta anterior: como olhar através das imagens? Por tudo que já foi dito, considerando-se a fotografia como uma fonte histórica que demanda um novo tipo de crítica, uma nova postura teórica de caráter transdisciplinar, algumas pistas para responder tal questão já foram dadas. Resta, no entanto, indicar, nesta cadeia de temporalidades, qual o locus interpretativo do historiador. Já foi dito que as imagens são históricas, que dependem das variáveis técnicas e estéticas do contexto histórico que as produziram e das diferentes visões de mundo que concorrem no jogo das relações sociais. Nesse sentido, as fotografias guardam, na sua superfície sensível, a marca indefectível do passado que as produziu e consumiu. Um dia já foram memória presente, próxima àqueles que as possuíam, as guardavam e colecionavam como relíquias, lembranças ou testemunhos. No processo de constante vir a ser recuperam o seu caráter de presença, num novo lugar, num outro contexto e com uma função diferente. Da mesma forma que seus antigos donos, o historiador entra em contato com este presente/passado e o investe de sentido, um sentido diverso daquele dado pelos contemporâneos da imagem, mas próprio à problemática ser estudada. Aí reside a competência daquele que analisa imagens do passado: no problema proposto e na construção do objeto de estudo. A imagem não fala por si só; é necessário que as perguntas sejam feitas.

Ana Maria Mauad: Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professorado Departamento de História da UFF. Pesquisadora do CNPq. Autora, entre outros livros, de Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias. Niterói: Editora da UFF, 2008.

Gostou? Então para saber mais não deixe de ler:


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Coluna:

A MEMÓRIA E O CENTRO DE MEMÓRIA DE REALENGO E PADRE MIGUEL Por Allan Pereira de Oliveira

O

Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel inaugurado oficialmente em 2001, foi criado em prol da preservação da memória local através do resguardo de fotografias, periódicos, pinturas e registros diversos. Nossa missão consiste em organizá-las proporcionando a disponibilização, utilização e visualização para pesquisadores e membros da comunidade de forma democrática. Porém, para cumprir nosso objetivo é necessário estabelecer alguns pontos de apoio teórico através de questionamentos inerentes ao tema como: o que a memória representa no campo individual e social? Qual a necessidade e a importância de um centro de memória para a comunidade? Que critérios caracterizam esses documentos como “fontes mnemônicas”? Como podemos interpretar e manusear o material disponível? A partir destas perguntas se desenha o nosso projeto de pesquisa. A memória é, segundo Le Goff , o conjunto de funções psíquicas que possuem a propriedade de conservar informações para o homem utilizá-las na atualização de impressões que representam seu passado, mostra-se como objeto em permanente

evolução e possui um elo com o tempo presente. Uma de suas características principais, e que a difere da História, é sua continuidade que busca sempre em forma de narrativa ligar os fatos, esta peculiaridade deve ser entendida não só como fenômeno individual que busca alinhar os acontecimentos do passado, mas também como coletivo porque este alinhamento procura sempre ajustar-se ao meio social do indivíduo, ou seja, a construção da memória pode projetar, de forma artificial e inconsciente, acontecimentos, personagens e lugares, que o memorizador não viveu pessoalmente, com o intuito de proporcionar a ele uma coerência de sua continuidade com seu nicho social, o que a configura como um processo social. O século XX trouxe, com as inovações tecnológicas, uma aceleração na transmissão e armazenamento das informações, as buscamos sempre de modo imediato e dispomos de aparelhos e tecnologia para guardá-las e disseminá-las. Vivemos um momento em que as técnicas de memorização são consideradas reacionárias e o novo sempre sobrepuja o velho. Nossa sociedade valoriza mais o moderno que o antigo, mais o presente que o passado. Nesse contexto é que nascem os lugares


