Compêndio Dramatúrgico em Parágrafos e Imagens

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES Doutorado em Artes

Qorpo Santo - Lanterna de Fogo: QOMPÊNDIO DRAMATÚRGIqO EM Parágrafos E Imagens

João André Brito Garboggini

Campinas – 2008


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES Doutorado em Artes

Qorpo Santo - Lanterna de Fogo: QOMPÊNDIO DRAMATÚRGIqO EM Parágrafos E Imagens João André Brito Garboggini

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Artes do Instituto de Artes da UNICAMP como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Artes sob a Orientação da Profª. Dra. Sara Pereira Lopes

Campinas – 2008


Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do Instituto de Artes da Unicamp

G163q

Garboggini, João André Brito. Qorpo Santo - Lanterna de Fogo: qompêndio dramatúrgico em paragráfos e imagens. / João André Brito Garboggini – Campinas, SP: [s.n.], 2008.

Orientador: Profª. Drª. Sara Pereria Lopes. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

1. Teatro Brasileiro. 2. Dramaturgia Audiovisual. 3. Qorpo Santo. I. Lopes, Sara Pereira. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

(em/ia) Título em inglês: “Qorpo Santo - Fire Flashlight: dramaturgic compendium in paragraphs and images.” Palavras-chave em inglês (Keywords): Brazilian Theater ; Audiovisual Dramaturgy ; Qorpo Santo. Titulação: Doutor em Artes. Banca examinadora: Profª Drª. Sara Pereria Lopes. Prof. Dr. Mário Fernando O. Bolognesi. Profª. Drª. Priscila Rosinetti Rufinoni. Prof. Dr. Carlos Eduardo Albuquerque Miranda. Prof. Dr. Antônio Fernando da Conceição Passos. Prof. Dr. José Simões de Almeida Júnior. Prof. Dr. Adilson José Ruiz. Data da Defesa: 05-12-2008 Programa de Pós-Graduação: Artes.



Para FlĂĄvia E para os que acabaram de chegar: Helena e Joaquim Para Rubens JosĂŠ Souza Brito (in memorian), um amigo sempre presente.


Por sua colaboração e amizade é impossível agradecer bastante:

À Sara Pereira Lopes, pelo acompanhamento desde o começo e pela valiosa acolhida para terminarmos esta empreitada juntos. Aos Professores e Funcionários do Departamento de Artes Cênicas, por sua atenção e disponibildade. Em especial Neyde Venziano, Helô Cardoso, Maria Lúcia Candeias, Wanderley Martins, Adilson Ruiz. Aos amigos queridos e parceiros preciosos Glauco Manuel dos Santos, Alcides Fernando Gussi, Vani Ing Burg, Amaranta Krepschi, Céci Campos, Zandra Miranda, Fabiana Grassano, Berba Fernandes, Dácio Rodrigues, Marco Antônio Scarassati, Brisa Vieira, Hugo Burg Cacilhas, Guilbert Nobre, Ivan Ortiz, Hidalgo Romero. À minha família, pelo apoio, sempre.


Resumo Esta tese apresenta uma jornada pela dramaturgia do autor José Joaquim de Campos Leão Qorpo Santo (1829-1883). Tem como objetivo transcriar sua escritura, inventando uma biografia poética do escritor gaúcho, por meio da elaboração de uma dramaturgia audiovisual. Trata-se de um mosaico de referências e citações composto por fragmentos dos textos do próprio Qorpo Santo, das lembranças de algumas encenações de suas peças teatrais, de artigos jornalísticos e de alguns escritos de outros autores que se aproximaram de sua obra. A peça audiovisual que integra este trabalho aparece como um capítulo da tese e foi construída a partir de uma série de imagens que podem caracterizar o universo de Qorpo Santo. Estas imagens foram selecionadas da obra de artistas como James Ensor, Edvard Munch e Oswaldo Goeldi entre outros. Palavras-chave: Teatro Brasileiro; Dramaturgia Audiovisual; Qorpo Santo

Abstract This thesis presents a journey through the dramatic work of the brazilian author José Joaquim de Campos Leão Qorpo Santo (1829-1883). It has the objective of transcreate his scripture, inventing a poetic biography of the “gaucho” writer, in a audiovisual dramaturgy. It consists in a mosaic of references and citations, composed by fragments of Qorpo Santo’s own texts, memories of some staging of his theatrical plays, journalistic articles and some works of others writers who had contact with his work. The audiovisual piece that composes this work, appears as a chapter of the thesis and was constructed from a series of images that can characterize the Qorpo Santo’s universe. These images were selected from the work of the James Ensor, Edvard Munch, Osvaldo Goledi and others artists. Key Words: Brazilian Theater; Audiovisual Dramaturgy; Qorpo Santo


sumÁrio

15

Introdusão

19

Parte I – Para Inventar um Qorpo Santo

21

1. Desde Quando Qorpo Santo: anotasões inisiais

23

2. Lembransas de Ensenações de Qorpo Santo

31

3. Sobre os Disparates Teatrais de Qorpo Santo

37

4. Uma Ensiqlopédia de Vanguardas

43

5. Pistas para uma posível Biografia Fiqsional

45

6. Dona Fulana de Qampos Leão: bisneta de Qorpo Santo

49

7. Uma Posibilidade de Funsionamento da Masa Cinzenta de Qorpo Santo

53

8. O Rei da Qonfusão

57

Parte II – Para juntar os Pedasos do Qorpo Santo

59

9. Uma Vizão Pensamento sobre Qorpo Santo

63

10. Uma Serta Teatralidade na Pintura

65

11. O Jogo do Qorpo Santo

69

12. Qolagem: Dramaturgia e Imagem

75

Qonsiderasões sobre Qorpo Santo-Lanterna de Fogo

80

Referênsias Bibliográficas

85

Aneqsos


Introdusão

P

campos em que caía. Assim toda a terra possuiu, no mesmo instante, os primeiros almanaques.2

ara esta tese mergulhei num emaranhado de textos e de imagens com o objetivo de reescrever a dramaturgia de Qorpo Santo, pseudônimo do gaúcho José Joaquim de Campos Leão (1829 - 1883). Para tanto procedi a montagem de um almanaque que utiliza variados elementos1, partindo da obra de Qorpo Santo, para a elaboração de uma dramaturgia audiovisual referente ao autor gaúcho.

Qorpo Santo escreveu suas peças teatrais no ano de 1866 – publicou-as em 1877. Suas peças podem ser encaradas como um Almanaque de 1866, de onde brotam ruínas3 de palavras que engendram personagens. A estas personagens e palavras atribuí um caráter biográfico donde montei uma biografia ficcional de Qorpo Santo, que nos faz saber de sua vida por meio de sua obra.

Machado de Assis nos conta que o tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro, seco, sem margens, sem nada; E prossegue:

Utilizei a idéia de Almanaque para não ter preocupações de encadeamento linear, mas com o objetivo de arranjar idéias. As formas de contar Qorpo Santo podem ser rearranjadas para o entendimento do que se diz, para jogar com as representações de personagens e palavras utilizadas por Qorpo Santo; tão colocadas em dúvida pelo próprio autor, que possuiu uma vida tão interessante quanto sua obra. Uma idéia

Um dia ao amanhecer, toda a terra viu cair do céu uma chuva de folhetos; creram a princípio que era geada de nova espécie, depois vendo que não, correram todos assustados; afinal, um mais animoso pegou de um dos folhetos, outros fizeram a mesma coisa, leram e entenderam. O almanaque trazia a língua das cidades e dos

2 ASSIS, Machado de, Como se Inventaram os Almanaques. In MEYER, Marlyse (org.), Do Almanak aos Almanaques. São Paulo: Ateliê Editorial, 21. pp. 26-27

1 O caráter do elemento é genérico, isto é, vários artífices podem empregar os mesmos elementos na geração de obras, as quais, invariavelmente, apresentam resultados distintos entre si. BRITO, Rubens José Souza e J. Guinsburg, Análise Matricial: uma metodologia para a investigação de processos criativos em Artes Cênicas. In DA SILVA, Armando Sérgio (org.), J. Guinsburg: Diálogos sobre Teatro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 22. p. 277- 286.

3 A fisionomia alegórica da natureza-história , posta no palco pelo drama, só está verdadeiramente presente como ruína. Como ruína, a história se fundiu sensorialmente com o cenário. (...) O que jaz em ruínas, o fragmento significativo, o estilhaço(...). BENJAMIN, Walter, Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. p. 199-2.

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Seis Meses de uma Enfermidade6, impressas na Tipografia Qorpo Santo. Procurei elaborar um projeto gráfico semelhante à da Ensiqlopedia de Qorpo Santo (§26). Uma forma de ajuntar diversas informações que possam auxiliar na elaboração de um roteiro e em seguida um story board7 sobre o autor em estudo, um indivíduo verborrágico em sua escrita desgovernada.

roubada ao escritor gaúcho Álvaro Moreyra4, que em suas memórias As Amargas Não, através de parágrafos independentes, cola num painel suas lembranças. Moreyra relembra Qorpo Santo: Há um poeta esquecido demais no Brasil. Chamou-se José Joaquim de Campos Leão Qorpo Santo. Eu vi as Obras Completas dele, em grossos e altos volumes. Guardei na memória algumas das páginas. Durante a revolução contra o passadismo, a ninguém ocorreu dar ao colega de 1880 e de Porto Alegre, o título de precursor da poesia moderna.5

Em 1978 Martin Esslin já salientava que: O drama mecanicamente reproduzido dos veículos de comunicação de massa (o cinema, a televisão, o rádio), muito embora possa diferir consideravelmente em virtude de suas técnicas, também é fundamentalmente drama, obedecendo aos mesmos princípios da psicologia da percepção e da compreensão das quais se originam todas as técnicas da comunicação dramática.

Realizei, também, um mapeamento de montagens pioneiras e recentes das peças de Qorpo-Santo que permitem verificar possíveis leituras, em diferentes momentos e com encenações heterogêneas, para entender como a dramaturgia do autor antropofagiza elementos de vocação vanguardista.

O drama como técnica de comunicação entre seres humanos partiu para uma fase completamente nova de desenvolvimento, de significação realmente secular em uma era que o grande crítico alemão Walter Benjamin caracterizou como sendo a da reprodutividade técnica da obra de arte.8

Organizei a chuva de folhetos sugerida por Machado de Assis para construir uma anatomia dramatúrgica tirada das peças que compõem a obra teatral de Qorpo Santo, incluída no volume IV da sua Ensiqlopédia ou

6 Essa Ensiqlopedia, na curiosa forma de revisão ortográfica proposta pelo dramaturgo, compunha-se de nove volumes, uma espécie de súmula de seu pensamento e de suas idéias.(...) Há dois volumes que, contudo, envolvem temática específica: o de n. IV, com sua dramaturgia, e o de n. IX, no qual propõe uma releitura dos evangelhos. FRAGA, Eudinyr, Um Corpo que queria ser Santo. In LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. São Paulo: Editora Iluminuras, 21. pp. 7-8.

4 Nascido em Porto Alegre, em 1888, e morto no Rio de Janeiro, em 1964. Como homem de teatro desempenhou um papel relativamente importante nos anos que seseguiram à Semana de Arte Moderna.(...) Sua peça Adão, Eva e Outros Membros da Família (1925) e o Teatro de Brinquedo são iniciativas e demonstram, nos anos 192, que os ventos da renovação modernista atingiram o teatro, mas que também não era fácil quebrar com a resistência das velhas formas. FARIA, João Roberto, Álvaro Moreyra:Poesia e Teatro no Modernismo. In O Teatro na Estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e estrangeira. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998. pp. 17-112.

7 Story Boards são cenas “imóveis” para filmes, pré-planejadas e dispostas em quadros pintados ou desenhados. (...) Não são destinadas à “leitura”, mas antes para fazer a ponte entre o roteiro do filme e a fotografia final. EISNER, Will, Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 143. 8 ESSLIN, Martin, Uma Anatomia do Drama. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. p. 14-15.

5 MOREYRA, Álvaro, As amargas, não... : (lembranças). Rio de Janeiro: Lux, 1954. pp. 126-127.

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Debruçado sobre a dramaturgia qorposantense, procurei identificar cenas idealizadas pelo autor gaúcho em sua escritura que permitiram uma transcriação9 para uma dramaturgia audiovisual. O procedimento10 desta transposição passou pela elaboração de um argumento e, posteriormente, de um story board, numa justaposição de textos e imagens para possibilitar a visualização das diversas seqüências que puderam compor a reescritura do universo de Qorpo Santo em suporte audiovisual.

pensamento falar12. Trata-se, portanto, de elaborar uma trama de referências textuais e imagéticas, pinçadas para devolver significações à obra de Qorpo Santo; textos e imagens com objetivo de construir uma “biografia falsa”13 do autor. Os elementos selecionados para este trabalho percorreram um trajeto que parte dos escritos teatrais de Qorpo Santo, passando por textos jornalísticos e chegando às imagens de Oswaldo Goeldi, James Ensor, Edvard Munch, caricaturas e fotografias de Qorpo Santo, instantâneos de Porto Alegre, bem como outras fontes imaginárias que pudessem funcionar como inspiração para a escritura aqui apresentada. Desta forma foi possível estruturar um almanaque sobre o autor gaúcho, incluindo uma peça audiovisual, como parte integrante da tese.

Por meio da dramaturgia audiovisual realizei uma transcriação, para identificar nas falas e rubricas da dramaturgia qorposantense analogias com imagens que tirassem o texto da página impressa e devolvessem significados para sua dramaturgia em ruínas. Essas ruínas aparecem como o legado de uma dramaturgia que só pode ser vista, de fato, como um pitoresco monte de escombros.11

A tese se divide em duas partes: na Parte I expus o levantamento de informações e descrições do procedimento para chegar à Parte II, na qual apresento as etapas para a criação da peça audiovisual.

Neste sentido, reescrever uma dramaturgia sobre Qorpo Santo consistiu numa colagem de citações de textos e imagens sem a intenção de registro histórico. A citação está ligada àquela idéia benjaminiana de extrair as coisas de seu contexto original para deixar o

9 Na Tradução Intersemiótica como transcriação de formas o que se visa é penetrar pelas entranhas dos diferentes signos, buscando iluminar suas relações estruturais, pois são essas relações que mais interessam quando se trata de focalizar os procedimentos que regem a tradução. Traduzir criativamente é, sobretudo, inteligir estruturas que visam a transformação de formas. PLAZA, Júlio, Tradução Intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 21. p. 71.

12 ROUANET, Sergio Paulo, Não me venham falar em Síntese (entrevista a Marília Pacheco Fiorillo). In Folhetim – Folha de S. Paulo (9/12/1984). 13 Linda Hutcheon vê a forma mais característica de literatura pós-moderna como metaficção historiográfica, conceito com o qual ela designa obras de ficção, acentuando a figura do autor e o ato de escrever. Este tipo de metaficção estaria presente em obras que tomam como tema personagens e eventos da história conhecida, mas os submetem à distorção, à falsificação e à ficcionalização(...). Para Hutcheon, a característica principal desses textos é expor a ficcionalidade da própria história. IOZZI, Adriana, Italo Calvino: Entre a Tradição Moderna e a Vanguarda Pós-moderna. In WATAGHIN, Lucia (org.), Brasil & Itália – Vanguardas. Cotia: Ateliê Editorial, 23. p. 229.

1 O procedimento é a ação do artista no uso dos elementos eleitos; esta ação personaliza o ato criativo; conseqüentemente, o caráter do procedimento é específico: somente um determinado autor produz daquele modo e não de outro. BRITO, Rubens José Souza e J. Guinsburg, Op. Cit., p. 282. 11 BENJAMIN, Walter, Op. cit. p. 2.

17


Parte I Para Inventar um Qorpo Santo


Desde quando Qorpo Santo

E

§2

§1

A incomunicabilidade de Qorpo Santo comigo estava instaurada e foi morar na estante por mais alguns anos. Sua misantropia, todavia, inquietava-me. Após vários anos retomei as peças do gaúcho escritor por meio da realização de Ciclos de Leituras Dramáticas. Ao lado de autores como Beckett, Ionesco e Nelson Rodrigues, incluí Qorpo Santo no Ciclo relativo ao Teatro do Absurdo14, que aconteceu no espaço da Oficina da Arte, um atelier de artes plásticas, onde eu coordenava as atividades teatrais que ocorreram ali entre 1997 e 2002.

m 1989, embarcando num avião com destino à Bahia, levava comigo uma publicação do Teatro Completo de José Joaquim de Campos Leão, Qorpo Santo, embaixo do braço. Decidi carregar o exemplar comigo, após ter conhecido Qorpo Santo por meio da leitura da peça Hoje sou um; e Amanhã Outro como possibilidade de montagem de espetáculo por um Grupo de Teatro do qual fazia parte. Neste vôo para o Nordeste, Qorpo Santo, um autor do Rio Grande do Sul, tornou-se silêncio para mim. Completamente desnorteado, frente a uma lógica inextricável com a qual me deparei naquelas páginas, mal sabia que aquela mixórdia teatral havia sido deixada na estante por cem anos, pois falava numa língua do Século XIX com o pé quebrado, por força, quem sabe do seu destrambelhamento mental. Desisti das peças e continuei olhando as nuvens pela janela do avião.

O autor de Porto Alegre continuava indecifrável não apenas para mim, mas também para os participantes das leituras, bem como para aspirantes a atores a quem apresentei sua obra, na tentativa de montar suas peças. Após ter realizado as leituras dramáticas e tentativas de montagem de peças de Qorpo Santo, em 2003, foi possível realizar uma 14 O Teatro do Absurdo procura expressar a sua noção da falta de sentido da condição humana e da insuficiência da atitude racional por um repúdio aberto dos recursos racionais e do pensamento discursivo. Tende para uma desvalorização radical da linguagem, onde a comunicação entre os homens é mostrada em estado de desintegração. ESSLIN, Martin, O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. pp. 2,22,355

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montagem experimental da peça Certa Entidade em Busca da Outra. Verifiquei que a encenação, possibilitada pela trama da peça, exigia a elaboração de personagens, que se construíssem como figuras grotescas, cujas deformidades as tornassem ridículas e caricatas.15 Esta encenação fez com que o interesse pela obra de Qorpo Santo se refizesse e a proposta desta tese configurou-se na forma de uma pesquisa. A lembrança de encenações e a observação de montagens recentes que tive a oportunidade de assistir, levaram-me a referências outras, não apenas escritas. Elaborei um repertório de imagens, que pudessem ter características de anotações visuais sobre Qorpo Santo e sua obra. Textos, encenações e imagens, documentais ou não, que contribuiram para aproximar o universo do autor e transcriá-lo em uma dramaturgia pensada para um suporte audiovisual. Para encontrar pistas sobre Qorpo Santo, parti do exemplar do Teatro Completo de Qorpo Santo, publicado pelo Serviço Nacional de Teatro, da Fundação Nacional de Arte, em 1980, que me chegou às mãos em 1989, devido à minha formação em Artes Cênicas.

15 FARIA, João Roberto, Qorpo Santo: as formas do cômico. In O teatro na Estante. Ateliê Editorial, . p. 78.

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Lembransas de Ensenasões de Qorpo Santo

O

§3

César18 que, em 1962, sugeriu a Fausto Fuser e a Lúcia Mello, então professores do Curso de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grade do Sul a encenação de algumas pequenas peças de Qorpo Santo. Fuser mandou copiar os textos19 os quais, posteriormente, chegaram às mãos do grupo do Clube de Cultura. Sena, em 1966, levou à cena três peças: As Relações Naturais, Mateus e Mateusa e Eu sou vida; eu não sou morte.

escritor gaúcho Luiz Antônio de Assis Brasil assistiu, há cerca de quarenta anos, a primeira montagem de algumas peças do Qorpo Santo – a primeira vez que elas foram levadas. Foi a encenação dirigida por Antônio Carlos de Sena, no Clube de Cultura de Porto Alegre. Assis Brasil conta que Aníbal Damasceno Ferreira recebeu um convite ou algo assim dos familiares do intelectual Manoelito de Ornellas16 para conhecer uma biblioteca, onde encontrou a Ensiqlopedia de Qorpo Santo. 17

Assis Brasil assistiu às peças, no Teatro do Clube de Cultura de Porto Alegre - uma entidade que existia, no bairro judaico de Porto Alegre e que era mantido por intelectuais dessa comunidade. Ele diz que era uma montagem até certo ponto bastante literal, bem comportada, talvez por ser a primeira vez que aquilo era apresentado.

