REVISTA SEXTA FEIRA Nº6

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O feal e seu avesso: as utopias clássicas Maria das Graças de Souza 25 Qual estação do porvir (por causa de uma visão em Chico Buarque) • . Stélio Marras 0

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Utopias missionárias na°América Paula Montero

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Utopia e fabricação da cidade GuilhermeWisnik,*-

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Essa incansável tradução ]entrevista[-com DominiqueTilkin Gallois Nossas utopias não são as deles: os Mebengokre (Kayapó) e o mundo dos brancos" V

Cesar Gordon

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Utopias tecnológicas, distopias ecológicas e contrapontos românticos: "populações tradicionais" e áreas protegidas nos trópicos Henyo T. Barretto Filho .

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Da virada cibernética aos abismos da globalização ]entrevista[ com Laymert Garcia dos Santos. • '.

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Genética e ética • Franklin Leopoldo e Silva

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U m a festa sem

fim-—elogio • Silvana

a Os errantes do novo século

Nascimento 189

DuglasTeixeira M o n t e i r o , u m intelectual a c o n t r a c o r r e n t e ( 1 9 2 6 — 7 8 ) Wâlnice Nogueira

Galvão

199

Pílulas de contra-utopia ]entrevista[ c o m J o s é A r t h u r Giannotti 211 ]Entrevista[ inacabada de u m a pergunta só c o m Paulo E d u a r d o A r a n t e s 227

N a ç ã o c imaginação

Paulo Eduardo Arantes

D e gestos e políticas: utopias r e a l i z á v e i s — l i g e i r a ]entrcvista[ c o m Lula 269

Ilhas de histórias ]entrevista[ c o m J o r g e F u r t a d o 279

F u t u r o inesquecível Chico Lopes 2

9i

P i e r r e C l a s t r e s , e t n ó l o g o da A m é r i c a Tânia Stolze Lima e Mareio

Goldman

3'3 O inferno de Pascal Bernardo

Carvalho


Recém-inaugurado, o milênio já prcfigura cenários distópicos qu~ desafiam a pensar proje~os sociais. Com o acirramento da chamada globali_zação já não se pode enfrentar o tema U topià à Iuz do mod~lo de seu criador, o inglês Thomas Morus (I 48 o- I 53 5), como gênero literário que imaginou wna sociedade pçrfcita~cntc organizada, equilibrada, feliz e, s_obretudo, protegida. da influência de outras sociedades. . No século XIX, a ciência tornàva-sc anté!gonista da utopia. Um caso exemplar foi o de Marx-, que, para legitimar seu·projcto político revolucionário, teve de desqualificar os · projetos daqueles que passou a denominar socialistas utópicos. No fin.al desse mesmo · século, .o paradigma posi'tivista revestia novamente de ncgatividadc a idéia de utopia.· Pairando acima do bem e do mal, o cientificismo firmava-se sob a_égide da previsibilidade, da medição, do controle c da neutralidade, enquanto a perspectiva utópica era ássociada à ausência de método, à imaginação, ao inco_mcnsurável. Findo o sé~ulo XX, a aposta na ciência tem sido maximizada em razão do avanço _tecnológico, _fazcndo·com que a informação processada ~o plano digital c mólccular reverbere nos inais diversos planos sociais. Mas muitas previsões elahoradas pelo cicntificismo, que povoou tanto o socialismo como o positivismo, revelaram-se ao seu modo inalcançávcis. Antes, tal processo tem cngcndr<l;do mais c mais paradoxos, assim como a insatisfaÇão -de um contiO:gentc cada vez maior, .crümdo lacunas de sentido que abrem -espaço para se projetar d~senhos alternativos de sociedade. Diante desse quadro, propomos abordar a temática por um tríplice viés, qual seja: utópi~o, distópico e contra-utópico. O primeiro deles remete à idéia àlargada de utopia co~o representação e projeção factível de uma sit~ação futura na qual os valores, regras e insti_tuiç.ões estejam acordadas com aquilo que se considera ideal; o viés da· distopia inverte a perspectiva utópica, uma vez·que· o futuro é previsto-como pior que · o presente, decorrência nefasta de um projeto coletivo; o terceiro plano diz respeito à contra-utopia, a q~al desqualifica qualquer projeção (irpaginaçào) .de um futuro que dcsc.ons'iderc as po·s sibllidadcs .postas pelo presente. · A um só tempo ciêl)cia e imaginação, a antropologia convida pata o · encontro da


utopia dos "outros"_-_ - tais' como sociedades indígenas e movi~cntos ~ilcnaristas-c ao cstranhamento das nossas utopias-ecologia, tecnologia, globalização, socialismo etc. etc. etc. Tal é o desafio que norteou esta edição. Entretanto, lo!lge de configurar um painel com uma mensagem explicitamente denotada; ~ai conjunto resultou num cenário desordenado e com itinerário inconcluso, bem diverso. da Utopia totalizante de Moru.s. . Mais uma vez, o projeto· gráfico desta edição talvez seja um autêntico espelho de se'u conteúdo. Compostas de fragme~tos. de .pain.éis .de outdoor, estas páginas são o seu inverso, levando-os para o verso do texto, conver-ten<J?-os em verso. Emblema por excelência do mundo contemporâneo, a m.ensagcm do outd~or é breve c direta, dirigida para quem passa à distância, donde os pontos convertem-se na im~gem almejada. · · Operando uma ab~tração pela redução, estas páginas subycrtcm o caráter denotativo da mcnsagc~, em nome de uma linguagem caótica c da unicidade do produto. Os painéis são combinados ao acaso, de modo que não há um exemplar igual ao .outro, conferindo aura à obra através ·de sua reprodutibilidade técnica. E, de encontro ao mundo virtual, ela pesa muito's quilos de matéria. Por fim, não podemo~ deixar .de mencionar a nossa utopia, ao persistir no projeto de fa?er esta publicação contando com pouc;o ou nenhum suporte financeiro. Mas temos compartilhado tal utopia com n~ssos leitores, colaboradores e, a par.tir deste número, com um conselho editorial e uma nova editora. E o temos fei.to com tanto prazer, 9ue cada número tem o sabor de uma realização.

Corpo Editorial


O real e seu avesso: as utopias clรกssicas

Maria das Graรงas de Souza


Eugenio Garin, em seu livro Ciência e vida c~vj] no Renascimento, refere-se à complexa mudança cultural.ocorrida na Europa na aurora do século XVI com as seguintes palavras: "O século XV revelava a sua ambigüidade: além do anúncio de uma renovação, a tristeza de um ocaso; e enquanto as esplêndidas cidades decaíam, num clima religioso de espera, desejava-se uma total renovação, uma condição diferente para o homem, e a sua liberação da escravidão à natureza e suas leis. E a esse desejo respondiam então, · embora de uma maneira um tanto diversa, a Cidade do Sol de frei Tommaso de Campanella [I 6 I 3} e A nova Atlântida de Bacon [I 62 7 ]; de um lado, a reforma r eligiosa, de outro, a ciência moderna, já então desvinculada de qualquer nostalgia do passado" · (I 996:79- 80). Poderíamos acrescentar a essas duas cidades ideais citadas por Garin, a Utopia de Morus, escrita em I 5 I 6, matriz do gênero, que remete ao desejo de renovação social, moral e política . . Raymond Trousson( I 979 ), a quem devemos um livro clássico sobre o gênero utópico, nos mostra que a utopia não tem lugar no mundo medieval, no qual os espíritos anseiam sobretudo pela instauração do reino divino sobre a terra ou por um paraíso após a niorte, mas não poruma soCiedade ideal situada num futuro histórico. Na literaturaantiga, o tema da Idade do Ouro manifesta a nostalgia de um passado feliz; que na Grécia encontra sua manifestação em Hesíodo e, em Roma, em Horácio e Ovídio. O milenarismo, por sua vez, cuja origem data do início do cristianismo e avança até os tempos modernos, situa a felicidade num r eino que o Cristo virá instaurar na terra, e no qual não hél;vetá dor nem sofrimento 1 • Vale a pena assinalar a presen.ça~ desde o século XI, de uma tradição do mito da Cocanha, lugar da abundância e do pnzer- tradição inicialmente oral e que aos poucos se apresenta em poemas populare'S em vários países da Europa. Hilário ·Franco Junior, q'ue estudou longamente o conteúdo e a difusão das históri~s do' p~ís da Sobre a tradição milenarista, vale a pena ver o livro de Jean Dehimeau, Mil anbs de feli cidade (1997).

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Cocanha, mostra que a escassez de alimentos na Idade Média, efeito de várias causas acumuladas, criara um quadro no qual a fome rondava constantemente o Ocidente cristão 2 • Sendo a fome uma presença cotidiana, o imaginário da fartura e da abundância aparece num conjunto de mitos e lendas, dentre as quais a mais difundida é a do país da Cocanha, inversão da realidade vivida pelos homens da época. Nesse país onde não há trabalho e a ociosidade é premiada, encontram-se por toda parte mesas postas com as melhores iguarias, correm rios de vinho tinto e branco, "quem quiser é só chegar, pegar pelo meio ou pelas margens, e beber em qualquer lugar, sem oposi.ção e sem medo" (1998:25). Contudo, nada há na Cocanha que indique uma organização social ou política que tenha como fim assegurar o bem-estar dos indivlduos, tal como será o caso das utopias a partir do texto de Morus. Essas utopias, construídas no alvorecer da modernidade, possuem características comuns que as fazem constituir um gênero à parte. Em primeiro lugar, pode-se falar do insularismo ou isolamento das sociedades utópicas. No caso de Morus, Utopus, o fundador da cidade, separou as terras de um istmo do continente, transformandoas numa ilha. A Cidade do Sol de Campanella é cercada por grandes muralhas. E a Atlântida de Bacon é uma ilha perdida no oceano, que só foi encontrada pelos europ~us quando uma tempestade acabou levando-os até esse lugar desconhecido. Nos três casos, a circulação para fora dos limites da cidade ou do país, e mesmo dentro de suas fronteiras, é controlada pelos governantes. Pode-se interpretar esse isolamento das comunidades utópicas dizendo, por exemplo, que essas sociedades fechadas 2

Franco Junior, Hilário. Cocanha-

Váriasjaces de uma utopia (1998). Jean Delumeau, na sua

História do medo no Ocidente ( 1 989), confirma a análise de Franco Junior: trabalhando com o período

que vai do século XI ao século XVI, Delumeau mostra que a alimentação, na Europa medieval, era ao

mesmo tempo desequilibrada e insuficiente . Morrer de fome era uma possibilidade real. A penúria levava freqüentemente a revoltas populares, e , segundo o autor, a situação só vai m elhorar no decor rer do século XVII.


querem proteger-se de influências nefastas das outras sociedades. Mas pode-se também recorrer à idéia de ruptura: a utopia, como apresentação de uma sociedade que inverte a realidade, expressa tal inversão pelo seu isolamento. As sociedades utópicas são também marcadas pela regularidade e pelo planejamento interno, pela uniformidade social e supressão dos conflitos, pela igualdade e conseqüente supressão das classes, por um coletivismo que tem em vista sempre a felicidade coletiva, e por um extremo dirigismo e vigilância, por parte do Estado, da vida pública e privada dos cidadãos. São também sociedades do trabalho, em que toda ociosidade é banida. Vejamos como essas características se apresentam na utopia de Morus. Regularidade e planejamento: Utopia é composta de 54 cidades nas quais a linguagem, os costumes, as instituições, as leis são perfeitamente idênticas. As 54 cidades são construídas a partir de um mesmo plano e possuem as mesmas construções e edifícios públicos. Cada cidade se compõe de 6 mil famílias. Cada grupo de trinta famílias é chefiada por um filarca, eleito todos os anos. Dez filarcas com suas trezentas famílias obedecem ao prot?fllarca. O príncipe é eleito pelos filarcas, dentre quatro cidadãos indicados pelo povo. Relações sociais e de propriedade: os utopianos se regem pela regra da propriedade comum de todos os bens. Aterra, fonte dos víveres, é propriedade comum da cidade. Para evitar que o apreço pela propriedade privada se instale no coração dos homens, as famílias trocam de moradia a cada dez anos e recebem outra casa por sorteio. Todo utopiano é agricultor e deve passar um tempo no cultivo da terra, revezando-se em grupos por períodos determinados. Além da profissão de agricultor, são também obrigados a aprender outra profissão, que exercem durante o período em que estão afastados do campo. O turno diário de trabalho é de seis horas para todos. Todo o produto do trabalho, seja do cultivo, seja das outras atividades, é colocado num armazém ou depósito, onde os chefes de família vão buscar o que necessitam, sejam víveres, vestuário, calçados etc . Nada é n egado ao pai de família. Cada um é livre para comer em sua própria casa, mas o costume é que as refeições sejam

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feitas coletivamente, em horários especiais; no almoço, come-se ao som de leituras morais; o jantar é feito ao som de músicas. Se passamos à Cidade do Sol de Campanella, notamos de início uma peculiaridade difícil de ser compreendida se levamos em conta o tempo em que o relato foi escrito. A sociedade não tem como base a organização familiar. O espaço da cidade é distribuído em sete círculos concêntricos no meio dos quais se situa um templo. Cada um dos círculos é definido por uma muralha. Toda a circunferência da cidade é cortada por quatro grandes avenidas, que possuem portais em cada círculo que atravessam. Entre os círculos, existem as construções que abrigam os cidadãos solares: eles têm em comum as casas, os dormitórios, os leitos, todas as coisas que lhe são necessárias. Mas de seis em seis meses trocam de lugar, pois crêem os solarianos que a posse de casa, mulheres e filhos, ou seja, a organização familiar, produz o amorpróprio, que é a fonte dos males entre os homens. As relações sexuais são rigorosamente regulamentadas tendo em vista a procriação. As crianças, enquanto são de colo, permanecem no quarto das mães. A partir de certa idade, são separadas delas e educadas juntas, em todas as artes e ciências, e no ofício para o qual demonstraram aptidão durante a formação. Meninos e meninas recebem a mesma educação. As refeições, tal como em Utopia, também são coletivas. Até a roupa obedec.e a um padrão comum: os solarianos recebem, a cada estação, roupas iguais, adequadas à cada época do ano. Homogeneidade, regularidade, igualdade regulam a vida como um todo na Cidade do Sol. A inspiração da Cidade do Sol de Campanella é copernicana, heliocêntrica. Todas as coisas se orientam para o Sol, ser superior, unidade do poder, do saber, do querer. Há portanto, na Cidade do Sol, uma hierarquia que não é fundada na propriedade, mas no grau de perfeição. O soberano, chamado Metafísico, é o juiz de todas as coisas, espirituais e temporais. E assistido por três ministros, cujos nomes são Poder, Sabedoria e Amor. Ao primeiro cabem as questões ligadas às artes militares, ao segundo as artes mecânicas e as ciências, ao amor cabem as questões da reprodução. I


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E este último que cuida para que as uniões sexuais produzam a mais bela progenitura possível. Amor também é encarregado da educação, da medicina, da agricultura, da alimentação, do que é ligado à vida. A esses três ministros estão ligados todos os magistrados, que por sua vez também recebem nomes de virtudes, segundo a atividade de cada um deles. Trata-se, portanto, de uma hierarquia moral. Tanto o chefe supremo como os outros magistrados são escolhidos durante um longo processo de educação: os que se distinguem são preparados para a magistratura, e o Metafísico, que está sobre todos, é um sábio em t?das as ciências e em todas as virtudes. Assim, na Cidade do Sol, a vida social é inteiramente organizada de modo concêntrico. Essa organização pode ser vista como uma ordenação racional, mas certamente tem traços de inspiração da astrologia. Nessa ordem, cada um tem o seu lugar e encontra, na sociedade igualitária, as condições de uma boa vida e do desenvolvimento das virtudes. Ou, como diz o próprio Campanella, na Cidade do Sol todos são, ao mesmo tempo, ricos e pobres: ricos, porque nada lhes falta; pobres, pois nada lhes pertence. Os solarianos recebem tudo o que precisam do Estado e as autoridades vigiam para que ninguém tenha nada em excesso e que a ninguém falte o que precisa. Talvez por ser uma obra inacabada, talvez porque a ordenação social, econômica e política fosse, para Bacon, uma questão derivada, o fato é que A nova Atlântida não se detém na explicação do modo como se regulavam a propriedade e as relações sociais na sua sociedade utópica. Contudo, A nova Atlântida é apresentada como um relato por meio do qual Bacon se propôs a pensar "um corpo de leis, ou o melhor dos Estados, ou uma comunidade exemplar" (r 9 7 3: 24 r). O texto obedece em linhas gerais às regras dos relatos utópicos: viajantes perdidos acabam encontrando um lugar escondido, onde vivem . homens felizes. Trata-se de uma utopia singular: Bacon não se detém na questão das instituições políticas ou das relações sociais do povo que habita a ilha, chamada Bensalém. Os habitantes são cristãos (o cristianismo lhes foi milagrosamente revelado),

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conhecem os idiomas da Europa, assim como as últimas descobertas dos europeus nas ciências e nas artes, embora seja mantido o isolamento a que se obrigam as comunidades utópicas. Há interdições à entrada de estrangeiros, e, quando a hospitalidade os obriga a receber pessoas que por acaso ali aportam, os chefes do lugar oferecem uma série de vantagens aos hóspedes para que eles decidam permanecer ali para sempre, o que, segundo o relato, sempre acaba acontecendo. Os próprios habitantes também não podem sair do país, exceto alguns homens rigorosamente escolhidos que partem periodicamente para os países da Europa e da Ásia para se informar das últimas descobertas nas ciências e nas artes, trazer livros, modelos, informações sobre as instituições e a politica de outros países, e que voltam para comunicá-las aos sábios de Bensalém. O que torna então Bensalém um modelo de sociedade? E a existência de uma instituição chamada Casa de Salomão, cujos membros são encarregados de produzir e difundir as ciências no reino. O fim da instituição é "o conhecimento das causas e dos segredos dos movimentos das coisas e a ampliação dos limites do império humano na realização de todas as coisas que forem possíveis" (idem: 268). Para isso dispõem de instrumentos e lugares apropriados para a investigação sobre todos os ramos do saber, sobre as artes mecânicas, e sobre os meios de tornar a vida mais cômoda. Os membros da Casa de Salomão realizam um trabalho coletivo, e se dividem segundo suas atividades. Os "mercadores da luz" são os que navegam por países estrangeiros trazendo novas informações; os "depredadores" recolhem os experimentos que se encontram nos livros trazidos; os "homens de mistério" reúnem os experimentos por áreas; os que tentam novos experimentos são chamados "pioneiros"; há ainda os "doadores", os "lâmpadas", os "inoculadores" e, por último, além dos "aprendizes", os que sintetizam as descobertas em axiomas, aforismos gerais, e que são chamados "intérpretes da natureza". São os membros da instituição que decidem quais descobertas devem ser comunicadas ao público e quais devem permanecer guardadas. A sociedade tem suas cerimônias e seus ritos, realizados em amplas galerias onde se situam estátuas dos grandes d esI


cobridores e inventores de coisas úteis. Recita hinos religiosos nos quais dão graças a Deus e pede a bênção para seus trabalhos. Bensalém inverte o mito platônico: a Atlântida de Platão foi destruída pelos deuses; a nova Atlântida sobreviveu e, por meio do cultivo da ciência, superou as vicissitudes dos impérios. Ao que parece, a sociedade da ilha não está sujeita aos ciclos de ascensão e queda das instituições (Strauss & Cropsey, 1 987). O que se pode dizer é que na utopia de Bacon está manifesta a idéia do conhecimento como poder organizador da sociedade, a concepção da natureza cooperativa do esforço científico e da orientação das investigações que têm em vista a promoção do bemestar de todos. Trata-se de uma utopia filosófico-científica: as instâncias políticas, econômicas e sociais são subordinadas à instância do saber. Tudo em Bensalém é melhor do que na Europa. Não por causa da organização política, nem da regulação dos bens, mas por causa da Casa de Salomão. Façamos um balanço das condições em que essas três utopias foram escritas. Marx, no capítulo de O capital sobre a acumulação primitiva, mostra que, nos finais do século XIV, na Inglaterra, o sistema de servos da gleba havia terminado. A maioria da população, no século XV, era formada por camponeses livres, autônomos economicamente. Havia também camponeses assalariados, que recebiam terras para seu próprio cultivo. Além disso, todos usufruíam das chamadas terras comunais, onde podiam levar o gado para pastar e retirar lenha para combustível. A mudança começa a ocorrer nos finais do século XV e início do XVI. O florescimento da manufatura de lã levou a nobreza a transformar as lavouras em pastagens de ovelhas. O cercamento das terras comunais e a transformação progressiva em pastos levou a um despovoamento do campo, e multidões de camponeses pobres e sem trabalho invadiram as cidades. Como não puderam ser absorvidos inteiramente pela manufatura, esses trabalhadores transformaram-se em mendigos, vagabundos e até assaltantes, pela força das circunstâncias. Rafael, o narrador da Utopia de Morus, refere-se precisamente a essa situação quando diz que entre as causas da miséria dos povos