P á g i n a | 46 de memória, como santuários, cemitérios, monumentos, museus e os centros de memória, que se constituem de “retalhos” da colcha que é a sociedade. Mas são exatamente estes fragmentos que fomentam a produção historiográfica, que promovem a identidade de um grupo, que legitimam a cultura popular. O que justifica a criação do Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel - CMRP é a ameaça iminente do esquecimento, porque sem estes lugares nós fatalmente perderíamos o referencial identitário destas comunidades. A memória é intrinsecamente narrativa e a partir desta premissa entende-se que os materiais ligados a ela, sejam congruentes com esta característica. Logo, estes objetos, músicas, relatórios, poesias, cartas, fotos, etc, necessitam obrigatoriamente dialogar com a narrativa coletiva, social e da memória de forma desacelerada. Estes artefatos, que também se enquadram no ideal de patrimônio material, são valorados somente, e unicamente, quando estes legitimam ou remetem à “memória nacional”, ou memória do grupo, ou seja, as memórias individuais que não reverberam a massa dominante ou o modo de vida idealizado por elas são descartadas. O que se deve salientar é que estas sacralizações não propõem um discurso crítico e, também por isso divergem da

História, estas fontes mnemônicas, que possuem propriedades diferentes do conceito de fonte histórica, são forjadas às luzes de um compêndio ideológico. Então, os critérios que designam a capacidade reminiscente de um documento são sua relação com a narrativa, sua capacidade ideológica e seu diálogo somente com a lembrança e o esquecimento. O manuseio da memória só é possível a partir de uma busca de suas “raízes”, os relatos, as entrevistas e biografias tornam-se imprescindíveis nesta etapa do trabalho para o enquadramento da memória. O que distingue a fonte mnemônica de qualquer outra folha de papel, por exemplo, é o discurso narrativo, afetivo, atual e absoluto que ele carrega. Portanto, para uma correta manipulação e interpretação dessa memória o pesquisador deve cogitar uma análise psicológica do memorizador em relação a ela. É necessário ressaltar sua conexão com a psiquê, porque sua humanização é o veículo que a torna volátil e susceptível à revisões. O estudo desenvolvido para abraçar nossa missão para com o CMRP proporciona enriquecimento científico do objeto de estudo e sua estreita relação com a História. O objetivo de nossa empreitada não é glorificar as lembranças, mas disponibilizá-las, de modo inteligível e acessível, para que sejam fomentadoras de novas pesquisas sobre a região. Para este propósito é

Banda Santa Cecília (21-11-48) - Foto doada ao CMRP pela Senhora Cleuma Goulard de Oliveira em 19-02-2004 Moradora de Realengo.


P á g i n a | 47 que se faz imperioso esmiuçar suas propriedades, pois seu manuseio depende de uma compreensão abrangente de seus aspectos específicos. Tencionando impreterivelmente subjugar a memória, como artéria que alimenta os vasos da produção historiográfica, ao rigor metodológico e ao mar de questionamentos que serão propostos pelos historiadores.

Allan Pereira de Oliveira: Graduando em História pelas Faculdades Integradas Simonsen. Pesquisador do Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel e Bolsista do Programa de Iniciação Científica das Faculdades Integradas Simonsen.

Referencia bibliográfica: FRÓES, José N. S. Terras Realengas. Rio de Janeiro: CIEZO, 2004. LE GOFF, Jaques. Memória. In: História e memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003. NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares, In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. ___________. Memória e identidade Social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, p.200-212, 1992. SANT’ANNA, Marcia. A face imaterial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valorização . In: Memória e Patrimônio: ensaios contemporâneos. Ed.2. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. WENCESLAU, Carlos A. C. Realengo, meu bem querer. Rio de Janeiro: CIEZO, 2004.

E.M. Cel Corsino do Amarante em desfile cívico na Avenida Santa Cruz em Realengo - (1976) Foto componente do acervo do CMRP.


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REALENGO: A CONSTRUÇÃO DE UM BAIRRO E AS CORRENTES QUE DIVERGEM SOBRE A ORIGEM DE SEU NOME Por Elizabeth Bertoldi e Nathália Guimarães