As pessoas sabiam da existência desta obra, mas foi Aníbal que disse: vamos fazer alguma coisa com isso! E aí mostrou para Guilhermino

18 Guilhermino César (19-1993) que tão bem estudou a obra de Qorpo Santo comentava que em geral, o teatro oitocentista gaúcho não tivera um desenvolvimento criador. Se na metade do século surgiu o nome de Souza Bastos (Manuel José, 1852-1861) e, no final, o renomado escritor regionalista J. Simões Lopes Neto (1865-1916), a maioria dos autores dramáticos deste período não criou “efetivamente um teatro válido, como expressão inconfundível do meio”(...). FRAGA, Eudinyr, Um Corpo que se queria Santo. In LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. São Paulo: Editora Iluminuras, 21.

16 Autor de diversas obras de cunho sociológico, entre elas a obra fundamental da cultura gaúcha e da cultura brasileira, Gaúchos e Beduínos.

19 CÉSAR, Guilhermino, A Reabilitação de uma Obra. In Programa do Espetáculo apresentado no Teatro do Clube de Cultura de Porto Alegre em Agosto-Setembro de1966.

17 Entrevista realizada em 17 de Julho de 27, com Luiz Antônio de Assis Brasil, autor do romance Cães da Província.

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Elenco do Grupo do Clube de Culura. 1ª montagem de peças de Qorpo Santo, realizada em Porto Alegre

Em 1968, a montagem do Clube de Cultura de Porto Alegre foi apresentada no Rio de Janeiro, durante o 5º Festival Nacional de Teatro de Estudantes, organizado por Paschoal Carlos Magno. O crítico Ian Michalski fez um entusiástico registro da revelação de Qorpo Santo ao público carioca.21

Valendo-me do programa do espetáculo apresentado no Clube de Cultura encontrei, além do texto de apresentação assinado por Guilhermino César, um texto escrito por Sena, no qual ele, em arroubos de entusiasmo, afirma que a inautenticidade do falso e medíocre teatro que era levado na provincianíssima Porto Alegre do século XIX, fazia mal a Qorpo Santo. O diretor do espetáculo gaúcho de 1966 chega a colocar que os méritos de Martins Pena são inegáveis, mas que se deve a Qorpo Santo alguma parte do reconhecimento que se devota ao talento do comediógrafo carioca 20.

No mesmo ano, uma montagem estudantil da peça Mateus e Mateusa, sob direção de Djalma Limonge, foi apresentada no “Ciclo do Teatro do Absurdo”, quando também foram apresentadas peças de Ionesco e de José Arrabal.22 21 MICHALSKI, Yan, O Sensacional Qorpo Santo. In Jornal do Brasil – 8/2/1968. 22 AGUIAR, Flávio, Os Homens Precários: inovação e convenção na dramaturgia de Qorpo Santo. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1975. p. 247.

2 SENA, Antônio Carlos, Qorpo Santo – um Precursor. In Programa do Espetáculo do Clube de Cultura de Porto Alegre.

24


Cena da montagem dirigida por Djalma Limonge em 1968

consideraram que os signos cênicos utilizados no espetáculo tinham uma intenção crítica ostensiva e, depois de duas semanas em cartaz, se tanto, o espetáculo também foi proibido.24

Também em 1968, Luís Carlos Maciel , após uma experiência desagradável de ter censurada sua montagem da peça Barrela, de Plínio Marcos, no Teatro Jovem do Rio de Janeiro, sugeriu ao produtor Ginaldo de Souza que montassem, então, As Relações Naturais, de Qorpo-Santo, um autor que, à época, estava sendo considerado precursor do teatro do absurdo. O texto foi para a Censura Federal em Brasília e passou. O espetáculo estreou no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro, mas não foi longe. Segundo o diretor, os censores 23

O cineasta Haroldo Marinho Brabosa, filmou Eu sou a vida; eu não sou a morte, baseado no texto homônimo de Qorpo Santo. O filme participou no Rio de Janeiro do I Festival Brasileiro de Curta-Metragem, em 1971, quando foi premiado25. Foi considerada por Ismail Xavier uma pequena obra-prima26.

23 Em maio de 1968 houve a primeira representação de uma peça de Qorpo Santo realizada por um grupo profissional. O grupo “Teatro Jovem” encenou As Relações Naturais, sob direção de Luís Carlos Maciel. O espetáculo prolongou-se até o mês de junho, no Teatro Nacional de Comédia, do Rio de Janeiro. AGUIAR, Flávio, Idem ibid.

24 http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/leituras_marginalia3.php, capturado em 2/5/8. 25 AGUIAR, Flávio, Op. Cit.p. 25. 26 XAVIER, Ismail,O Olhar e a Cena. São Paulo: Cosac & Naify, 23. p. 196.

25


§4

§5

Em 1976 estreou no palco do Clube de Cultura em Porto Alegre, sob direção de Liana Villas Boas, o espetáculo Qorpo Santo um Século Depois , composto pelos dois textos Hoje sou um e amanhã outro e Mateus e Mateusa. A encenadora deu um tratamento mais realista ao texto, vendo menos o aspecto da farsa. Ela considerou as conotações do absurdo com características de comédia séria.27

Recentemente tive a oportunidade de assistir algumas montagens de peças de Qorpo Santo: A Companhia São Jorge de Variedades (São Paulo) realizou uma montagem da peça Um Credor na Fazenda Nacional, dirigida por Georgette Fadel; participou da mostra paralela do Festival de Teatro de Curitiba de 2000.31 A encenação procurou reproduzir o clima surrealista que perpassa a dramaturgia de QorpoSanto, num espetáculo com diferentes cenários - diferentes salas de uma repartição pública pelas quais o público é conduzido, sempre na companhia do protagonista, que tenta em vão receber um dinheiro que lhe é devido.

Em 1979 a peça Lanterna de Fogo, foi levada à cena pela primeira vez, numa criação coletiva do Grupo Circulação de Mercadoria, coordenada por Júlio Zanotta Vieira. A montagem foi apresentada no Teatro Ói Nóis Aqui Traveis, que surgiu numa garagem-boate, no Bairro Floresta, em Porto Alegre, como uma montagem de vanguarda verificada à época pelo jornalista Aldo Obino.28

Embora mescle trechos de três peças do autor - Um Credor da Fazenda Nacional, Dous Irmãos e O Marido Extremoso ou O Pai Cuidadoso - o eixo central do espetáculo gira em torno do pesadelo vivido pelo “credor” que, de posse de um requerimento, já bastante amassado, passa por uma via-sacra para tentar receber o que lhe deve a “Fazenda Nacional”.

O artista plástico Álvaro Apocalypse, criador do Tetaro Giramundo de Bonecos escolheu a peça As Relações Naturais para ressucitar através da manipulação de bonecos um mundo que tem vagas relações com o real. As cenas mal alinhavadas da peça ganham outra dimensão com o uso dos bonecos - desenhados para acentuar a ironia de Qorpo Santo, lembrando figuras grotescas com um ar surrealista.29

O público aos poucos vai percebendo que a peregrinação daquele “credor” começou há muito tempo. E suas tentativas são marcadas por uma rotina exasperante, um jogo de empurra que o faz enfrentar ora a arrogância, ora a indiferença de funcionários apáticos e desmiolados, que acabam perdidos no emaranhado da burocracia.

De lá pra cá, Qorpo Santo foi encenado inúmeras vezes. Algumas encenações profissionais e muitas feitas por grupos estudantis e alunos de Cursos de Artes Dramáticas.30 27 HOHLFELDT, Antônio, Espetáculo de Qorpo Santo permite novas abordagens do autor gaúcho. In Correio do Povo 8/11/1976.

Em 2007, a mesma Companhia realizou um teleteatro da peça Hoje sou um; e Amanhã Outro. A encenação expõe os recursos da criação,

28 OBINO, Aldo, A Lanterna de Fogo. In Correio do Povo 7/3/1979. 29 MENDONÇA, Casimiro Xavier de, Caixa de Sombras. In Revista Veja - 2/2/1983.

31 NÉSPOLI, Beth, Uma bem-sucedida tradução cênica da obra do autor volta ao palco. In O Estado de São Paulo (22/1/22). - 14/3/28 em www.ciasaojorge.hpg.ig.com.br.

3 Cf. AGUIAR, Flávio, Op. Cit. pp.247-25.

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§6

deixando as câmeras visíveis. Transposto para a linguagem televisiva, a releitura do texto utiliza posicionamentos de câmera acima das cabeças dos atores, conferindo inferioridade à massa de soldados que fala ao rei. Em outra tomada, esses mesmos soldados movem-se em bloco, formando um desenho geométrico que remete à falta de autonomia individual.32 Há, no entanto, uma utilização excessiva de efeitos e recursos de linguagem que, parece-me, tiram a unidade desta peça audiovisual, como por exemplo a passagem da imagem colorida para preto-e-branco, a cena externa da revolta popular e, mesmo um ‘rap’ apresentado, que parece isolado do restante.

A Boa Companhia apresentou no 9º Porto Alegre em Cena de 2002 uma compilação de poemas eróticos e receitas culinárias mais ou menos afrodisíacas de Qorpo Santo, publicados em sua Ensiqlopédia. O espetáculo intitulou-se Banqete: dirigido por Verônica Fabrini, adaptado da obra de Qorpo Santo pelo grupo Produtos Notáveis. Numa colagem de textos, que se configura num espetáculo de bolso. São esquetes, sem um fio condutor, que poderiam ser reorganizadas. É possível identificar a vocação dos textos de Qorpo Santo para o nonsense verbal33 onde o instinto do jogo teatral se liberta da dramaturgia, do conteúdo textual. A necessidade de recepção racional do que se passa em cena é descartada. O cenário se estabelece com a chegada de dois casais e os preparativos de um banquete. A sexualidade é evocada no cardápio e no consumo dos pratos. Há troca de parceiros, beijos entre os garçons, entre os pares masculinos e femininos... O grupo de personagens ri, canta, dança, declama e se digladia no meio dos pratos na mesa, como se tudo fosse imprevisto. No final, nada fica no seu lugar, e entre banhos de vinho tinto e outras iguarias, a peça termina deixando uma bagunça no palco e uma sensação de não sei bem se gostei. Talvez fosse essa a proposta, mas ela soa tão frágil quanto um pastelzinho de Santa Clara.34

33 A literatura do nonsense verbal expressa mais do que uma mera brincadeira. Ao tentar destruir os limites da lógica e da linguagem, ela investe contra as próprias muralhas da condição humana. (...) O nonsense verbal é no sentido mais verdadeiro uma tentativa metafísica, uma luta por alargar e transcender os limites do universo material e sua lógica. ESSLIN, Martin, O Teatro do Absurdo. p. 29-291.

32 http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos. asp?cod=434ASP4, - 21/5/8.

34 www.argumento.net/poaemcena/index_22, - 2/5/8.

27


§7

Os movimentos desmantelados dos bonecos37, construídos a partir de um gestual desleixado, conferem uma agressividade sarcástica às personagens.

A Companhia Bonecos Urbanos, dirigida por Carlota Joaquina, apresentou em 2005 uma montagem da peça Certa Entidade em Busca da Outra no Teatro Fábrica de São Paulo. Para a Companhia, a peça de Qorpo Santo é uma experiência sem foco lógico que permeia o caos da vida vira-latas pelas ruas sujas e escuras da cidade grande.35

Os atores que manipulam os bonecos envergam macacões muito sujos,que escondem suas identidades e os transformam em sombras cor de terra. Tem-se a impressão de que os manipuladores são espectros brincando com a vida de objetos inertes, como se fossem crianças abandonadas brincando com bonecos maltrapilhos.

Neste espetáculo a direção optou por uma encenação feita com títeres. As personagens ultrapassam o Brasil do século XIX, quando a peça foi escrita, trazendo a encenação para o dia-a-dia dos moradores de rua.

Esta criação de personagens de ação sem sinergia aparece como uma solução para causar um estranhamento das personagens de Qorpo Santo, na medida em que o autor gaúcho possibilita a criação de alguns tipos fixos recorrentes em diversas de suas comédias, não individualizando suas personagens. Os bonecos passam uma imagem arrebentada e se desmontam com muita facilidade, deixando perceber que são feitos do mesmo detrito que compõe o carroção de onde saíram.

Na montagem apresentada no Teatro Fábrica São Paulo36, antes do início da peça, o público aguarda no saguão do teatro. Um garoto da produção conduz informalmente os espectadores pelo pátio de um estacionamento vizinho do teatro. Por uma pequena porta, entra-se num porão sombrio e úmido, onde o sonoplasta e seus equipamentos de som ficam visíveis emitindo alguns acordes eletrônicos. Pequenos fachos de luz vindos do chão, difusos em fumaça, mostram no centro da cena um obscuro carroção de lixo. O teto baixo, as paredes sujas, o chão empoeirado, um ambiente lúgubre causa uma sensação claustrofóbica e de repulsa. É uma materialização do asco. O público se acomoda em uma arquibancada de madeira.

A personagem protagonista, o velho Brás, desloca-se titubeante, puxando o carroção indigente pelo espaço cênico. Em algumas passagens, o carroção respira com dois enormes pulmões, como se tivesse vida própria. Funciona como uma espécie de útero gigante de onde saem todas as personagens e objetos de cena. O velho, um catador de lixo ranzinza e cachaceiro, reflete um estado de espírito de insatisfação, de miséria, de tédio, inserindo cacos no texto original, rosna alguns xingamentos contra sua existência miserável, contra

Em condições precárias inicia-se o espetáculo. A movimentação das figuras expostas em cena reforça uma aparência desumanizada.

37 Os personagens de Qorpo Santo são, além de precários em si mesmos, verdadeiros bonecos nas mãos de uma entidade dramática superior a eles. São marionetes: os fios estão patentes. O influxo principal de vida não lhes vem de si, mas do impulso moral que nasce do próprio autor. AGUIAR, Flávio, Op. Cit.p. 176.

35 Programa do Espetáculo Certa Entidade em Busca da Outra, apresentado em Junho de 25 no Teatro Coletivo Fábrica. 36 www.fabricasaopaulo.com.br/articles.php?id=124 2/5/8.

-

28


“Os Trinta Valérios” (1901) - Valério Vieira

§8

governantes corruptos, Nestas lamentações de bêbado solitário, invoca o Supremo Arquiteto do Universo e obtém a reposta de ninguém menos do que o próprio Satanás.

O Depózito de Teatro, sob a direção de Roberto Oliveira, apresentou em 2007 o espetáculo Dr. QS – Quriozas Qomédias, no qual foram reunidos textos das peças Mateus & Mateusa; As Relações Naturais; O Marinheiro Escritor; Eu sou vida; Eu não sou Morte; além de outros textos em prosa, aforismos e algumas poesias de Qorpo Santo. O grupo também inseriu fatos constantes da Autobiografia Ideal de Qorpo Santo, além de uma cena na qual foi feita

Na montagem em questão, todas as falas da personagem Satanás são substituídas pela aparição de um aparelho de televisão que, do alto do carroção, responde às interrogações do velho com um chiado de TV fora do ar. A visão de que todas as personagens e suas desgraças são expelidas do carroção, pode proporcionar uma leitura de que a TV estaria ali funcionando como uma Caixa de Pandora, que vomita as desgraças do mundo.

29


uma livre adaptação da obra Cães da Província de Luiz Antônio Assis Brasil.38 Um espetáculo teatral que pinta um quadro da obra dramatúrgica e poética de Qorpo Santo, além de mostrar algumas facetas da sua existência. A encenação reproduz o clima surrealista que perpassa a dramaturgia de Qorpo-Santo.39 O espetáculo transforma Qorpo Santo em personagem de sua obra e multiplica a sua presença em cena. Aparecem vários Qorpos Santos em diferentes situações, como na imagem forjada pelo fotógrafo Valério Vieira40 (18621941) que realizou o seu auto-retrato de 1901 em diferentes situações, montados em uma só imagem.41

38 Programa do Espetáculo Dr. QS – Quriozas Qomédias, apresentado em Março de 27 no Espaço Cultural Semente em Campinas. 39 www.depositodeteatro.com.br, capturado em 2/5/8. 4 Valério Vieira aplicou-se ao estudo da fotomontagem; sua produção “Os Trinta Valérios” é um marco na história da fotografia no Brasil. Trata-se de uma obra do princípio do século XX que representa uma situação festiva harmoniosamente construída(...); todos os personagens retratados, em número de 3, representam a mesma pessoa: o próprio Valério Vieira. KOSSOY, Boris, Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 22. pp. 319-32. 41 http://girafamania.com.br/montagem/fotografo-valeriovieira.htm, capturado em 28/3/27.

30


Sobre os Disparates Teatrais de Qorpo Santo e Suas Bravatas

E

§9

absolutamente arbitrária, e poderíamos, inclusive, questionar essa própria divisão.43

O próprio Qorpo Santo admite que sua escritura é deficiente e se justifica em uma nota ao final da peça O Marido Extermoso ou o Pai cuidadoso:

u vejo que Qorpo Santo, no século XIX, em suas peças pretende imitar os moldes de Martins Pena, Joaquim Manoel de Macedo e José de Alencar. A divisão de suas peças em atos, quadros e cenas mostra que ele estava preocupado em escrever peças “bem-feitas”, dentro dos moldes tradicionais vigentes na época, tentando, certamente, seguir os parâmetros que devia conhecer.42

NOTA Não tendo eu jamais lido o que escrevi há mais de onze anos, e só agora corrigindo as provas, não podia saber que esta comédia encerrava cinco quadros, lendo-se na página primeira quatro, senão nas últimas.

O teatro de Qorpo Santo, no entanto, despedaça a carpintaria bem feita dos autores das comédias de costumes do mesmo período ou do período imediatamente anterior a ele. É possível afirmar que Qorpo Santo escreve mal, pois sua escritura aparece incompleta emperrada.

Porto Alegre, 11 de junho de 1877

Em seus textos teatrais, ele sugere alterações. Veja-se como o autor encerra a peça Dous Irmãos:

Fraga coloca que:

Porto Alegre, fevereiro 24 de 1866.

Qorpo Santo incorre num erro muito comum de pessoas que não têm hábito de lidar diretamente com o palco, ou seja, não tem noção de tempo em teatro. A sua divisão em cenas, quadros e atos é

Por José Joaquim de Campos Leão Corpo Santo Julgamos quando começamos a imprimir este Livro – que não bastariam

42 FRAGA, Eudinyr, Qorpo Santo: Surrealismo ou Absurdo. São Paulo: Perspectiva, 1988. p. 59.

43 Idem. p. 6.

31


§ 10

as comédias para preenchê-lo; e por isso escrevemos em seu princípio – – ROMANCES E COMÉDIAS

Numa matéria intitulada Quem tem Medo de Qorpo Santo, publicada no jornal portoalegrense Correio do Povo, em 1966, Jefferson Barros coloca que:

– As pessoas que comprarem e quiserem levar à Cena qualquer das Minhas Comédias – podem; bem como fazerem quaisquer ligeiras alterações corrigir alguns erros e algumas faltas, quer de composição, quer de impressão, que a mim por numerosos estorvos – foi impossível.

O problema do texto escrito reside na necessidade da construção de personagens possíveis de manifestação pela palavra falada, pelo gesto e, sobretudo, capazes de revelar em pequenas e intensas ações dramáticas. Esta exigência de construção cria uma dificuldade para o trabalho do dramaturgo. Possuindo o palco por mundo social, e precisando revelar sua verdade em poucos minutos de ação e de espetáculo, a tendência do teatro – sobretudo no Século XIX, um século literário por excelência – foi no sentido de intensificar a ação dos diálogos, dando um destaque maior à palavra, o que não ocorria no teatro medieval ou na commedia dell’arte, por exemplo. Esta superabundância de palavras, que tem origem no classicismo francês, dominou o romantismo e manifestou-se ainda no realismo ou no naturalismo.44

Esta declaração confere às peças do autor gaúcho a possibilidade de deixar de lado a natureza literária que limita a dramaturgia de alguns autores brasileiros do século XIX, como José de Alencar e Machado de Assis, muito presos ao preciosismo do texto escrito. Estes autores se dão muito bem nos gêneros narrativos, mas na dramaturgia parecem esquecer que o teatro precisa libertar-se da página escrita e subir ao palco.