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"estão os inumeráveis rebanhos de carneiros que cobrem hoje toda a Inglaterra. Es. ses animais, tão dóceis e tão sábios em qualquer outra parte, são, entre nós,' de tal forma vorazes e ferozes que devoram mesmo os homens e despovoam os campos, as casas, as ald.eias". Daí, como se pode ver, o significado que adq1.1ire em Utopia a propriedade colettva da terra, e·a importâl}.ç:i~ dada à agricultura; A Itá~ia do t~mpo de Campapella, dos 'finais do sécul~o XVI, não é muito dife. rente daquela que Maquiavel ~ein sob os-.olhos quando. escreve O príncipe algumas décaqas antes: trata-se de um mosaico E~tados independentes, governado.s seja ·p~lo próprio poder papal, seja: porfàmíli~s .poderosas e; efu alguns casos, por gov.e rnos republicanos~ freqüentemente invadidos por forças estrangeiras. O reino de Nápoles, onde vivia Cam.p anella, estava havi~ muito tempo sob domínio espanhol. O jugo pesava sobretudo sobre a Calábria, sua região natal. O sonho de Campanella era libertar o povo da dominação estrangeira. Um grande grupo composto de réligiosos· de diversas ordens, é mesmo parte da nobreza napolitana, planejou uma revolta que, seguri do os comentadores ~ ter~a tido:Campanella ·como um dos líderes. A.rebelião deveria e~tourar em agosto de 1 s99, 'ma:s os rebeldes foram denunciados e Campanella foi para a prisão, onde perman:eçeu por vinte ·e seis anos. Parece que, nos primeiros tempos, foi cruelmente torturado, mas depois o deixaràm ~m paz na masmorra. Curiosamente, foi durante? longo período na prisão que o monge escreveu sua Cidade do Sol. Depois de libertado, foi para á França. o religiqso dominicano havi;:t esáito, antes de ser'preso, uma obra J.ntitulada Monarquia hispânica, na qual faz a apologia do. Estado centralizado. Nà verd<l:de; parece que o livro tratava de uma espécie de 'm onarquia univer·sal, um pouco· como Dante havia pensadoantes, acima da 'qual reinaria o papa. Numa Itália dilacerada por grandes divisões internas, o anseio de um governo centralizado se revela na utopia da Cidade do Sol. Embora ainda haja algumas discord~ncias entre os críticOs ·q uanto à data de redação da A novaAtlântida dêBa~on, há u~ consenso segundo o qual ela deve ter

de


sido escrita' em torno de I 6 2 3. Mais de cem anos se passaram depois que Morus havia se r~ferldo aos- "carm~iros· devorador.es de homens" na Inglaterra. Mas, como bem: rrl\)Stra Christopher Hill (I 9 8 7) eni seu trabalho sobre as idéias radicais na Ingla!~rra do século XVIP; pouca coisa-havia mudado. Segundo Hill, "havia vadios, vagabun~os e~ mendigos, que perambulavam pelos campos, às vezes em busca de empregos, 'porém: mais freqüente~ente como refugos ..." (idein:56). Uma vasta população vivia abaixo da linha da pobreza, e constituía a matéria mais adequada para formar o que no século XVII será chamada de "a populaça" ..Estavam à disposição de qualq~ér Um que lhes pagasse por qualquer tarefa, num momento em que se pre7 paravam as lutas que culmüun1m na Revolução Ingles~. A utopia de A nova Atlântida, de Bacon,· seja por seu inacabamento, seja porque Bacon se situava noutra perspectiva, não ' apr~serita sinai~ dessa efervesc~ricia social edessa-luta surda que se travava em seu pats no momento e~ que a escrevia. Ele eSJiera do desenvolvimento do saber, segundo a estrutura do relato da vida em sua ilha tit6pica, a possibilidade do estabelecimento de uma _:Sociedad~ mais feliz. Contudo, parece que se pode dizer -que A nova Atlântida, . se pensada no intérior do conjunto da obra do filósofo, não parece tão distante das preOcupações da época. É ainda Christopher Hill (I 997) que nos mostra que, durante a Revolução Inglesa, parte das alas radicais reivindicavam · para si uma herança baconiana, pelo viés do antiaristo-t elismo de Bacon. Para os radicais, atingir a ciência arístotélica (que é uma das principais preocupações do NQvum organum bàconiano) era de certaforma atingir os bispos (que cultuavam o cânon de Aristóteles) e o que eles representavam dentro do poder político da monarquia inglesa; era, por assim dizer, atingir, por vias indiretas, as velhas estruturas. Assim, a renovação do saber proposta por Bacon no Novum organum e pensada como instituição.em A nova Atlântida remete, da mesma forma que a obra de Morus e a Cidade do Sol de Campanella, à um anseio d_ e, transformação. 3

Ver especialmente· o. capítulo 3, intitulado "Homens ~em· senhor".

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Mannheim, em sua Ideologia e utopia ( 1 976), afirma que à mentalidade utó-pica, ou 9 estado de espírito utópico, é um estado deincongruência em relação à realidade. Nesse estado de espírito utópico, a e~periência, o pensamento e a prática orientam-se para objetos que não existem· na ~ituação real. Já Paul Ricoeur (1989), num livro homônimo, julga que a utopia é unia espécie de sonho soéial, que não leva em conta os passos reais que devem ser dados para construir túna nova sociedade. E uma espécie de atitude esquizofrênica diante da sociedade. Embora ambos os autores estejam preocupados prioritariamente com a relação entre a utopia e as ideologias e não se debrucem propriamente sobre as primeiras ~topias da modernidade, a reflexão deles nos auxilia a interpretar as-utopias que ora examinamos. Para o primeiro, o traço fundamental da utopia é:sua incongruência em relação à realidade. Para o outro, o qu:e caracteriza as utopias é precisamente o fato de ser um sonho que não.leva em conta o real: Ora, pensamós que os -relatos utópicos de Morus, Campanella e Bacon de fato possuem como caraCterística-principal a crítica do mundo reaJ. ·Mas não como uma atitude esquizofrênica, como sugere Ricoeur. As utopias clássicas manifestam, em primeíro·Iugar; que a realidade, tal como ela se apresenta aos olhos de seus autores e de seus cbhtemporâneos, é inaceitável.' Do mesmo modo, a nossa experiência do mundo contemporâneo, globalizado, é a da·repetição do mesmo, ou do retorno constant_e do maL As utopias da aurora da modernidade abrem a possibllidade de se conceber um outro .real possível, e desse modo con~ribuem para a constituição de um imaginário social em que o novo possa ser pensado. E isso não é pouco, nem para os homens dos séculos XVI e XVII, nem para nós, homens de hoje. I

Maria das Graças de Souza é professora do Departamento de Filosofia da FFLCH/USP.


Riferências bibliogréiflcas

BACON, Francis. A novaAtlântida. São Paulo, Abril Cultural, I973· DELUMEAU, Jean. Hi stória do medo no Ocidente- 1]00- 1800, uma cidade sitiada. São Paulo, Companhia das Letras, I98 9 . _ _ _ _ _ . Mil anos de felicidade- Uma história do Paraíso. São Paulo, Companhia das Letras, I 99 7. FRANCO JUNIOR, Hilário. Cocanha- Váriasfaces de uma utopia. São Paulo, · Ateliê Editorial, I 9 9 8 . GARIN, Eugenio. Ciência e vida civil no Renascimento. São Paulo, Editora daUnesp, I

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HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça. São Paulo, Companhia das Letras, I987. _ _ _ _ _ . Intellectual origins

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iç estação do p o r v i r (por causa de uma visão c m Chico Buarque)

Qual

Stélio Marras

Então os justos se levantarão c o m grande afoiteza contra aqueles que os atribularam e que lhes roubaram ofruto dos seus trabalhos. Vendo-os assim, perturbar-se-ão com temor horrível os maus, e ficarão assombrados ao ver a repentina salvação dos justos, a qual eles não esperavam.

[...] N ó s , insensatos, considerávamos a sua vida uma loucura, e a sua m o r t e uma ignomínia. E ei-los que são contados entre os filhos de D e u s , e entre os santos está a sua sorte. — " L i v r o da Sabedoria", Antigo Testamento 0 significado do poema não está no que.quis dizer o poeta mas no que diz o leitor por meio do poema. ^ O c t á v i o Paz, Claude Lévi-Strauss ou o novofestim de Esopo


Suspeitaria Lévi-Strauss que suas observações sumárias a respeito do Rio de Janeiro aí por r 9 3 o já indicassem tensões fundamentais da dramática sociológica brasilei~ ra? Duradouras, ali apenas se gestavam em meio urbano. Amiúde, iriam fiando um tecido social cujo arranjo da malha, sua consistência, só se agravaria desde então. Rio de Janeiro não é construída como uma cidade qualquer. Estabelecida_, primeiramente, na zona plana e pantanosa que rodeia a baía, ela se introduziu entre os morros abruptos que a aifixiam de todos os lados, à maneira de dedos numa luva muito estreita. [ ... ] mas, em 1935, no Rio, o lu8ar ocupado por cada um na hierarquia social se media pelo altímetro: tanto mais baixo quanto o domicílio fosse mais alto. Os miseráveis viviam pendurados nos morros, nasjavelas em que uma população de pretos vestidos de trapos bem limpos inventava ao violão essas melodias ale8res que, no tempo do carnaval, desceriam das alturas e invadiriam a cidade com eles. (Lévi-Strauss, 1957:87)

Aquilo que se descortinava a seus olhos estrangeiros viria adiante crescer violentamente e expandir, mas já o principal da trama delineava-se. Os miseráveis porém honrados em seus "trapos bem limpos", a segregação desses pobres-diabos ou, como se diz, pobres de Cristo, lá suspensos nos morros que "asfixiam de todos os lados" o vale, a ambígua ocasião da festa que traz ao encontro um e outro plano: a cidade de: dma descendo e invadindo a cidade ge b~ixo. Asfixia e invasão dão bem a idéia dâ natureza dessas tensões. A invasão supõe fronteiras, separação, alteridade, estranhe;~à, descontinÚida:de. Pois tamanha a distância (simbólica, espacial, sociológica) de que repentinameJ;lte ~se dão conta os dois planos da cidade, c por isso ora c vez ameaçam polarizar-se-mesmo, e talvez sobretudo, em ocasiões típicas de congraçamento, como o "tempo do carnaval"·-, qúe ·a atmosfera de asfixia pareça tão verossímil. Que fim terá esse estado de tensão? Difícil prever. Dividimo-nos entre pessimistas, otimistas, vacilantes e despreocupados. Enquanto isso a história e a •

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experiência testemunham o adepsamento' de tal atmosfera- e reclamam solução. De onde? De que maneira? Clard, a·· especulação varia conforme a perspectiva adotada. Aqui entretanto me detenho a explorar o tema ~~Fco~nparece se desdobrar sobre a obra de Chico.BuaJ;qQe, embora sob o mote da intrigante letra de "Estação derradeira", de 1 98.7. Reconheço que a c?mHreerisão da parte beneficia-se pela referência ao tO~ do. Explorar a extensão semântica dos elementos qe "Estação derradeira" solicita voltar ao cancioneiro de Chico Buarque e nele d esvelar as possibilidades de 'significaç,~q desses elementos flagrados recorrentes . Esse trabalho simultâneo de ir eyir.do. pro?ut?-particular ao geral, virtuoso quando um e outro domínio se continuam sob apreensão sistemática- possibilidade essa, porém e necessariamente, subordinada à consistência do gênia; dÇ>·autor soh ~studo~esse trabalho !lq~~ espera filtrar eixos de significação que dê úm só golpe-instrumentalizem a a~ális e da canção em pauta bem como de uma parte considerável. da obra, assimrev.élando e distribuindo sentidos. Destarte comparativa é qu~ ~mergem as -s11gestões de int~rpretação do pensamento de Chico Buarque a r espeito da natureza do dr<J.It:~ soóàl que subjaz à r eferida atmosfera, do julgamento valorativo dos elementos é sujeitos em jogo, da evolução dos processqs sociais, tão mítico:s quanto históricos, que ai se montam e se revez_a m, e c_ujt:1 'e~peculação de seus desenlaces parece esboçar uma visão, alànnarite ou proilff.ssora, do porvir coletivo brasileiro. Sugiro que "Estação derradeir~':' ,' e~pecialmente ela no conjunto da obra, comente essa visão. Crente também que a escolha dessa canção acarrete sublinhar princípios desagregadores em desfavor de aglutinadores, reconheço contudo que~ ambos, contraditórios mas coexistentes, Chico os contemple em seu pensaménto. sobre a formação e a dinâmiçado socius brasileiro por m eiode seus personagens e narradores 1• Mas parece qt;;e.q uando se trata de escatologi~ so_cial, da imaginação Sob e ssa p erspectin assimilacio nist a ou agr egado ra, p or exemplo, é que interprete i "Fado


prospectiva, são os princípios de oposição, e não os de participação, os que assumem a cena e ensaiam as soluções pàra os dramas. Daí é que se desenharia algum advento qu~' inaugure o fim de um tempo e o anúncio de um possível recomeço. Daí enfim é:que podemos nos aproximar do que há de visionário em Chico Buarque. Esse é o passo, pois, que gostaria de surpreender aqui. Eleita essa perspectiva, é ter claro que ela tende a compreender que tudo que amalgamava o tecido-as coisas que unem os de baixo aos de cima, as "melodias alegres'' ou o compartilhamento complementar das diferenças por ocasião da grande festa-, tudo que aglutinava seja agora sombreado. A mesma festa da fusão-o carnaval da democracia cultural-dá ocasião à emergência de seu princípio contrário da dispersão e da fissão social. De um instante para outro a guerra insinua-se na festa, o céu vem abaixo, a terra revolve seus dilemas e impasses. Grávido de mito e história, o porvir desponta no horizonte e os dissolve numa só torrente, um· só cordão, redentor ou aterrador.

Estação derradeira (1987) Então a Mangueira dos maltrapilhos há de viver sua noite gloriosa. Quer o narrador que seja ela, já tão desgraçada de cidadania oficial, a que venha esbanjar esplendor na passarela, sua batucada destacar-se dentre todas, sobre todas a escotropical" (I 97 2-3), canção que, o meu wr, reproduz idéias de etnicidade compartilhada que o pensamento de Gil~ertoFreyre tão bem expressa. Cf. "O fado tropical de Gilberto Freyre", São Paulo, ReYista Cult, ri. 3·!.,_março de 2ooo. Essa mesma perspectin, também do ponto de vista, digamos, dominador, está presente, como por ironia, na faixa que imediatamente sucede "Estação derradeira"

no álbum Fr~ncisc~: a canção "Bancarrota blues" (I 9 8 5) põe o grande dono de terras em seu "éden tropical" a enlanguescer-se com os "negros quimbundos" que, mesmo debaixo de açoites, cantam "Doces lundus pra nhonhô sonhar". Exemplos assim são Yários.

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la de samba do ano carnavalesco, a derradeira e vencedora. Tratar-se..,á, entaci, de um hino à Mangueira-como o canto do abre-alas à "soberba, garbosa" Man,. gueira e à sua "realeza dos bambas que quer se mostrar" ("Chão de esmeraldas", r 98 2 )? Por certo que sim, mas tão verdadeiro quanto insuficiente., Sem dfivida que aí está o código da festa e o desejo do narrador engajado é esse mesmo de ver o triunfo de sua escola. Mas não apenas. Outros códigos, talvez menos aparentes à primeira vista, contudo aí mesmo se emparelham na significaçã0, se realimentam mutuamente e, uma vez justapostos pela análise, transcendem de seus sentidos estritos para sentidos sintéticos, gerais e acaso imprevistos. Será útil divisar pelo menos três códigos em "Estação derradeira": o da festa, o sociológico e o religioso. Subitamente-eis o que devo notar-, eles se convertem um no outro, se continuam, e uma complexa imagem aflora. Devagar, pois, cumpre ir ao seu encalço. Rio de ladeiras

I

Civilização encruzilhada

I Cada ribanceira é uma nação

A cidade e o mar de ladeiras com seus barrancos de gente pobre apinhada. São então as cidades. As de cima e a de baixo. Fosse Deus o mais cruel de todos os seres e o desavisado (mas nem tanto assim) diria que essa separação tão clara só podia ser obra e arranjo prévio da Providência, do Ser supremo, como quem já cuidasse separar fiéis de infiéis, justos de injustos, puros de pecadores, para qu.e afinal assim estejam as coisas facilitadas para o grande dia (ou noite) do Julgamen:to esperado. A miseração terrena adiantaria o serviço de pur.ga espiritual. Más tão clara e sedimentada a segregação, que o tempo obrou constitu,ir. a imagem que cada morro nutre de si próprio, sua própria geografia e história, como uma nação à parte. Mas se cada ribanceira é uma nação, então onde a unidade do Rio? Onde a Cidade Maravilhosa? A de baixo, desconfiamos. Até quando?-entre os dentes, junto com o narrador, arriscamos perguntar.