A

Professora Martha de Almeida Nogueira da Silva, em seu Trabalho de Conclusão do Curso de Licenciatura Plena em História, concluído em 2008, na Instituição de Ensino Faculdades Integradas Simonsen, sob o título “A Reconstrução da História de um Bairro: uma análise sobre diferentes correntes existentes sobre a origem do nome do bairro Realengo e a influência das mesmas na identidade cultural e local de sua população”, apresenta o resultado de suas pesquisas, nas quais como um dos principais objetivos está explanar o significado e a origem do nome Realengo, atribuído a um bairro que foi palco de importantes fatos históricos. Seu trabalho, feito a partir de fontes bibliográficas e narrativas reminiscentes de antigos moradores, é composto de seis capítulos nos quais ela conceitua a palavra bairro; situa geográfica e administrativamente a região; apresenta a origem histórica do bairro; relata o resultado de sua pesquisa referente ao significado da palavra Realengo, seu principal foco; e traça o perfil atual do bairro. Segundo a Professora Martha, as correntes que explicam o significado e a origem do nome Realengo são: “Aquilo que está abandonado”; “terras reais ou tudo aquilo que for realeza, ou proveniente dela”; “junção da palavra real com a abreviação da palavra engenho” – Real Engº – a mais utilizada pelos moradores do bairro; e “palavra de origem germânica cujo significado é terras distantes do poder real”. Houve por parte da professora Martha a preocupação em examinar isoladamente cada uma dessas correntes. Os resultados de suas pesquisas serão utilizados aqui para elucidar os leitores. Antes, vamos ilustrar brevemente a origem histórica das denominadas Terras Realengas.

A partir de 27 de junho de 1814 pela carta Régia, D. João concedeu em sesmaria, ao Senado da Câmara do Rio de Janeiro, os terrenos situados em Campo Grande, chamados realengos por pertencerem ao Rei de Portugal, a partir daí as terras passam a ser públicas, onde sua venda e alienação seriam proibidas. Contudo, em 1815, foram constatadas instalações de algumas casas no local através de vendas de lotes, na iminência de abusos foram estabelecidas dimensões

Brasão de Realengo: criado em conjunto com o Professor

Carlos Wenceslau, Almira Damasceno e Marinês Seabra (desenhista). Descrição das cores: Azul - Lealdade (Manto de Nossa Senhora); Branco – Paz; Cinza – autoridade do Príncipe D. João; Elementos –Cabeça de Boi – Pastagem (vindos do Arquipélago dos Açores); Cana de Açúcar e Laranja – Principais produções do povoamento na época do Brasil Colônia, na Zona Oeste. Fonte: http://historia-de-realengo.blogspot.com.br


P á g i n a | 49 para estes usos e exigência de posse de títulos para permanência nas terras. Sua ocupação se deu através de diversas formas, iniciando-se pelo estabelecimento de uma Zona Militar, cujo ápice foi a fundação da Escola Preparatória e Tática e do 1º Batalhão de Engenheiros em 1897, porém seus primeiros povoadores foram escravos e imigrantes portugueses que se dedicavam à agricultura e pastagem devido aos grandes espaços vazios existentes no local. Voltando às correntes interpretativas da origem do topônimo Realengo e, com base nos resultados das pesquisas da Professora Martha, concluímos que em tempos remotos, antes mesmo do surgimento da região, o termo já era usado para designar tudo aquilo que se originasse da realeza ou pertencente à mesma. Constatado através de documentos de fontes primárias, inclusive de dicionários dos séculos XVIII e XIX. Somente a partir do século XX é que alguns dicionários adicionaram ao termo o significado de “terras abandonadas”, o que também foi assimilado pela população local. Com relação à junção da palavra real com a abreviação da palavra engenho, a pesquisadora coloca que as consultas em diversos livros apontaram, com certeza, a existência de engenho na região, sendo o mesmo de propriedade da família Fernandes Barata e não dos reis, como conta a população ao longo dos séculos, fazendo a relação por uma dedução lógica: “ora, se existia engenho e o mesmo estava em terras reais, ele só poderia ser real”. Outra constatação foi a existência da Fazenda Piraquara, mais conhecida pela população como Fazenda dos Barata. A corrente Real Engº é atribuída à tradição popular. Conforme o depoimento do Sr. Aloysio Fialho, nascido e criado no bairro, oitenta e três anos (quando a pesquisa foi elaborada – 2008), jornalista e dono do jornal “A Voz de Realengo”, que circulou por mais de cinquenta anos: “Acredito nesta versão porque aqui em Realengo havia muitas fazendas e mesmo aquelas que não tinham a moenda (...) era composta por plantações de cana, polo pomar, pela lavoura de subsistência, pela casa grande onde morava o proprietário e sua família, a capela, a senzala e até mesmo a floresta (...). Sei que as fazendas ou engenhos não pertenciam aos reis, mas nesta época as terras ainda eram realengas”. Segundo a Professora Martha, a versão de que a palavra Realengo vinha abreviada nos bondes – uma tradição oral – não pode ser comprovada