É importante a compreensão de que estes problemas, relativos ao trabalho do dramaturgo, encontravam seus momentos mais altos justamente neste período. O texto teatral começava a desgastar seus conteúdos na forma de propaganda de modelos moralizantes45 que 44 BARROS, Jefferson, Quem tem Medo de Qorpo Santo. In Correio do Povo – 31/8/1966. 45 Nós todos jornalistas estamos obrigados a nos unir e a criar o teatro nacional; criar pelo exemplo, pela lição, pela propaganda. ALENCAR, José de, A Comédia Brasileira. In Diário do Rio de Janeiro - 14/11/1857. Apud FARIA, João Roberto, Idéias Teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 21. p.469.

32


deveriam reproduzir exata e naturalmente os costumes de uma época.

realidade, apresenta daguerreótipos morais49 cristalizados e desbotados pela exacerbação de suas teses, aos olhos daqueles que hoje retomam sua dramaturgia. As teses de Qorpo Santo também são exacerbadas, tão exageradas que se tornam estapafúrdias e acabam por centrifugar os significados das palavras, tornando-as tão leves que quase as esvazia. Qorpo Santo é um verme que principiou a roer as sobrecasacas de seu tempo e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas.50

Isto não ocorria com Martins Pena, que pintava os costumes de seu tempo, mas pintavaos sem criticar, visava antes ao efeito cômico do que ao efeito moral, e era isto que José de Alencar criticava em seu artigo A Comédia Brasileira, publicado no Diário do Rio de Janeiro.46 A aparição de um autor como Qorpo Santo nesta época pode ser um indício desta crise do drama47 que já se anunciava na Europa, mas que, surpreendentemente, manifesta-se nas bravatas de um autor como Qorpo Santo; totalmente ignorado e fora do eixo da produção teatral mundial. É possível que Qorpo Santo tenha levado a sério as suas apologias quixotescas e atirado pedras nas janelas do Teatro São Pedro, onde ocorria o teatro que ele conhecia em sua província e que deveria ser mais “intragável” do que aquele a que Ionesco não aceitava.48.

Décio Pignatari coloca que o autor gaúcho: pode ser tido por primitivo; se for, não é do tipo ingênuo comum, pois em suas peças é inequívoco o comando da metalinguagem, de alusão crítica à linguagem romântica e ao teatro de costumes da época. Dá a impressão de um teatro de costumes que tivesse sofrido desregulagem de registro: o resultado é um tônus geral sinistro, entre metafísico e surrealista (...).51

Assim como José de Alencar,as comédias de Qorpo Santo procuram criticar a sociedade de seu tempo. Alencar, pretendendo imitar a

49 Molière tinha feito a comédia quanto à pintura dos costumes e a moralidade crítica. (...)Mas esses quadros eram sempre quadros e o espectador vendo-os no teatro não se convencia de sua verdade; era preciso que a arte se aperfeiçoasse tanto que imitasse a natureza;(...) É esse aperfeiçoamento que realizou Alexandre Dumas Filho; tomou a comédia de costumes de Molière, e deu-lhe a naturalidade que faltava; fez que o teatro reproduzisse a vida da família e da sociedade, como um daguerreótipo moral. ALENCAR, José de, Op.cit. p.471.

46 ALENCAR, José de, Op.cit. p.47. 47 Peter Szondi constata que as peças compostas com diálogos trocados entre personagens, como numa conversação quotidiana, são incapazes de expressar as novas contradições da realidade. E localiza a crise da forma dramática muito antes, por volta de 186, quando a crescente complexidade das relações sociais já não cabe no mecanismo do drama absoluto que se estrutura a partir das relações intersubjetivas dos personagens. FERNANDES, Sílvia, Notas sobre Dramaturgia Contemporânea. In O Percevejo, n. 9, Ano 8, 2. p. 26.

5 ANDRADE, Carlos Drummond, Sentimento do Mundo.Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 146.

48 SENA, Antônio Carlos, Qorpo Santo – um Precursor. In Programa do Espetáculo do Clube de Cultura de Porto Alegre.

51 PIGNATARI, Décio, Qorpo Santo. In Contracomunicação. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 121.

33


§11

Voltando à trama da peça Certa Entidade...: ao evocar o Supremo Arquiteto do Universo, aparece, sorrateiramente, a personagem Satanás, que articula uma negociação com o velho Brás – um tipo de “O Fausto” de Qorpo Santo. Surge Micaela, a taguarela, uma mulher vulgar, de recato ambíguo, aparece como um empecilho para o pacto entre Brás e Satanás. Após tentar seduzir Satanás ela convida Brás para que se metam num quarto, onde são trancados por Satanás que abandona a cena de modo jocoso.

Tomo como exemplo a peça Certa Entidade em Busca da Outra. Este é um dos textos mais convencionais de Qorpo Santo. No início da peça, o monólogo do velho Brás, instaura um nonsense52 comparável às anedotas contadas na Cena 8 pelas personagens da peça A Cantora Careca de Eugène Ionesco ou ao monólogo da personagem Lucky em Esperando Godot de Samuel Beckett. O monólogo escrito por Qorpo Santo consiste num turbilhão de palavras que vão encadeando idéias desconexas. Os disparates se sucedem, revelando um pensamento confuso53 que salta de um assunto a outro, colocando num mesmo saco a apresentação das personagens da peça, problemas familiares, críticas ao governo, passando pela defesa de teses sobre a Nação e a Pátria, finalizando com uma evocação apocalíptica da vingança do Supremo Arquiteto do Universo que não tardará a tocar a trombeta final.

No segundo ato, Micaela e Brás, trancados no quarto,arrombam a porta,derrubando o cenário, rasgando o figurino e quebrando partes do corpo, enquanto agridem-se mutuamente. Nisso aparece Ferrabrás, o filho de Brás que vive falando de suas namoradas e nega ser filho de Micaela. Ao final da peça, as personagens são praticamente desmontadas em cena, numa briga entre Ferrabrás e Micaela, que perde a cabeleira em cena. Restam dúvidas sobre a consistência das personagens, o que pode revelar a insignificância da vida daquelas figuras execráveis.

Percebe-se um monólogo maçante, conservador, recheado de intenções ideológicas do autor e de sua sede de justiça e de moralidade. A personagem expõe seus enunciados de modo arbitrário que emperra a troca dialógica e imobiliza o desenvolvimento da suposta fábula que, aliás, nem chega ser definida pelo dramaturgo.54

Qorpo Santo parece insatisfeito ao terminar sua pequena obra, pois dá a impressão de que deixa a peça inacabada, sugerindo que os cômicos nada devem poupar para tornar mais interessante e agradável o gracejo. Após o encerramento do texto, Qorpo Santo, ainda insiste para que os atores, no início da peça dêem saltos, proferindo palavras sem nexo ao discurso, mostrando a respeito de Brás algum desatinamento, antes da entrada deste último.

52 “O deleite do nonsense” diz Freud “tem suas raízes na sensação de liberdade que experimentamos quando podemos abandonar a camisa-de-força da lógica.” Apud ESSLIN, Martin, O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. p. 289.

§12

53 Não se repara no fato de que a confusão tem um sentido positivo, é uma ação mental. (...) O confundir uma coisa com outra é uma maneira de tomá-las intelectualmente, isto é, de pensa-las. Y GASSET, Jose Ortega, A Idéia do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 9.

O Teatro do Absurdo procura construir arcabouços lógicos que se configuram em dramas não dramáticos, mas o jogo de linguagem

54 FERNANDES, Sílvia, Op. Cit. p. 27.

34


proposto pelos dramaturgos do Absurdo é feito de maneira racional.

Qorpo Santo, ao destruir a força significativa e metafórica de suas palavras, encobre seu nome e sua obra com uma espessa camada de ridículo; Qorpo Santo diluise no meio de suas personagens grotescas, ridículas, inautênticas que esbravejam protestos desprovidos de sentido.57

Os conflitos da peça nada mais são do que peripécias que viram acidentes, onde as personagens se agridem com certa gratuidade. Instaura-se um clima de violência entre as figuras em cena, que vivem um inferno desprovido de coerência.

Qorpo Santo escreveu um texto de modo sério, não o fez para fazer rir, mas pode fazer rir, contudo, parece que ele não sabia quando fez. Não tinha, como Ionesco e Beckett tiveram, a intenção de induzir a perda do sentido de suas palavras. O absurdo de Ionesco e Beckett não está em enlouquecer cada vez mais, está em tratá-lo como o normal.

Qorpo Santo parece não estabelecer sua lógica particular de maneira racional. Em sua escritura, ele justapõe idéias que voam de sua mente para a página num movimento inacabado. A velocidade com que suas palavras passam por sua mente sobrepuja a velocidade de sua escrita. É a onipotência da imaginação sobre a impossibilidade da concretização do transcrever. Seu pensamento se confunde num emaranhado de palavras que reúne sexualidade, política, filosofia, criando um enciclopedismo de lógica aparentemente antinatural.55 É possível, portanto, deduzir que mais do que o texto parece que Qorpo Santo, de maneira inconsciente, interpunha entre ele e a página impressa um filtro que agia sobre sua memória deformando a sua escritura. Essa chave de leitura remete continuamente a uma cultura diversa da registrada na página impressa: uma cultura oral.56

55 Pretendeu-se que o homem primitivo era ilógico. Isto parece tolice quando o intento de construir a lógica, ao mesmo tempo que fracassava descobria a impossibilidade e o caráter utópico do pensamento lógico.(...) Ao nos darmos conta de que somos muito menos lógicos do que reputávamos, perde o sentido encerrarmos os primitivos no presumido manicômio que era a sua falta de lógica. O pensamento humano nunca foi, é, nem será genuinamente lógico, assim como nunca careceu de “alguma” lógica. Apud Y GASSET, Jose Ortega, A Idéia do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1978. pp. .87-88 57 Cf. AMOROSO, Maria Betânia, Pasolini e a Vanguarda. In WATAGHIN, Lucia (org.), Brasil & Itália Vanguardas. Cotia: Ateliê Editorial, 23. p. 194.

56 Cf. GINZBURG, Carlo, O Queijo e os Vermes: as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 26. p. 72.

35


Uma Ensiqlopedia de Vanguardas

E

§13

de leituras. Qualquer tentativa de rotular sua dramaturgia torna-se ilusória, na medida em que sua obra constitui um mosaico onde se exibem, sem qualquer preocupação sistêmica ou metodológica, elementos de ruptura59.

ncontram-se no teatro de Qorpo Santo algumas características de anti-romantismo, de funcionalidade teatral da palavra, de liberdade para o espetáculo, da criação de personagens despsicologizadas, além da violenta velocidade da ação. Mais ainda: é possível que, embora se possa duvidar que Ionesco e Qorpo Santo tenham escrito suas obras com o mesmo grau de consciência, não pode ser esquecido o fato de que enquanto um viveu em Paris, o outro escreveu em Porto Alegre, Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, no século XIX.

Suas comédias estão repletas de falas inconclusas e de personagens que compõem ambientações, onde o nonsense caracteriza um universo “proto-surrealista”. Qorpo Santo transforma meros esboços do ser humano em personagens que subvertem a dramaturgia tradicional do século XIX; cria uma lógica muito peculiar e de aspecto fragmentário, possível de aproximar-se de algumas tendências vanguardistas do final do Século XIX e início do Século XX.

Qorpo Santo escrevia textos que não seriam publicadas no Século XIX. Tentou dominar as tecnologias gráficas, em sua época, e como um produtor gráfico relativamente bem sucedido comprou uma tipografia para editar seus escritos.58 A escritura dramática de Qorpo Santo pode proporcionar uma multiplicidade 58 Instalou sobre a porta um caixote, em cujos lados recortara as palavras TIPOGRAFIA QORPO SANTO e que enchia de velas à noite, fazendo o anúncio brilhar na escuridão foi, possivelmente, o primeiro luminoso de Porto Alegre. AGUIAR, Flávio,Op. Cit.p. 25.

59 MARTINS, Leda Maria, O Moderno Teatro de Qorpo Santo. Belo Horizonte: Editora UFMG; Ouro Preto: UFOP, 1991. p. 3.

37


§14

encenação inteligente62. As falas inconclusas, a fragilidade no traço das personagens permitem que seus corpos sejam despedaçados em cena, numa violência libidinosa e indigente que pode se moldar a uma multiplicidade de leituras.

O final do Século XIX foi pródigo em dar nomes a seus movimentos literários, assim conferindo um peso proporcional às diferenças entre eles60, é sempre interessante verificar na obra de Qorpo Santo suas não-obrigatórias relações com tais movimentos. Esta analogia possível entre as vanguardas modernistas e a obra de Qorpo Santo não tem a intenção de classificar o autor gaúcho nesta ou naquela tendência, pois isto já foi realizado Eudynir Fraga e, anteriormente, por Flávio Aguiar, que perceberam nas peças do gaúcho um espectro de tendências que podem ser complementares, divergentes e até contraditórias.

Nesse sentido, a encenação do grupo portoalegerense Depózito de Teatro aproximase do que está sendo tratado nesta etapa do trabalho, pois originou-se da pesquisa sobre a presença, na obra de Qorpo Santo, do surrealismo e de elementos do Manifesto Antropofágico63 lançado por Oswald de Andrade na década de 1920. O grupo realizou um estudo sobre dadaísmo, surrealismo, antropofagismo e tropicalismo, para em seguida procurar um “corpo grotesco” ou “corpo surrealista” para abrigar os personagens solicitados pelo autor.64

O contato com a obra de Qorpo Santo não precisa identificar cada vanguarda com suas respectivas características, afinal, isto seria uma conceituação inócua para este trabalho. Contudo, a observação da obra de do autor leva-me a entender o enciclopedismo de Qorpo Santo como o potencial que possibilita ao autor uma expressão multivanguardista. Um autor que transpõe os limites das classificações da vanguarda modernista do Século XX. Um homem que não se decidia entre a aceitação ou a repulsa do moderno61, ou seja, um homem que viveu o conflito entre o passadismo e futurismo.

Como a companhia teatral de Porto Alegre, também procurei perceber diálogos entre algumas correntes artísticas do final do Século XIX e início do século XX com a obra teatral de Qorpo Santo. Pretendi investigar como a presença de elementos destas correntes artísticas proporcionam uma multiplicidade de leituras que sua obra nos possibilita através de suas matrizes dramatúrgicas. Valendo-me da vocação modernista da obra de Qorpo Santo, detectada pelos autores citados acima, foi possível aproximá-la de imagens para a confecção da peça audiovisual que equivale a um dos capítulos desta tese. A idéia aqui é perceber as possíveis atmosferas desta dramaturgia para imaginar um retrato audiovisual de Qorpo Santo.

Décio Pignatari acrescenta que as peças de Qorpo Santo têm uma linguagem pop, um vocabulário restrito, popular. As comédias do autor são abertas e breves, são um convite à

62 PIGNATARI, Décio, Qorpo Santo. In Contracomunicação. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 122. 63 Cf. ANDRADE, Oswald, A Utopia Antropofágica. São Paulo: Globo, 1995. pp. 47-52.

6 Bradbury, Malcom e McFARLANE, James (org.), Modernismo:guia geral 189-193. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 166. 61

64 Programa do Espetáculo Dr. QS – Quriozas Qomédias, apresentado em Março de 27 no Espaço Cultural Semente em Campinas.

ASSIS BRASIL, Luiz Antônio de, Op. Cit. p. 165.

38


§15

- Inexistência da intriga tradicional, onde os fatos se sucedem encadeando-se harmonicamente, visando a narrar uma história, substituída por uma atmosfera de tensão e expectativa;

As diferentes percepções delirantes que Qorpo Santo vislumbrou a respeito de suas realidades criou um universo singular e paralelo, refletindo idéias e sentimentos destoantes da dramaturgia de sua época. É possível querer enxergar as vanguardas modernistas devoradas por Qorpo Santo, um autor clandestino e sem nenhuma consciência de que sua insignificância poderia antecipar a antropofagia oswaldiana para a década de 1860. Isolado numa Porto Alegre de sobrecenho carregado uma cidade morta devido à Guerra do Paraguai, Qorpo Santo vive obsessivamente, enfrenta conflitos pessoais e sociais, transforma sua profunda melancolia tropical65 em uma mixórdia de textos criticados por sua excessiva incomunicabilidade com seus contemporâneos.

- Inexistência de caracteres precisos e determinados, sem preocupação de desenho psicológico e coerência interna; - Indeterminação de tempo e de lugar, inspirando-se muitas vezes, na alegoria; - Criação de dois planos: um visível, e outro, supra-real, que o circundaria, mas que não ficaria claramente explicitado para o público; - Através da elaboração de uma linguagem poética, repleta de sugestões, ambigüidades e imagens visuais, o espectador seria remetido de um plano a outro, tornando-se ele próprio um intérprete, por meio da sua sensibilidade aguçada pelas correspondências e efeitos sinestésicos;

Eudinyr Fraga investiga a obra de Qorpo Santo como antecipadora do Surrealismo e do Teatro do Absurdo, aproximando mais a obra do surrealismo, mesmo identificando elementos do Teatro do Absurdo. É possível concordar com Fraga. Todavia, Qorpo Santo vislumbrou realidades e criou uma lógica construindo arcabouços dramáticos que flutuam num universo paralelo.

- A linguagem perdendo, portanto, parte de suas características dramáticas, adquire feição nitidamente lírica, do que decorre um sentimento de profunda e intensa poesia que envolve as personagens e as situações, transformando-as num todo significante e autônomo, fechado em si mesmo e que não corresponde mimeticamente à realidade.67

Fraga, em um outro trabalho seu, este sobre o Simbolismo no Teatro Brasileiro, coloca que o movimento simbolista preparou um clima propício aos subseqüentes grupos de vanguarda: cubismo, futurismo, dadaísmo e surrealismo66;

Todas estas características podem ser encontradas nas peças de Qorpo Santo. Assim é possível inferir que o autor antecipa-se também ao Simbolismo68. 67

Fraga também faz uma sistematização sobre o teatro simbolista, listando algumas características, que parecem interessantes:

65

AGUIAR, Flávio, Op. Cit. p. 5

66

FRAGA, Eudinyr, Op. Cit, p. 31.

FRAGA, Eudinyr, Op. Cit.p. 56

68 O Manifesto Simbolista data de 1886 e o marco inicial do simbolismo no Brasil se dá em 1893 com a publicação do Missal de Cruz e Souza. O teatro simbolista no Brasil recebeu os ventos simbolistas que perderam um pouco de suas cores primitivas na longa viagem para além-mar. Duas peças teatrais são citadas como obras primas: A Bela Tarde e A Casa Fechada, ambas de Roberto Gomes. FRAGA, Eudinyr, O Simbolismo no Teatro Brasileiro. São Paulo: Art & Tec, 1992.p.182-185.

39


§16

§17

As peças de Qorpo Santo podem funcionar como roteiros de encenação, também como narrativas curtas, rápidas que podem ser montadas episodicamente ou isoladamente, de maneira efêmera. Veja-se o caso de Certa Entidade em Busca de Outra ou Um Credor da Fazenda Nacional: são peças curtíssimas, cuja duração só com prodígios da direção poderá ultrapassar meia hora.69 Escritos relâmpagos, como no teatro futurista70, onde a ênfase recai sobre a brevidade, a velocidade – num espírito semelhante à impaciência e sensação de premência dos expressionistas.

O expressionismo possível na obra de Qorpo Santo coincide com algumas figuras e situações encontradas nas imagens produzidas pelo gravurista paraense Oswaldo Goeldi71 e este com o pintor belga James Ensor72. Na obra de Goeldi personagens solitários vagam por ruas escuras, que podem representar um lado sombrio de Qorpo Santo. Álvaro Moreyra disse que Qorpo Santo escrevia “verdadeiras fábricas de gargalhadas”, porém há no escritor gaúcho certos aspectos que revelam um lado obscuro, que pode prescindir das risadas, ou pode fazer aparecer um riso sardônico e conferir às peças de Qorpo Santo uma proximidade com o terror. O riso, em Qorpo Santo, tem pertinência, mas não chega a ser compulsório e podemos afirmar que pode não aparecer enquanto riso de evasão, mas sim enquanto riso de estranhamento ou provocar constrangimento, por suas alusões infames e grotescas.