Civilização encruzilhada Opostas na distribuição de bens e oportunidades, no regalo de uma cidadania cada vez mais abstrata,' são de fato duas as cidades. Para uma, a de baixo, aproximase do real o pertencimento cidadão e civilizatório. Para outra, a de cima, aquele pertencimento mais parece virtual e esporádico. Por isso não são propriamente os mesmos os cidadãos. Ou antes, são os de cima "cidadãos inteiramente loucos com carradas de razão", pois à margem da Civilização, essa "civilização encruzilhada" que só cresce em contradição. Essa mesma encruzilhada que diria respeito aos dilemas e limites da Civilização (esse projeto e processo moderno hegemônico, unilinear e redutor de diferenças) também abriga acepção religiosa: as encruzilhadas da umbanda e do chamado baixo espiritismo, que, justamente, indicam a posição de marginalidade em relação ao primeiro sentido de Civilização, seja ao afrontar os ditames canônicos da religiosidade oficial associada à grande Civilização, seja ao conotar simetricamente sua marginalidade sociológica, e que, por tal distância que os separa, essas "ladeiras" e "ribanceiras" do Rio, apinhadas de "ladrão, lavandeiras", são hoje como nações incrustadas num Estado de unidade pouco tangente. D€ fato, tal civilização desigual e demais desencontrada esbarra em seus limites. Cotno um caminho que chega a seu termo, agora frente a frente ao dilema, os destinos estranhos se cruzam, é urgente decidir. Mas será ainda possível tomar as rédeas, ainda decidir, talvez remediar? O narrador de "Sonhos sonhos são" (1998), não por acaso sob o efeito de imagens·oníricas, é precisamente inquirido a respeito pelo olhar aflito de seus companheiros de aeronave enquanto sobrevoam, juntos, uns instáveis e temerosos céus latino-americanos: Sei que é sonho I Incomodado estou, num corpo estranho I Com governantes da América Latina I Notando meu olhar ardente I Em longínqua direção I Julgam todos que avisto alguma salvação I Mas não, é a ti que vejo na colina


Não, ele não vê que salvação, embora veja-impossível não ver- o céu carregado, as "negras nuvens" prestes a desabar e que mais e mais se lhe aproximam e "mordes meu ombro em plena turbulência". Pra onde iremos? Só ela, longe na colina, ele avista. Mas nem ela (a aeromoça ou a salvação? Ambas?) dá-se a previsões: Então despes a luva para eu ler-te a mão I E não tem linhas tua palma

O destino permanece incógnito e nebuloso. O narrador, junto dos seus, amua-se inerte enquanto cresce a turbulência. Do antigo centro metropolitano colonial vociferam -lhe vozes aguerridas em meio à "algazarra". Em Lisboa

I Faz algazarra a malta em meu castelo I Pálidos economistas pedem calma

Bestificado, que lhe resta? Não há projeto ou bandeira que empunhar, nenhum sonho de redenção coletiva sequer se insinua, visão e imaginação que não despontam. Se todos acuados debaixo de céu tão pesado, pois o que faço eu? Talvez na dúvida, e como a livrar-se de consciência culpada, decido que "da varanda atiro pérolas". Restará portanto a resignação de uma caridade desmedida, paliativa, quase demente. De sua parte, sob as migalhas brilhantes, lá embaixo, "a legião de famintos se engalfinha". Não estamos, portanto, diante de uma percepção de esgotamento civilizacional? O modelo ameaça repentinamente arruinar-se, como as negras nuvens que logo se precipitarão em tempestades. Nada a fazer, idéias que não germinam, práxis engessada, será a própria impotência pós-moderna- que fazer? Ele apenas avista a colina, ponto de fuga, longe do turbilhão que se aproxima, a colina talvez já desanuviada depois do vendaval. Civilização em xeque, pois encruzilhada. Civilização encruzilhada I Cada ribanceira é uma nação


À sua maneira I Com ladrão I Lavadeiras, honra, tradição I Fronteiras, munição pesada O morro prepara sua descida para a noite especial. O nó górdio da frágil civilização está quase a expor-se inteiro. A noite do grande encontro trará abaixo os ladrões c as lavadeiras que, atomizados, todo dia descem para o furto ou para o trabalho pouco qualificado e mal remunerado. Mas tal~ez a ambígua festa totalizadora reduza essas diferenças, seja entre os da ribanceira seja entre as ribanceiras, e tal sob o título de escola de samba, assim à condição comum de participarem todos de uma mesma nação, donde brotar um sentido corporado, consciência algo una. Igualmente ambíguo, contudo, o desejo do narrador conflita com o temor de sua própria visão a respeito do que há e dq que virá; Aqui, ao que parece, a contradição central de "Estação derradeira". Se cada morro alimenta, à sua maneira, uma noção de hõnra e tradição, quem sabe agora-seria esse o desejo do narrador engajado, o mai~ positivo que pudesse expectar do porvir-cada uma dessas ribanceiras percebesseasi própria como expressão de uma só categoria social, todas unidas pela)egr~gação historicamente talhada, essa condição comungada cujos efeitos fecundariam conjurar a emancipação do amanhã. Agora, enfim, as categorias morro e- cidade opõem-se contraditas. Eis então que esses domínios simbólicos~· honra; tradição-convertem-se noutra noção, também simbólica mas ·já 'espacial, de fronteira. Uma vez clarificada a distinção das nações ribanceiras, porém todas do mesmo modo espoliadas e miseráveis, segue-se a notação de que· os morros encontram-se armados, as fronteiras das nações resguardadas por''mun{ção pesada". Instaurada a atmosfera do perigo, o caos se avizinha, é iminente. As tensões expostas, tais atiçadas pelo furor da grande festa, ameaçam rebentar. Em ql,lê, como, para onde? Outra vez a visão do narrador, nunca ingênua, não.sê arroga segura a vaticínios. Mas aqui, apenas, ele clama ao santo cúmplice que nb Em termine vitoriosa a Mangueira já agora menos um morro que o emblema de- sua categoria.

3·2


São Sebastião crivado Qyero ver 9 Mangueira

I

Nublai minha visoo Perradeira estaçã.o

I

Na n_oite da gtqnde I Foa.ueiradesv~irada· Quero ouvir sua·batucada,·.ai, ai

Q~e a Estação Primeira encerr:e apoteóti.ca

o/ carnaval.

Sua batucada termine como o som ainda-discernível depois da algazarra· desconcertada, · a· "noite da grande fog~eira· desvairada". Ocorre pois gue a festa confunde ~ s~ cóm.a guer_r~. Por isso o n?-rrador antevê processos soci_ais de propotções. tamanhas, o, tecido esfacelar-se.. Por isso não quer ver. Por isso' ele suplicà· ao santo padroeiro da· cidade .q ue "nublai minha vúão" n~ssa ~oi te· apocaHpÚca, quand9 ne.iD mesmo são Sebastião, cr,ivado que ·é por flec~as tal sua iconografia sa~ra, nem a ele, que forneceria Úma expressão· de ur:idade social aglutiJ!adà peló ~àgradô no ~io de Janeiro, haja agota.·escapar d~ "munição p,es~.da" que desce junto çom as "melodias alegre;;;" morro à. cidadeJ São' Sebastião do Rio de.Jape!ro, :criyado pelas balas sem.ciireçâo precisa: nublai tal visão! Ou ainda antes, que Sebastião da guarda pretorian~ da .ap_tiga R6rna ·retome aqui e. ago,ra 6 ímpeto gu~rreiro · em nome de Cr'isto e pelo pevo d~·~ Cti~td. Não éjus!a a guerra( . Já entãoos dois .c ódigos-o carnavalesco e q "5ociológico- não m<;1is apenas seguem para~ elos~- ~as de tal rúail.eirà apr,Óximam que afina] se iiniscúe~ u:rn no outro . E não à-revelia: porque o. carna~àl, na palavra deRoberto Dalylatta, propicia·a· "imager?invertid~;, do. r;,ormal, ~ "p.m reflexo complexo, um comentário complicado sobre o ·mund_o soci~l brasileiro". O cotidiano e a· excéçãn rebatem-se dialeticam_ent~ nesse tempo-favor~vel à .exp~riência ~e.ab~ir "noyas avenida·s de relaçionamento social·ql\e, cotidianàJ1?.ente, jazem adormecidas uU são colocadas como utopias'' 2 • Se de fato Ca,rnaval rep_roduz o 'm undo", :mas não de forma ''dire,ta qu automática"' e sim pautada na "dialé.tica, çom muitos · auto-reflexos, cir;culari-

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2.

"Por isso, o muri.do do Carnaval é, para nô_s, o !Jlundo da loucura!" ( 1 98 3,:68) .


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dades, nichos, dilnensões e planos",· di'z DaMaüa, "é precisamente por causa · dissô que a sociedade pode mudar e é também por isso que o mundo, afinal, sempre 'pode encher-sê de espe~ança'' (I 9 8.3:6 8). Parece portanto constituinte da própria festa, que inaugura•a "suspensão te'm'p oraria das regras de qma hierarquização repressora" (idem :3 8), a noção do 'ri~co e a abertura à mudança, seja ou venha ela por que via for. O extraordinário que se instaura no.espaço antes regrado pela hierarquia e pelo poder ordinários, o mesmo abalo que sofre o tempo nestes dias de exceção; encaminham o possível da inversão. O mundo. de pernas pro ar traz à borda incrustados sent.imentos coletivos, angústias laten,te_s, amor e terror~ flor da superflcie. Uma v~zat!ngid~s as raias do desvario no . cur'só do_gtande ritual, 'o mÚndo arrisca-se a não mais recobrar-s'e do que era. Em "Ela desa~inou" (I 968), Chico ensaia em esçala. individual, e subjacente ao código amoroso de primeiro plano, o desacerto qué faísca .o mundo quando Ela ~egue sambando em plena quarta-feira de cinzas,_ . Ela desatinou 1· Viuc chegar-quartqjeira_ I Acabarbrinc~dei~p 'I Bandeiras se desmanchando I E ela inda'está sambando [... ] Qyem não inveja a irifeliz 1 · Feliz no seu mundo de cetim I Assim debochando I Da dor, dopeca,do I Dotémpo perdido I Po jogo acabado A desilusãO da personage~ extrapola os c·ertames dessa indi~idualidade q1:1e já se.lança pra fora de s.i e vai fustigar avida do dia-a-,dia, com.o uma peça desanda-· da que contamirtee ponha em ~isco a marcha de toda a máquina. A inversão do carnaval vaza para o cotidiano e o desafia. A disjunção mani-festa ~a personagem recobra a disjunção latente da col-etividade a ponto deprovocar üweja da.desatinada que continua o deboche carnavalesco na normalidade do tempo. Então a potência critica do' deboche, já fora do ·contexto da festa, adquire .conotação diversa, de fato ameaçadora da ordem-o perigo da inversão continuar par~

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além da festa. A loucura Dela é o reverso de uma razão pervertida como, simetricamente, o "Rio do lado sem beira" a contradizer o Rio do lado com eira e beira, pois um e outro devendo sua condição de existência à mutualidade (ou parasitismo), mas de todo modo intrinsecamente relacionados, como as "lavadeiras" alojadas nas áreas de serviço lá da cidade de baixo, cujo espaço físico de trabalho, pois então, é só ele maior que seu barraco plantado no morro. Potencialmente, Ela e a lavadeira são a mesma e uma só, que, com "carradas de razão", desatinam. Pareceriaparadoxal quereflexão crítica e contestação t~vessem origem na perda do tino, da ra~ão, do juízo-.-s'Olução nada iluminista. Como' pode a loucura apoptar de.s tinos libertadores?· Pois- ~í parece repousar uma m~nsagem forte do cancioneiro de Chico Buarqué·. Loucura e embriaguez aparecem não éomó ·ai1dtes~s dà razão. e, da sobriedade, senão como. condição que p()de desvelar a opressão escamoteada 'p ela l!le~ma razão:e sobriedade, ambas-contudo . comprometidas corria boa reprodução da ordem hegemônica. Mas em Chico essas noções ~parecem, de revés, como· ger.rrie e vdculo para ·uma renovada -ordem :e lucidez. Aqui, a tal consdênç;ia emancipador~ não raro passa pelo' .~stado ébr:_io. A"~emb~iaguez não é·o óp'i o qu~ masc-ara,· não é o contrário ~a corisciên<:ia sodolôgiça, ne.m seu.refúgio nem ~~u refugo, n:as ·tantas ·_veze-s condição de sua:Jlor.esc~nci~· ~· ela~ot~Ção. O estado embriagado torna o perso~ nagem espeCiqlment.e sensív,el a uma inteligibilidade das contradições, _donde ~se esboça, indU:siye, algum desenho de práxis. A embriaguez' reduz diferenças. o que dispersava agora reune- como assim' é nd carnaval ou no fute~ol; 'a substância do líquido e do éter a doar no.ção de pertencimento coletivo. Einbriagado, o personagem ·de "Pelas tabelas" (r 9 84) confunde-se ·na vertigep1 que tomou~s ruas em f~sta cívica e carnavalesca de umaredemocratização 'do país vestida em amarelo da seleção de futebol- · "todo mundo na rua de blusa amareIa" .


Ando com minha cabeça já pelas tabelas [... ] Qyando vi todo mundo na rua de blusa amarela [... ] Qyando ouvi a cidade de noite batendo panelas [ ... ] Quando vi um bocado de gente descendo as favelas I Eu achei que era o povo que vinha pedir I A cabeça de um homem que olhava asfavelas [... ] Eu achei que era ela puxando um cordão.

O desencontro entre ele e a amada aparece replicado na rua (outra vez, derrama-se do individual e do subjetivo) e tudo toma uma só forma e sentido em noite bêbada, "minha cabeça já pelas tabelas", e festa barulhenta, "quando ouvi a cidade de noite batendo panelas"; toda gente, como em "Estação derradeira", "descendo as favelas" rumo à cidade, agora de encontro ao "homem que olhava as favelas", sua cabeça posta à caça dos cidadãos de cima. A festa subitamente dilui-se na guerra. Aí o código amoroso da relação diádica ele e ela passa a apenas sobrenadar o tema coletivo, como a visão de "que era ela puxando um cordão". Mas embriaguez, delírio, paixão, loucura, acompanham-se da luta e da guerra. "Quantas guerras terei que vencer" contra a "infinita aflição" ("Sonho impossível", I 9 7 2). E amanhã, se esse chão que eu beijei I For meu leito e perdão I Vou saber que valeu delirar I E morrer de paixão I E assim, seja lá comofor I Vai terfim a irifinita ciflição I E o mundo vai ver uma flor I Brotar do impossível chão

A aflição fragmentada de repente alista-se num só cordão e numa só corrente de esperança quando irrompe o tempo do samba. Qual "Sonho de um carnaval" (I 96 5), uma só vontade desperta ou cria tal sentimento coletivo de fraternidade de maneira que a congregação, não obstante, prepare a libertação. Era uma canção, um só cordão I E uma vontade I De tomar a mão I De cada irmão pela cidade


Porém,-música de estorvo, as tensões movimentam -se seja nos torvelinhos desvairados da moça sambista, seja na corrente coletiva, seja sobretudo quando uma e outra escala se infligem reciprocamente, quando então, inesperadamente, dá-se o salto do individual para o coletivo, da dor miúda à dor geral, do pedaço para a estrutura, continuando-se um no outro, contaminando-se de semelhantes sensações e juízos. Essa passagem dos anseios e desejos do particular para os cordôes coletivos, da ordem à desordem, da reprodução à revolução, essa passagem pois mediada pela noite, pelo · samba, pela festa, pela bebida, pe~a loucura-que por sua vez catalisam as tensões e expõem os incômodos e frustrações soterrados pelo dia, pelo trabalho, pela lucidez da normalidade estabelecida-· aparece sempre iminente a eclodir. O canto que apazigua e ama é o mesmo canto de guerra e de ódio, cuja punhalada do grito não conhecerá perdão aquele "quem não for meu irmão" ("Baioque", I 9 7 2). @ando eu canto I Qye se cuide I @em não for meu irmão I O meu canto da Não conhece o perdão . [ ... ] Eu odeio I Eu adoro I Numa mesma oração I Quando eu canto

I

I Punhala-

Assim é que subitamente o drama individual se desfia no coletivo-porque são dramas de mesma natureza, ordinariamente separados pelo trabalho cotidiano opressor e por sua ordem de lucidez dissimuladora. Mas de repente o átomo dispara uma ação em cadeia, a parte e o todo se dão por si, se reconhecem na torrente, se agremiam no mesmo cordão, a faísca ateia fogo na rede, as escalas se reduzem uma à outra, o advir adianta-se. Como a festa, a categoria temporal da noite fornece ocasião propícia. É a dialética do "trabalhando a noite, preparando o dia", a fantasia que, longe de retirar-se dos problemas cruciais, deles muito ma.is se aproxima, desconfia e abre à reflexão crítica. Ora, quando os elementos de ocasião (festa, noite, sam-


ba) combinam-se aos elementos de condição (embriaguez, loucura, marginalidade), é que se fendem as frestas através das quais mira-se qual porvir. Sob o efeito do vinho e da música, a noite revirada revela o dia. Festivo como religioso, o canto contrário "canta a santa melodia". Polissêmica, a fantasia ("Fantasia", 197 8) parece evocar um tempo (retrospectivo ou prospectivo) em que reine a noção religiosa de justiça, e que daí converte-se na fantasia da sociedade do trabalho humanizante e também justo, e que igualmente, por fim, traduz-se na fantasia própria da ocasião da festa, como pela vertigem ébria · do vinho entornado. Trabalhando a terra I Entornando o vinho · [ ... ] Canta à santa melodia I Canta mais I Revirando a noite Noite e dia, noite e dia

Revelando o ·dia

Apenas paradoxal na aparência, é melhor a visão da noite, mais clara, reveladora. É a temporalidade que suspende o trabalho do dia, a obrigação e a regulação diurna, certas regras relaxam ou dissolvem-se quando as diferenças empalidecem e todos os gatos são pardos. E' justamente à noite que o tempo do relógio, que domestica a percepção do tempo natural do claro e do escuro, pode mais facilmente ser traído ou manipulado. Porque à noite, diferentemente do dia, a luz (ou sua ausência) transcorre a mesma por longas horas. Não há gradiente que varie de um alvorecera um crepúsculo, cuja sucessão de esta~os naturais a sucessão dos ponteiros mecânicos ou a contagem digital aprisiona, de tal modo que dizemos este é um sol de oito horas, agora deve ser uma da tarde ou essa luz é de seis da tarde. Ao contrário, à noite somos dados a nos perder na extensão demorada do escuro-só de ·repente amanhece. Ora, quando por breve que seja nos sentimos perdidos, isto é, d_e scoordenados de tempo ou de espaço, então a criação pede passagem, a novidade quer-se à vista. Daí que

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o período da noite pareça vocácionado à conversão, tempo de viragem, dobradiça da ordem. Afastado da luz que mais cega do que ilumina, pois comprometida com o hegemônico, o poeta re-totaliza o tempo, presentifica o presente, ele vê e prevê, ele próprio ou por sobre os ombros de seus personagens, sobretudo confunde-se com as inquietações cantadas e traduz possíveis aspirações do outro de mim coletivo. o caso é que o sujeito individual ou coletivo que encarna tais condições e ocasiões subitamente tem os díspares do mundo concertados, e os totaliza. Experiência afortunada, o presente reverbera tal inteiriça atualidade que então, já o passado revisto, também de súbito o futuro desponta. Será essa experiência integral de "momento do presente", na palavra de Merleau-Ponty (I 999: I o6), o que dará forma à "estrutura de horizonte" e assim "funda definitivamente um ponto do tempo que solicita o reconhecimento de todos os outros". Abrem-se então as visadas do porvir. Em Chico, o morro prepara o advento social decisivo, ele é grávida de futuro, seja funesto ou redentor, porque em sua rocha inerte, como em "Morro Dois Irmãos" (I 9 8 9), em sua geologia cúmplice de todos os tempos, que tudo testemunhou e assim seguirá, concentram-se tempos em cuja "pulsação atravessada" a imaginação do narrador pensa ouvir o "que foi e o que será noutra existência"; por isso a ''prumada" silenciosa do morro exigir desconfiança e respeito, já que no presente dessa "montanha em movimento" o passado reativa-se e nele dura o futuro. Também aí, outra vez, é "quando vai alta madrugada" que essa imaginação temporal dá livre curso ao gênio e ao demônio do cancionista . . . É à noite enfim que o tempo pode virar e tud? ficar fora de lugar ("Sol e chuva", I 987-8). A noite que tudo conspira, "tramando coisas sobre os jornais", para mediação da rebelião de princípio erótico que extravasa o canto dos "jogados fora", pobres e retintos amantes, e assim contagia o "mundo com delícias" e ameaça "abalar o mundo" ("Amando sobre os jornais", I 979 ). A noite, o samba e o amor encerrados no quarto dos amantes, tudo desdenha o lá fora, a


manhã do dia seguinte, a buzina da fábrica, o trânsito que reclama: Assim tão bem acompanhado, já "não tenho a quem prestar satisfação" ("Samba e amor", í 969) Como o dia repudia o Ócio, a lei · vigia o estorvo) o tumor, o bandido infeliz que "vives nas sombras, freqüentas porões", quando "tramas assaltos ou revoluções", os quais, aqui no entanto, _serão sustados logo ao amanhecer, e o sedicioso pregado na cruz ("Hino de Duran", I 9 7 9). Constante no cancioneiro de Chico, as margens acusam o centro. Será nas barras do estabelecido que pór boa ventura demora-se o possível de utopias, reações e redenções coletivas. Daí que o bandido, o malandro ou a prostituta retenham a aura de herói. Igualmente, o desatino, a loucura, a embriaguez, a festa, a noite;. esses elementos que entre si aparecem tão freqüentemente associados em suas canções; tudo isso que é margem e exceção, tudo qu'e entorta o nariz do esclarecido, seja da boa ordem seja daboa revolução,receba sinal positivado em seu pensamento 3 • Não custa sublinhar que o prenúncio, talvez a promessa, é de que libertinagem e libertação não apenas não se exduam como, por provável; ocorra que uma conduza à outra. Que o carnaval, "ofegante epidemiá", incendeie a ríoite cívica e inaugure a nova cidade ("Vai passar", I 984). Cada paralelepípedo _I Da velha cidade

I Essa noite vai I Se arrepiar

que

Será quando o carnaval chegar, aliás, vou extravasar aquilo tudo embargado, poderei sem peias dizer o que,hojevejo, sei, sinto e escuto; não mais aturar 3

A temática redentora ou conspiradora do samba, associada ou não a outros elementos de

ocasião e condição, tal como sugeri, atravessa o cancioneiro de Chico Buarque desde as primeiras

canções, como em "Olê, olá" (1965), "Amanhã, ninguém sabe" (1966), "Noite dos mascarados" (1966), "Quem te viu, quem te vê" (1966), "Até segunda-feira" (1968), "Benvirida" ('1968), "Apesar

de você" (197o), "Partido alto" (1972), "Corrente" (1976) etc.


ofensas e humilhações d~stas duras · penas da vida cotidiana e de sua. lógica do Você-sabe-com-quem-esi:â:falando; toda á eufória e. a rebeldia represadas irão r.e bentar "Quando o carl?-aval chegar1' ( Í 9 7 '2). Eu tô só vendo, sabendo, .sentin:do, escutando I E não posso falar I Tou me guardando pra quando o carnaval chegar [... ]E quem me ?fende, humilhdndp, pisando, pensando I Qye eu vou aturar I Tou me guardando pra quando o carnaval chegar I E quem me vê àpanhando da vida duvida que eu vá I revidar I Tou me guardand; prá quando o carnaval chegar [ ... ] Eu tenho tanta alegria, adiada, abcifada, quem dera I gritar I Tou me guardando pra quando _o carnaval chegpr.. .