historicamente por não haver fotos, documentos e pelo fato de que os trens vieram antes dos bondes. Não havia linha de bondes em Realengo. Ela conclui também que mesmo as terras realengas tendo sido doadas por D. João, a partir do século XIX, a população não incutiu em sua identidade local e nem cultural esta nova situação, considerando até hoje como terras pertencentes aos reis, como uma forma de manter viva a história de sua origem. Sua pesquisa finaliza destacando que Realengo é uma palavra de origem neolatina utilizada no vocabulário português para adjetivar lugares, animais, objetos, etc., como reais, sendo dado, pela população, um novo significado a ela que foi passada através da tradição oral, no intuito de preservação da memória que no bairro é muito valorizada. Sugerimos aos leitores interessados em obter mais informações sobre o bairro Realengo que acessem, no Facebook, a página do CMRP – Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel. A fundação do CMRP partiu da iniciativa da Professora Martha Nogueira, moradora e apaixonada pela região. O intuito é resgatar, preservar e divulgar a memória, a história de Realengo, de Padre Miguel, dos moradores e de sua ligação com a História do Rio de Janeiro. O CMRP funciona como uma artéria que alimenta a produção da História. Cada vez que as lembranças são reveladas elas fortalecem nossa identidade.

Elizabeth

Bertoldi

e

Nathália

Guimarães:

São

Graduandas em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e Pesquisadoras do Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel.


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Coluna:

NO ESCURO DO CINEMA: REFLEXÕES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE CINEMA E HISTÓRIA Por: Fernando Gralha “Um filme diz tanto quanto for questionado”, com esta frase o historiador francês Marc Ferro em seu emblemático artigo “O Filme: Uma contra-análise da sociedade” inaugurou a relação entre historiadores e a tela grande, na qual dentro do processo de renovação historiográfica da Nova História, o filme surge em sua dimensão de documento/monumento. Ferro estabelece que qualquer reflexão sobre a relação cinema-história toma como verdadeira a premissa de que todo filme é um documento, desde que corresponda a um vestígio de um acontecimento que teve existência no passado, seja ele imediato ou remoto. O historiador inova ao contrapor-se à análise anterior feita por Samaran em 1961, na qual o filme teria um caráter de “veracidade do real”, para Ferro, a análise fílmica se dá através do que chama de uma “contra-análise da sociedade”, nela o filme transcende ao seu papel de mero recurso imagético revestido de uma realidade e vai além, mostra não só o que evidencia, mas também o involuntário, o imaginário, os valores, os silêncios, alcançando desta forma uma realidade além da representada, chega às “zonas ideológicas não-visíveis”, lugar onde o cinema se apresenta como agente da História, portador de uma peculiar potência social e política.

Assim, o cinema entrava no jogo iniciado pelos historiadores dos Annales Jacques Le Goff e Pierre Nora, que ao organizarem sua famosa trilogia alargam os horizontes da pesquisa historiográfica com a elevação de toda a produção humana ao status de fonte histórica, do mesmo modo que a festa, a cozinha, o clima, o inconsciente, o corpo, entre outros temas, o filme representado na obra pelo texto inovador de Marc Ferro é alçado ao status de fonte histórica.