Da mesma forma com que poeiras de simbolismo e futurismo são perceptíveis na obra do Qorpo Santo, também a atmosfera dadaísta paira sobre suas peças. O autor pode ser Dadá, se levarmos em conta que o acaso e a destruição das tradições dramatúrgicas, advindos do movimento dadaísta estão presentes em sua obra. Elementos anti-ilusionistas, a falta de preocupação com o psicologismo das personagens, a inexistência de racionalização, a demolição e a ridicularização do teatro bem feito do Século XIX encontramse nos textos de Qorpo Santo.

A utilização comicidade em Qorpo Santo pode ser uma via de fácil acesso para aproximar sua obra do público. Contudo esta

69 FRAGA, Eudinyr, Qorpo Santo: Surrealismo ou Absurdo. São Paulo: Perspectiva, 1988. p. 6.

71 Oswaldo Goeldi é nosso “verdadeiro expressionista”, o “avesso” do modernismo solar. (...)Manuel Bandeira cunha a expressão “panteísmo grotesco”. É perceptível em sua obra o diálogo com as correntes est´ticas européias e americanas como o expressionismo e o realismo eo surrealismo. Muitos artistas contemporâneos tratam Goeldi como um ícone de nosso tempo - ícone unânime do malogro modernista, visionário da decadência urbana com suas paisagens trágicas. RUFINONI Priscila Rossinetti, Oswaldo Goeldi: iluminação, ilustração. São Paulo: Cosac & Naify e Fapesp, 26. pp. 17-19.

7 As melhores obras do teatro futurista têm um valor durável e consistiam em quadros ultracurtos, chamados de “sínteses” e que não passavam de algumas linhas, no máximo uma ou duas páginas. ESSLIN, Martin, O Teatro Modernista: de Wedekind a Brecht. In Bradbury, Malcom e McFARLANE, James (org.), Modernismo:guia geral 189-193. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp. 453-454 apud McFarlane

72 James Ensor e Edvard Munch foram particularmente importantes como precursores espirituais, visionários que permaneceram fiéis à sua crença de que a arte deveria expressar a perturbação íntima diante de um mundo em que reinam a incompreensão e a negligência. DEMPSEY, Amy, Estilos, Escolas e Movimentos. São Paulo: Cosac & Naify, 23. p. 44 / p. 7-71.

40


comicidade não se sustenta em toda a extensão de sua dramaturgia. Qorpo Santo pode trazer o lírico, o erótico, o grotesco, o sardônico, a melancolia, o ridículo....

pinturas do belga James Ensor que podem ser apreciadas como um intrincado de máscaras onde é possível encontrar um bando de bufões77 análogo às personagens de Qorpo Santo e, assim, explorar uma leitura visual, uma interpretação para o teatro de Qorpo Santo.

Como se todas as peças de Qorpo Santo fossem uma série de espetáculos sonhados por seu autor, onde ele desempenha o papel de protagonista. Qorpo Santo teria encenado a si mesmo sob o traço de suas personagens, numa espécie de autobiografia mimetizada em sua dramaturgia. É como se ele fosse um raisonneur73 de si mesmo, defendendo teses através de suas personagens. Moreyra coloca Qorpo Santo ao lado de Oswaldo Goeldi74, num mesmo volume, que por sua vez me leva ou achega-se a James Ensor75. Nas imagens de Goeldi, o teatro social também aparece como um reino de aparências que teimam em dissimular uma realidade incontornável, fazendo da morte medida reveladora de todas as hipocrisias76. Esta ambientação conduz às 73 Os autores do realismo teatral francês introduzem um raisonneur - personagem típico da comédia realista - que didaticamente expõe o pensamento dos autores com o objetivo de regenerar a sociedade através de críticas moralizadoras a certos vícios sociais. Cf. FARIA, João Roberto, O Teatro Realista na França e no Brasil. In O teatro na Estante. Ateliê Editorial. p. 37. 74 Osvaldo Goeldi quer bem toda a vida. Com melancolia. De quando em quando com desespero. Justamente pode contar traços Poe e Dostoievsky. Sabe como Carlitos é o mais puro dos irmãos. Caminhamos ao longo do tempo, da simplicidade para a simplicidade. Mas, durante a viagem, quantas complicações! No fim, restam em nós, com um pouco de fadiga, algumas palavras. Essas são as palavras de Osvaldo Goeldi, que nunca disseram que os homens são maus. Não. Há homens desarmoniosos e delirantes. E todos têm um instante de poesia, um momento de beleza. MOREYRA, Alvaro, idem. pp.256-257. 75 Por todos os lados a morte mostra sua face agourenta. Urubus, caveiras, figuras sombrias e esqueletos nos lembram que temos a sorte selada. Vaidade e arrogância são paixões vãs: a morte tudo iguala e não há quem a ela escape. Também na obra de Ensor – um artista que Goeldi conhecia e respeitava – esqueletos e mascarados põem frente a frente presunção e futilidade. NAVES, Rodrigo, De Fora: Goeldi. In Coleção Espaços da arte brasileira. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1999. pp.8-9. 76

77 Os bufões e bobos são as personagens da cultura cômica da Idade Média.(...)Os bufões e bobos(...)não eram atores que desempenhavam seu papel no palco(...)eles continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunstâncias da vida. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich, A Cultura Popular na Idade Média: o Contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora da Universidade de Brasília: Editora Hucitec, 1987. p. 7.

NAVES, Rodrigo, Idem ibid.

41


§18

§19

Pode-se deduzir uma comédia de costumes desestruturada. Percebe-se na obra do autor de Um Credor da Fazenda Nacional um monólogo de fluxo tão rápido quanto possível, sobre o qual o espírito crítico do sujeito não faz qualquer juízo, não se embaraça em seguida com qualquer reticência, e que é tão exatamente quanto possível o pensamento falado.78

É possível verificar que esta seqüência de analogias da obra de Qorpo Santo com as vanguardas modernistas tem como tecido a conjunção “e...e...e...” Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser.79 Para descartar a expressão “ou isto ou aquilo”, que estabelece que a obra de um autor é uma coisa ou outra. Ela pode ser lida como uma coisa e várias outras coisas, a partir da identificação de elementos observáveis no interior dos objetos estudados, que podem levar ao caminho criativo. De onde vem? Aonde chegar? São questões úteis. Não partir do zero, buscar começos, ou fundamentos, implicam numa concepção da viagem e do movimento a ser desenvolvido.

Os textos de Qorpo Santo estão fundados sobre meios de expressão aparentemente irrefletidos, e que só podem suscitar irrupção por processos irracionais, do inconsciente, do espontâneo, do fortuito ou do automatismo, fora de toda sistematização e de toda codificação (Max Ernst). Um estágio de incomunicabilidade calcado no desgaste das suas possibilidades de linguagem.

Inverter, portanto a linha do tempo para induzir que os ismos modernistas, como o surrealismo e o futurismo, por exemplo, sirvam como fonte de inspiração para a transcriação de uma dramaturgia teatral para outra dramaturgia audiovisual.

79 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix, Introdução: Rizoma. In Mil Platôs (vol. 1). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p. 37.

78 BRETON, André, Manifesto do Surrealismo (1924). Apud NADEAU, Maurice, História do Surrealismo. São Paulo: Perspectiva, 1985. p. 48.

42


Pistas para uma Posível Biografia Fiqsional

§20

Assis Brasil considera Porto Alegre uma: Cidade dos apelidos: o Velho da Matraca, o Cabra-roxa, o Mal-acabado, o Chico da vovó – este, célebre poeta - , o Chaves-dos-óculos, o Barriga-me-dói, o Bunda-amorosa, o José-mulher, o Tomalargura, o Corre-com-o-saco, o Nariz-depapelão, o Pão-de-rala, o Trabuco, o Vareta, ninguém escapa. Nem governadores-gerais e presidentes: Lentilha, Diabo-coxo, D. João Quinto, Sinhá-rosa, Cascudo.

Dentre as 17 peças que compõem a obra dramatúrgica do gaúcho José Joaquim de Campos Leão – auto-denominado Qorpo Santo, é possível perceber certa noções autobiográficas80 do dramaturgo que incluem referências ao II Império e à Província do Rio Grande. As peças teatrais encontram-se no volume IV de sua Ensiqlopedia ou Seis Mezes de uma Enfermidade, uma publicação folclórica, impressa com problemas de revisão ortográfica e ausência de planejamento gráfico81, ou seja, uma escrita primitiva, rústica.

Toda essa gente foi retratada pelo artista Luiz Terragno, grande na arte fotográfica, estabelecido na esquina das ruas do Rosário e da Alegria, cuja grande ciência consiste em botar seus modelos rigidamente sentados, a cabeça segura por duas hastes de ferro, ou então de pé, a mão pousando sobre uma pilha de livros encadernados; ali ficam um tempo enorme debaixo do sol filtrado com doçura por uma chapa de vidro fosco, num intuito de juntar à beleza a técnica mais esmerada, como se faz em Paris.84

O naturalista francês Auguste de Saint Hilaire que esteve na segunda década do século XIX em Porto alegre, publicou um livro sobre o Rio Grande do Sul. Lá ele fala da rusticidade do gaúcho. Uma rusticidade que o gaúcho até se vangloria disso, de ser superior ao tempo, mas na verdade sente frio como qualquer outro.83 82

8 A principal fonte a respeito de sua vida é a obra que imprimiu a suas expensas: a famigerada ou famosa Ensiqlopedia. Nela reproduziu inúmeros textos de cunho autobiográfico (...). AGUIAR, Flávio, Op. Cit.p. 33. 81

Qorpo Santo, que também foi um tipo curioso da cidade, pode ter sido fotografado por

Cf. AGUIAR, Flávio, Op. Cit. pp 36-37.

82 SAINT-HILAIRE, Auguste de, Viagem ao Rio Grande do Sul (182-1821). São Paulo : Comp. Ed. Nacional, 1939. 83 Da entrevista realizada em 17 de Julho de 27, com Luiz Antônio de Assis Brasil, autor do romance Cães da Província.

84

43

ASSIS BRASIL, Luiz Antônio de, Cães da Província, p. 16


§21

Luiz Terragno85, referido por Assis Brasil em seu romance Cães da Província, que tem como uma das personagens protagonistas o autor da Ensiqlopedia.

Uma fotocópia da certidão da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre certifica que José Joaquim de Campos Leão Corpo Santo: Foi sepultado em 02 de maio de 1883. Branco, casado, teve como “causa mortis”, tísica pulmonar. Foi sepultado no Cemitério da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, na sepultura nº 29 de entre muros, no 6º quadro, após ter sido transportado no 1º carro.

Esta cópia de certidão, porém, diz que, nesta data, Qorpo Santo possuía 50 anos de idade e em outra referência sugerem que sua data de nascimento pode ter sido em 19 de abril de 1829, na Vila do Triunfo, e sua morte ocorreu em Porto Alegre, em 1º de maio de 188386. De origem incerta, não interessa aqui verificar a veracidade desta certidão, mas sim levantar uma possível biografia ficcional sobre Qorpo Santo. Por exemplo, o próprio Qorpo Santo em sua Ensiqlopedia escreve que:

José Joaquim de Campos Leão – Qorpo Santo Provavelmente fotografado por Luís Terragno (sem data)

A última capa publica uma xilogravura, enquadrada numa cercadura de vinhetas. Dita xilogravura representa uma capela mortuária, na fachada da qual se lê: “S [UBIU] AO CEO EM 7 DE JUNHO 1863”. Nas portas da capela: “C.S.A.S.J. de L.” 85 Luiz Terragno, italiano, , foi um dos fotógrafos pioneiros do Rio Grande do Sul. Teria chegado a Porto Alegre em 1853 e sua carreira estendeu-se até meados dos anos 188.(...) É de autoria de Terragno uma série de retratos tomados entre 1865 e 1867 de personagens envolvidos na Guerra do Paraguai, como o imperador D. Pedro II e vários soldados paraguaios feitos prisioneiros em Uruguaiana.´(...) É possível que seu último endereço tenha sido o da Rua General Câmara, 46. Cf. KOSSOY, Boris, Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 22. p. 37-38.

Ou seja, o próprio autor propõe uma morte ficcional para si mesmo.

86 Teatro Completo de Qorpo Santo, publicado pelo Serviço Nacional de Teatro, da Fundação Nacional de Arte, em 198.

44


Dona Fulana de qampos Leão: bisneta de Qorpo Santo

§23

§22

Na época do Qorpo Santo, Porto Alegre tinha por volta de 14000 habitantes. E Qorpo Santo conhecia e era conhecido de todos.

Para começar a tatear pistas para uma ficção biográfica sobre Qorpo Santo, uma referência utilizada foi o romance Cães da Província, de Luiz Antônio de Assis Brasil. A leitura deste romance levou-me a procurar seu autor e realizar uma entrevista, quando foi possível esclarecer alguns pontos sobre a vida do dramaturgo do Século XIX. A carga ficcional do romance, possibilita a transformação do Qorpo Santo histórico em Qorpo Santo ficcional.

Achylles Porto Alegre em seu Através do Passado escreve que Qorpo Santo: Era alto, magro, moreno, de uma palidez de morte. Usava cabeleira comprida como os velhos artistas da Renascença. Morava, nos últimos tempos, na esquina da Rua dos Andradas com a Ladeira, onde está agora o “Metrópole Restaurant” que, para ser o que é hoje passou por uma completa transformação.87

Na entrevista, os fatos foram relatados através da memória de um escritor gaúcho, que teve contato com o universo de Qorpo Santo; que acompanhou as etapas do processo de resgate da obra de Qorpo Santo; assistiu a primeira montagem de suas peças, dirigidas por Antônio Carlos de Sena, no Teatro do Clube de Cultura.

Porto Alegre prossegue: Era todo metido a aparecer nos jornaes, ainda mesmo que a sua colaboração custasse dinheiro. O que queria era ver o seu nome em letra de fôrma. Era uma mania como outra qualquer.88

Além disso, Assis Brasil conheceu uma neta de Qorpo Santo e também é neto de um homem que foi contemporâneo de Qorpo Santo. O avô de Assis Brasil - um antepassado pra ele era metido a poeta, mas referia-se a Qorpo Santo como um pseudo-poeta e nunca falou em peças de teatro. Esse avô de Assis Brasil falava do Qorpo Santo nestes termos: “Ah! Tinha um louco aqui da cidade, que subia pra casa dele colocando uma escada.”

87 PORTO ALEGRE, Achylles, Através do Passado. Porto Alegre: Livraria Globo, 192. p. 31. 88

45

PORTO ALEGRE, Achylles, Op. Cit.p. 95.


Teatro S. Pedro, Rua General Câmara da Praça da Matriz - Porto Alegre entre 1870-1890. In PESAVENTO, 49

O velho e feio prédio que pertenceu a Qorpo Santo, ficava onde hoje é o palacete Chaves. Ele não era um homem pobre. Sua casa ficava na esquina da Rua dos Andradas, conhecida como Rua da Praia com a Rua General Câmara, conhecida como Rua da Ladeira, a mesma rua do Teatro São Pedro89.

de memória tão ridicularisada pelos intelectuaes. Todavia, antes do desequilíbrio mental de que foi víctima, Corpo Santo foi homem de certo valor e representação.90

E o Aníbal Damasceno Ferreira relata um depoimento de uma pessoa que esteve na casa do Qorpo Santo e se perdeu lá dentro da casa e não achava a saída. Passou momentos de terror. Era um tipo assim, um moleque que foi levar um recado, alguma coisa assim.91

A casa de Qorpo Santo em Porto Alegre já foi demolida, mas ele tinha um sobrado ali, e era proprietário de mais quatro casas, subindo a General Câmara.

Muitos anos depois, sob o mesmo tecto do sobrado, onde Qorpo Santo, com espírito crepuscular, escreveu as suas célebres insânias, funccionou a sede da sociedade de lettras Ensaio Literário(...)92

Eram mesquinhos sobrados com duas sacadas verdes, tendo ao meio em letras grandes, os dois nomes Corpo Santo (...) era o nome de um velho professor: José Joaquim Leão de Corpo Santo, actualmente 9

PORTO ALEGRE, Achylles, Op. Cit. p. 31.

91 Da entrevista realizada em 17 de Julho de 27, com Luiz Antônio de Assis Brasil.

89 (...)o edifício do teatro São Pedro. Aquele desenho sofisticado, arcadas, ornamentos triangulares ao gosto francês. ASSIS BRASIL, Op. Cit. p. 164.

92

46

PORTO ALEGRE, Achylles, Op. Cit.p.94.


§24

Assis Brasil relata que era uma senhora com seus 90 anos. Não era uma pessoa simplória, não. Ela ofereceu café e conversou com o autor. Ela disse algumas coisas sobre Qorpo Santo:

Qorpo Santo, até as encenações de Antônio Carlos Sena, fora algum círculo muito restrito de uns poucos intelectuais, era desconhecido. A partir destas encenações passou a ser conhecido. Surgiram polêmicas entre Janer Cristaldo e Guilhermino César (crítico gaúcho mais antigo e respeitado) e aqui e ali surgiram alguns interesses. Começaram a publicar alguma coisa, de tal maneira que QS não ficou esquecido, mas aquele momento passou e depois, digamos, as pessoas do ramo conheciam e de vez em quando encenavam, até que foi publicado o romance Cães da Província em 1987. Então houve um outro renascimento, muita gente se interessou. Eurydice Silva Filho, que vive nos EUA, escreveu uma tese sobre o Qorpo Santo.

Olha! Eu não o conheci, mas a minha avó eu conheci. Dona Inácia do Qorpo Santo. Quando eu a conheci ela tinha muita idade. Ela era uma velhinha muito simpática, ensinava os netos a fazer renda de bilro.

Sobre Qorpo Santo, ela disse que: Um dia ele ficou louco e expulsou todo mundo de casa, exceto um filho, que eu (Assis Brasil) não sabia que existia esse filho, que era o pai dessa senhora. Parece que chamava Francisco. QS expulsou de casa a mulher e as três filhas. Aí ela disse que QS ficou com o filho, o cocheiro e o cozinheiro.

Quando Assis Brasil escreveu Cães da Província, não tinha muitas fontes. Tinha fundamentalmente o livro do Guilhermino César (Qorpo Santo – Teatro Escolhido), o qual traz no início uma proposta de biografia. Foi o que ele conseguiu na época e não existia mais nada sobre aquilo. Depois saiu um estudo do Flávio Aguiar, mas Assis Brasil fez pesquisas em arquivos para escrever o romance, que tem muito de ficcional.

Algumas coisas que Qorpo Santo escreve na famosa Ensiqlopedia, denotam bem o que ele quis dizer: houve um momento da minha vida em que eu me afastei de todas as mulheres e adotei o nome Qorpo Santo. Assis Brasil complementa da seguinte maneira:

Quando o romance foi publicado, em 1987 ou 1988, uma senhora telefonou para Assis Brasil e disse:

Se tu me perguntares o que ele era. Se era louco ou não. Aí que é o problema. Impossível dizer. Em primeiro lugar dizer a distância e dizer de uma forma categórica. Eu diria assim: ele seria um esquisitão. Um sujeito dado a manias. De fato, a gente lendo a Ensiqlopedia, realmente é uma loucura aquilo.93

- Meu nome é Fulana de Campos Leão. - Essa Senhora. deve ser parente do Qorpo Santo. Ela disse: a minha mãe é neta do Qorpo Santo, Dona Nadir de Campos Leão.

93 Da entrevista realizada em 17 de Julho de 27, com Luiz Antônio de Assis Brasil.

47


Uma Posibilidade de funsionamento da Masa Cinzenta de Qorpo Santo

A

Qorpo Santo:

§25

11 horas; morreu em Porto Alegre a 1º de maio de 1883. Inquieto, de uma sensibilidade doentia, atormentado pelos problemas religiosos, sexuais, sociais, políticos e morais, sobre o apelido que acrescentou ao nome, diz-nos ele próprio:

pesar de inúmeros autores94 já terem se aventurado sobre sua obra, acho importante apresentar rapidamente o

“Se a palavra corpo-santo foi-me infiltrada em tempo que vivi completamente separado do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma palavra hei sido impelido para esse mundo.(...)95

José Joaquim de Campos Leão, conhecido como Qorpo Santo, nasceu na Vila do Triunfo, Província do Rio Grande, às margens do Rio Jacuí, em 19 de abril de 1829, às

Obcecado pela idéia fixa da santidade; tendo sofrido em menino, aos três anos, profundo choque moral; crendo-se perseguido pelas autoridades provinciais; reconhecida pela Justiça a sua insanidade mental, com a nomeação de um curador; vendo-se nesse desamparo, o pobre homem voltou-se para dentro de si mesmo, refugiou-se na literatura, e escreveu então uma autobiografia lancinante.