Também "Pedro P~dreiro espera o carnaval" .("Pedro Pedreiro", I 9 6 5), mas quando enfim o carnaval chegar "ninguém vai rn_e segurar", rião mais sujeição, "ninguém vai m_e acorrentar", a paixão irá desatar-se e; quiçá, '~quem tiver nada pra·perder vai formar comigo o imenso cordão" ("Cordão"' I 97 I). Ninguém I Ninguém vai me segurar I Ninguém há de me fechar I As ·portas do coração I N~nguém I Ninguém vai me sujeitar.I A trancar no peito a minha paixão [ ... ] Pois quell1 I Tiver nada pra perder I Vai formar comigo o imenso cordão

O cordão rebelde e promissor provocará o "vendaval" que ele tanto quer ver. E então I Qyero ver o vendaval I Qyero ver o carnaval I Sair I Ninguém I Nipguém vai me acorrentar I Enquanto eu puder cantar I Enquanto eu puder sorrir . . ·

Mas onde vai dar esse vendaval? Onde diluir-se tanta e toda a tensão dos meus "nervos que estão a rogar", a despeito de "todos os avisos [que] não vão evi-


-tar"- afinal, "O ,q~e s~rá qtJ.e :será?''( !·9:7-6) :· Como de há uns vinte an9s, de ·\}m "Sonho de um carnaval" (I 9 6 a .uma "Estação derradeira" -( r 9 8 7) ou a u~ "Sonhos sonhos sã~;'{ I 9 9 8), o mesmo referencial sociológic; reáu'descesse e o caldo engrossasse, o destino do cordão,- da corrente, da paixão desabalada ou das carreiras parece agora ainda mais complicado. O mesmo cordão libertador periga dar num caótico cordão cataclísmico. Os tão quistos processos ~ociais de reversão desfa~zerem-se em processos sociais de incógni~a convulsão. E que já o terror parece avançar um passo mais no visionário.

5)

I

.

-

A sua maneira I De calção I Com bandeiras sein explicação I Carreiras de paixão danada São Sebastião crivado I Nublai minha visão I Na noite da Rrand~ I Fogueira desvairada

Sob tom grave, "Estação derradeira" prospectao futuro, é uma interrogação sobre o porvir de um coletivo de amálgama social tão delgado. _O q~e virá será o depois da "noite da grande fogueira desvairada". O tempo adventício sucederá o tempo revolto, o tempo-quente. Outrora o amigo era aconselhado, • pra rua beber atempestacomo o narra dor que " corro atras do tempo " , a vir . " ("B om conse Ih o"_, I 97 2 ) . Ja outrora de, e que tam bem e Ie "venha se queimar a "chama" desimpedida e insubordinada iria sair "incendiando o plenário" e desencadear acalentados novos tempos latino-americanos ("Canción por la unidad latinoamericana", I 9 7 8). I

I

Qyem vai impedir que a chama I Saia iluminando o cenário plenário I Saia inventando outra trama ·

I

Saia incendiando o

Sem que fossem ingênuos, os desígnios do fogo revolucionário pareciam mais


retos, menos temerosos. Mas "Estação derradeira" agora adiciona reservas. Mais nebulosa torna-se a visão, as bandeiras já não bem se explicam, o fogo ameaça queimar cego e desenfreado, desvario aterrorizante. Em noite de carnaval, o magote dos desafortunados descerá intenso em carreiras rumo ao vale da festa e da guerra. Não será o tempo de cobrar a Fortuna prometida? Tempo de queimar, não é mesmo estranho que a fogueira assuma realidade literal e metonímica combinada à sua realidade simbólica e metafórica- como um motim do carnaval de 1 9 59, o episódio da destruição das barcas ocorrido na estação que liga Rio de Janeiro a Niterói. Ali a festa de saques e rito de deboche deram práxis à crítica. O ataque à residência dos Carreteiro (os donos da companhia transportadora) acabou por se constituir no acontecimento central do dia. Grupos de pessoas retiravam das casas o que podiam levar, apropriando-se de pequenos objetos tais como colares, utensílios domésticos e até televisões. Enormes pilhas .de colchões, quadros, camas, geladeiras foram feitas em frente às casas, transformando-se em enormes fogueiras. Os homens se apropriaram dos trajes de luxo das mulheres Carreteiro e instalaram um inusitado carnaval em que aparecem finas peças de lingerie vestidas por homens corpulentos, casacos de vison envergaram os corpos do amotinados, delicadas sombrinhas ornamentaram o desfile de modas que se estabeleceu, incluindo, até mesmo, maiôs e toucas de banho. O carnaval persistiu por algum tempo em torno das chamas e foi fartamente documentado 4 . Mas agora, em estação derradeira, o que estará para queimar essa fogueira real e simbólica? Parece que a especulação exige explorar o código religioso subjacente à canção-mas tão subjacente quanto estruturante. Poder-se-á então suspeitar que as "carreiras de paixão danada" invoquem uma 4

Notícia m encio nada por Edson Nunes, em estudo de 1975, apud DaMatta, (idem:39) .


antiga utopia profetista cuja realização mito-histórica passaria pela prevista auerra escatolóaica e apocalíptica do fim dos tempos. Tal visão, velha conhecida do abrangente pensamento católico brasileiro, diria, · por exemplo, de quando os filhos dos ricos e gananciosos brincarão "com merda" e os pobres e injustiçados "hão de brincar com bola de ouro", conforme uma "narração visionária do velho Nhô Roque Lameu" recolhida por Anfonio Candido aí mesmo por 1950 em pesquisa sobre grupos rústicos paulistas. Mas há de chegar o tempo que vai se ver isto: todo sal, açúcar e manti- . mento vai ser racionado; o povo do sítio há de vestir seda e o povo da cidade pano grosso; os filhos dos pobres hão de brincar com bola de ouro e os filhos dos ricos com merda. Aí, vai aparecer o Anticristo, que há de fazer estes milagres: as montanhas mudar de lugar, as casas virar para o nascente. Depois do Anticristo há de vir um chifrudo. A obra dele vai ser que os filhos hão de matar os pais, e os pais hão de matar os filhos; as filhas hão de matar as mães, e as mães hão de matar as filhas. Pra fazer isso, todos vão pegar no pau-defogo. Dizem que Deus há de mandar fogo para acabar com o mundo; mas o estrago vai ser aqui mesmo, uns matando os outros (Candido, 1977: 196). O mundo, isto é, este mundo de pobreza, desigualdade e sobretudo já desprovido de sentimento pio (tal sentimento cristão que constrange à troca e ao compartilhamento do pão), este mundo degenerado irá sucumbir no fogo lançado por Deus, e uma nova ordem, pós-apocalíptica, sobrevirá com os novos, abundantes, justos e bem-aventurados tempos. Porém, capital notar, esse episódio da destruição santa e redentora incorpora no enredo figuras de princípio maléfico, como o Anticristo e o chifrudo. A propósito da mentalidade rústica, aliás, Antonio Candido bem observou que "o Anticristo faz milagres, como a besta, que representa um princípio demoníaco de oposição" (idem: 197). Mensageiros que reúnem o céu, a terra e o mundo infernal subterrâneo, as legiões de anjos e demônios se confundem em figuras que po-

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dem ocupar circunstancialmente ora a posição do Bem ora a do Mal, sobretudo concertam-se numa mesma cosmologia. E' pois em "aparição apocalíptica" que o chifrudo vem cumprir a função de "desencadear a guerra escatológica" (idem), como tal prevista nas Escrituras. Ao caos do parricídio e do fratricídio · que se instalará irá suceder o tempo renovado e purificado dos novos homens.

Carreiras de paixão danada Por isso agora interpretar que a "paixão danada" das carreiras vindo abaixo tomar as ruas remeta a uma paixão possessa, talvez mais próxima do diabo, o danado popular, do que de Deus; até mesmo uma revolta contra a cumplicidade de Deus no seu silêncio face ao mundo cruel e ímpio dos seus filhos entreeles, todos que deviam ser iguais em pão e comungar generosidade. Não será que Deus esqueceu a sagrada utopia e até esteja sendo muito parcimonioso com os negligentes? Não poderão seus filhos diletos sentir-se traídos e, mal resignados, por suas próprias mãos trazer o mito para a história? (Ouço já o toque pausado e grave do tambor surdo que precede os primeiros acordes de "Estação derradeira" a criar essa atmosfera solene de chamamento e anunciação religiosa.) A sugestão forte do código religioso dos versos parece ser a de que os desventurados que se sentem deserdados de Deus reagem; e agora, guiam-se por Seu nome ou sob "bandeiras sem explicação" ou mesmo aliançados com aquele outro filho renegado de Deus, outrora um anjo mas que caiu, agora nem bem importa qual luz, se de Lúcifer ou de Cristo, qual farol iluminará o derradeiro caminho por onde o morro descerá à cidade para a "noite da grande fogueira desvairada". E de fato já não foi ensaiado o movimento dessas ''carreiras de paixão danada" desde que os arrastões do populacho em bloco vieram arrasando a praia bacana? Mesmo outra possibilidade semântica põe as carreiras sendo as de cocaína trazidas por essa mesma gente


do morro não por açaso armada_de "munição pesada". Talvez a guerra do trMico ou seu análogo ameace romper asJronteiras e amotinar a cidade inteira. . Súbito, o temor cede ao terror da "pai~ão danada" sem contudo contradizer a natureza religiosa comlJm. Talvez mesmo em nome dessa natureza, então perc~bida d~svirtuada, é que se prendem as justificativas, motes conscientes ou não, da guerr{escatológita. Já não é corno o temível forasteiro que desembarca do zepelim, qual trarisEguração de anjo mau, ·e vem provocar a redeJ1ção na cidade abrindo fogo contra 1'tanto-horror e i~iquidade"? ("Geni e o zepelim", 1977-8). Qyando vi nesta cidade

i· Tanto

horror e iniquida~e

Resolvi ' tudo explodir

Tanto ele'como a Geni prostitut<l: circulam entre o bem e o mal; a prostituta .q ue passa 'à figura redentora para logo que o_encouraçado, já dela regalado, bata em retirada e ela torne a ser maldi~a ~ Igualmente ambíguo, o forasteiro deus ex machina, espécie de-justiceiro de princípio maligno porque discerne :os pecados qué assolam a Cidade~ e co'mo qu_epara .punir; ·redimir e corrigi-ca~hões" contra la "resolvi tudo explodir". Por isso toca fogo· co~ "dois à cidade hipócrita, seus moradores que atiravam pedras à Madalena embora todos em dívida com Deús. - o·pr.efeito, o bispo e o banqueiro casados com o poder e ~s privilégios ~ Outra -vez é a remissão ao evento cataclísmico versado na mitologia, cuja função ' parece sempre a de pass~r de um velho e impuro mundo para um novo e purificado, a finalidade sendo .a de separar salvos e pecadores, justos e injustos, esse mundo que se destrói e se refaz pelo fogo, cujo símbolo é tambérri ambíguo, sendo a um só tempo divino e infer.nal, mas em ambos os modos elem-ento de virtude transformadora. Vê-se então que as mediações religiosa·s também não aparecem como Ópio impeditivo da consciência e da revolução. (Desnecessário lembrar os

mil


paradigmáticos episódios de Contestado e Canudos.) Se_o santo não faz sua parte, é o caso de contrariá-lo. Os fiéis transladam de uma para outra igreja a imagem dos santos, batem o caminho a pedir 'chuva, terra, trabalho e pão;' indo e vindo, os romeiros peregrinam, expiam, cumprem. sua parte. Mas se a troca enfim não se realiza, os santos não sendo recíprocos, pois então qUe fiquem eles a pé no meio do caminho ("Permuta dos santos", 1 9 8 9 ). Usual do catolicismo brasileiro antigo, a prática de contrariar o santo tillha por fito lembrá-lo de suas obrigações com pobres beatos. Ou mesmo criá-las, na mê-:dida em que o santo em repouso no altar é posto pra fora e só volte se sua digníssima santidade obrar algo dos rogados milagres. Bom Jesus de luz néon sai do Borifim I Pra capela de são Carlos Borro meu I O bom Jesus contrariado I Deve se lembrar erifim I De mandar o tempo defartura que nos prometeu

Se esse tempo prometido não dá sinal de presença, então seus fiéis, nada resignados e muito desaforados, irão deixar "tudo fora de lugar". Santo que quiser voltar pra casa I Só se for a pé

Os devotos demonstram não sua passividade em face dos desígnios da Providência, mas sua potência temporal que cobra na história a realização mítica do·''tempo de fartu~a que nos prometeu". Ora, se os homens bons não são agraciados, provocarão à graça. A história é chamada a mover o mito. Não é .dessa mesma potência o que fai os percebidos injustiçados tocarem fogo nesse mundo de fartura tão mal dividida? Se o tempo mítico não se adianta com seus anjos mensageiros~ suas bestas, ~e a ira_divina redentora não se instaura, então induzimos o d~do, -fazemos nós com que o dito se realize. É a mesma consciência religiosa 'que se ap;ercebe do_deus cruel que apenas "mostra os


vales onde jorram o leite e o mel" mas ressalva que "esses vales são de Deus" ("Sobre todas as coisas", 1982)-e não dos homens. Ou será que o deus I Qye criou nosso desejo é tão cruel jorram o leite e o mel I E esses vales são de Deus

Mostra os vales onde

Mas não, o próprio deus peca ao "desprezar quem lhe quer bem". Não, o amor pregado por Deus, princípio que move terra e céu, não terá sido criado apenas "pra circular em torno ao Criador". Porque há o homem, meu Deus, Seu filho e centelha. Não, nosso Senhor I Não há de ter lançado em movimento terra e céu Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel I Pra circular em torno ao Criador

Já aqui parecerá claro que a luta e a reação adquirem em Chico idioma próprio. Quer dizer, os processos de reversão social não sobrev,irão conforme preveja um tal programa revolucionário e todos seus itens de conscientização e organização de classe, levantes estandardizados contra o Capital e todo o resto, mas sim como algo cujas raízes são social e culturalmente específicas. Essa inversão de Chico quanto ao malandro, a prostituta, a embriaguez, a noite, o samba, o carnaval, o futebol ou a religiosidade, não são, como se queria de regra- ou se quer-.elenie~t~s ou fatores alienantes, falsa consciência. São antes veículos de . córíspiração ;ertibor~ se~ embutir programa de classe, tal fosse uma revolução próletar~á~en~e organizada e o et cet~ra, do anelo marxista, mas tradutores ~e frustr~ções e desej<:Ys mal contidos". E que.não 5

Mesm o em uma canção que tém

acategoria do trabalhoc;om~"objeto'central, "Primeiro de . .

.. '

maio" ( 1 9 7 7), o trabalho é percebido encantado, sacralizado ,..como ~ "be.r:dtt o ·fruto do suor". Quer


se trata mais de prospectar (agir, esperar) um futuro histórico que irá reduzir mediações e diferenças culturais à consciência una do Capital e a decorrente produção de classes sociais por ele distinguidas. Esta Revolução, outrora palavra de orde~ quase indiscutível, seria animada pela Razão esclarecedora que pavimentasse o caminho inexorável. Mas não foi que o cancioneiro de Chico apresentasse a razão compondo-se com seu contrário? O desvario, a loucura de contradizer a razão, muito antes, nela deságua. A loucura da folia (jolie) do carnaval não apenas não encobre contradições como, antes, as revela. O que portanto era ópio e alienação reveste-se agora de sinal invertido e abre possibilidades sociológicas libertárias, não porém retilíneas nem inexoráveis: não há em Chico lugar para visões inocentes e mecânicas do vir a ·ser. A razão desvairada não elimina seu ambíguo e indeterminado que tanto abrem à utopia (de fato acalentada pelo narrador) quanto como à distopia (tão temida e real): terror caótico e emancipação apaziguadora ombreiam no visionário. A súplica a São Sebastião para que "nublai minha visão na noite da grande fogueira desvairada" adianta o temor do sabe-se lá que advir avizinha no tempo quando explodirem as tensões sociais nessa e por essa noite turbulenta. O narrador parece prever sanguinolência e barbárie, mas, m esmo assim, quando abrir os olhos, na derradeira estação, ele sabe bem o que quer ver. Qyero ver a Mangueira I Derradeira estação di;l:er que o corpo que flui suor também é sagrado, e que por isso sua espoliação pelo Capital é ~ambém profanação. Que enfim a injustiça praticada entre os homens ofende diretamente a justiça de

Deus, fonte primeira e última de toda justiça. Sendo assim , nesse dia de primeiro de maio, os heróis da can ção, o casal de trabalhadores fabris, "hoje eles hão de consagrar um dia inteiro pra se amar", com o fito de fecundar o "homem de amanhã". O ato sagrado do sexo, recoberto de inte~ções utópicas, redentoras e libertárias, irá produzir o homem de amanhã, filho desse amor de lioje e sua promessa .


A derradeira estação insinua o tempo apocalíptico e depois. Tempo condensado em festa furiosa, a dialética histórica emaranha-se nas circunvoluções míticas. A estação derradeira, dilatada sua semântica, respeita assim a inscrição no espaço: a renovada cidade dos ex-pobres demais, já então desanuviada da terrível fogueira, a Estação Primeira, última a desfilar na passarela, reino dos sobreviventes de uma guerra mal prevista; e respeita a acepção que se inscreve no tempo, isto é, o tempo derradeiro, virtuoso, desfecho libertador das contradições terrenas, últimos tempos proféticos, utopia retrospectiva que rebenta o futuro, culminância de um processo que urde mito e história~ Ainda trêmulo, olhar que vacila, a qual porvir visar neste céu que se desenha logo aqui adiante? Stélio Marras é integrante do corpo editorial da Sexta Feira.