P á g i n a | 51 Nada mais justo que a História se utilize do cinema, pois desde muito tempo, a História vem servindo de fonte de inspiração para muitas formas de representação, sejam elas lendárias, teatrais, literárias, plásticas e várias outras. Com o surgimento do cinema e sua rápida popularização, essa característica teve um grande aumento de suas possibilidades, podemos observar isto ao percebermos o elevado número de filmes com referencial histórico na produção mundial. E é aí que entra a necessidade do historiador em buscar no filme respostas para algumas de suas questões, a produção cinematográfica, seja ela a dos pequenos estúdios, seja do grandiloquente universo hollywoodiano, se constitui em um dos discursos e testemunhos do mundo dos homens, espaço e instrumento de reflexão epistemológica não só da História, mas também, para nós historiadores, das ciências auxiliares como a antropologia, a filosofia e a sociologia e a psicologia, para ficarmos apenas nas humanas. Sim o filme é documento/monumento, porém o valor documental de cada película está intimamente ligado com a competência do olhar e a perspectiva adotados pelo “analista”. Para Alfredo Bosi , dentro de uma perspectiva sobre uma fenomenologia do olhar, olhar, ver e pensar são ações inseparáveis. Perceber a relação entre signo e as imagens em movimento do cinema, decompor as características e aspectos que a imagem fílmica constrói, nos faz chegar àquilo que não foi mostrado de imediato pelo cineasta. Posicionar o diretor, o produtor e todo o staff da obra cinematográfica em seus campos culturais também é de fundamental importância, ou seja, compreender o filme como opção resultante de uma definida visão de mundo, profusa de elementos ideológicos e mentais dos quais, muitas vezes, nem mesmo aqueles que produziram essas películas têm consciência harmonizados pela forma de ler, visualizar e exibir o mundo no momento em que o cineasta com seu equipamento e equipe montam com imagens e sons o seu discurso. Destarte, as possibilidades de leitura de cada filme são múltiplas. Algumas obras, por exemplo, podem ser de grande utilidade na reconstrução do gestual, do vestuário, do vocabulário, da arquitetura e dos costumes do período retratado. Mas, para além da representação desses elementos audiovisuais, elas “refletem” a mentalidade da sociedade, incluindo aí seus valores, através da presença de elementos dos

quais, muitas vezes, nem mesmo aqueles que produziram essas películas têm consciência. Portanto, o filme é inevitavelmente fruto e imagem da sociedade que o produziu, constituindo-se desta forma fonte primária de alta qualidade e potencialidades, desde que bem perscrutadas por um historiador com pleno domínio de seu ofício. Ampliando a questão, Marc Ferro, ao elaborar sua teoria definiu dois dos métodos de leitura do filme acessíveis ao historiador: a leitura histórica do filme, já explicitada aqui, e a leitura cinematográfica da História. A primeira, como já dissemos, corresponde à leitura do filme à luz do período em que foi produzido, fonte primária, ou seja, o filme lido através da História, e a segunda, à leitura do filme enquanto discurso sobre o passado, fonte secundária, isto é, a História lida através do cinema e, em particular, dos “filmes históricos”. Seguindo por este viés, o “filme histórico”, como detentor de um discurso sobre o passado, afinase com a História no que se refere à sua condição discursiva. Portanto, não seria um exagero considerar que o autor cinematográfico, quando produz um ‘filme histórico’, ganha contornos de historiador, mesmo não carregando consigo o rigor metodológico do trabalho historiográfico.


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Poster de “O Encouraçado de Potemkin O trabalho do historiador, nesse caso, está entre outras obrigações, perceber que enquanto alguns cineastas têm, por exemplo, uma preocupação exacerbada com a fidelidade dos cenários – caso de Jean Jacques Annaud em “O nome da rosa” (1986), que contou com a ajuda de ninguém menos que Jacques Le Goff para orientar desde a construção do mobiliário medieval até a iluminação dos mosteiros – outros preferem dar vazão a uma licença poética – caso de Mel Gibson, que em seu filme “Coração Valente” (1995), inventou armas para as cenas de batalhas, misturando-as com armas verdadeiras da época. Na maioria das vezes trata-se de representações ideológicas da História. Como outro exemplo, podemos citar filmes que têm uma função objetiva (mas muitas vezes subjetiva) patriótica, de fazer com que a plateia ame sua pátria, ou de legitimarem as instituições governistas – “Independência ou morte!” (1972), “A batalha de Guararapes” (1978), “Os inconfidentes” (1972), “Fomos heróis” (2003), “O patriota” (2000), “O resgate do soldado Ryan” (1998). Já algumas obras possuem esse conteúdo ideológico voltado para questões de crítica ou conflitos internos e externos, de maneira menos óbvia que a média das produções – “As bruxas de Salem” (1996), “El Cid”