94  Companhias de Teatro, Diretores de Teatro e Cineastas: Teatro do Clube de Cultura (Antônio Carlos de Senna), Boa Companhia (Verônica Fabrini), Cia São Jorge de Variedades (Georgete Fadel), Cia. Bonecos Urbanos (Carlota Joaquina), Depozito de Teatro (Roberto Oliveira), Teatro Giramundo (Álvaro Apocalypse), Luís Carlos Maciel, Haroldo Marinho Barbosa, Eduardo Escorel - escritores e poetas: Luiz Antônio de Assis Brasil, Carlos Drummond de Andrade, Álvaro Moreyra, Achylles Porto Alegre; - pesquisadores e jornalistas que construíram uma fortuna crítica sobre o autor: Gulhermino César, Flávio Aguiar, Eudynir Fraga, Denise Espírito Santo, Aníbal Damasceno Ferreira, Yan Michalski, Dario de Bittencourt, Julio Petersen, Júlio Zanotta Vieira, Janer Cristaldo, Décio Pignatari, Fausto Fuser, João Roberto Faria, Leda Maria Martins, Eurídice Silva, Frank Hines, Lothar Hessel, Múcio Teixeira, Olyntho San Martin, Cláudio Heeman, Roque Callage (conhecido como passadista), Athos Damasceno Ferreira, Aldo Obino, Luís Augusto Fischer, Lúcia Carvalho Mello, João Batista Marçal, Luis Araújo Filho.

95  LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 16

49


§26

Como Jarry (1873 – 1903), criador da Patafísica96, viria a fazê-lo depois, o dramaturgo rio-grandense acomodava-se entre os extremos – realidade e ficção, lucidez e loucura, pondo a serviço da ação uma extraordinária capacidade inventiva cultivada em regiões abissais, onde as contradições desaparecem. Na obra de Qorpo Santo é perceptível uma predominância do modelo interior sobre o exterior, o aprofundamento da relação entre a arte e o mundo dos loucos, dos primitivos e da “arte infantil”.

A produção dramatúrgica de Qorpo Santo está localizada em Porto Alegre, isolada produção teatral brasileira do século XIX. Qorpo Santo, talvez sem ser percebido e sem perceber, constrói uma dramaturgia aberta, incompleta, inacabada, despedaçada, que permite e até exige a complementação de um encenador. É como se encontrássemos numa escavação arqueológica fragmentos de peças teatrais do período. O dramaturgo gaúcho corrige-se no momento da impressão de seus textos, visto que as peças foram escritas em 1866 e sua impressão só se concretizou em 1877. Flávio Aguiar coloca que Qorpo Santo escrevia os pequenos textos que mais tarde reuniria na Ensiqlopedia e que admitia estar na verdade, perdendo tempo97. Sua verborragia se desenha em milhares de palavras que permeavam sua imaginação, como uma espécie de compensação.98 Aguiar coloca que QS: Fragmentou sua visão das coisas e do mundo nos milhares de pequenos “verbetes”(...). Cada um desses “verbetes”, que se apresentam misturados temática e formalmente, tirou do conjunto da Ensiqlopedia qualquer caráter narrativo. Ou seja: ela não possui princípio, nem meio, nem fim, no sentido de uma sucessão organizada e necessária de textos.99

97  AGUIAR, Flávio, Os Homens Precários: inovação e convenção na dramaturgia de Qorpo Santo. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1975. p. 69.

98  LEÃO QORPO SANTO, Jozé Joaquim de Qampos, Ensiqlopedia ou Seis Mezez de Huma Enfermidade (II, 12, 2, 4º.), apud AGUIAR, Flávio, idem ibid.

96  A patafísica é a ciência das soluções imaginárias que confere simbolicamente aos contornos as propriedades dos objetos descritas pela sua virtualidade. JARYY, Alfred, Gestes et opinions du Docteur Faustroll. Paris: Fasquelle, 1968.

99

50

Idem ibid.


É possível comparar os verbetes que Qorpo Santo escreveu em sua Ensiqlopedia com instantâneos fotográficos, que foram montando uma obra de natureza fragmentária. As peças teatrais, que constam do volume IV da Ensiqlopedia, foram escritas entre Janeiro e Junho de 1866. São textos e personagens que se apresentam como unidades reorganizáveis e podem possuir um caráter fotográfico100. As personagens da dramaturgia qorposantense podem ser entendidas como verbetes de sua Ensiqlopédia.

peça Certa Entidade em Busca da Outra, constitui um desses exemplos. O texto de Qorpo Santo coloca em cena as relações entre rascunhos de personagens que buscam suas identidades ainda incompletas, apoiando-se na perseguição de uma personagem pela outra. Parafraseando Artaud, os temas das peças de Qorpo Santo são vagos, artificiais. O que lhes dá vida é o desabrochar103 de conflitos essenciais, que se desencadeiam descontinuamente, interrompendo muitas vezes um pensamento que se desenvolve através da ação dramática.

Isto é perceptível na peça A Impossibilidade da Santificação; ou a Santificação Transformada. As falas das personagens estruturam-se como verbetes da Ensiqlopédia, ou seja: as personagens vão aparecendo em cena e suas falas podem ser consideradas uma espécie de significação de cada personagem, sobretudo na última cena da peça, na qual aparecem nada menos do que 12 personagens, que nem sequer haviam sido incluídos nas cenas anteriores. É como se fosse uma lista de personagens que vão sendo definidos, de acordo com o que falam. Estes pedaços de textos de Qorpo Santo, que pretendem compor, de modo peculiar, um daguerreótipo moral101 da sociedade gaúcha de seu tempo, podem ser reordenados gerando novas dramaturgias. Aguiar considera,ainda,a obra de QS um passatempo enganador, aqui e ali seus pequenos textos assumiam um comportamento errático, desviando-se da rota original e provocando pequenas explosões de um outro sentido.102 A 100

AGUIAR, Flávio, Op. Cit., p. 70.

102

AGUIAR, Flávio, Op. Cit., p. 71.

101  (...) o “daguerreótipo moral”, isto é, a peça que fotografa a realidade, mas adicionando ao retrato a pincelada moralizadora. FARIA, João Roberto, Idéias Teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2001. p.103.

103  ARTAUD, Antonin, O Teatro e seu duplo. São Paulo: Ed. Max Limonad Ltda., 1987. p. 72.

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O Rei da Confuzão

O

§27

A Enciclopédia escrita por Qorpo Santo e impressa em sua tipografia105, reúne, além de sua dramaturgia, todo um projeto de pensamento sobre o mundo. Qorpo Santo ambicionava realizar uma reforma em inumeráveis aspectos da vida de sua sociedade, pátria e até da humanidade. Qorpo Santo:

fascículo I da Enciclopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade traz a seguinte informação:

produziu numerosos trabalhos sobre todas as ciências, compondo uma obra de mais de 400 páginas, além de interpretar diversos tópicos do Novo Testamento de N. S. Jesus Cristo, que até aos próprios Padres ou sacerdotes pareciam contraditórios! 106

“JOZÈ JOAQUIM DE QAMPOS / LEÃO QORPO SANTO. / ENSIQLOPÉDIA: / OU / SEIS MEZES DE UMA ENFERMIDADE / VOLUME 2. / PENSAMENTOS EM 100 PÁJINAS DE DUAS COLUNAS DE 60 LINHAS CADA HUMA, / DE VINTE QUADRATINS CADA LINHA RÉIS...5$000. / PRODUÇÕES, COM RARAS EXCEPÇÕES DO 1º DE SETEMBRO / DE 1862, ATÉ O 1º DE JUNHO DE 1864, NA VILA / DO TRIUNFO. // TIPOGRAFIA / QORPO SANTO. / Porto Alegre, Maio 2 de 1877.”104

Uma obra maior do que possibilidades, um projeto que abrangia:

suas

O estudo da História Universal; da Geografia; da Filosofia, da Retórica - e de todas as outras ciências e artes que o podiam ilustrar. Estudou também um pouco de Francês, e do Inglês; não tendo podido estudar também - Latim, 105  Em 1877, conforme termo de responsabilidade existente no Arquivo da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, abria-se na cidade uma tipografia, à Rua General Câmara. (...) O certo é que a Tipografia Qorpo Santo foi mesmo instalada naquela rua, e do seu prelo saíram, ao que sabemos, os fascículos de uma publicação que o autor chamou de Enciclopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade. Idem Ibid.

104  CÉSAR, Guilhermino, O criador do teatro do absurdo. In Qorpo Santo: José Joaquim de Campos Leão – Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro, Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 40.

106  Ato Primeiro – Cena Primeira da peça Hoje sou um; e amanhã sou outro, pág. 115.

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leitor desavisado? O conjunto das peças do autor traça um caminho aparentemente linear e revela a inteligência112 do autor. Em muitas delas, no entanto, percebemos becos e ruas percorridas sem continuidade e sem saídas.

conquanto a isso desse começo, por causa de uma enfermidade que em seus princípios o assaltou. Lia constantemente as melhores produções dos Poetas mais célebres de todos os tempos; dos Oradores mais profundos; dos Filósofos mais sábios e dos Retóricos mais brilhantes ou distintos pela escolha de suas belezas, de suas figuras oratórias!107

Décio Pignatari acha que o autor gaúcho tinha uma telha a menos (ou a mais)108; João Roberto Faria considera Qorpo Santo o “louco manso dos pampas”109. Não interessa aqui tratar da loucura110 de Qorpo Santo, mas acredito ser interessante tentar imaginar o funcionamento da massa cinzenta do gaúcho escritor. Como seria o pensamento deste homem de produção obsessiva? Como os dois alienistas do romance de Luiz Antônio Assis Brasil quiseram abrir a massa cinzenta111 de Qorpo Santo, também eu sempre me interroguei por que a obra teatral de Qorpo Santo, à primeira vista, não se comunica diretamente com um expectador/ 107  Idem ibid.

108  PIGNATARI, Décio, Qorpo Santo. In Contracomunicação. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 120. 109  FARIA, João Roberto, O Teatro na Estante. Cotia: Ateliê Editorial, 1998. p. 77.

110  Isto é, loucura só existe com relação à razão, mas toda a verdade desta consiste em fazer aparecer por um instante a loucura que ela recusa, a fim de perder-se por sua vez uma loucura que a dissipa. (...) Pois se existe razão é justamente na aceitação desse círculo contínuo da sabedoria e da loucura, é na clara consciência de sua reciprocidade e de sua impossível partilha FOUCAULT, Michel, História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004. p.33.

111  (...)Você veja as insanidades que ele tem feito, malbaratando os bens, afugentando os alunos, entrando em casa pelas janelas e não pelas portas, o que você quer mais? Se abríssemos sua massa cinzenta cerebral encontraríamos ali a causa de tudo. ASSIS BRASIL, luiz Antônio de, Cães da Província. 7ª. Edição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997. p. 92

112  Mas não no sentido que você pensa, em inteligência como sinônimo de sabedoria; falo de inteligência como capacidade de raciocínio e de atenção nas coisas, não em conhecimento profundo ou em particular agudeza de espírito. Idem, p. 91.

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§28

§29

Uma visão abrangente das peças de Qorpo Santo permite perceber o emaranhado em que possivelmente se encontrava a mente do dramaturgo. Um espírito criador que avançava em uma frente ampla e deixava muitas opções em aberto. Com um ponto de vista do conjunto das peças de Qorpo Santo, sem focalizá-las de maneira isolada, é possível elaborar a idéia de um pensamento emaranhado. Uma efervescência de idéias criativas, nem sempre acabadas, que conferiam ao autor uma rapidez na escritura, haja vista que suas dezessete peças foram escritas nos primeiros seis meses de 1866.

No Segundo Ato da peça Um Parto, a personagem Ruibarbo verbaliza como poderia ser o funcionamento da escrita de Qorpo Santo e um pouco de seu pensamento sobre a reforma ortográfica115 que propõe em sua enciclopédia: RUIBARBO - Eu me explico: Quando escrevo, penso, e procuro conhecer o que é necessário, e o que não é; e assim como, quando me é necessário gastar cinco, por exemplo, não gasto seis, nem duas vezes cinco; assim também quando preciso escrever palavras em que usam letras dobradas, mas em que uma delas é inútil, suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do Império do Brasil! Além disso, pergunto: que mulher veste dois vestidos, um por cima do outro!? Que homem, duas calças!? Quem põe dois chapéus para cobrir uma só cabeça!? Quem usará ou que militar trará à cinta duas espadas! Eis por que também muitas vezes eu deixo de escrever certas inutilidades! Bem sei que a razão é - assim se escreve no Grego; no Latim, e em outras línguas de que tais palavras se derivam; mas vocês que querem, se eu penso ser assim mais fácil e cômodo a todos!? Finalmente, fixemos a nossa Língua; e não nos importemos com as origens!

Qorpo Santo escrevia suas peças em um dia, ou em uma noite, sendo que as peças Lanterna de Fogo e Certa Entidade em busca de Outra, por exemplo, foram escritas no dia 10 de Maio daquele ano. É como se o autor tivesse passado um tempo em devaneio e como um reformador social113, desejando igualar-se aos comediógrafos brasileiros oficiais do Século XIX114.

Para João Roberto Faria, o teatro de Qorpo Santo é o teatro do homo ludens, isto

113  É quando sua mente começa a trabalhar com mais energia; é quando descobre em si mesmo, nos destroços morais do professor impossibilitado de ter alunos, um reformador social em germe. CÉSAR, Guilhermino, op. cit., p. 25.

115  Em sua reforma ortográfica da língua portuguesa simplificava a escrita de tal modo que cada fonema articulado sonoramente corresponderia a um único símbolo gráfico. Era o fim dos “SS”, “RR”, “Ç” e outros desperdícios de tinta. Daí lhe viera a grafia especial da alcunha (Qorpo Santo) e do nome Jozé Joaqim de Qampos Leão. AGUIAR, Flávio, Op. Cit.p. 25.

114  (…)entre 1855 e 1865, em que a alta comédia foi a meta de alguns escritores brasileiros, desejosos de atribuir ao teatro o papel de reformador da sociedade. FARIA, João Roberto, O Teatro na Estante. Cotia: Ateliê Editorial, 1998. p. 76.

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§30

é, um teatro que valoriza o jogo dramático, a representação, o trabalho do ator.116 Desta forma é possível inferir que em Qorpo Santo a escritura aparece como um jogo cujas regras vão sendo formuladas à medida que progredimos, e uma visão clara de seu uso só surgirá depois de terminada uma busca criadora.117.

É possível afirmar que Qorpo Santo roubou de suas personagens o conteúdo das falas, permitindo o esvaziamento de seus significados e relegando o texto à sua forma. Isto faz com que o desencadeamento dos conflitos, nas peças de Qorpo Santo, não esteja ligado ao conteúdo das falas, mas sim a outros níveis de linguagem, quer seja dentro da própria estrutura idiomática, atingindo profundamente sua dramaturgia, expressando um automatismo na escrita que constrói personagens e narrativas, onde vários textos podem acontecer, simultaneamente.

Qorpo Santo, um tipo folclórico de Porto Alegre, começou a escrever peças sem pé nem cabeça, inventando um mundo ideal, quixotesco. Qorpo Santo viveu sua vida como ela poderia ter sido. Junto com sua obra surgiram histórias contadas que acabaram conservadas pela tradição oral, o que se refletiu em suas peças, por meio de uma linguagem direta, onde a retórica prima pela paródia. Em sua Enciclopédia, uma espécie de caricatura verbal impressa, Qorpo Santo fazia uma inversão de tudo, criticava instituições, religião, o intrincado da lei, demolindo um universo com um turbilhão de palavras do qual não conseguia se desvencilhar.

116

FARIA, João Roberto, op. cit., p. 87

117  EHRENZWEIG, Anton, A ordem oculta da arte: um estudo sobre a psicologia da imaginação artística. Rio: Zahar Editores, 1969. p. 52.

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Parte II Para juntar os Pedasos do Qorpo Santo



Um Pensamento-Vizão de Qorpo Santo

A

§31

estímulo criativo, num processo em que cada estágio exposto não ansiava um resultado final fechado, mas sim mais uma parte integrante do processo criativo desenvolvido. A justaposição de referências aparentemente inconectáveis, que se apresentaram durante o processo de pesquisa, tornaram-se passíveis de interação. Os agenciamentos119 entre imagens fotográficas, caricaturas, pinturas e dramaturgia, integraram elementos numa colagem onde o que já estava pôde ser aproveitado e o devir foi aglutinador.

proposta de construir um pensamento-visão de Qorpo Santo pode ancorar-se na idéia de que seu processo criativo funcionaria como um fluxo descontínuo de imagens episódicas, ordenado por acontecimentos que se desenham num devaneio puntiforme e linear, cujo ponto de partida se perde na medida em que nos afastamos dele. Sua linearidade desaparece dando lugar a uma seqüência de imagens justapostas numa cortina de retalhos.

A utilização de diversas fontes textuais incluiu linguagens imagéticas como

O estudo do Qorpo Santo, montado a partir de imagens imóveis, para a posterior elaboração de imagens em movimento. Em outras palavras, nesta espécie de jogo de imagens e textos pré-determinados reelaborei a dramaturgia de Qorpo Santo, criando um jogo imaginário/textual, como um story board. Estas seqüências de textos e cenas serviram como planejamento visual de um roteiro criado a partir de trechos das peças teatrais de Qorpo Santo, que podem construir um recorte do autor, sem pretensões de retratar um Qorpo Santo histórico, mas um Qorpo Santo personagem.

118  Sabe-se que um filme é constituído por um enorme número de imagens fixas chamadas fotogramas, dispostos em seqüência em uma película transparente; passando de acordo com um certo ritmo em um projetor, essa película dá origem a uma imagem muito aumentada e que se move. AUMONT, Jacques e outros, A Estética do Filme. Campinas: Papirus, 1995.p. 19.

119  Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix, Introdução: Rizoma. In Mil Platôs (vol. 1). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. pp. 11-12.

O modo proposto para a transcriação da dramaturgia teatral para uma outra de suporte audiovisual seria o de produzir as cenas a partir de imagens fixas118. As imagens estáticas selecionadas serviram como pontos de apoio para, posteriormente, acrescentar imagens em movimento e som à narrativa.

Experiência de desentender o texto, esvaziar o seu significado para devolvê-lo na

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§32

seqüência com outra significação. Os monólogos de Qorpo Santo tentam dizer algo carregado de significados, contudo, devido à sua prolixidade, tornam-se vazios de conteúdo o que permite que o texto seja jogado fora. Sua libido, sua energia desagregam a racionalidade do texto e conduzem a uma verborragia que esgota os textos. O texto acaba desligado do que o Qorpo Santo quis dizer.

Tendo nas mãos imagens dos quadros de James Ensor, estruturei uma peça audiovisual que devolva os significados para o texto de Qorpo Santo, inicialmente através de uma equivalência do material imagético de Ensor e o do texto de Qorpo Santo. A partir das imagens e dos textos construí um story board. A conexão entre Qorpo Santo e Ensor possui uma analogia estética pertinente. Trabalhei a relação entre o espaço da tela de Ensor e a rubrica da cena desenvolvida por Qorpo Santo para transcriar da obra de Qorpo Santo para a linguagem audiovisual. Como no filme Prospero’s Book de Peter Greenway, que transpõe a Tempestade de Shakespeare para a linguagem do cinema, sem tentar uma passagem literal da linguagem teatral para a cinematográfica. Teatro e pintura virando uma peça audiovisual.