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Riferências bibliogréiflcas

CANO IDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito-estudo sobre o caipira paulista e a traniformação dos seus meios de vida. São Paulo, Livraria Duas Cidades, I 977 ·

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, I 9 8 3. HOLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque, letra e música. São Paulo, Companhia das Letras, I 9 8 9. . LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo, EditoraAnhembi, I957· MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes, I 999. www.chicobuarque.com.br


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Utopias missionárias na America

Paula Montero

[O missionário] como carpinteiro, sapateiro, pedreiro, operário, arquiteto, tem que fabricar casas, igrejas c cidades, traçar ruas, secar pântanos, cortar árvores maléficas, e plantar árvores frutíferas, tem que semear e recolher, limpar bosques c fazer florescer os desertos. —Capuchinhos, Manual de missiologia, 1 9 3 3 : 3 6 3


Em_ de~embro de r 996 os alunos de pós-graduação do Departamento de Sociologiá ·da USP (Cardoso & Silveira, r 997) se reuniam para debater as relações entre utopias e o mal-estar de nossa cultura. Ao evocar o título da obra de Freud do início do século, o seminário se propôs a reavaliar a própria utopia psicanalítica de liberar o Eros de modo que ele pudesse neutralizar as forças desagregadoras de Thanatos desatadas p elo progresso civilizatório. Em seu balanço de algumas das utopias contemporâneas (ou da inexistência delas), os autores parecem concordar que o mal-estar é constitutivo da cultura e não pode ser, portanto, suprimido por nenhuma ideologia. Cinco anos depois, Sexta Feira retorna ao tema das utopias- como objeto ou como proj eto? E' significativo o fato de que uma matéria que mobiliza o p ensamento do O cidente desde o século XVI volte, neste fim de milênio, a ser interrogada pelos antropólogos 1 • Qual seria a contribuição dessa disciplina a uma problemática já tão amplamente trabalhada? Procurando fazer um balanço dos estudos que se acumularam sobre o tema, o historiador polonês Bronislaw Baczko distingue cinco grandes linhas de trabalho : a) as pesquisas que tratam das utopias como gênero literário, procurando investigar suas estratégias discursivas, seus procedimentos narrativos etc.; b) as que privil,egiam o próprio pensam e~ to utópico, sua evolução, As representações milenaristas e as utopias, embora da m esma família, parecem constituir antípodas . Enquanto as primeiras emergem das classes populares , geralmente ligadas à te rra, as últimas se difund em entre as elites urbanas intelectualizadas. Os exemplos históricos de moYimentos milenari stas, de Müntzer na Alemanha (no século XVI), a Antônio Conselheiro no Brasil , indicam que eles estão enraizados em uma cultura oral , cuj a gramática é da ordem do sagr ado. Embora espere realizar no mund o te rre no as suas aspirações, o milenarismo não procura enun ciar uma doutrina pólítica nem imaginar um goYerno ideal. Já as utopias dependem da escr ita, que funda pela narrativa a alteridade social imaginada.

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seus temas, suas ramificações; c) as que se voltam para movimentos utópicos específicos, procurando compreender, do ponto de vista da história ou da sociologia, as instituições que engendram, seu modo de vida, as relações que estabelecem; d) os estudos que buscam compreender os símbolos colocados em prática nas utopias e suas relações com outros universos simbólicos, tais como os mitos, os milenarismos e os messianismos; e) finalmente, os trabalhos que procuram compreender as relações entre as utopias e as ideologias políticas historicamente situadas. Tomando como referência a atividade missionária católica na América, nos séculos XVI e XVII com os jesuítas, e no XIX com os salesianos, nos propomos neste trabalho a tratar a missionação como um exemplo particular de experiência utópica. Buscaremos descrever brevemente o conjunto de autorepresentações ideais que esse modelo cria para si e o tipo de instituição que essas representações projetam na organização da vida cotidiana. Antes, no entanto, de iniciarmos a análise, caberia perguntar se, considerando a visão bastante contraditória que se tem a respeito do resultado histórico da atividade missionária-muitas vezes vista como o braço religioso da dominação e da espoliação colonial-_, seria legítimo enquadrá-la como uma experiência de natureza utópica. Para que possamos localizar a atividade missionária no campo das utopias é preciso voltar rapidamente à noção de utopia de modo a compreender a delimitação específica do conceito e suas implicações.

A Missão como Utopia Em sua interessante análise dos imaginários sociais, Baczko afirma que o neologismo criado por Thomas Morus, em I 5 I 6, fundou um novo paradigma do discurso utópico e da utopia como estrutura da imaginação social. Desde então, configurou-se um consenso no qual o termo passa a designar tanto um modelo


narrativo como um lugar imaginado de felicidade e de perfeição. No entanto, diferentemente das representações de lugares de perfeição anteriores como o Éden-estático e imutável-, as imagens que codificam esse lugar de acme social supõem que a utopia é uma construção que pode ser multiplicada e modificada. Com efeito, observa o autor, "nada impede inventar novas comunidades perfeitas, como também a própria instalação desse paradigma no imaginário incita e estimula a 'brincar de Utopia"' (1984:68). Essa plasticidade da narrativa utópica constitui, a nosso ver, uma de suas principais características coino discurso da modernidade: diferentemente das idéias sobre o Paraíso, trata-se aqui da imaginação de uma sociedade perfeita como produto da ação humana e auto-regulada pelos indivíduos que nela vivem. Assim, a legitimidade dessa construção se funda na racionalidade de seu projeto e não nas certezas apoiadas em verdades reveladas. A imaginação utópica se separa, pois, do mito e da religião. Essa é, para Baczko, uma das condições essenciais que autorizam a emergência do paradigma utópico: "o surgimento de um lugar específico no qual se instala o intelectual que reivindica seu direito de pensar, imaginar e criticar o social e especialmente o político" (idem:67) Se essa é uma das características fundantes da narrativa utópica, como seria possível enquadrar o projeto missionário, que visa criar uma sociedade perfeita à imagem da ordem divina, como utopia? A primeira observação a ser feita aqui diz respeito à própria natureza do projeto missionário. Não se pode dizer, por certo, que o impulso evangelizador que move a atividade missionária se constitua em um discurso utópico. Ao contrário, a evangelização supôs historicamente tanto o banimento da heresia e do paganismo como a inclusão, muitas vezes pela violência, das sociedades ainda não conhecidas no mundo ordenado do cristianismo europeu. A certeza das verdades cristãs impedia, pelo menos do ponto de vista da geopolítica missionária concebida em Roma desde o Santo Ofício (1543), o reconhecimento das

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"virtudes naturais" dos povos indígenas. Tratava-se, isto sim, de levar a eles as noções de pecado, inferno e penitência. Mas se nos debruçarmos sobre o fenômeno missionário a partir do debate teológico que o descobrimento da América suscitou 2 , ou a partir da experiência que ordens religiosas como a jesuítica implantaram entre os Guarani, esse elemento específico de crítica social e política aparece. Retomaremos essa experiência logo a seguir. No momento, parece apenas importante ressaltar a particularidade do que poderíamos chamar de pensamento missionário utópico. Embora realizado em nome de verdades reveladas, supôs, por parte dos intelectuais religiosos, uma reflexão crítica da estrutura social e política do mundo ao qual pertenciam e a execução de um plano de ação-obra puramente humanizada e racionalmente arquitetada- que visava edificar a sociedade à imagem de uma concepção de coletividade perfeita. Como bem observou Baczko, o discurso utópico não se reduz ao modelo narrativo criado por Morus. Uma vez instalado como regime do imaginário social, o paradigma utópico se articula e se alimenta das idéias filosóficas, das correntes ideológicas e dos movimentos sociais de uma época. Mas o que caracteriza essa multiplicidade de discursos é uma certa representação de alteridade social. Assim, voltando à experiência missionária podemos dizer que não houve, do ponto de vista da ortodoxia romana, uma proposta de construção imaginária de mundos alternativos, e sim um projeto de redução das diferenças ao mesmo. Pelo menos no que diz respeito à experiência americana, pode-se afirmar que tanto as projeções que os europeus produziram sobre esses povos, muitas ve2

Autores como Pagden e Hanke são importantíssimos para compreendermos o impacto da

chegada à América sobre o pensamento político do começo da era moderna. A existência dos "selvagens" e seu modo de vida interpelaram a reflexão européia sobre a condição humana, a liberdade e a legitimidade do poder político.


zes percebidos como paradisíacos, como as instituições sociais construídas pelos padres para abrigá-los, foram moldadas por esse paradigma específico do imaginário social que representa outros seres e outras sociedades como radicalmente distintos e opostos à sociedade existente, em seus males e vícios. Nesse sentido, as missões representariam uma estruturação historicamente datada das esperanças coletivas de um segmento social da sociedade européia. Em particular, a experiência jesuítica entre os Guarani, que posteriormente se tornou o grande paradigma da atividade missionária, se propôs a construir uma sociedade em que se receberam, elaboraram e produziram os sonhos de uma determinada imaginação coletiva.

Utopia missionária e humanismo filosófico Erudito e humanista, Thomas Morus nutria uma profunda amizade com Erasmo de Rotterdam, autor de Elogio da loucura e inspirador de seu livro Utopia. Na interpretação de Baczko, esse texto mantém uma relação estreita com o meio sociocultural de intelectuais humanistas do qual é produto. Foi nesse e para esse meio que ele teria sido concebido (idem:65). Mas também foi aí que se forjaram as vocações missionárias de Inácio de Loyola e Francisco Xavier. Contrariando a imagem de que os jesuítas seriam um comando papista a serviço de uma guerra contra a Reforma, Jean de Lacouture (I 99 I :48) avança na hipótese de que eles podem ser considerados um ramo do humanismo parisiense do Renascimento. Essa primeira geração de jesuítas, agrupada em torno de Loyola, recebeu uma educação filosófica e literária, e constituiu um grupo de intelectuais motivados mais pelo saber do que pela fé. O autor reconhece, certamente, que o humanismo inaciano não teve o mesmo Ímpeto que marcou a polêmica entre Erasmo e Lutero sobre o livre-arbítrio, na qual a liberdade humana se debate entre a natureza e a graça. No entanto, o Renascimento francês, e~bora

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mais tardio que o inglês e o italiano, partilha do movimento que incita a Europa cristã ao descobrimento das culturas pré-cristãs, como fonte de inspiração para uma reflexão crítica dos textos e fundamentos do ensinamento da Igreja . .Não se pode esquecer que, naquele momento, Paris é um campo de batalha no qual o luteranismo ameaça a hegemonia católica. Embora Loyola não questionasse a legitimidade da Igreja e de seu aparato sacramental, seu espírito se forma no bojo de um amplo debate que opunha escolásticos e humanistas. Os humanistas, sob a proteção do rei Francisco I, procuravam, no conhecimento do latim e do grego, fontes autênticas que autorizassem a crítica aos textos escolásticos. Conflito de idéias, enfrentamentos doutrinários, debates sobre método prenunciavam, segundo Lacouture, "mutações tumultuosas onde, em uma cidade em plena expansão demográfica, arquitetônica e comercial, ferm entada pela guerra que o rei da França leva com Carlos V, a Idade Média se termina em convulsões cedendo o passo à sociedade do RenasCimento" (Lacouture, I 9 9 I : 5 I , 7 2). .. No entanto, o humanismo cristão no qual se forjaram as vocações da primeira geração de jesuítas constituiu, segundo esse autor, os fundamentos de um humanismo mais amplo, que ele-chama de mundialista, inspirado nos grandes périplos de Magalhães e de Colombo e nos prolongamentos que lhe deram Francisco Xavier e Mateo Ricci no Oriente. Assim como no texto de Morus, no qual as peregrinações do marinheiro Hitlodeo pelas terras do Novo Mundo o levam a" [ ... ] extrair lições com vistas a corrigir os abusos que fazem estragos em nossas cidades, em nossas nações, em nossos reinos" (Morus, I 9 8 9: 3 7 o), as cartas de Loyola a Xavier no Japão mostram a "fertilidade das trocas antropológicas iniciadas entre o humanismo formado na escola de Paris e as riquezas humanas que o alargamento do mundo trouxe à luz, antes de saqueálas" (Lacouture, I 9 9 I : 8 5). Mas será apenas nos séculos XVII e XVIII que a noção de utopia ganhará as ressonâncias que permitirão aproximar o empreendimento jesuítico entre os


Guarani aos relatos utópicos. Ao significado original de experimento puramente humano e racional se agrega a idéia de um projeto de legislação e sistema político ideal. A República de Platão era o texto reiteradamente citado como referência desse modelo de utopia. Mas a "República Guarani" foi rapidamente assimilada a esse paradigma. Assim, é no contexto das preocupações filosóficas do Século das Luzes sobre a natureza do poder e da origem do Estado que se pode compreender o interesse do século XVIII pelos jesuítas no Paraguai. O "doce" jugo dos selvagens pelos jesuítas parecia equacionar de maneira bastante satisfatória o problema do exercício da soberania, da relação entre política e religião, da necessidade da legislação e da legitimidade do legislador. Com efeito, os discursos sobre o Paraguai pareciam constituir a prova da possibilidade de uma transferência feliz dos modelos utópicos para o plano da história.

A República Guarani do Paranuai As cidades desenhadas por Utopo, legislador e arquiteto, são protegidas dos invasores por uma larga muralha. O traçado de suas ruas é reto e linear para facilitar a circulação; suas casas são espaçosas, limpas e rodeadas de jardins. Os habitantes mudam de casa a cada dez anos, por sorteio, de modo a garantir que nada seja considerado propriedade privada. O modo de vida é comunitário e todos são obrigados a trabalhar, embora a jornada seja de apenas seis horas diárias. O restante das horas livres deve ser destinado ao trabalho intelectual porque as instituições do Estado têm como objetivo que a gente fique livre do trabalho físico a maior parte do tempo possível, o tanto permitido pelas necessidades públicas, e que possam dedicar-se ao cultivo da inteligência, por estimar que nisso reside a felicidade da vida (Morus, 1989:6o). A unidade social e a vida cotidiana das cidades de Utopia estão baseadas na família, composta de pelo menos 4 2 adultos. Cada conjunto de trinta famílias se

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agrupa sob a liderança de um magistrado eleito anualmente. O governo vigia o equilíbrio demográfico e controla os deslocamentos entre as cidades. A vida econômica não conhece nem a troca nem o dinheiro. As leis são simples, poucas e claras porque tudo concorre para que os utópicos tenham uma vida feliz. Segundo o minucioso relato-do historiador italiano Ludovico Muratori, que muito contribui para fixar o mito da República Guarani no imaginário europeu, o Estado fundado nas reduções do Paraguai no início do século XVII tinha a mesma ordenação milimétrica do tempo e das gentes. Ali não existia propriedade privada nem dinheiro, e todos trabalhavam para o benefício da comunidade. Perto (das casas dos missionários) estão os armazéns e os celeiros públicos onde se guardam em comum todos os grãos, a erva Cuà, o algodão e as outras provisões, que serão distribuídas anualmente aos índios em função de suas necessidades. [ ... ] Um dos mais sólidos fundamentos da paz e da união que reinam entre esses índios é sua total privação de espécies de ouro e prata e de qualquer sorte de moeda. Esses ídolos de cupidez lhes são absolutamente desconhecidos. [ ... ] Todos os que erram são punidos com severidade. E igualmente de interesse público e dos particulares que cada um cumpra suas tarifas e que os preguiçosos não vivam às expensas dos que são assíduos no trabalho (Muratori, I 9 8 3: I 50; I 5 I ; I 53). f

Trabalho, vida austera e frugal, ausência de paixões e respeito à hierarquia, eram os preceitos-chaves da organização da vida nas reduções. Inspirada nas disposições das ordens monásticas, a sociedade jesuítica das missões era geometricamente ordenada de modo a garantir o mais perfeito controle do tempo e a total transparência das relações sociais. Também do paradigma conventual os jesuítas retiraram mais duas características importantes das reduções: seu isolamento- europeus e outros religiosos não podiam se fixar na área- e a adoção


de uma língua própria-os jesuítas abandonaram o espanhol e codificaram o guarani escrito. Vemos, pois, que o Estado teocrático criado pelos jesuítas e sustentado em uma economia agrícola comunitária dependia, como no caso de Utopia, de um total controle político da vida cotidiana de seus habitantes. A assimilação do Paraguai ao país da Utopia se apropriava do mito da Igreja primitiva-comunitária e piedosa-de modo a recuperar como valor a moralidade profunda do homem cristão. As descrições sobre os celeiros públicos, as terras comunais, a ausência de dinheiro e de propriedade evocavam as virtudes da solidariedade e do socorro mútuos dessa Igreja primitiva, fazendo convergir as duas imagens. Com efeito, pode-se dizer que a experiência jesuítica no Paraguai, ou pelo menos as narrativas _engendradas em torno desse experimento- muitas vezes considerado em sua filiação direta com a narrativa de Morus- , constituíram-se em um dos mais importantes modelos do pensamento utópico do Século das Luzes. Segundo Girolamo Imbruglia, a originalidade do experimento jesuítico residiria no fato de que teria sido capaz de associar dois modelos imaginários de utopia em um acontecimento histórico concreto: o modelo da utopia como "polícia", isto é, controle perfeito do indivíduo como garantia de felicidade para · todos e o modelo de utopia como comunismo primitivo. Assim, "duas linhas teóricas que, até então, caminhavam estranhamente separadas encontram um ponto de encontro na história: o Estado jesuítico do Paraguai". Para esse autor, trata-se de um marco importante na história do pensamento utópico, que adquire, então, a forma social e política do comunismo (Imbruglia, r 9 8 3:3 o). A idéia _de que a comunidade de bens seria a base da felicidade e da moralidade perfeita e justa é característica do século XVIII. Nesse momento, imaginase que esse ideal monástico poderia ser estendido para uma comunidade mais ampla de homens livres. Imbruglia sugere que a existência do Paraguai dava a esse sonho força e consistência, transformando um ideário religioso em aspiração

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laica e atéia. E mais do que isso, o Paraguai teria conferido a essa aspiração uma estrutura polftiea específica: o Estado. O descobrimento das populações americanas representou o confronto do pensamento político europeu com a existência de sociedades sem poder estatal. A obra civilizatória dos jesuítas consistiu na introdução dessa forma de governo a partir da compreensão que tiveram do poder dos xamãs e da palavra do chefe. Reunindo o poder político ao poder religioso fundaram um Estado teocratico. Com a lei de Deus, os jesuítas introduziram a lei do Estado: o reconhecimento da necessidade de obedecer. Aí teria residido o grande fascínio do século XVIII pelo trabalho dos jesuítas no Paraguai. A República Guarani, ao se implantar em sociedades livres do .dever de obediência, suscitava o debate sobre a própria natureza do poder e da transição para o Estado. As narrativas sobre o Paraguai, conclui Imbruglia, "permitiam apreender em sua historicidade a própria noção de poder em todas suas estratégias. [... ] Mas para além dessas questões sobre o porquê e o como do nascimento do Estado, o Paraguai colocava também a questão última da política: que tipo de Estado impor" (idem: I s-9 ).

A arquitetura da missão·salesiana no Brasil . O século XIX é o século da ciência. As visões de sociedades ideais descritas nas narrativas utópicas se apresentam como verdades fundadas cientificamente. Elas expõem sistemas de reformas so~iais baseados em uma' crítica à sociedade urbanoindustrial em plena expansão. A continuidade às utopias dos séculos anteriores é clara: "são representações de uma Cidade distinta, coerente, transparente e harmoniosa na qual o projeto fundador se encontra plenamente realizado nas imagens do cotidiano, povoado por novos homens que gozam de uma vida feliz e de costumes regenerados" (Baczko, I 9 84:9 I). Mas, ao contrario das primeiras, as utopias do século XIX são projetos a serem desenvolvidos pela engenharia humana no plano da história.


Esse foi o espírito que mobilizou o renascimento missionário da segunda metade do século retrasado. Como bem mostram Jeari e John Comaroff em seü -estudo sobre as missões protestantes na Africa do Sul, o debate europeu que mobilizava essa atividade girava em torno da moralidade e do controle do trabalho livre. O . campesinato personificava o estilo de vida tradicional no qual grupos domésticos produziam o suficiente para si e esta~am livres -para desfrutar o ·produto de seu esforço. Inspirados nos reformadores que marcaram o sécqlo, como G. Owen e Saint-Simon, buscaram no progresso a reconciliação da fábrica com o trabalho doméstico, esperando um retorno à existência rural e à vida comunitária ( Comaroff e Comaroff, I 9 9 2: I 9 o-2). Esses sonhos pareciam ·não poderem realizar-se na Inglaterra, enquanto o. mundo· não europeu parecia ilimitado. Os missionários; muitos vindos do mundo rural, foram construir sua utopia do paraíso perdido nos vastos· territórios selvagens da Africa e da América. . Vejamos agora como.e-ssas ressonâncias utópicas reapareceram; no-final do século XIX, no projeto missionário dos salesianos no Brasil. I

.