(1956), “Erik, o Viking” (1989), entre outros. Mesmo filmes pueris como os musicais norte-americanos da década de 1950 (enaltecendo a sociedade dos EUA no mundo pós-guerra como próspera, feliz e perfeita) possuem conteúdo ideológico latente: o desenlace da obra tenta conduzir a uma situação que cria um referencial de comportamento ou de pensamento entre o público em geral: A de que viver e morar nos Estados Unidos é a melhor opção que existe. Outra forma de análise é comparar os conteúdos do filme com o conhecimento histórico e sociológico da sociedade em que a película foi produzida com o tema histórico que ela retrata e com outras produções que retratam a mesma temática – um filme sobre a Revolução Russa produzido na U.R.S.S. de 1927 como “Outubro” de Serguei Eisenstein, não tem a mesma abordagem e visão sobre a revolução como um filme Estadunidense de 1965 como “Doutor Jivago” de David Lean. Todo filme histórico é uma representação do passado e, portanto, um discurso sobre o mesmo e, como tal, está imbuído de sua historicidade. Os estudos e pesquisas sobre as relações entre cinema e História apresentam as possibilidades de


P á g i n a | 53 leituras teóricas de conteúdos que, aparentemente, apenas centrados no passado, revelam muitas conexões com o momento em que o filme foi realizado, embora seu discurso esteja, visualmente, exclusivamente centrado no passado. Mesmo assim, eles desempenham um papel significativo na divulgação e na polemização do conhecimento histórico. Gostaríamos de chamar a atenção a uma “licença poética” em especial, talvez a mais comum em toda produção cinematográfica: os diálogos. Quase todas as produções são realizadas em uma linguagem contemporânea à realização do filme. O que é um anacronismo plenamente justificável, já que para o grande público seria extremamente difícil assistir a uma película passada em épocas antigas ou medievais. Portanto, a linguagem é o quesito mais difícil de adaptar ao passado. Apesar de existirem experiências interessantes em que o texto é fiel ao período representado. O cineasta Irlandês Kenneth Branagh, por exemplo, já lançou vários filmes com esta característica, todos com textos originais das obras de Shakespeare como “Henrique V” (1989), “Muito Barulho Por Nada” (1993) e “Hamlet” (1996). No Brasil tivemos uma experiência com “Desmundo” (2003) de Alain Fresnot, que trata de algumas órfãs, enviadas pela rainha de Portugal ao Brasil por volta de 1570, com o objetivo de desposarem os primeiros colonizadores. O filme é todo falado em português arcaico, da época em que os acontecimentos mostrados ocorrem, e por conta disto o filme possui legendas em português atual. Fazendo uma analogia numa perspectiva de comparação histórica, podemos dizer que o cinema está para o mundo contemporâneo como a religião está para o mundo medieval, conquistando corações e mentes. Trabalhar com o objeto fílmico e, principalmente aproveitar as suas possibilidades na função de estudioso e pesquisador, são encargos do historiador atual; não só como um simples instrumento, mas também no intuito de transcendê-lo para um fundamento do processo epistemológico. Refletir a função do historiador e pensar a relação cinemahistória são passos indispensáveis de um trabalho ainda pioneiro, mas que vem se expandindo, pois um filme, seja ele qual for, sempre vai além do seu conteúdo, escapando mesmo a quem faz a filmagem. A relação entre História e arte é singularmente indissolúvel.

Fernando Gralha é Mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Professor das Faculdades Integradas Simonsen, Prof. Tutor UAB/UNIRIO. Editor fundador da Gnarus Revista de História. Coordenador de pesquisa do Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel.

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Equipe de Redação: Prof. Fernando Gralha Grad. Jessica Corais Profª. Mônica Cardozo

Conselho Consultivo: Profª. Daniele Crespo Prof. Sérgio Chahon Prof. Ricardo Santa Rita Profª. Luciana Arêas

Apoio: Grupos de Pesquisa:  Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel (CMRP)  Fotografias da História


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