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§33

Devolvi o significado aos textos de Qorpo Santo construindo pontes entre as pinturas, criando uma estrutura narrativa, amparada nos textos que produzem um imaginário. A sugestão dada por um texto do Qorpo Santo que liga uma tela de James Ensor à outra. Também recuperei referências visuais ligadas ao ambiente de Porto Alegre à época em que Qorpo Santo escreveu suas peças. Puxar a Guerra do Paraguai e um lado obscuro de Porto Alegre deste período. Para a composição dramatúrgica, portanto, o ponto de partida foi a estruturação de um roteiro e a interferência nas obras de Ensor e outras imagens que possam dialogar com a escritura de Qorpo Santo, elaborando uma colagem de figuras que compõem o universo do autor gaúcho. Ensor, apesar de ser estático, possui uma potencialidade dramática interessante; suas máscaras, a colocação de personagens como num palco italiano. As imagens foram selecionadas de modo a constelar uma imaginação da obra de Qorpo Santo permeando as cenas e desenrolando o fio condutor da ação. No entanto, esse fio em vez de fluir afrouxa-se, podendo ser interrompido, causando a impressão de que a linearidade da dramaturgia estará sempre sob a ameaça de ser rompida.

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Uma serta Teatralidade na Pintura

O

§34

É possível perceber, nestas rubricas, uma construção que detalha a cena visualmente, proporcionando ao leitor e ao encenador minúcias para a mise-en-scène, tanto no que diz respeito à composição da imagem, como no que concerne ao movimento e até ao tempo de desenvolvimento cênico.

bservando uma rubrica da peça de Qorpo Santo ‘Duas páginas em branco’ (Ato Primeiro – Cena Primeira):

Com a noção de que algumas imagens construídas por Qorpo Santo em suas peças têm uma visualidade passível de ser desenhada ou pintada, percebi uma possibilidade de aproximálas de pinturas e ao me deparar com reproduções da obra de Ensor notei analogias quase literais das composições de imagens. Não apenas no que diz respeito à teatralidade122 da imagem, mas nas possíveis sugestões que as imagens de Ensor podem oferecer: quem são as personagens construídas pelas narrativas imagéticas? Como estas personagens estão integradas aos cenários representados nas pinturas?

aparecem duas moças, uma assentada sobre uma mesa, outra em uma cadeira; uma luz em cima daquela; e um moço, em pé, ensinando a que está assentada. Chamaremos a uma – Mancília, à outra – Esterqulínia; ao moço, Espertalínio.120

E indicações do Ato Primeiro da peça ‘Eu sou vida, eu não sou morte’: Fazendo trinta mil caretas para falar, e sem poder ultimamente desprende as seguintes palavras: ‘Ah, mulher, mulher! Diabo, diabo!‘ Mete a mão na algibeira da calça, puxa e aponta um revólver. Passa a derramar lágrimas por um espaço de cinco minutos. Derruba o revólver no chão.121

122  Como esclarece Patrice Pavis, grande teórico e analista do fenômeno teatral, “a teatralidade seria aquilo que na representação ou no texto dramático, é especificamente teatral (ou cênico) (...) a teatralidade pode opor-se ao texto dramático lido ou concebido sem a representação mental de uma encenação. Em vez de achatar o texto dramático por uma leitura, a espacialização, isto é, a visualização dos enunciadores, permite fazer ressaltar a potencialidade visual e auditiva do texto, apreender sua teatralidade” (patrice Pavis, Dicionário de Teatro, São Paulo, 1999). Apud LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. São Paulo: Editora Iluminuras, 2001. p. 12.

120  Rubrica de ‘Duas páginas em branco’, Ato Primeiro – Cena Primeira. In LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 355. 121  Trecho de ‘Eu sou vida, eu não sou morte’, Ato Pri-

meiro. In LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Op.cit. p. 129. 63


§35

A criação de personagens em Qorpo Santo é fundamental. Parece que o dramaturgo gaúcho parte da criação de suas personagens para chegar às situações que compõem suas peças que, em alguns casos são esboços de pequenos roteiros, alguns deles inacabados. Também existe uma preocupação do autor em utilizar enquadramentos onde são inseridos grupos de personagens, criando imagens anti-heróicas. Desta forma, é possível que as personagens possam existir antes da elaboração de um texto dramatúrgico ou de um roteiro e este ser construído a partir de suas características tiradas da observação de imagens associando-as às narrativas propostas em textos compilados. O roteiro pode, também, ter sua forma já estruturada, enquanto seqüência narrativa e, por sua vez, as personagens serem construídas no desenrolar das cenas. Assim, realizei uma garimpagem de textos nas peças de Qorpo Santo, procurando justapor os textos às imagens de algumas pinturas de James Ensor, bem como de procedências diversas que possam adequar-se ao objetivo deste trabalho.

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O Jogo do Qorpo Santo

P

§36

dramaturgia. Tendo a idéia de audiofotonovela123, que Décio Pignatari propõe, imaginei um jogo que combinasse as narrativas das imagens e dos textos selecionados para a elaboração do argumento e do story board apresentados em anexo.

arece interessante apresentar os procedimentos de desenvolvimento dos diversos roteiros elaborados para a produção de uma dramaturgia audiovisual. Inspirado em diferentes fontes imagéticas pesquisadas e textos dramatúrgicos de Qorpo Santo, provenientes de um processo criativo, os caminhos traçados na Parte I tiveram como objetivo o levantamento de informações para chegar à Parte II, onde passo a apresentar as etapas do processo de criação da peça audiovisual. O processo de roteirização realizado não se resumiu a um roteiro pré-estabelecido e cristalizado. Foi um processo dinâmico, vivo. A cada estágio apresentaram-se reelaborações necessárias para a concretização da criação. Assim, o roteiro inicial serviu como ponto de partida para a confecção da peça final.

123  Há muitos anos, já vem o cineasta Lima Barreto reclamando para o roteiro cinematográfico o título de novo gênero literário narrativo, ao lado dos gêneros tradicionais: o conto, a novela, o romance. E Guimarães Rosa utilizou elementos da técnica do script em Cara de Bronze. Dando seguimento a essa idéia, publicamos o script de um novo gênero de espetáculo narrativo: a audiofotonovela. (...) a audiofotonovela é um médium a meio caminho entre a fotonovela e o cinema falado; entre a baixa definição de imagem daquela e a alta definição deste. PIGNATARI, Décio, Contracomunicação. São Paulo: Perspectiva, 1973. pp.75-76.

Elaborando um painel múltiplo das expressões identifiquei dois elementos básicos: a imagem e a palavra. Considerando esses elementos como matrizes pude compor uma

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§37

à história. Uma forma de montar uma collage125 para criar uma peça dramatúrgica. Simultaneamente, fui realizando algumas colagem com imagens que pudessem ou não ser colocadas lado a lado com falas de personagens, rubricas e textos das peças de Qorpo Santo. As outras analogias texto/imagem valeram-se das necessidades que foram sendo demandadas durante o processo de elaboração do story-board e da produção da peça audiovisual em si.

Todo jogo tem suas regras. Tais regras, em alguns casos, são mais rígidas, em outros, mais flexíveis. No caso do jogo proposto para a construção da peça audiovisual, retomei a história elaborada como argumento inicial e imaginei um número limitado de imagens estáticas que contassem a narrativa, como se fosse uma fotonovela. Para Décio Pignatari:

Em seguida, das imagens utilizadas na colagem, algumas foram descartadas e outras selecionadas para serem justapostas aos textos escolhidos, já imaginando uma narrativa que induzisse à confecção do audiovisual.

Na fotonovela, em geral, a estrutura é centrada em torno de uma figura feminina, cujos anseios, sentimentos se bifurcam :primeiramente em direção ao amor-sonho, que ao depois se revela amor-frustração ou amor-vilão: em seguida, dirige-se ao amor-fiel, ao amorsegurança e ruma para o happy-end: vence a disposição de sistemarsi – como dizem os italianos – ou seja, inserir-se no contexto (via matrimônio). 124

No caso do audiovisual realizado para esta tese, a idéia inicial gira em torno das figuras de personagens sonhadas por Qorpo Santo de onde saem outras imagens e textos que seguem os roteiros apresentados em anexo. As imagens estáticas selecionadas serviram como pontos de apoio para, posteriormente, acrescentar movimento e som

124

125  Numa primeira definição, collage seria a justaposição e colagem de imagens não originalmente próximas, obtidas através da seleção e picagem de imagens encontradas, ao acaso, em diversas fontes. COHEN, Renato, Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1989.

PIGNATARI, Décio, Idem, ibid.

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§38

§39

As inúmeras variáveis que vão aparecendo no decorrer desse quebra-cabeça, levaram-me a gravar imagens em vídeo que fizesse as pontes de ligação entre as imagens estáticas. Foi elaborada, então, uma história um tanto aleatória, principalmente quando me deparei com um jogo por construir, no qual as etapas posteriores mostraram-se incertas. Esta incerteza abriu-se numa rede de possibilidades onde os roteiros iniciais se defrontaram com um texto aparentemente sem lógica que as imagens selecionadas e gravadas em vídeo apresentaram. O quebra-cabeça teve que ser reorganizado e nesse ponto o story board foi refeito como um instrumento valioso no momento da edição de imagens e sons, onde a inclusão das vozes em off e da trilha sonora afinaram o tom e o ritmo do audiovisual.

O trabalho desenvolveu-se como se os verbetes da Ensiqlopedia de Qorpo Santo fossem instantâneos fotográficos. Dessa forma, troquei uma referência pela outra (instantâneos, verbetes, personagens). A inversão que é possível fazer na significação das coisas. A palavra verbete é uma significação que se encontra num dicionário, mas eu posso mudar o significado da palavra verbete e utilizá-la como definição de uma personagem, ou de uma cena que pode ser representada por uma imagem e vice-versa. Tal como na fotomontagem de Valério Vieira (§7), Qorpo Santo aparece multiplicado nas cenas de suas peças. Por vezes, uma personagem define-se a si mesma, por outra uma personagem define a outra através de sua fala. São personagens que, de um momento para o outro, começam a raciocinar contra a regra do jogo proposto em cena.126 As personagens de Qorpo Santo são entidades escritas; são animais que não vivem, mas que assistem sua vida através de uma lógica infernal127 chamada nonsense. São entes compostos por letras; são sistemas de signos numa lógica em agoniado conflito com sua realidade e consigo mesmas.128

126

PIGNATARI, Décio, Op. Cit. p.172.

128

PIGNATARI, Décio, Op. Cit. pp. 170-171.

127

67

Idem.


§40

§42

A palavra Contimpina, por exemplo: na edição do Teatro Completo de Qorpo Santo, com notas organizadas por Guilhermino César, encontra-se a seguinte referência ao termo: Não sabemos o que seja. Trata-se de uma combinação de letras e sons que podem definir a imagem de uma personagem. Qorpo Santo define sua personagem através da fala de Brás como o meu rapaz, o meu Ferrabrás; o meu contimpina, que de dia dorme, e de noite maquina! (Certa Entidade... Ato Primeiro)

Não mostrei literalmente uma das peças do autor gaúcho, mas segui o pressuposto de André Bazin de que o cinema pode induzir uma peça teatral a tornar-se cinema e assim gerar uma nova obra, diferente da primeira.129 Desta forma, a idéia foi apresentar um roteiro para a realização de uma peça audiovisual, colocando lado a lado os trechos selecionados de algumas peças teatrais que devolvem um sentido para a narrativa audiovisual. Um roteiro que permita realizar imagens percebidas nas peças de Qorpo Santo.

Ferrabrás é o filho de Brás que vive falando de suas namoradas e trata o pai com sarcasmo e desdém. É possível, então, atribuir o significado de sujeito insolente, zangado, malandro, ingrato, como forma de definir esta personagem e, em seguida, encontrar uma imagem que signifique estas características.

Os trechos selecionados para o audiovisual foram retirados das peças: As Relações Naturais; Um Parto; Duas Páginas em Branco; Eu sou vida, eu não sou morte; Certa Entidade em busca da outra; Hoje sou um; e amanhã outro; Lanterna de Fogo, mas também acrescentei frases e rubricas que considerei pertinentes, de acordo com a necessidade de criação. Escolhi textos de Qorpo Santo ou de artistas que fizeram referências a ele.

§41

Com esse procedimento, capturei as relações entre as materialidades das personagensverbetes e as imagens que encontrei desde a elaboração do primeiro roteiro até a edição da peça audiovisual. Considerei o verbete como um instantâneo fotográfico que congela uma personagem ou uma cena numa pintura, fotografia ou gravura. A personagem ou a cena pode ser um verbete, que pode ser uma imagem.

Procurei colar os textos escolhidos, incluindo diálogos das peças de Qorpo Santo. Todavia, levando em consideração que o texto teatral tende ao teatro e uma possível tentativa de transformá-lo em cinema pura e simplesmente pode esvaziar a obra.130, pretendi eliminar os diálogos e substituí-los pelas ações das personagens encontradas, sobretudo nas rubricas das peças selecionadas.

Nessa toada, a imagem que identifiquei como seminal para gerar novas associações texto-imagem foi Esqueletos que disputam um Enforcado, de James Ensor, pois ela coincide com a cena final da peça As Relações Naturais, de Qorpo Santo.

129  BAZIN, André, Teatro e Cinema. In O Cinema – Ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.p. 127. 130  BAZIN, André, Teatro e Cinema. In O Cinema – Ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.p. 130.

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qolagem: Dramaturgia e Imagem

O

§43

observar um esvaziamento de seus significados, o que relega o texto à sua forma. Este procedimento pode ser um meio para conseguir outras leituras dos textos, quer seja em outros níveis de linguagem133 (corporais, pictóricos, imagéticos etc.), quer seja dentro da própria estrutura idiomática, alcançando a dramaturgia.

objetivo deste trabalho foi reescrever a dramaturgia de Qorpo Santo pensando numa escritura adequada à linguagem 131 audiovisual , como suporte possível para reimaginá-la. Assim surgiu a idéia de imaginar um emaranhado de textos. Isto fez com que o desencadeamento dos conflitos passasse a ser um jogo de desentendimento das palavras132 e permitisse que a ação dramática conduzisse as personagens, elaborando uma lógica aleatória. A idéia de texto aleatório trouxe uma aproximação com obras do Teatro do Absurdo. Considerando que o Teatro do Absurdo roubou de suas personagens o conteúdo das falas é possível 131  Adjetivo e, no mais das vezes, substantivo, que designa (de modo bem vago) as obras que mobilizam, a um só tempo, imagens e sons, seus meios de produção, e as indústrias ou artesanantos que as produzem. O cinema é, por natureza, “audiovisual” (...). AUMONT, Jacques e MARIE, Michel, Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Campinas: Papirus, 2003. p. 25.

132  Ora, mudar a destinação da palavra no teatro é servir-se dela num sentido concreto e espacial, na medida em que ela se combina com tudo que o teatro contém de espacial e de significação no domínio concreto; é manipulá-la como um objeto sólido e que abala as coisas, primeiro no ar e depois num domínio infinitamente mais misterioso e secreto mas amplo, e não é muito difícil identificar esse domínio secreto porém amplo com o domínio da anarquia formal, de um lado, mas também, de outro com a criação formal contínua. ARTAUD, Antonin, Op. Cit., p. 95.

133  Portanto, longe de restringir as possibilidades do teatro e da linguagem, sob o pretexto de que não encenarei peças escritas, eu amplio a linguagem da cena, multiplico suas possibilidades. ARTAUD, Antonin, Op. Cit., p. 142.

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§44

arte e de literatura. Continuou a escrever ensaios muito críticos sobre as fraquezas da sociedade belga e fazia discursos em banquetes, nos quais assumia o papel de velho sábio. Em 1930 recebeu do rei da Bélgica o título de barão.136

As imagens do pintor James Ensor apareceram como fonte de inspiração para a criação das personagens e mise-en-scène. A partir do grotesco134 das figuras expostas nas pinturas de Ensor foi possível pesquisar expressões devolvendo conteúdos visuais para a obra de Qorpo Santo. Na obra do dramaturgo gaúcho, o som de palavras que o feriram135 começou a se desenvolver, guiando seus passos e colocando em cena rascunhos de personagens que buscam suas identidades ainda incompletas. Este caráter inacabado das peças de Qorpo Santo torna possível a justaposição dos textos de Qorpo Santo com pinturas – inicialmente de James Ensor. Apesar de viverem em localizações geográficas totalmente diversas, os dois artistas carregam traços em suas obras as quais podem servir de pretexto para desencadear um processo criativo.

Foi festejado inicialmente pelos simbolistas e visto mais tarde como um precursor do expressionismo e do surrealismo. Esta valorização da obra de Ensor permitiume o acesso às reproduções de imagens de suas pinturas, impressas no volume nº 88 da Coleção Gênios da Pintura137, publicado em 1968. Esta coleção de grande tiragem popularizou a obra de Ensor e de muitos outros pintores no Brasil. Apesar de ter conquistado reconhecimento público em sua época, James Ensor, assim como Qorpo Santo em Porto Alegre, também cultivava uma existência retraída e pessimista. Viveu toda a sua vida na cidade balneária de Ostende, na Bélgica, que descreve ironicamente:

Diferentemente do ostracismo de

Qorpo Santo, James Ensor:

A praia é extraordinariamente animada. É uma mistura da Bruxelas elegante e o público menos elegante de Gand, mundo variado e disparatado. Peralvilhos enflanelados arrastando-se pelo areal. Mocinhas bonitas perturbando

em seus últimos anos foi homenageado por várias sociedades de 134  O grotesco tomará todos os ridículos, todas as enfermidades, todas as feiúras. Nesta partilha da humanidade e da criação, é a ele que caberão as paixões, os vícios, os crimes,; é ele que será luxurioso, rastejante, guloso, avaro, pérfido, enredador, hipócrita; é ele que será alternadamente Iago, Tartufo, Basílio; Polônio, Harpagão, Bartolo; Falstaff, Scapino, Fígaro. HUGO, Victor, Do Grotesco e do Sublime: tradução do prefácio de Cromwell. São Paulo: Perspectiva, 1988. p. 33.

136  CHIPP, H.B., Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 107 (nota).

137  O primeiro empreendimento da Editora Abril no setor de livros, a luxuosa edição da Bíblia Sagrada em 1965, teve como sub-produto a sua edição em fascículos quinzenais que chegaram a vender 150 mil exemplares por fascículo, inaugurando uma serie de coleções, inicialmente feitas com material importado, mais tarde produzidos no Brasil e distribuídas amplamente por todo o pais. Os Gênios da Pintura, a Enciclopédia Abril, Os Pensadores e muitos outros títulos foram assim colocados ao alcance da população, com tiragens freqüentemente acima de 100mil exemplares. CAMARGO, Mario de, Gráfica: arte e industria no Brasil: 180 anos de historia. São Paulo: Bandeirantes Gráfica, 2003. p. 148.

135  “É para mim problemático – se meu corpo até esse momento era pura carne animada de um pouco de espírito, ou se já nele existia o Santo que na idade de trinta e quatro anos subiu ao Céu; o qual ao som de palavras que o feriram começou a desenvolver-se guiando meus passos”. LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 13/14.

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James Ensor – Auto Retrato com Máscaras (1899)

James Ensor - A Intriga (1890) 71


Pode-se dizer que se trata de uma ambientação teatral, devido à colocação frontal do observador em relação às figuras representadas, causando a impressão das mesmas estarem expostas como num palco de teatro, como um cenário construído de seres estáticos com expressões esvaziadas, transmitindo a noção de marionetes, que emanam um caráter de objeto. A gestualidade das figuras representadas; as imagens pintadas pressupondo acontecimentos sórdidos; a frontalidade que enrijece e torna as imagens frias, como se o movimento e a expressão, se pudessem acontecer, seriam mecânicos e inumanos.

crustáceos moles. Camponesas pantanosas, bundudas esganiçadas. Labregos ensaboando as chancas imundas.(...) Raça rapace que indispõe os corações sensíveis e macula a praia fina e matizada. Os ingleses por vezes esbofeteiam desvairadamente esses grosseirões insensíveis. 138

Ensor escreveu também dramas nunca encenados, tendo o horror e o fantástico como temas obsessivos.139 Numa das declarações que justificam sua preferência pelas máscaras, pelos esqueletos, pela temática do horror, o pintor afirmou:

O crítico italiano Renato Barilli associa Ensor a Alfred Jarry, autor de Ubu Roi, com sua “patafísica” germinal do teatro do absurdo de Ionesco e Beckett.142

“Com alegria, confinei-me no lugar solitário em que domina a máscara feita de violência, de luz e de esplendor. A máscara me diz: frescor de tons, expressão acentuada, cenário suntuoso, grandes gestos inesperados, movimentos desordenados, turbulência refinada”.140

O dramaturgo gaúcho e o pintor belga fazem, em sua obra, construções ácidas da comédia humana. Qorpo Santo e James Ensor, através de devaneios delirantes, vislumbraram suas realidades e as expressaram por meio do esvaziamento das linguagens artísticas que procuravam dominar. Qorpo Santo, provavelmente, não conheceu a obra de Jarry, nem a obra de Ensor. James Ensor tampouco conheceu Qorpo-Santo. Tanto em Ensor, como em Qorpo Santo é possível encontrar Alfred Jarry como um elo de contato. Cada um em sua realidade criou um mundo particular e paralelo, tentando manifestar um estágio de crise e de desagregação, no qual suas personalidades artísticas haviam se deparado no final do século XIX, devido ao desgaste das suas possibilidades de linguagem.