.

I

As missões salesianas no Mato Grosso e ná Amazônia

A congregação salesiana chegou ao· Brasil em I 8 8 3' (), pedido do imperador d. Pedro li, que esperava colocar um ponto final nos conflitos entre índios e grandes proprietários de terra. Sua chegada em I 8 94 ao Mato Grosso, onde tomam posse, por iniciativa do governo, da colônia militar Teresa Cristina, coincidia com o projeto provincial e estadual de ~svaziar o território. Havia cinco anos, o governo do estado do Mato· Grosso .vinha investindo na tentativa de concentrar os Bororo do vale do São Lourenço nas colônias militares de Santa Isabel e Teresa Cristina. Ass~m, as missões eram, pois, chamadas à região com a tarefa oficial de colaborar no projeto de consolidação daquela nova fronteira nacional que pretendia ligar Cuiabá e Goiás em um sistema econômico estável (Vangelista, I 996). Ao ser nomea-


do diretor da colônia por ato de governo, em abril de I 89 5, padre Giovanni Balzola herdava trezentos Bororo e um contingente de 2 5 soldados. Aos missionários pretendia-se delegar a responsabilidade do adestramento dos nativos nas tarefas agrícolas, que resultaria na mão-de-obra das terras liberadas pelo processo decolonizaçã<;>. A presença da congregação salesiana no Brasil Central consolidou, pois, sua implantação na região em dois grandes momentos: o período da expansão das fazendas de gado no final do século XIX, que exigiu a redução dos Bororo do planalto do Mato Grosso, e o período posterior à década de I 9 3 o, que deu início à sua aproximação com os Xavante, na região leste, no triângulo formado pelo rio das Mortes, rio das Garças e rio Araguaia. Na primeira etapa, a criação da inspetoria de Mato Grosso em I 896, que congregou 45 salesianos, trouxe expressivo contingente de braços para o trabalho missionário, conferindo-lhe grande dinamismo. No início do século, sucedeu-se a fundação de novas colônias 3 • A transformação da região do Mato Grosso em prelazia pela Santa Sé, em I 9 I 4, sinaliza a importância estratégica para a Igreja de sua implantação nessa área. Em reconhecimento ao trabalho realizado, Roma concede aos salesianos o controle desse território, confiando-lhes ainda a prelazia do Registro do Araguaia. Os bons resultados ali colhidos facilitariam também a extensão da hegemonia salesiana para a área do rio Madeira, onde, em substituição aos capuchinhos, recebiam a incumbência de zelar pela recém-criada prelazia de Porto Velho. Portanto, é possível afirmar que, no curso de trinta anos de atividade, os salesianos conseguiram garantir para si o controle da região. No alvorecer da década de I 9 3 o já recebiam 3

Em I 90 2, um grande contingente de índios foi congregado na colônia Sagrado Coração de

Jesus. Em I 905, foi criada a colônia Imaculada da Conceição do Rio das Garças. Em

I

906, pouco

antes de seu fal ecimento, o m édico Joaquim Manoel dos Santos doava à Congregação uma fazenda de

2o

mil hectares que se tornou a colônia São José, no rio Sangradouro. Cinco anos depois, ela

reunia 374 índios.


metade das subvenções oficiais destinadas às instituições católicas missionárias. O deslocamento das frentes pastoris e extrativas para o leste mato-grossense confrontavam os colonos com o perigo xavante. Inaugurava-se, assim, uma segunda etapa na atividade desbravadora dos salesianos. Por mais de vinte anos, padres e expedições do governo federal percorreram a região buscando meios de se implantarem. Em I 9 3 3, os padres João Fuchs e Pedro Sacilotti, acompanhados pelo coadjutor José Pellegrino, fundaram o posto avançado Santa Terezinha, às margens do rio Araguaia, na esperança de localizar as aldeias xavante e suas áreas de perambulação, mas foram mortos por esses índios no ano seguinte. A grande personagem dessa exploração pioneira foi o padre Antonio Colbacchini. Assumindo a frente de expansão em substituição ao padre Hipólito Chovelon, que havia conquistado o feito de um primeiro contato não de todo hostil com os Xavante em I 9 3 7, Colbacchini percorreu o rio das Garças e seus afluentes sem muito resultado, mas acumulou grande conhecimento da região. Em I 94 3, Getúlio Vargas outorgou aos salesianos a responsabilidade de organizar a expedição Roncador-Xingu, marco histórico na ocupação do leste do Mato Grosso. Quase três meses depois de sua partida, a expedição chegava à margem direita do rio das Mortes, onde implantou o núcleo de Xavantina sob responsabilidade da congregação. No entanto, foi o ' Serviço de Proteção ao Indio (SPI) que, em I 947, conseguiu pela primeira vez o controle efetivo sobre um grupo xavante. Ainda assim, somente dez anos depois (I 956 - 7), foi instalada pelos salesianos uma aldeia destinada a recebê-lo-São Marcos- quando os índios das aldeias Parabebu e Wedetede, perseguidos por colonos e fazendeiros, buscaram refúgio nas missões bororo de Sangradouro e Meruri . No Alto Rio Negro, o contato dos índios com a atividade missionária é bem mais antigo. As missões jesuíticas datam do século XVII. Elas foram sucedidas pelos carmelitas entre I 69 5 e I 7 55, depois vieram os capuchinhos e os franciscanos, expulsos pelos índios em I 8 8 8. Os salesianos se instalam na r egião em I 9 r 5, sob o comando de d. Balzola, en cerrando um longo período de ausência da Igreja

66


na reg1ao. O papa Pio X, em decreto da Sagrada Congregação da Propaganda Fide, de junho daquele ano, confiava à congregação a administração da Prefeitura Apostólica do Rio Negro. A _experiência adquirida com os Bororo no Mato Grosso e o apoio político ·e econômico do governo permitia aos salesianos uma instalação rápida e eficiente. Em menos de trinta anos, espalharam missões nos pontos estratégicos da região~. na confluência dos grandes rios-de modo a controlar todo o _território e sua população (I924,Taracuá; I929, Iauaretê; I94o, Pari-Cachoeira). Segundo Aloísio Cabàlzar Filho, essa ativa ocupação do rio Uaupés pelos salesiànós definiu, até muito recentemente, os parâmetros das relações ~ntre índios e brancos na região (I 999:6). . Pode-se dizer, pois, que o processo de estabelecimento dos salesianos no Mato Grosso e na região amazôÍ:úça cornpletou~se na década de I 9 50. Apesar dqs conflitos pontuais que envolvera_m padres, íridios,Jazendeiros e garimpeiros riessesúltimo~.-quarenta anos, o desenho geral da: implantação missionária pouco se modificoudesde então. No entanto, o vigor de sua influência já não é mais o mes- · mo. Paradoxalmente, não foram os conflitos gerados co_m a sociedade envolvente pela disputa territorial e extração de riquezas que mais abalaram os·aliterces de sua hegemonia, mas sim o impacto da crise ideológic:a ..dos anos 1970, que pôs em xeque o modelo tridentino de missão'. Terminada·a fase de implantação e consolidação das missões que acompanhbu ás políticas de ocupação dessa-parte do território, a atividade missionária teve de reorgan~zar sua:s formas de. ~u,stentação e as bases ideológicas de sua legitimidade . · . Fundada em Turim, -e m I 869, a Sociedade Salesiana teve de se ajustar, desde sua criação, às exigências impostas pela RestauraçãQitaliana que, a partir-de 1 848, · extinguiu os tribunais eclesiásticos, proibiu a's corporações religiosas e leigas de ' adquirirem propriedades ou receberem bens sem.autorização do Estado e estendeu aos religiosos as obrigações do serviço militar. Nesse contexto de crescente secularização do Estado, Pio IX propôs que as regras salesianas fossem de fácil


observância e que, nem o hábito nem suas práticas de piedade distinguissem os clérigos do inundo envolvente. Proibindo os padres de participar da vida política municipal e prpyincial pela lei de I 8 56, o Estado obrigou as casas religiosas a se especializarem na instrução e assistência aos enfermos (Lei Ratazzi, I 8 55). Foi um modelo de civilidade urbana moderna e de formação integral da juventude que a congregação salesiana trouxe consigo, em sua.bagagem para a América 4 •

O lugar do índio no plano pastoral salesiano '

.

.

O referente intelectual mais organizado e sistemático da pedagogia salesiana voltada pará os nativos está na obra do padre Antonio Colbacchini, À luz do Cruzeiro do Sul, de I939· Gerad~ a partir de uma experiência de quase cinqüenta anos de atuação entre os Bororo, essa obra pode ser cons'i derada referência para o apostolado salesiano. 4

Vê-se que, ·~O contexto político da época, o programa salesiano se desenhaYa como propos-

ta de colaboração com o poder liberal . As finalidades . da soci~dade em seu texto regulamentador

à juventude operária. A novidade introduzida pelos salesianos foi a criação de internatos baseados no controle "de> tempo do aluno por meio de ( 1

8 r; 8-9) visavam prestar assistência material e religiosa

ativiqades orientadas, que o submetesse a uma vigilância continuada . Esses estabelecimentos eram

càp~es de .organizar suas atividades nas áreas mais importantes da ' 'ida cotidiana: relações familiares , relações de trabalho e tempo livre . No campo da família, procuravam suprimir a promiscuidade doméstica de sexo e idade, fonte, em seu entender, de delinqüência e semente de todos os vícios. Além disso, os internatos preocupavam-se em tornar

Ç>S

jovens aptos para toda forma de ofkjo:

sapataria e alfaiataria, encadernação e impressão, carpintaria e serralharia, Úteis para a indústria de construção, então em franco crescimento. Finalmente, os padres disputavam com os patrões o controle do tempo livre. Reivindicavam o respeito aos domingos e dias santos e buscavam preencher o tempo ocioso cotn passeios, jogos, cantos, ensino religioso e assistência aos cultos.

68


Imbuído das idéias evolucionistas de seus contemporâqeos, Colbacchini estava conven~ido da inferlo!i'dade natural do índio. E nem poderia, é claro, ser de outra maneira; já que as ciências naturais e humanas do final do século XIX haviam . enraizado, definitivamente, essas convicções n:o coração das pessoas cultivadas; A diferença física e inteleçtual· que 9-ava suporte a essa percepção, somava-se uma certa visão róusseauniana do homem natural: "o selvagem não trabalha, não planta, não colhe, não se preocupa com o amanhã ... dedica-se à caça e à pesca com() necessidade que a vida lhe impõe e como sagrado dever" (Colbacchini, 1939:59). Assim, o que caracteriza o selvagem é, de um lado, sua· aptonom~a·, e de outro, s-y.a imprevidência. Em homologia ao homem natural, que, reconhecendo as virtudes da vida em sociedade, submete-se ao contrato, abdicando de sua liberdade, Colbacchini espera que o índio abandone sua autonomia e aceite o,;trfibalho como condição imposta por Deus ao homem, nom.~rnento de sua expu~sãodo 'Para~·so. Assim, mais do que uma resposta à conjuntura econômica do desapossamento do índio, o trabalho é a base do contrato fundador da sociedade cristã, pois garante uma relação de dependência e troca entre o homem e a natureza. A vida no Paraíso representa o tempo mítico da abundância e da completude: a nature:t;a é bo~ e o homem tudo recebe. Já a vida humana define-se pela privação, e o· homem devérá apreender a cuidar da te~ra para _dela tirar o fruto de suá subsistênda:. No· qúe diz respeito .à vida religiosa dos. nativos, Colbacchini estava convencido de que as formas culturais que presenciava constituíam:' os ;vestígios ..arqueológicos de uma civilização superior já desaparecida (idem: 52). Sob esses reman.escentes degenerados ainda se podiam perceber, no entanto, pálidos vislumbres da superioridade de outros tempos. Considerando os mitos bororo como registro mnemônico desse tempo, o autor procura atribuir-lhes sentido referindo-os aos mitos cristãos. Assim, tomando um mito bororo.sobre a grande ·inundação como referência, o autor o interpreta como registro h_istórico da grande decadência da civilização nativa: a partir desse momento, o homein ter:ia caíd() no isolamento . \


e ficado reduzido a viver como as feras. Com base nesse ponto de vista, as finalida. des da missão ganhavam forrri~ sentido. Tratava-se de reunir os fragmentos culturais remanescentes e. recupera~ neles a predisposição para o divino. Aliando, assim, espírito científico e responsabilidade religiosa, a missão deveria colocar o conhecimento a serviço da descoberta da transcendência perdida, de modo a rei.ntegrar essa humanidade esquecida_à geografia planetária do reino de Deus.

e

A arquitetura da missão

Uma das formas m~is ~ficazes de compreender a cosmologia que organiza o empreendimento missionário e observar o modo como suas edificações se implantaram no espaço. Desse ponto de vista, chama a nossa atenção a semelhança entre o plano urbanístico 'das missões salesianas, como as vemos hoje, e a organização espacial das reduções jesuíticas do seculo XVII 5 • Com efeito, as reduções forneceram às gerações posteriores. o modelo mais bem realizado de organização missionária 6 • .

s

Embora se atribua aos jesuitas essa invenção, a redução dos indios em aldeias foi uma politi-

ca geral da monarquia espanhola, definida em uma cédula r eal de Viõ.uales, as primeiras reduções têm inicio na Guatemala, em

I

I

9 3 8. Segundo Graciela Maria

)40,

sob a autoridade do vice-rei

do México Antônio de Mendoza·. Logo se generalizam por todo o vice-reinado sob a iniciativa de prelados como Vasco d~ Quiroga, de vice-reis e sobretudo dos franciscanos. O mesmo acontece no vice-reinado do Peru: "utilizadas experimentalmente pelos vice-reis desde

I

s6o, as reduções são

r ecom endadas canonicamente pelo arcebispo Loaisa em seu Concilio de I )67, e realizadas nos dez anos subseqüentes pelo vice-rei de Toledo"( I 99 2: 266). D ele, os jesuitas receberão, quase dez anos depois, sua primeira redução , Juli, modelo de todas as que se seguiram posteriormente. 6

As r eduções.e ram uma instituição da monarquia e do padroado, sustentado pela Coroa- que

pagava modestos salários aos j esuitas e seus gastos de instalação, incluídos, aí, os objetos de culto, ornamentos e o sino da igreja. A partir de I 6 I

I ,

elas adquirem o privilégio de rião pagar tributos ao


Pelo modo como se consolidaram no passado- um compromisso entre a política monárquica e o projeto missionário nele mesmo- , elas são uma ponte para ·compreender o presente: nos servem como parâ!l!etro das práticas missionárias contemporâneas, em sua proximidade e/ ou afastamento com relação ao modelo, m~s jamais indiferentes a ele 7 . rei da Espanha, e a entrada de europ eus é formalm ente proibida. Vinte e dois anos depois ·recebem novo privilégio : são excl uídas da encomienda . No fin al do século, o rei Carlos 11 também as protege da necessidade de ced er mão-de-obra para o trabalho público. Por essas características, as réduç~es jesuíticas angariaram tal autonomia política e econômi ca que se tornaram, na visão de Viiiuales, 'fuma República indígena admitida pela Coroa espanhola na América" (I 9 9 2: 2 8 I) . 7

Embora a literatura sobre as reduções seja mais rica para a experiência do colonialismo espa-

nhol, também no Brasil grande parte do trabalho missionário teve como modelo as reduções jesuíticas, no qual o isolamento e a autonomia diante do sistema colonial eram peças-chaves. José Eisemberg sustenta que o código de aldeamento indígena foi fruto do Plano Civilizador (r.ç _ç 8) de Manuel da Nóbrega. No sistema colonial espanhol, os dominicanos, sob a liderança de Bartolomeu de Las Casas, haviam encontrado na encomienda um modo de conciliar o interesse dos colonos no trabalho indígena e a liberdad e dos gentios garantida p ela bula Sublimis Dei. No sistema portugues, essa composição efetivou-se yor m eio do modelo do aldeamento, no qual os índios consentiam em se submet er .ao gm;erno dos jesúítas em troca de proteção ( 2 ooo: 2 2). Para o autor, a justificação política que fundou o modelo de Aldeia tornou- se r eferência para as missões jesuíti cas no Peru, organizadas por José de Acosta, e mais tard e, para as reduções do Paraguai . Os portugueses, como os espanhóis, estavam convencidos de qu e a expansão colonial fazia parte de um todo com o proj eto missionário e a.ceitaram as regras do padroado régio e a legislação do Regimento das missões. Oswaldo Ravagnani .m enciona a implantação desse sistema em meados do século XVIII em Goiás; Carlos de Araújo Moreira Neto observa que grande parte das vilas da Amazônia nasceram das missões jesuíti cas secularizadas pela política pombalina . Após sua expulsão, no século XVIII, outras ordens e congregações (franciscanos, carm elitas, rnercedários, capuchinos), perpetuaram esse mod elo, embora, é certo, COIT). muito m enos êxito.


Apesar das grandes mudanças da missiologia nesses últimos quarenta anos, quando ela incorporou progressivamente os desenvolvimentos mais recentes das ciências antropológicas, ainda se pode ler, na organização espacial de algumas missões contemporâneas, tais como as salesianas no Mato Grosso e rio Negro, as consolatas em Rondônia e as franciscanas no Pará, a presença de um imaginário que representa a missão como um território autônomo, auto-suficiente e, por que não, como uma sociedade perfeita. Assim, apesar das mudanças recentes nos objetivos da evangelização dos povos indígenas, o modo de organizaçã? econômica das missões, sua concepção de espaço e tempo, perpetua, com algumas modificações, esse ,mesmo modelo. Ao observarmos o plano urbanístico das missões salesianas, o modo como estão distribuídos os espaços de trabalho e de convivência, parec~ inegável que repres.entam um projeto de fundar uma nova sociedade. A programação do espaÇo desenha códigos de .comportam.ento ao separar sexos e idades, ao propor divisões de tarefas, ao controlar ·fluxos e definir o m~do de ocupação das difer'entes áreas. Um dos objetivos primeiros do modelo de redução é o de superar a dispersão qa vida in,p ígena, seu nomadisrrw e mobilidade. A "cidade" missionária -busca fixar o índio nas imediações da missão de modo a facilitar o trabalho da·· educação e da catequese. Paralelamente, percebe-se que permanece nas missões salesianas-no modo como foram construídas- o ideal de isolamento com relacão à sociedade . abrangente e de uma vida auto-suficiente política e economicamente. Mas esse estilo de vida proposto pelos missionários, por implicar uma concentração populacional antes inexistente, exigiu planejamento, capacidade de poupança, racionalização das tarefas e divisão do trabalho. Exigências, é claro, muito distantes do ethos indígena. De um modo geral, a organização física da missão procura voltar-se para a facilitação desse ideal. Segundo a descrição de Viiiuales ( 199 2:2 86), as reduções dos Guarani, nas fronteiras do Paraguai, Argentina e Brasil, seguem todas, mais ou menos, o mesmo plano formal: a igreja é vista como o centro da vida de uma missão e está

.

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geralmente voltada para uma grande praça central quadrada, concebida como o lugar de encont~Q e d_a vida .c9m_unitária. Em continuidade com as paredes da igreja, : sit~a~am-se o p;esbitério, a casa das mulheres sozinhas (cotiguazu), os ateliês comunitários e o muro do cemitério. Nos outros três lados da praça, distribuíamse, em linhas bem ordenadas;.as casas dos índios. Atrás desse conjunto, estendiase uma vasta hor.ta com culturas de legumes, árvores frutíferas, vinhedos - para a produção do vinhó dominical- e flores para orn.a mentar a igreja. A horta era o primeiro elo de uma cadeia ecológica que, ligava o _espaço urbano ao suburbano, indo progressivamente paFa os ·c ampos e terminando, finalmente, na flor-esta (idem: 2 8 8). A ~istribuição espacial das .missões salesianas que visitamos no l\1_ato Grosso e nó Am~zonas, em I 99S, descrevem um modelo semelhante. Apesar de pequenas variações locais, a concepção básica é quase ·a mesma: o espaÇo central. 9ominado pela igreja, a casa dos padres, as oficinas, a escola, o todo rodeado pelas· culturas, a horta.caseira, as frutas e, nos campos, o gado. As diferenças situam-se, na menor magnitude do empreendimento contemporâneo-que agrega menos pessoas, é muito menos auto-suficiente e bastante dependente de gêneros vindos de for~-· - , na importância adquirida pelo hospital, rÍa atividade artesanal nas missões dos séculos anteriores, na emergência de um espaço religioso femi.n ino simétrico ao masculino e, sobretudo, no posicionamento mais distanciado, ou menos Integrado, das casas indígenas com relação ao "centro ~eligioso;'. Além dessa distribuição hierárquica por domínios de atividade ·que descrevemos acima, pode-se perceber a existência de uma linha imaginária ~~e divide . perpendicularmente o espaço da missão, s_e parando os domínios · masculinos· dos femininos. No que diz respeito principalmente aos missionários, mas também aos seus alunos,' o mundo feminino é vivido inteiramente à parte dó masculin~. C.o~ efeito, a divisão do espaço por gênero é instrumento básico da pedagogia ·salesiana. Van Emst, em visita à missão Pari-Cachoeira em I 96 I, observa a estrita segregação sexual das atividades e relações:


"[ ... ] A lgreja t~m duas entradas, uma para os padres e os meninos e outra para as mulheres. Dentro .da igreja também, cada um mantém seu lado. A mesma divisão se aplica às atividades _seculares;

L:.] o rifei tório é equipado com uma engenhosa porta giratória ~través da qual a

càmida pode serpassada da cozinha sem nenhum contato visual de qualquer lado. Os quartos ._ e playgrounds são evidentemente separados. Contato direto entre pessoas de sexo oposto, sejam padrei,jreiras, ajudantes leigos ou crúmças, é algo que praticamente nunca acontece" ( apud Cabalzar Filho, r 9 9 9). .

Embora essa separação tão estrita de atividades tenha desaparecido desde os anos ~9 7 o; ela ainda está profundamente inscrita na distribuição espacial de todas as mis. sões que visitamos. O modo c-omo esse espaço se organiza imaginariamente ~egundo o gênero está muito bem ilustrado na maquete da Congregação .salesiana (excelente ilustração do modo como algumas congregações imaginam o modelo perfeito de organização de uma missão), em exposição no Museu do Índio de Manaus. Nela, percebe-se que o phno das atividades rurais, as hortas e as galinhas pertencem ao espaço feminino enquanto campos e gadocompõem a metade masculina. No plano das atividades "urbanas", as oficinas se situam na ala masculina do esquema. Já as atividades domésticas que reproduzem a vida comum (lavanderia, cozinha, refeitório) ganham nesse desenho certa centralidade, uma vez que representam a própria linha divisória imaginária desse espaço, em continuidade com a posição central da igreja. Não nos parece arriscado afirmar que esse posicionamento não é fortuito: o lugar das refeições e o espaço da igreja constituem um par-.-profano e sagrado-, em que se atualiza, via comensalidade, a comunidade_utópica qUe a missão procura encarnar. Na organização desse espaço, onde o homo laborans ocupa praticamente todo o cenário, é de se notara importância secundária dos espaços destinados à recreação: . há apel).as um campo _de futebol desenhado na lateral do espaço masculino. Finalmente, não deixa de ser surpreendente .qúe nesta auto-presentação da missão. a: ~ida indígena esteja totalmente ausente. Embora os colégios suponham a

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moradia das crianças indígenas, e a Santa Cas~ tenha como finalidade acolpei--prínci~ palm_ente os índios, a representaç~o espacial da missão nessa maquete; ao c~ntrário dodesenho dá plàn-t a guarani, nã<? incorpora o conjl.mto de moradias indígenas cuja disposição, geralrnent~ projetada 'pel?s próprios missionários, se realiza emfaíxas de terreno contíguas à edifi~ação principáf. Com efeito) o espaço indígena representá l.uit contraponto necessário e complementar às edificações dos pádres e dev~ria nec~s~a .: riamênte ser incluído tia -descrição da organização de unia missão, já que grande par~ te da história desse empreendimento, por inspiraçao _dO modelo das reduções, consistiu ein fixar populações indígenas devá~1as origeps no interior da cidadela mis-sionári-~. A ausêr1cia. da representaçãqdas ç~sas i~dígenas C:t;nário da missâo explícita o conceito e-spacial hierárquico que desde o início esteve _presente ha~ reduçoes; a praça divide o vil(\rejo missionario em ..duas partes de nature~a 9-isti~ta:S_-·-aquela que governa, ordenada, racional e sagrada, e .aq{iela que deve ser· _àdrnínistrada, vigiada, sustentada. O espaço missionário está longe, pois:, de ser integrado. Entre as duas partes há sempre uma fronteira que as plantas.das missões .salesianas evidenciam. A missão do Meruri, junto aos. Bororo, onde a disposição em quadrilátero é próxima da descrição de Haubert, separa a metade ind!gena da cristã de maneira discreta: uma cerca de arame farpado atravessa o espaço central,deixando P.Q c~ntro;do lado indígena, a casa dos homens (baita) e do lado ~issionário o grande ~cruzeirÓ ~m homenagem ao padre salesiano, Rodolfo Lunkeibein, morto por pistoleiros em I -~ 7 6 !A maior das três missões do Mato Grosso, São Marcos, que reúile várias al::. deias xavante, não incorpora o ç"asario indígena na sua concepção. Últirnó al~ea.men:. to a ser implantado pelos salesianos ria região, não se organizou, como os. outros, para atender u~a clientela regional. Ainda assim, os espaços nativo e mission~rio aparecem estruturalmente separados, embora contíguos no território. A edificação da missão é toda fechada em si"mesma, um muro alto e u:r:n grandeportão.c orrediço separando, como em uma cidadela medieval, as choças xavante. ·Estas s~ espalham ao redor dos rntJros, sem reproduzir a simetria quadricular que os salesianos imprimi-

nO


ram no casaria bororo. No Amazon~s, a situação, _ape~ar d~s especificidades das cÚl:turas locais, é muito semelhante. Tanto efi?.Taraquá.como em Iaúaretê, as edificações dos missionários definem uma ·região tentral, orid~ . sé .des~nvolvem as .principais atividades e para onde todos_convergem. A ígreja se destaca, pela imponência. de sua arquitetura. Situada no lugàr mais elevado do conjunto, apresenta-se_ orguJ~osa como a"casa de Deus e a casa de cada um",já que tódós participaràm do :·p aciente esforço de sua construção. o·espaço da missão não ~e redu~, no entanto, às edificações que abrigam as ati'vidades da congregação. Se ~irdips não estâo inCluídos nesse território imaginário, talvez·sej.â porque suas àlde~a~· estão d!sper·sas por úma." vasta região, que algrejacorísÚlera sob:sl)a jurisdição religt?sa mas cuja órganiZa,çãb cotidiana específica escap~ ao seu controle No caso.das missões do Alto Rio Negto, váJ::ios;povoados, ·corrtpo#osde ca.s~S. quadradas -de tijolo ou madeíra, comatruam·e nt<ftípico daspequenas ' vilas . ribeiri~ nhas fundadas pelos e·spanhóis_, circundam o conjuilto· dos prédios dá missão. To~as essas aldeias têm unia pequena capela voltada. para uma praça central, indefectível~ mente transformada em campo de futebol, e uma. casa comunitária que reproduz simbolicamente a maloca tukano-no' passado, ~entro d.e stia vida- ritual e -di~rj~ combatida pacientem~nte pel_o trabalho missionário·, até seu complet~ desaparecimento em I 96) ( cf. Cabalzar Filho, I 999 ) . , da qual (oram extraídas as dimensões material e política que davam à organizaçã~ social indígena sua autonomia. Mas ao longo dos rios Vaupés, Papuri, Tiquié e Negro, se distribui uma miríade de pequenos povoados que distam vários dias de viagem das principais sedes missionárias, instala~ das, é certo, em pontos estratégicos dessas·rotas de navegação (Taracuá, sobre 6 rio Vaupés; Iaurareté, sobre afoz do Papuri, -~- Pari-Cachoeirá, sobre o Tiquié). No registro de I 9 3 8, no qual _o major Thomaz Reis acompanha o _trapalho c;le inspetoria das fronteiras, pode-se ter üina dimensão mais concreta dás dificl:lldades de -comuni~ação impostas pela geografia ribeirinha, ~om seus saltos, quedas ecorredeiras, Essas d~fi-

os

76 .


culdades, apesar do maior desenvolvimento da navegação ribeirinha, não foramaté hoje inteiramente aplainadas. Isso faz com que o conjunto de aldeias assistidas pel;s salesianos receba visitas muitas vezes esparsas dos padres, que se apóiam diretamente no catequista indígena e em seu trabalho de atendime~to religioso. A mesma configuração dispersa pode ser vista nas reservas do Mato Grosso. Segundo Cfáudia Menezes (I 999:3 I-I), os Xavante ocupam um território descontí. . nuo que soma -1 milhão de hectares. Sua população, estimada em 7. I oo índios, se distribui por seis diferentes áreas 8 , entre as quais, em apenas duas-São Marcos e Sangradouro-foram edificadas missões. A reserva São Marcos, que não chega a :r·e~nir oitocentos habitantes, é hoje composta de quatro aldeias conectadas à missão por est~adas de terra, resultantes do desmembramento da aldeia Sãó Marc~s em 9 I 97 s-6 ( cf. Menez;es, I 9 84) • Vê-se, portanto, que as aldeias indígenas não 's ãp"víÍarejos" fixos no espaço. Injunções familiares e políticas levam a freqüentes fiindações de novas aldeias. Uma aldeia pode, também, deslocar-se muitas vezes ao longo de sua existência. Nesse sentido, vale dizer que aquilo que chamamos de "missão", isto é, a planta que abriga as edificações destinadas às atividades controladas pelos religiosos, é o centro de um complexo sistema de relações que associa, em diferentes graus de p:roxiinidade, grupos indígenas pertencentes a uma ou mais etnias. De qualquer modo; para que qualquer missão se instale e floresça é preciso que certos grupos, partes de grupos ou famílias indígenas "decidam" 10 ou sejam levadas a viver nas aldeias contíguas à missão. Quando isso acontece, esses grupos 8

A saber: ~ão Marcos, Sangradouro, Marechal Rondon, Pimentel Barbosa,Areões e Parabubure.

9

São elas: NossaSenhora Apa~ecida (77 ha), Nossa Senhora Auxiliada (96 ha), Namunkuri

(2 I 3 ha) e a missão São José (79 ha). I

o

As razões dessa "decisão" devem ser analisadas em s~as circunstâncias culturais e políticas

específi cas. Os cálculos que cada grupo faz dependem entre outras coisas de sua força relativa, suas particularidades sociais e culturais, o tipo de ameaças a que está submetido etc . O trabalho de Marta


ganham Um Hapel privilegiado como centro do sistema. Em contrapartida, é precisamente_esse espaço que sofrerá mais intensamente o impacto do esforço ordenador missionário. Mas esse esfôrço não se aplica, por igual, em todas as esferas da vida. Governar a aldeia não é, p.or exemplo, um objetivo da missão. A questão que deveríamos nos colocar aqui diz respeito, pois, às lógicas que presidem as estratégias de intervenção missionária. A literatura sobre o tema tem enfatizado su~)nterferência em dua~ esferas prioritárias: q da reproqução da vida doméstica e a dasocialização dos jovens. No intuito de produzir uma "família" no sentido mais ocidental do termo-com filiação biológica reconhecida e responsabilidade par~~tal mais nuclear-os religiosos buscaram organizar o espaço urbano da aldeia. Substituir _a moradia comúnal pela casa da família monogâmica, dar~Ihe um traçado mais próximo ao povoamento urbano e eliminar a casa ·d os homens-onde se realizam as cerimônias de iniciação e onde se tomam as:decisões polític~s do grupo-foi, porta~to, recorrentemente, b caminho necessário para deslocar o eixo da reprodução da: vida para o controle ·~a agência religiosa 11 • Amoroso (I 998) mostra que os-Kaiowá, os Kaingang e os Guarani tiveram relações muito diferen.

,

'

~

ciadas com o aldeamétlto capuchínho e nem sempre estáveis no tempo. I I

Aloísio Cabalzar Filho

(I

999) observa .q ue, já em

I

967, não se podiam encontrar mais traços

de malocas entre ~sTukano. Sylvia CaiubyNovaes (I993) tamb~m relata esse esforço de organizar o traçado das aldeias bororo na forma do armamento quadriculado da cidade. No caso dos Xav~n­ te, Cláudia Menezes (I 984) mostra que até I 970 a aldeia manteve seu formato indígena tradicional-

um círculo aberto com drculos menores ~ fechados no interior em torno de um pátio central,

espaço masculino por excelência. O primeiro elemento arquitetônico a ser alvo de reorganização espacial foi a cas~ do~ solt~iros (ho), lugar de moradia e iniciação dos adolescentes. O impacto dessas · mudanças sobre as culturas indígenas foi muito variado. Somente a partir de uma etnografia fina 'd e cada grupo que compreenda suas formas de casamento e descendência pode-se avaliar o grau de desorganização social que essas alterações arquitetônicas introduziram.


Quando se têm em conta os elementos fundamentais que organizaram a percepção salesiana da vida indígena fica mais facil compreender o sentido de urgência e necessidade que impregnou sua atividade missionaria e a idéia de cidadela isolada e auto-. suficiente que deu forma ao seu modelo de implantação. Com efeito, se o trabalho missionario teve um carater salvador e divino, é porque ele buscou recriar, nos confins do mundo, as formas da civilização. Para libertar o índio de seu estado natural e retirá-lo de sua condição de resíduo histórico, procurou imprimir nele a rotina e a etiqueta da urbanidade porque "religião e civilização são duas forças homogêneas, que operam juntas" (Colbacchini, 19 3 9:2). A salvação, nesse sentido, consistia na superação do estado de natureza pela incorporação da idéia da transcendência divina. Coube ao missionario, pois, auscultar a mitologia indígena de modo areconhecer nela os elementos de predisposição para a fé cristã e corrigir os desvios que a afastavam da vida perfeita. Nas missões, os salesianos procuraram ensinar ao índio as técnicas necessárias à auto-suficiência comunitaria. Os valores supremos da vida cristã nessa nova sociedade eram o controle do tempo pelo trabalho, a vida. austera e o respei~o à hierarquia. A geometrização dos espaços, a regulamentação do tempo e do trabalho visava inspirar atitudes que, uma vez interiorizadas, se tornariam a base da civilização na América. Paula Montero

é professora de antropologia da FFLCH/USP, diretora do Museu de

Arqueologia e Etnologia (MAE/USP) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Analise e Planejamento ( Cebrap).


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I


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85 fabricação da cidade

Utopia e

Guilherme Wisnik

agradeço o auxílio de João Carlos Guedes da Fonseca, o Carioca


1

O sentido de transformação para o qual aponta a idéia de utopia indica um "vir a ser" que baliza o presente com uma determinada direção de futuro. Contudo, trata-se de um devir que, ao se constituir no desenrolar de uma experiência temporal, ocorre na forma de uma relação de disjunção espacial: o distanciamento entre sujeito e objeto. Etimologicamente, a expressão cunhada por Thomas Morus no século XVI, a qual nomeia uma nação-cidade-ilha imaginária, resulta da fusão do "advérbio grego ou-'não'-ao substantivo topos-'lugar'-, dando ao composto resultante uma terminação latina" (Logan eAdams, 1 999:XIII). Trata-se, portanto, de uma palavra criada, e não preexistente, pois, em que pese a extrema erudição de Morus, a República ideal de Utopia não seria mais aquela de Platão ou Aristóteles, mas produto de um outro momento cultural e histórico. Sua operação, portanto, é de ironia e deslocamento 1 • Utopia, desse modo, refere-se a um projeto que se realiza no espaço, fundando, através da negação, um novo lugar. Mas qual lugar? Não se trata do locus latino, de definição estática e circunscrita, mas de um híbrido composto com base na noção grega de topos, em cuja definição está suposto o movimento 2 • Nesse trânsito projetivo em direção ao espaço estão contidas, a meu ver, indicações poderosas acerca do sentido sobre o qual se formou a idéia de utopia: o modo de organização da sociedade em cidades. Aceitando os riscos implicados em interpretações de tamanha abrangência, pretendo abordar a questão da utopia como materialização tangível das relações humanas, "Os m esmos leitores helenistas que reconheceram a etimologia de 'Utopia' também encontrariam a sugestão desse significado no fato d e a palavra ser um trocadilho com outro vocábulo composto grego, eutopia2

lugar 'feliz' ou 'afortunado'." (idem:ibidem).

Segundo Aristóteles , "é preciso refletir que nenhuma pesquisa poderia ser efetuada sobre o

lugar se não houvesse uma espécie de movimento em torno do lugar; assim, se pensarmos que, mais do que todo o resto, o céu está em um lugar, é porque ele está sempre em movimento" (I 9 2 6: I 3 o).

86


qual seja a própria razão de existência das cidades, pensadas em um largo percurso histórico que remonta às origens da chamada "revolução urbana" 3 , ocorrida há cerca de 5 mil anos no Oriente Próximo. Mas como é que a entidade cidade encarna historicamente um "vir a ser" utópico que a distingue da aldeia? Qual é, portanto, a definição decidade que devemos adotar? O assunto é, evidentemente, polêmico, e sobre ele há uma vasta bibliografia de autores que procuraram cercar o tema "cidade" como um objeto, tratá-lo como um fenômeno objetivo, histórico, e, portanto, passível de ser delimitado, definido. Lewis Mumford inicia o seu vasto A cidade na história com as questões: "Que é a cidade? Como foi que começou a existir? Que processos promove? Que funções de sempenha? Que finalidades preenche?". Estas indagações, diante do esvaziamento de perspectivas das cidades contemporâneas, culminam com a seguinte pergunta: "Existe ainda uma alternativa real a meio caminho entre Necrópolis e Utopia" (I 998:9 )? Menos fantasioso, o sociólogo Max Weber, em seu estudo sobre a cidade como cristalização das diversas estruturas culturais, introduz a conceituação do tema de mapeira ber:n c:o:ncreta: "Se pode procurar definir de diversos modos a 'cidade' . Mas á todas as qefinições ·é comum a representação de um assentamento fechado (ao menos relativamente) ; uma 'localidade' e não casarias mais ou menos dispersos" (I 9 84:9 3 8). Avançando riessa linha de raciocínio, o professor da FAU/USP Jonas Malaco, em seu instigante "Cidade-Ens~o de aproximação conceitual", afirma que "a cidade, em sua realidade própria, se dá j~ cOm o casaria [... ], um fato material distinto da simples e imediata relação entre domínios" 4 , 3

O termo, utilizado por Gordon Childe (I 942), designa um fenômeno que apresenta contor-

nos definidos em torno dos anos 3 2 o o a 3 ooo a. C., mas que é precedido de uma série de invenções técnicas e simbólicas, como a fabricação d e instrumentos, a escrita e a moeda. 4

Publicado na revista Caramelo, n . 7, São Paulo, FAU / USP, I994, pp. I I 5- 6. Essa definição

procura contrapor-se ao caráter antiurbano da comunidade germânica., que "não se concentrava na cidade, uma concentração [ ... ] que d esse à comunidade, como tal, uma existência exterior diferenciada da de seus membros individuais." (Marx, I 98 I apud Malaco, I 994: I 2 I).


mas pondera: "existe a cidade como materialidade; mas o que faz essa matéria, enquanto propriamente social, é definir lugares vazios". Sua argumentação aponta para a definição de cidade como a objetivação de uma sociedade, que dá feição material a uma unidade qhe se traduz na idéia de um bem comum, público. Essa noção coincide com as indicações de diversos arqueólogos que escavaram a região do Oriente Próximo, berço das primeiras cidades históricas. Segundo tais pesquisadores, o que veio a ser a Cidade decorreu de uma longa série de transformação d~ aldeia neolítica. Para Jean-Claude Margueron, a existência de construções coletivas modifica a natureza da aldeia, caracterizada por uma justaposição de casas cuja distinção era pouco hierárquica. Assim, o que permite definir o nascimento da cidade como um fenômeno mais ou menos nítido, que se configura entre 32oo e 3ooo a.C., r esulta, evidentemente, de um longo processo de diferenciação e hierarquização das construções. A análise das diversas camadas estratigráficas encontradas nos sítios arqueológicos de aldeias neolíticas no Crescente Fértil, permite notar essa "transição" 5 . Em Umm Dabagiyah (6ooo-s6oo a.C.), as construções parecem agrupar-se progressivamente em torno de um silo, porém é em Tepe Gawra (41 oo - 3 700 a.C.) que transformações contínuas são notadas com maior nitidez. Ao incremento da complexidade dos traçados e do desenvolvimento de eixos ?e circulação, soma-se o surgimento, no nível XIA, de uma casa-fortaleza no centro do povoado. É claro que teorias evolucionistas correm sempre o risco de reeditar indesejadas oposições dicotômicas, como cultura e natureza, barbárie e civilização, ciência e magia etc. Esse risco é flagrante em muitas passagens de Mumford, para quem o elemento dinâmico da cidade existia na aldeia como "óvulo não fertilizado". Contudo, o que em sua visão é estereotipado decorre da intuição legítima de que, para ele, a transformação da aldeia em cidade não representou uma mera "mudança de tamanho e dimensões", mas, "ao contrário, foi uma mudança de direção e finalidade, manifestada num novo Cf. Jean-Claude Margueron (1991) e Mario Coppa (1968).