As indagações do artista sobre o significado da vida, da morte, do martírio, da incompreensão, da crueldade humana, espelham-se todas num combate sinisitro em torno da decomposição. A pintura Esqueletos que disputam um Enforcado, de 1891, traz muito da inspiração teatral de Ensor. Os trapos coloridos meramente encobrem a morte, enquanto a assistência contempla, dos bastidores, esse duelo grotesco.141

138  ENSOR, James, A Praia de Ostende, 1896. In CHIPP, H.B., op. cit. pp. 106-107. 139  p. 4.

140  141

ENSOR, James, Ensor. São Paulo: Abril Cultural, 1968.

ENSOR, James, Op. cit. p. 2.

ENSOR, James, Op. cit. p. 3-4.

142

72

ENSOR, James, Op. cit. p. 6.


James Ensor - Esqueletos que disputam um Enforcado (1891)

73


Considerasões sobre Qorpo Santo-Lanterna de Fogo

A

§45

Uma inércia do movimento permanente, uma verborragia descontínua. As personagens são engessadas em suas travessias pela cena e não conseguem se libertar daquilo que têm que falar e das ações que têm que executar. Os encontros entre as travessias cênicas destas personagens são agenciamentos143, onde seus caminhos mudam de direção.

través de sua Ensiqlopedia ou seis mezes de uma Enfermidade, Qorpo Santo acreditava que teria condições de propagar suas idéias sobre um exemplo totalmente fora do registro da realidade gaúcha.

Numa obra dramatúrgica, há linhas de articulação ou segmentos. Trata-se de uma multiplicidade que compõe organismos significantes, sujeitos que circulam deixando rastros de maior ou menor intensidade.

A experiência de Qorpo Santo frente aos seus fracassos pessoais e literários leva a pensar numa dramaturgia que nunca se realizará enquanto uma voz presa no papel. Qorpo Santo, um anti-herói da dramaturgia, pode ser também a constatação de que a construção dramatúrgica está na busca constante de simplicidade.

§46

Ao levantar essa suposição, é possível presumir uma destruição de idealizações dramatúrgicas, as quais procuram estruturar roteiros mirabolantes. Trata-se de uma tarefa que não se completa. A palavra impressa, para o teatro, é morta. A fala devolve a alma da palavra.

Tendo realizado a peça audiovisual Qorpo Santo-Lanterna de Fogo foi possível perceber um Qorpo Santo transcriado através de imagens, tendo como pano de fundo o trabalho de reconstrução de sua dramaturgia. No audiovisual procurei recriar um autor paródico e sem nenhuma consciência de sua insignificância, que parte em busca de suas

A dramaturgia de Qorpo Santo está repleta de conflitos que paradoxalmente não são dramáticos, ou por outra, revelam-se essencialmente dramáticos, onde os conflitos são significantes esvaziados de significado.

143  Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix, Introdução: Rizoma. In Mil Platôs (vol. 1). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. pp. 11-12.

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personagens. Recuperei uma variedade de cenas de suas peças e, em suas entrelinhas, remetendo à lógica do autor, organizei um diálogo entre texto e imagem, onde as imagens são um suporte para significar as diversas referências feitas no conteúdo da narrativa audiovisual.

C-S.- (...)Eu, porém, escrevo que penso e medito para faze-lo, que tenho necessidade de raciocinar e discorrer, que preciso estudar os fatos, conhecê-los, escolher os termos com que mais convém expressar as idéias..., enfim, compor, não um bilhete ou uma carta, mas uma comédia, romance, tragédia, um discurso sobre moral, política, religião ou alguma outra ciência, não posso nos momentos em que estudo estar sendo interrompido, nem mesmo nos em que penso!144

As peças de Qorpo Santo remontam temáticas e estruturas muito semlhantes entre si, o que permitiu a utilização de diversos trechos de sua obra para compor uma única peça dramatúrgica. Poderia reconhecer aí uma falta de originalidade. No entanto enxerguei uma coerência no que diz respeito à estrutura das peças teatrais e à sua composição de personagens. O caráter autobiográfico da obra de Qorpo Santo reside na dificuldade de tratar de temas diversos. Essa auto-referência pode ser avaliada como uma forma de auto-reflexão sobre temáticas desenvolvidas constantemente em suas peças.

§47

Na peça audiovisual Qorpo SantoLanterna de Fogo, Qorpo Santo caminha por um museu virtual, onde se sucedem imagens que não podia deixar de pintar, de pessoas que considerava medíocres. Seu pensamento fala nas locuções dos textos. As vozes subdividemse nas falas tiradas de textos de Qorpo Santo, quando se trata de um pensamento do próprio autor e em trechos selecionados de A noite145, de Antõnio Álvares Pereira Coruja146 e de As Amargas Não de Álvaro Moreyra.

Após o estudo das peças, do entendimento de alguns de seus atos e de quadros realizados nesse trabalho, foi possível perceber que o formato do roteiro, do audiovisual e de sua montagem poderiam construir um fio condutor, uma linha que costurasse os retalhos de uma cortina que se desenrola conforme Qorpo Santo percorre suas divagações.

Qorpo Santo – Lanterna de Fogo pretende mostrar uma colagem que retoma algumas personagens recorrentes das peças teatrais de

O autor pensa em voz alta, numa auto-observção que engendra a personagem Qorpo Santo. Suas digressões desenrolamse, enquanto ele percorre uma espécie de corredor de divagações sobre a escrita e sobre o funcionamento de seu pensamento. Em diversos trechos de suas peças aparece um pensar-falando que explica seu processo de escritura, possível de ser exemplificado por C-S, personagem da peça Lanterna de Fogo:

144  A Impossibilidade da Santificação o A santificação Transformada. Ato 2º - Cena 1ª. In LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 301.

145  CORUJA, Antônio Álvares P., Antigualhas, reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: União de Seguros Gerais, 1981. p. 27. Apud PESAVENTO, Sandra J., Memória Porto Alegre: espaços e vivências. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999. 146  Literato brasileiro que, juntamente com o Marquês de Marica, inspirou Qorpo Santo em sua Reforma Ortográfica. Cf. ESPÍRITO SANTO, Denise (org.), Qorpo Santo - Miscelânea Quriosa. Rio de Janeiro Casa da Palavra, 2003. p.119.

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Qorpo Santo. As falas de Qorpo Santo colocadas em off foram escolhidas das personagens Brás, da peça Certa Entidade em busca da outra e Robespier, da peça Lanterna de Fogo que juntas podem sintetizar a personagem Qorpo Santo construída na narrativa audiovisual.

seqüências. Assim, as seqüências podem parecer episódicas. As visões das pinturas de Ensor aparecem como entreatos narrativos. Pontos que balizam as travessias entre um acontecimento e outro e assim o caminho se compõe. Por mais que Qorpo Santo se afaste de seu caminho inicial, a linearidade frágil não se rompe.

§48

A peça teatral de Qorpo Santo Lanterna de Fogo é uma busca da lanterna de Diógenes. A personagem Robespierre procura uma lanterna de fogo, presente que lhe fez seu pai quinze dias antes de morrer. Esta busca é pretexto para um emaranhado dramaturgico: discursos sobre a natureza do homem; conversas com demônios e com mortos; digressões sobre problemas sexuais; invasão do cenário por ratos, galinhas, gatos e frangos.147

Qorpo Santo está em sua casa, dormindo no seu quarto como dentro da barriga de uma baleia que o protege. Dentro deste casulo, o comodismo da página escrita deixa o autor insatisfeito. Ele parte em busca de pessoas vivas, mas Porto Alegre está morta. Os vivos são suas personagens que se encontram no emaranhado dos galhos das árvores que transporta Qorpo Santo para espaços simultâneos: a Guerra do Paraguai; as realidades das peças teatrais que ele pretende escrever; a história do rapaz que passa a derramar lágrimas e que freqüenta a casaputeiro onde se encontra com Qorpo Santo, o qual é devorado pelas mulheres.

A peça audiovisual Qorpo Santo – Lanterna de Fogo realizada para esta tese não quer ser um documentário sobre o autor estudado. Procura mostrar a partir de um fio condutor centrado no autor, como personagem, diversos aspectos da vida de um herói individual. É possível considerar a peça audiovisual como sendo uma narrativa linear. Apesar de sua linearidade, é possível concordar que, Qorpo Santo – Lanterna de Fogo desdobra o fio condutor em seqüências de narrativa quase autônoma. É bom frisar que a linearidade da narrativa está na presença da personagem protagonista que nunca é abandonada não permitindo que o fio se desenrole de maneira autônoma e se estruturem seqüências independentes da narrativa central.

O rapaz que aparece na seqüência 5 (vide Anexo 1) foi inspirado na personagem Ferrabrás de Certa Entidade em busca da outra, que aparece como filho de Brás, mas que pode ser a face jovem de Qorpo Santo, ou a projeção de Qorpo Santo sobre a idéia de seu filho. As mulheres que aparecem nesta seqüência são aquelas da peça As Relações Naturais que freqüentam a casa que não se sabe se também é prostíbulo. Mulheres das quais Qorpo Santo ficou afastado no período de seu surto. É interessante perceber que esta peça de Qorpo Santo assemelha-se a Os sete Gatinhos, onde Nelson Rodrigues também mostra uma

A narrativa audiovisual de Qorpo Santo – Lanterna de Fogo apóia-se numa linha que liga uma seqüência à outra. Esses fios de linearidade são tênues; são travessias espaciais entre as 147  “A Lanterna de Fogo”: Qorpo Santo revisto em montagem alternativa. In Correio do Povo - 15/02/1979.

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família, apodrecendo em cena, entre o lar e o bordel. Qorpo Santo, em As Relações Naturais, mas também em Mateus e Mateusa mostra uma sátira à família, à paz doméstica148, numa inversão da comédia realista.

pode aproximá-lo da fábula com uma conotação histórica. Assim, o que se vê em Qorpo SantoLanterna de Fogo sintetiza um modo de pensar um autor marcado pelo meu ponto de vista. Uma visão artística que compôs a peça audiovisual de forma arbitrária, selecionando elementos que pudessem configurar uma espécie de Almanaque do Qorpo Santo, com objetivos de convidar à investigação de temas relacionados à dramaturgia e à sua história, buscando resgatar um autor brasileiro que pode dialogar com a dramaturgia universal.

Esta sátira apresenta uma visão da decadentista149 da sociedade riograndense. A obra de Qorpo Santo é produzida num período em que aquela região mais parecia um grande caldeirão de água quente prestes a estourar, como de fato estourou150. O Império Tropical de D. Pedro II começava a declinar. Qorpo Santo escreveu suas peças em 1866, um ano após o início da Guerra do Paraguai e a situação de desagregação da época passou a ser uma das marcas que o desgaste de uma Guerra violenta poderia causar nas instituições gaúchas.

§49

Qorpo Santo tinha o gosto de deformar as palavras o que pode ser um convite à criação de simulacros provenientes das máscaras grotescas da Commedia dell’Arte. Essa forma de pensar o Qorpo Santo a partir de uma visão recortada pode induzir a estereótipos sobre a obra do autor. A minha visão sobre Qorpo Santo reside na necessidade de fazer entender como a linguagem teatral se afasta do realismo. Ao expor na tela um universo estranho à realidade cotidiana, procurei mostrar personagens caricatas, inspiradas nos bufões, nas máscaras da commedia dell’arte, no circo-teatro e isso foi possível encontrar nas telas de James Ensor e outras imagens similares.

Ao centralizar uma narrativa sobre uma personagem que viveu em época e região especificos, o audiovisual não assume o comprmisso de reconstituição histórica. Dessa maneira, o fato de Qorpo Santo trazer para o centro da narrativa temáticas e argumentos recorrentes de sua obra e também da própria história da Província de Rio Grande do Sul, confere ao audiovisual um aspecto ficcional que 148  FARIA, João Roberto, Santo: As Formas do Cômoco. In O Teatro na Estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e estrangeira. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998. p. 83.

149  A localização estratégica do movimento decadentista, nas duas últimas décadas do século XIX aponta para o sentimento crepuscular que marca sua estética, derivada da situação aflitiva e agônica experimentada pela sociedade finissecular, expressa por meio de encenações terminais, apatia e ceticismo, que traduzem fantasias cerebrais doentias e narcisísticas, eroticamente inspiradas na putrefação e na morte, refletindo fragmentos de esgotamento moral herdados do spleen baudelairiano. FARIA, Flora de Paoli, Decadentismo como Prefácio para a Vanguarda. In WATAGHIN, Lucia (org.), Brasil & Itália – Vanguardas. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. pp. 253-254.

Um autor brancaleônico parte em busca de sua imortalidade, marcha em busca do sonho de ter seu nome impresso em letras tipográficas e leva com ele um grupo não muito comum de indivíduos recuperando a imagem de atores de uma peça que jamais se viu, que

150  SCHWARCZ, Lilia Moritz, As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 302.

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talvez nem mesmo existiu151. A imagem de uma trupe reunida que pudesse nos dar a idéia de uma realidade difícil de ser recomposta em seus movimentos e sons. Uma legião de entes injustiçados, espectros não muito humanos pertencentes a uma galeria de tipos esquisitos compõem a utopia qorposantense de conquistar uma dramaturgia bem feita. Uma realização de poder, mas que também se mostra como uma ilusão e desloca a conquista da utopia para uma busca constante daquilo que não pode existir senão no ideal.

pertinente nas temáticas tratadas no conteúdo da narrativa audiovisual e que, de algum modo, trazem uma forma a ser considerada como possível fonte de investigações, apesar de sua natureza ficcional. Sob o trecho final de Overtüre 1812, de Tschaikowsky, a Ensiqlopedia de Qorpo Santo aparece em chamas, numa fusão com um busto pegando fogo. A idéia de queimar a cabeça de um autor do Século XIX, que pode ser Qorpo Santo, surgiu da cabeça em chamas da personagem Robespier, da peça Lanterna de Fogo:

Uma narrativa simples e calcada em moldes reconhecidos como soluções narrativas eficientes possibilita que se garanta uma universalidade no tratamento temático, onde o tempo histórico se transforma num pano de fundo para a narrativa, deixando de ser elemento indispensável para complementar a história narrada. Assim a narrativa de Qorpo Santo – Lanterna de Fogo poderia ser localizada em outro período histórico, como na montagem da Companhia de Bonecos Urbanos que traz uma peça de Qorpo Santo para o Século XXI, numa experiência sem foco-lógico que retoma a formação de grupos de marginais das grandes cidades contemporâneas.

Robespier: (...) Tenho esta cabeça em chamas e, ao ver-vos, sinto mais forte o intenso fogo que nela lavra!(...)152

Os livros queimados não são a fogueira de Fahrenheit 451, pois, apesar da destruição do texto dramático escrito ser uma das prerrogativas para a descoberta do dizer teatral, os livros pegando fogo são a vivificação das escrituras qorposantenses. O fogo que queima o busto e a obra podem ser de um autor qualquer transformando as ruínas da dramturgia morta numa nova dramaturgia. Das palavras impressas às palavras que voam nas falas das personagens do autor de Eu sou vida; eu não sou morte.

§50

Talvez seja possível cartografar um mapa do trajeto percorrido pela personagem Qorpo Santo em sua jornada particular. Essa definição territorial e temporal, por onde se desenvolve a ação, resgata algumas imagens, onde se incluem personagens, objetos, intrigas, paisagens, sons que se colocam de modo

152  Lanterna de Fogo. Ato 2º - Cena 2ª. In LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 184.

151  LIBERA, Alain, Pensar na Idade Média. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 61.

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CERTA ENTIDADE EM BUSCA DE OUTRA - QORPO SANTO

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h t t p : / / g i r a f a m a n i a . c om . b r / m on t a g e m / fotografo-valerio-vieira.htm - 28/03/2007.

Imagens de James Ensor http://www.faap.br/hotsites/hotsite_james/ exposicoes.htm em 19/01/06 http://www.artsconnected.org/artsnetmn/ identity/ensor5.html em 06/07/06 http://home.hetnet.nl/~cgvanderlaan/ensor. html em 06/07/06 http://www.beauharnais.sk/painting.htm 06/07/06

-

em

http://www.artunf ramed.com/james_ensor. htm em 06/07/06 http://www.johngoto.org.uk/grand-parade. html em 06/07/06

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ANEQSOS


Aneqso I

Argumento para Pesa Audiovisual

Qorpo Santo, Lanterna de Fogo 1. vou levantar-me; qontinuÁ-lo; e talves esqrever em um morto: Qorpo Santo dorme em seu quarto, uma espécie de casulo, uma espécie de cobertor do ser humano, em que este fica embutido com todos os seus acessórios, protegendo e resguardando o seu rastro assim como a natureza guarda um fóssil. Um espelho reflete o rosto de Qorpo Santo. Ele dorme em seu quarto, iluminado pela luz de velas, cercado por livros, objetos e imagens de valor. Com o avançar da noite seu sono passa a ser acometido por um sonho delirante. Acorda sobressaltado. Em estado de vigília enxerga à sua frente rostos de um sonho recente. Sonho com personagens, pessoas conhecidas suas das ruas de Porto Alegre. Deformados pela refração de seu olhar, quem sabe aqueles rostos podem transformar-se em personagens para uma comédia que está para escrever. Enxerga à sua frente uma série de máscaras derretendo. Uma pintura hedionda de seu sonho recente. Projeções de Qorpo Santo nas paredes do quarto, sombras de personagens grotescas; deformadas pelo olhar sonolento: Ora homem; ora mulher; ora velha; ora moço; ora criança; ora feio; ora bonita. Cada qual é ocupado naquilo para que Deus o destina; umas para os ofícios; outros para a pena; a palavra e mesmo a espada! Alguns para quais pássaros, andarem sempre pelo ar, e a pousar de ramo em ramo ou de árvore.

As imagens aterrorizantes desaparecem sob seu olhar angustiado. Quem sabe aquelas figuras sejam personagens para uma comédia que está para escrever? Sujeitos sem autonomia suficiente para existirem fora do controle dos fios que ele manipulará em seus escritos com falas isoladas, organizadas de modo arbitrário numa exposição das mazelas da província gaúcha; um instrumento de denúncia! Qorpo Santo levanta-se, para começar a escrever sua comédia. Ao ouvir os sinos, calça os chinelos. Sonhou não sabe com o quê. Anda em direção à luz que emana da janela. Ele sai do quarto. Aproxima-se de uma mesa. Encontra sobre a mesa moedas, livros, tigelinhas, talheres, caixinhas e 87


estojos. Confere uns papéis; toma uma pitada de rapé, um gole de café; pega numa pena e começa a escrever. Em devaneio observa os objetos sobre a mesa. Caindo em si, levanta-se da escrivaninha, bate na cabeça, calça os chinelos, vai até sua mesa de trabalho. Toma uma pitada de rapé, logo depois de um gole de café, pega seu casaco e seu chapéu; abre a porta de casa e sai o mais jocosamente que é possível. Leve o diabo esta vida de escritor! É melhor ser comediante! Estou só a escrever, a escrever; e sem nada ler; sem nada ver. Estou aqui me incomodando! Incomodado por não encontrar no papel as personagens de seu sonho, resolve sair para caminhar pelas ruas de Porto Alegre à procura daqueles rostos de seu sonho.

2. uma sidade...morta Sai para caminhar pelo Porto Alegre como que perseguindo aqueles rostos de seu sonho. Um homem que está na vida pública e que há muito reside em Porto Alegre e que, além disso, costuma quase sempre movimentar-se nas cercanias dos prédios da administração pública. As suas idas e vindas se dão a intervalos regulares, em uma área limitada, na qual se movimentam pessoas preocupadas com os seus negócios, de natureza similar aos dele1. Porém, não encontra uma alma viva nas ruas. Porto Alegre, o centro de todas as atividades públicas da Província, sofre na carne, diretamente, os efeitos da Guerra do Paraguai. Numa atmosfera pesada e sombria, a vida social de Porto Alegre é a de uma cidade...morta. No Beco do Bota Bica as casas de diversões estão de portas cerradas, seus bailes e recreativas têm salões desertos, rareia cada vez mais a freqüência a seus cafés e confeitarias.2 Perdido nas cercanias da cidade, chega a uma bifurcação. Hesita em qual dos dois caminhos tomar. Prossegue por um deles. Depara-se com uma árvore, olha para o chão, depois seu olhar sobe pelo tronco, sobe para os galhos, perdendo-se nas suas ramificações. Olha para as copas das árvores, começa e reconhecer as figuras de seu sonho. Nesse caso, se imaginarmos que as relações pessoais de cada uma são equivalentes em número, também serão iguais as probabilidades de que cada uma encontre o mesmo número de pessoas conhecidas.

1 BENJAMIN, Walter, O Flâneur. in A Paris do Segundo Império em Baudelaire. KOTHE, Flávio R. (org.), Walter Benjamin – Sociologia. Col. Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Editora Ática, 1985. p. 72. 2

FERREIRA, Athos Damasceno, Palco, Salão e Picadeiro. Porto Alegre : Globo,1956. p.96-97.

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3. a gera Qorpo Santo acorda às margens de um rio. Está isolado em uma Porto Alegre de sobrecenho carregado. Não há porque escrever peças teatrais em uma época sombria como aquela. Como pode um homem escrever personagens que não tenham ligação com a situação por que passa o Império do Brasil? Um outro sonho: um Rei numa batalha que combate alguns vasos de guerra com bandeira de uma Nação inimiga! Neste sonho Qorpo Santo enxerga o segundo quadro de batalha exposto por Vitor Meirelles que foi A Batalha de Riachuelo (1872), um dos feitos mais brilhantes de nossa marinha na guerra contra o Governo do Paraguai.3 Neste sonho o Império será salvo por um homem de mente privilegiada que descobriu que os corpos não são mais que os invólucros de espíritos, ora de uns, ora de outros. Este homem pode sonhar que a Guerra havia acabado e, habitando o corpo do Imperador, repelir qualquer tentativa de invasão estrangeira, a fim de que não sofra a cidade o menor mal!

4. eu sou a vida; eu nÃo sou a morte. Qorpo Santo sonha que em 1867 a Guerra do Paraguay estava concluída; que estava feita a paz. Seu corpo está composto de pensamentos de modo que suas memórias começam a caminhar por um museu imaginário, onde se sucedem imagens de suas comédias e tragédias: Eu Sou a vida; Eu não sou a morte. Duas páginas em Branco Lanterna de Fogo Espelho de fogo Mateus e Mateusa A Impossibilidade da antificação: Comédia, romance e reflexões!........ Uma pitada de rapé Um Credor da Fazenda Nacional, Um Assovio Um parto Os homens enfraquecidos Os retratos encantados 3 DUQUE-ESTRADA, Luiz Gonzaga, A Arte Brasileira. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1995. p 174.

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5. se a palavra qorpo-santo foi-me infiltrada em tempo qe vivi distante das mulheres Ainda esta noite Qorpo Santo teve um outro sonho, e que sonho? Que havia sido devorado por fúrias. De fronte a uma casa fora do tempo, um rapaz, completamente separado do mundo das mulheres, levanta o olhar, faz trinta mil caretas e passa a derramar lágrimas por espaço de cinco minutos. O rapaz é impelido para o mundo das mulheres. Do lado de fora ele tenta apontar um revólver ou uma arma qualquer, que estava perto de seu pé. Derruba o revólver no chão. O rapaz se despede das mulheres, com um ar de desencanto. Qorpo Santo retorna ao seu lar: um bordel. Encontra três ou quatro mulheres, umas em saias, outras com os cabelos desgrenhados; pés no chão etc. Moças, que, em troca de instantes de prazeres, exigem para matar a fome que as devoram, bifes com batatas regados a vinho intragável. Elas habitam o bordel, são a família de Qorpo Santo. O rapaz, seu filho Ferrabrás. Uma delas insinua-se para ele. Outra o puxa por um braço. Outra o abraça por trás. Qorpo Santo, dominado por elas, é jogado de um lado para outro como um boneco inerte, até que cai de joelhos. Uma delas mostra-lhe o punho. Qorpo Santo de joelhos, suplica com muita humildade. ELAS dando uma grande gargalhada. UMA batendo no ombro da outra. OUTRA apontando com o mostrador4. 4

Ato Segundo - Cena Segunda da peça As Relações Naturais, pp. 73-74.

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As mulheres vão cercando o homem que se sente sufocado por vozes que vão se multiplicando em falas esparsas.

6. lanterna de fogo Qorpo Santo senta e escreve: O mordomo da casa que Qorpo Santo habita há 21 dias chama-se Bordini, é talvez irmão de um acionista do banco da Província de S. Pedro. O lar pode ser um hospício. Fora do Sanatório a moral é totalmente descolada do mundo lá fora. A tensão do mundo é racional e a do mundo lá fora é ‘louca’. Sob badaladas de sinos e estampidos de canhões, a cabeça de Qorpo Santo está em chamas; As Obras Completas de Qorpo Santo, em grossos e altos volumes pegando fogo. Há um poeta esquecido demais no Brasil. Chamou-se José Joaquim de Campos Leão Qorpo Santo. Um amigo que o foi visitar no hospício, perguntou-lhe se tinha escrito alguma coisa nova. Qorpo Santo responde: Não, nada. Não é possível. Vontade não me falta. Mas, quando as palavras vão subindo, prontas para sair, começam essas gritarias, essas alucinações...- largo a pena. Não me aborreço, não me queixo: - coitados! São doidos!5

5

MOREYRA, Álvaro, As amargas, não... : (lembranças). Rio de Janeiro: Lux, 1954. pp. 126-127.

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Aneqso II

Qorpo Santo Lanterna de Fogo qolagens

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Qolagem 1 – Emaranhado de Máscaras

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Qolagem 2 – Teatralidade e Personagens

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QORPO SANTO – LANTERNA DE FOGO Storyboard final Seqüências de imagens e sons para vídeo Imagem

Som

Abertura

Trilha: Overture 1812 (Tchaikowsky)

Seq 1

Homem deitado numa cama. No meio de um sonho

+ detalhes quarto QS

Trilha: Overture 1812 (Tchaikowsky)

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(Acorda sobressaltado.) Texto off (QS): Não há uma só noite, em que deitando-me, logo depois não apareça, aos pés desta cama, a imagem ou figura de um morto... (a câmera detalha, através de uma panorâmica em pintura de James Ensor.)

Trilha: Overture 1812 (Tchaikowsky)

Texto off QS: Ora homem; ora mulher; ora velha; ora moço; ora criança; ora feio; ora bonita. Cada qual é ocupado naquilo para que Deus o destina; umas para os ofícios; outros para a pena; a palavra e mesmo a espada! Alguns para quais pássaros, andarem sempre pelo ar, e a pousar de ramo em 98


ramo ou de árvore. E assim vivendo qual natureza concebi um interessante pensamento sobre produções naturais e intelectuais, de que agora não tenho a precisa recordação para narrar.

QS levantando

Fusão de trilha com sons de SINOS

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Seq. 2 QS acorda, se arruma e sai pela cidade.

SINOS Texto off QS – E assim vivendo qual natureza concebi um interessante pensamento sobre produções naturais e intelectuais, de que agora não tenho a precisa recordação para narrar. São hoje 14 de maio de 1866. Vivo na cidade de Porto Alegre, capital da Província de S. Pedro do Sul; e para muitos, Império do Brasil...

SINOS

SINOS

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SINOS

SINOS

Locutor: Com o início da Guerra do Paraguai, Porto Alegre está de sobrecenho carregado. É uma cidade... morta. Som em BG de um assovio qualquer Locutor: No Beco do Bota Bica as casas de diversões estão de portas cerradas, seus bailes e recreativas têm salões

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desertos, rareia cada vez mais a freqüência a seus cafés e confeitarias(...).

Um assovio Fusão com trilha Overtüre 1812

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Trilha: Overtüre 1812

Locutor: Teatro? Circo? Música? Dança? Quem é que vai pensar nisso? Ninguém!

Locutor: Um homem que viveu em retiro por espaço de um ano ou mais, onde produziu numerosos trabalhos sobre todas as ciências, compondo uma obra de mais de 400 páginas em quarto, a que denomina Ensiqlopedia ou Seis Meses de uma Enfermidade.

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Seq 3

Rei-Ministro/Guerra (foto/pintura/vídeo) Trilha em bg: Overtüre 1812 QS na beira do rio

(Tchaikowsky).Trecho da Marselhesa durante toda a seqüência Texto off QS: Sonhei em 1867 que a Guerra do Paraguay estava concluída; que estava feita a paz;...

Texto off: REI - Aproximam-se de nossas praias alguns vasos de guerra com bandeira de uma Nação inimiga! É preciso repelir a audaz invasão! É preciso darem-se as mais terminantes ordens a fim de que não sofra a cidade o menor mal!

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Texto off QS: Não temais, Senhor saiba V. M. de uma grande descoberta no Império do Brasil; 1.ª - Que os nossos corpos não são mais que os invólucros de espíritos, ora de uns, ora de outros; que o que hoje é Rei como V. M. ontem não passava de um criado, ou vassalo meu, mesmo porque senti em meu corpo o vosso espírito, e convenci-me, por esse fato, ser então eu o verdadeiro Rei, e vós o meu Ministro! 2.ª - Que pelas observações filosóficas, este fato é tão verídico, que milhares de vezes vemos uma criança falar como um general; e este como uma criança.

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Eu, pois, ontem estava tão acima de Vossa Majestade, porque sentia em mim o dever de cumprir uma missão Divina.

Locutor: O autor de tais descobertas foi um homem, predestinado. Pipocam personagens ao redor de QS

A sua cabeça era como um centro, donde saíam pensamentos, que voavam a compor Tragédias; Comédias; poesias sobre todo e qualquer assunto; arranjamentos ortográficos de economia de tempo e trabalho;

Trilha em bg: Overtüre 1812 (Tchaikowsky).Trecho da Marselhesa; fusão com trecho mais calmo/passagem p/ próxima seqüência

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Seq 4

Cenas das peças de QS

Texto off QS: Se o meu corpo está atualmente composto de pensamentos de modo que eu não lhe toco que não saia algum personagem – de que estará composta a minha alma?

Ó tipógrafos! Ó revisores! Por que e para que – mudais vós palavras e letras em meus escritos? Aumento de palavras, supressão e substituição de letras – quem pode assegurar que escreve certo? Alguém lendo um escrito meu com as regras ortográficas que estabeleci, perguntou-me se eu padecia dos nervos. Nervo, é moléstia do corpo.

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Texto off QS: Qual a razão por que eu não posso escrever com a ortografia que aprendi? É simples: os crimes horrorosos de que fui vítima em 1862. Depois de haver lutado comigo mesmo. Suprimir, por exemplo, o U da palavra Que. As minhas obras, quase só eu as entendo tantas foram as inutilidades por mim suprimidas! Ainda hei de escrever uma comédia com o título – As verdadeiras relações naturais e suas agradáveis conseqüências; e depois – outra com o seguinte – Hoje sou um e amanhã sou outro. Trilha: durante a lista de peças, o volume vai abaixando, ou aumentando conforme as imagens e ao fundo pode-se ouvir um assovio)

Texto off QS: Hei de ainda de escrever

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as seguintes comédias e trajedias: Eu Sou a vida; Eu não sou a morte. trilha Duas páginas em Branco trilha Lanterna de Fogo Espelho de fogo Mateus e Mateusa

trilha

A impossibilidade da Santificação: Comédia, romance e reflexões!........ trilha Uma pitada de rapé Trilha

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Um Credor da Fazenda Nacional,

Um Assovio Um parto

Os homens enfraquecidos Os retratos encantados

trilha.

Seq 5

Imagens da personagem Contimpina, Brás,

Trilhas: Overture 1812(trechos

Mulheres:bordel/casa (foto/vídeo)

folclóricos); Tango; música cômica Texto off QS: O meu rapaz, o meu Ferrabrás; o meu contimpina, que de dia dorme, e de noite maquina! Oh! esse, nem por sombras me quer aparecer

(ao fundo parede amarela.)

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Locutor: O RAPAZ passa a derramar lรกgrimas por espaรงo de cinco minutos.

Trilha: Overture 1812(trechos folclรณricos)

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Trilha: Tango

Texto off QS: Se a palavra corposanto foi-me infiltrada em tempo que vivi completamente separado do

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mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma palavra hei sido impelido para esse mundo.(...)

Trilha: música cômica

Texto off QS: Mulheres! Que fazeis aqui? Que quereis nesta casa?Tenho esta cabeça em chamas. Ainda esta noite tive um sonho, e que sonho? Que havia sido devorado por estas fúrias que diante de mim vejo.

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Locutor: Moças, que, em troca de instantes de prazeres, exigem para matar a fome que as devoram, bifes com batatas regados a vinho intragável.

Seq 6

Poeta esquecido (vídeo/ensor) Trilha: Música cômica em fusão com Overture 1812(trecho final)

Texto off QS: O mordomo deste hospício chama-se Bordini, é talvez irmão de um acionista do banco da

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Província de S. Pedro. Um e outro ainda não tive a honra de ver nesta casa em que habito há 21 dias.

FERRABRÁS: Olhe que lhe dou com a bengala! BRÁS: Acomodem-se! Senão eu lhes dou um cachação! Trilha: Overture 1812 (trecho final) Locutor : Há um poeta esquecido demais no Brasil. Chamou-se José Joaquim de Campos Leão Qorpo Santo. Um amigo que o foi visitar no hospício, perguntou-lhe se tinha escrito alguma coisa nova.

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off QS - Não, nada. Não é possível. Vontade não me falta. Mas, quando as palavras vão subindo, prontas para sair, começam essas gritarias, essas alucinações...- largo a pena. Não me aborreço, não me queixo: - coitados! São doidos! Fechamento Trilha: Overture 1812 (trecho final)

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Qorpo Santo – Lanterna de Fogo Texto para Loqusão

Locutor: Com o início da Guerra do Paraguai, Porto Alegre está de sobrecenho carregado. É uma cidade... morta.

SEQ 1 Texto off (QS): Não há uma só noite, em que deitando-me, logo depois não apareça, aos pés desta cama, a imagem ou figura de um morto...

No Beco do Bota Bica as casas de diversões estão de portas cerradas, seus bailes e recreativas têm salões desertos, rareia cada vez mais a freqüência a seus cafés e confeitarias(...).

Ora homem; ora mulher; ora velha; ora moço; ora criança; ora feio; ora bonita. Cada qual é ocupado naquilo para que Deus o destina; umas para os ofícios; outros para a pena; a palavra e mesmo a espada!

+ trilha

Alguns para quais pássaros, andarem sempre pelo ar, e a pousar de ramo em ramo ou de árvore. E assim vivendo qual natureza concebi um interessante pensamento sobre produções naturais e intelectuais, de que agora não tenho a precisa recordação para narrar.

Teatro? Circo? Música? Dança? Quem é que vai pensar nisso? Ninguém! + trilha

+ trilha

Um homem que viveu em retiro por espaço de um ano ou mais, onde produziu numerosos trabalhos sobre todas as ciências, compondo uma obra de mais de 400 páginas em quarto, a que denomina Ensiqlopedia ou Seis Meses de uma Enfermidade.

trilha SEQ 2 SINOS

SEQ 3

Texto off QS – São hoje 14 de maio de 1866. Vivo na cidade de Porto Alegre, capital da Província de S. Pedro do Sul; e para muitos, Império do Brasil...

Trilha: allons enfant de la patrie... : allons enfant de la patrie... une manif le samedi ça m’arrangerai.

Sonoplastia de cidade

Texto off: REI - Aproximam-se de nossas praias alguns vasos de guerra com bandeira de uma Nação inimiga! É preciso repelir a audaz invasão! É

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preciso darem-se as mais terminantes ordens a fim de que não sofra a cidade o menor mal!

QS: Sonhei em 1867 que a Guerra do Paraguay estava concluída; que estava feita a paz;...

QS - Não temais, Senhor saiba V. M. de uma grande descoberta no Império do Brasil; 1.ª - Que os nossos corpos não são mais que os invólucros de espíritos, ora de uns, ora de outros; que o que hoje é Rei como V. M. ontem não passava de um criado, ou vassalo meu, mesmo porque senti em meu corpo o vosso espírito, e convenci-me, por esse fato, ser então eu o verdadeiro Rei, e vós o meu Ministro!

+ trilha SEQ 4 QS: Os crimes horrorosos de que fui vítima em 1862. Depois de haver lutado comigo mesmo. Suprimir, por exemplo, o U da palavra Que. As minhas obras quase só eu as entendo tantas foram as inutilidades por mim suprimidas!

2.ª - Que pelas observações filosóficas, este fato é tão verídico, que milhares de vezes vemos uma criança falar como um general; e este como uma criança. Eu, pois, ontem estava tão acima de Vossa Majestade, porque sentia em mim o dever de cumprir uma missão Divina.

Ainda hei de escrever uma comédia com o título – As verdadeiras relações naturais e suas agradáveis conseqüências; e depois – outra com o seguinte – Hoje sou um e amanhã sou outro. Eu Sou a vida; Eu não sou a morte.

trilha

trilha

Locutor: O autor de tais descobertas foi um homem, predestinado. A sua cabeça era como um centro, donde saíam pensamentos, que voavam a compor Tragédias; Comédias; poesias sobre todo e qualquer assunto; arranjamentos ortográficos de economia de tempo e trabalho;

Duas páginas em Branco

trilha Lanterna de Fogo

QS: Se o meu corpo está atualmente composto de pensamentos de modo que eu não lhe toco que não saia algum personagem – de que estará composta a minha alma?

Espelho de fogo Mateus e Mateusa

trilha

+ trilha

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QS: O meu rapaz, o meu Ferrabrás; o meu contimpina, que de dia dorme, e de noite maquina! Oh! esse, nem por sombras me quer aparecer

A impossibilidade da Santificação: Comédia, romance e reflexões!........ trilha Uma pitada de rapé

QS: Se a palavra corpo-santo foi-me infiltrada em tempo que vivi completamente separado do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma palavra hei sido impelido para esse mundo.(...)

Trilha Um Credor da Fazenda Nacional, Um Assovio

+ trilha

Um parto Os homens enfraquecidos

Texto off QS: Mulheres! Que fazeis aqui? Que quereis nesta casa?Tenho esta cabeça em chamas. Ainda esta noite tive um sonho, e que sonho? Que havia sido devorado por estas fúrias que diante de mim vejo.

Os retratos encantados Alguém lendo um escrito meu com as regras ortográficas que estabeleci, perguntou-me se eu padecia dos nervos. Nervo, é moléstia do corpo.

+ trilha

Qual a razão por que eu não posso escrever com a ortografia que aprendi?

Locutor: Moças, que, em troca de instantes de prazeres, exigem para matar a fome que as devoram, bifes com batatas regados a vinho intragável.

Ó tipógrafos! Ó revisores! Por que e para que – mudais vós palavras e letras em meus escritos? Aumento de palavras, supressão e substituição de letras – quem pode assegurar que escreve certo?

+ trilha SEQ 6

+ trilha

FERRABRÁS: Olhe que lhe dou com a bengala!

SEQ 5

BRÁS: Acomodem-se! Senão eu lhes dou um cachação!

Locutor: O RAPAZ passa a derramar lágrimas por espaço de cinco minutos.

QS: O mordomo deste hospício chama-se Bordini, é talvez irmão de um acionista do banco da Província 119


de S. Pedro. Um e outro ainda não tive a honra de ver nesta casa em que habito há 21 dias. locutor : Há um poeta esquecido demais no Brasil. Chamou-se José Joaquim de Campos Leão Qorpo Santo. Um amigo que o foi visitar no hospício, perguntou-lhe se tinha escrito alguma coisa nova. + trilha QS - Não, nada. Não é possível. Vontade não me falta. Mas, quando as palavras vão subindo, prontas para sair, começam essas gritarias, essas alucinações...- largo a pena. Não me aborreço, não me queixo: - coitados! São doidos! + trilha

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