88


tipo de organização" ( 199 8:2 8, 69). Mas é na caracterização web.eriana, estruturada pela comparação de "tipos ideais", que a alteridade cidade-aldeia encontra um "lugar" teórico mais preciso. Segundo Weber, a mera aglomeração de casas, ou o fato de haver uma associação econômica, não são capazes de diferenciar a cidade da aldeia. Sua distinção, abandonando as determinações físicas e econômicas, enfocao modo de regulação das relações de propriedade imobiliária. Para ele, o âmbito urbano deve ser caracterizado por uma associação com instituições políticas e administràtivas especiais, sede de um direito material e processual, em qúe se cons"titui a cidadania. Mas retomando o "lugàr comum" das especulações sobre o surgimento da cidade, essa lenta transformação culmina no que se convencionou chamar de "revolução urbana", situação localizada em um contexto histórico específico. A passagem da aldeia para a cidade implicou o trânsito da ocupação das colinas do Crescente Fértil, onde nasceram as aldeias da Idade do Bronze, como Mallaha, Nahal Oren e Tepe Gawra, para o vale fértilda Mesopotâmia, onde surgiram as cidades de Ur, Uruk, Eridu e Kish 6 • Os estabelecimentos abandonaram as colinas, onde os cereais "cresciam espontaneamente" 7 , para ocupar regiões antes inexploradas: vales de rios de cursos violentos na estação das chuvas e escassez na estiagem. O aparecimento da cidade, portanto, está baseado no impulso de enfrentar e controlar a diversidade da natureza. Este controle só se torna possível com base em uma arregimentação coletiva de esforços inédita, que por meio de grandes obras de canalização e drenagem do curso das águas é capaz de transformar regiões inóspitas em terras propícias para o cultivo e o assentamento humano. Assim como o enfrentamento da geografia do vale foi um evento correlato ao surgimento da metalurgia e de instrumentos de cultivo- como o arado- , a aposta na eficiência do metal, que precisava ser buscado em terras distantes, abriu caminho para o deslocamento e o comércio, associados à especialização das atividades. Portanto, erguer a civilização como 6

Cf. Jean-Claude Margueron (1991), e Samuel Noah Kramer (1969).

7

Cf. Robert Braidwood e a "teoria dos flancos ondulados" apud Kramer ( 1 969).


uma batalha coletiva que extrai frutos antes impensados da natureza num território aparentemente hostil mas capaz de tornar-se generoso e benevolente, qualifica a "empresa cidade", em sua natureza, como materialização de uma "vontade de potência", que a realiza e identifica. Dito de outra maneira, essa coalizão faz nascer uma convergência simbólica nova, cuja expressão material será a cidade 8 . A caracterização da cidade como expressão dos desígnios dessa mudança de lugar, que está na base do conceito de utopia, pode também ser pensada pela definição de desterritorialização, formulada por Deleuze e Guattari 9 • Segundo eles, diferentemente das aldeias·, que se fundam numa relação de identidade com o território, o fenômeno cidade corresponde a uma operação de desarraigamento dos núcleos assentados em tradições locais, com relações de parentesco, cujo sistema está enraizado nos mitos. Tanto a·pólis; a que eles denominam Cidade, como as cidades orientais, a que se referem como Estados, desterritorializam os núcleos estabelecidos remetendo-os a uma nova unidade, diferente nos dois casos. "Nos Estados, a desterritorialização é de transcendência: ela tende a se fazer em altura, verticalmente, segundo um componente celeste da terra" (I 9 9 2: i I 4) . Para a cidade, pólis, ao contrário, a desterritorialização é de imanência, gera Teorias e histórias da cidade à parte, a miragem de uma dimensão existencial dessa "vocação"

8

da cidade encontra expressão precisa, a meu ver, em alg~.n:s ~xe~plos da poesia literária e mu~ical. Por um lado, na interpretação de Antonio Cindido' (Í 9.9 3) do

~~ntidci és~atológico de nasci~ento e .

morte das civilizações, a partir de um po'éma de Kaváfis. Por outro, em algumas cari.~ões de Caetano Veloso, em que o fenômeno cidade surge como uma entidade vista, ao m esmo tempo, como algo "que eternamente nasce", mas que representa um "desafio ao destino" (Cantiga de boi, 2ooo), e q~e se pergunta sobre o que foi preciso sacrificar para qu e ela pudesse existir: "Urbe imensa/ p·ensa o que é e 1)er4 e foi( pensa

QO

boi" (Aboio, .J 99 2). Para uma introdução ao tema, ver Guilherme

Wisrrik, José Miguel Wisnik e Vadim Nikitin, "Pólis cósmica e caóticaVeloso", Caramelo , n . 7, op. cit. 9

·

C f. Gilles Deleuze e Félix Guattari, "Geo- filosofia" ( 1 9 9 2).

cosmopolitismo em Caetano


Um plano terreno .que não se remete a nenhum princípio superior. Enquanto o Estado faz convergir, a cidade é um pólo de irradiação. Centrada na ágora, tanto na transação política como no intercâmbio comercial, a cidade se organiza segundo o mesmo princípio que tornará possível o surgimento da filosofia: sua consistência relaciona!. O estudo da história por m eio da tipologia de cidades coloca a abordagem das diversás culturas como aparições de um idioma variado de formas, desdobrado freqüentemente em arquétipos, pelos quais a ágora grega é vista como o espaço da liberdade, e a babei babilônica é tomada como misto de diversidade e cativeiro, prefigurando combinações similares às das m etrópoles atuais. Segundo a definição imaterial de cidade formulada por Max Weber, essa configuração da cidade da Babilônia 10 , a torna não uma cidade, inas,.antes, uma hospedaria de tribos clânicas "sem connubio". Pois, para o sociólogo alemão, a cidade é um fenômeno próprio da cultura ocidental, em que a constituição de uma corporação fundada num direito urbano foi capaz de qu ebrar as relações totêmicas de clãs. Porém, essa igualdade juridica e corporati va, que define a cidade como um lugar de homens "livres", dissolvendo os laços estamentais, engendra, ao mesmo tempo, uma forma nova e própria de dominação. Por esse motivo, o fenômeno cidade, e sua utopia, tal qual os estamos descrevendo, referem-se a um movimento abarcador próprio da cultura ocidental, com sua racionalização progressiva. É nesse recorte que a cidade- lugar da civilização-é freqüentem ente tomada como a forma mais evoluída da sociedade, ponto de chegada de nossa complexidade social e cultural. Aqui, mais uma vez, renova-se o interesse do texto de Malaco, que , sem abandonar essa premissa, procura miná-la por dentro, com base em contextos históricos em que a cidade foi ainda capaz de pensar o seu contrário, como o exemplo da pólis de Esparta, que se recusou a edificar-se em cidades e perenizar-se na escrita, invertendo a ordem comum dos termos querer e poder, capacidade e intenção . .1

o

A colocação é chocante, pois a Babilônia foi sempre consider ada a grande metrópole da Antigüi-

dade, tendq possuído já no terceiro milênio antes de Cristo, ao que parece , a marca de

1

milhão de ha-

bitantes. Sua grandeza e opulência tornaram-se r eferência para os gregos desde os relatos de Heródoto.


2

No esqu ema conceitual de Hannah Arendt, que relaciona longos períodos históricos e diferentes categorias filosóficas da cultura ocidental, desenha-se um movimento análogo ao que estamos procurando descrever 11 • Para a filósofa alemã, a condição humana, ou . vi ta activa, expr essa-se em três atividade fundamentais: o labor, o trabalho .e a ação~ A ação corresponde à expressão da pluralidade humana, âncora da liberdade pública, que t em na Grécia seu paradigma. Porém, interessam-nos aqui mais as outras duas categorias, cuja permanência histórica se tornou mais abrangente . O labor é a atividade.que corresponde ao processo biológico do corpo humano, a produção e o consumo de alimentos, a subsistência. O trabalho, por outro lado, corresponde ao artificialismo da existênda humana, à produção de objetos feitos para durar. O homo Jaber, portanto, trabalha sobre os materiais, em oposição ao animallaborans que se mistura com eles 12 • O l~bor assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie . Já o trabalho e seu produto, o artefato, emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêm ero do tempo humano. Segundo seu diagnóstico, a crise do mundo contemporâneo está relacionada ao eclipsamento progressivo da esfera pública, que corresponde à ascendência do âmbito doméstico à esfera social. Ou seja, a sociedade de massas promove, por m eio do consumo, a emancipação do labor, do animal laborans, que , preso da privatividade e da premência da vida, em seu ciclo biológico, "jamais gasta suas horas em outra coisa que 1 I

A associação das categorias de Arendt com o problema arquitetônico já foi postulada por

Kenneth Frampton. C f. "TraYail, oeu\Te et architecture" in : Choay (I 9 7 2). I 2

"A palaHa latina Jaber, que proYaYelmente se relaciona com Jacere ('tàzer alguma coisa', no

sentido da produção), aplican-s e originariamente ao fabricante e ao artista qu e trabalhaYa com ma teriais duros, como ped ra ou madeira, era também usada como tradução do grego tekton, que tem a mesma conotação" (Arendt, I 985: 149 ).


não consumir". Apolítica, e, portanto, antipública por definição, a atividade do labor produz para o consumo, e consome o que produz; é puro m eio, mediação, processo contínuo e ininterrupto, que só se esgota com a exaustão física do corpo que trabalha e se realim en ta 13 • Promovido a sujeito social aquele que é, por definição, alienado do mundo, o animallaborans mina, pelo consumo, a durabilidade do artefato humano à sua volta. Assim, objetos de uso passam a ser tratados como objetos de consumo. Nas palavras de Arendt, "a esfera pública, enquanto mundo comum , reúne-nos na companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer. O que torna tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo m enos não é este o fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las uma às outras e de separá-las" ( 1985: 6 2). Dessa maneira, os ideais do homoJaber, "fabricante do mundo", que são a permanência, a estabilidade e a durabilidade, "foram sacrificados em benefício da abundância, que é o ideal do animallaborans". Só o labor, "com sua inerte fertilidade", é capaz de produzir a abundância, que precisa ser consumida . Assim, na verdade , a passagem do trabalho ao labor como atividade social predominante, consolidando o mundo do m ercado e da relatividade das trocas , está inscrita na própria lógica da experiência de fabricação, no conceito de instrumento que resulta do mundo do artífice 14 • É um paradoxo do homo Jaber, pois o construtor do mundo, "cujas atividades são aferidas pelo uso constante de I

3

"Ao contrário do processo de trabalhar, que termina quando o objeto está acabado, pronto

para ser acr escentado ao mundo comum das coisas, o processo d o labor move-se sempre no m esmo círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim das 'fadigas e penas' só advém com a morte do organism o" (idem: I o 9) . I

4

É importante notar que ao tratar de fabricação e trabalho já não se está falando do paradigma

político grego, mas das sociedades m ercadoras e artesanais européias, como as comunidades m edievais e as cidades r enascentistas.


réguas, normas e padrões, não podia suportar a perda de medidas e padrões absolutos" que advém de uma sociedade comercial 15 • Parece claro, portanto, observar que vivemos o crepúsculo da durabilidade, e que o mundo das cidades, ou o conceito de cidade tal qual o viemos postulando, tenha se erguido por cinco milênios sobre o esforço dessa durabilidade. Nesse caso podemos demarcar, em amplo espectro, a predominância do labor delimitando momentos anteriores e posteriores à vigência da cidade: o mundo da aldeia e a sociedade de consumo 16 • Formular a possibilidade de um ocaso da cidade ilumina o sentido de sua origem, cuja passagem de um regime de subsistência para uma poderosa construção coletiva parece participar desse esforço de materialização e perenidade: a criação do artefato humano fora do homem, numa relação de objetivação utópica. No entanto, falar em ocaso da cidade deve parecer um enorme I

5

Postular o fim do mundo do trabalho, como do taylorismo, é uma formulação que tem sido

usada ideologicamente de diversas maneiras. Aqui trata-se, ao contrário, de notar como o trabalho se converteu em labor. Arendt observa que, com a divisão do trabalho, ou divisão do labor, e o aumento da mecanização, mesmo a produção de objetos para uso assume o caráter de labor. "A repetição e a interminabilidade do processo imprimem-lhe a marca inconfundível do labor." A interminabilidade do processo só será garantida se a taxa de uso for acelerada. "A Revolução Industrial substituiu todo artesanato pelo labor; o resultado foi que as coisas do mundo moderno se tornaram produtos do labor, cujo destino natural é serem consumidos" (idem: I 37). I

6

Para Habermas, "A forma de vida exigida como suporte e alimento do mundo público a ser

recomposto à contra-corrente do capitalismo avançado já não pode contar mais com a forma outrora abarcável da cidade. As aglomerações urbanas deixaram de corresponder ao conceito d e cidade ; nelas predominam as conexões funcionais não configuráveis , sem a visibilidade do lugar público" apud Otília B. F. Arantes

(I

99 3: I I 7- 8). Segundo Paul Virilio: "Se ontem o arquitetônico podia ser

comparado à geologia, à tectônica dos r elevos naturais, com as pirâmides, as sinuosidades neogóticas, de agora em diante pode apenas ser comparado às técnicas de ponta, cujas proezas vertiginosas nos exilam do horizonte terrestre" ( I 9 9 3 : 2 I).

94


disparate, na medida em -que as cidades não cessam de crescer, Ditas "pós-utópicas", as metrópoles contemporâneas são o resultado de dois fenômenos .concorrentes e complementares: a comirbação e o réfluxo da urbanidade, num ·se~tido político e filosófico. _ Internamente, à análise que Jameson (r 997b) faz da relação-de ruptura que edifícios contemporâneos produzem em relação ao seu entorno urbano imediato parece .colocar, em outra dimensão, a mesma questão, pois no espaço indiferertciadodas "metr0poles globais" á perda de contraponto é tanto extE;rna como interna. Como o~s.ervqu Jameson_, esses edifícios procuram ser mundos completos, equivalentes ou substitutos da cidade. No seu interior a antiga percepção de volumes no espaço sofre uma mutação, é suplantada por uma noção que denomina de hiperespaço, em cuja imersão realiza-se um .novo medium, distópico. Portanto, como ponto de chegadá do processo que viemos acorppanhando, a expressão de McLuhan é _precisa: trata-se, de fato, de uma "aldeiil global", em cujo corpo · midiático, mediato, a finalidade e a durabilidade estão postas a perder.

3 E~ -que me.d_ida -os descaminho~_ das -cidades atuais subvertem o sentido utópico do urbanismo moderno? Ou, por outro lado, em que medida também dele decorrem? Os impasses desse projeto utópico são o objeto de um importante texto escrito por Otília Arantes, in-

titulado "A ideologia do lugar público na arquitetura contemporânea (um roteiro)" (r 99 3). Antes, porém, cumpre relembrar suas premissas. Partindo de uma visão crítica da cidade industrial do século XIX, cujo caos era produzido pelo movimento voraz das iniciativas privadas no âmbito urbano, o projeto moderno propôs restaurar uma comunicação coletiva perdida . Tratava-se de combater o fetiche da intimidade burguesa, seu repúdio à cidade, recuperando por meio do espaço a dimensão heróica da vida pública 17 • Isto é, pretendeu-se criar, com uma utopia de tábula1

7

Proponho aqui a utilização ele cat egorias que Otilia Arantes r elaciona ao quadro ele rcYisio-


. rasa (bem entendido, a negação_do_lllgar constituído), uma nova .dd4de, .inteiramente pública. No entantO, 6 posslvel também notar 1Jm·a grande afinidade ehtre o pragmatismo dese~cant~do de modelosespa:lhados·de cidade, como los Angeles, e ·osentido idílico e . buc6lico que está na hasé da utopia com~nal moderna. Reagindo às patologias da cidade -i.ndustria:l, ;os vanguárdisFàs ~o século XX buscaram inspiração no coletivismo humanist<1 dos utopistas d? século XIX, como Fourier, e no romantismo d<1s ddades~jardim de Ebe~ hezerHoward, que, por sua 'Zez, se amparava nas críticas de Marx à cidade cipitalista; pro' pondo a ab~lição de ~u~ distinção fronteira com o camp·o 18 • A cidade moderna, portanto; resuitou, por :Umlad?,de um~_ reaç~o àquela opulência urbaria desregradaprovocad.a: pe~a Revolução Industrial~' por outro, de ur:na adesão incontinente à nova realidade espa,cial co~quistadacom o d~slocain:entomotorizado é as ~ovas tecnoiogias da coris.t rução. Assim, a ahert~ra dé grandes :vias e o desejo . d~ liberação cemtínua dos térreos, tra,nsformados em . exten~os,jardins,.~ransfigurou a apreensão visual da cidade-._· cuja .trarria era formada por sólidos cortadóspor <1berturas· irregula~es-·- , e· com issotairibérri a maneira de se relaciona;dentro .dela. Analisando Brasília, oantr'opqlogQ americano rimes Holston (I 9 9 3) id~ot_ificou ~o projeto ~- Úi.tenção d,~ descorifig~rar o tradicional "mercado urbano", com seus l~Jreiro~ e: vitl-ines improvisados: _combatendo a aglqmeração que _sempre definiu a · cidade em oposiÇão ao isolar:nen~o do dimpo. Portanto, como observou Kennéth ·Frampton 19 , háno ~urbanismo tnüderno um forte compo~ente q~é promove· Ull! reflüxo da urbanidade, ·~rn; grande rnedtda, espelho.de nismo crítico d~ impessoáÜdadé da cidade funcionai, mas qu~ t~m' tamb ém, á meu ,,e-r, importantes .

.

-

-~·

.

8.

Po; rriaisque e~se modelo pareça vinculado apenas à corrente organicista do modernismo,

não

~difícil emcerga:r na .cidade. de crescimento ilimitado de L~ Corbusier, bem como no seu repúdio .. . .

I ..

..

.

· i~plícaÇões -na co~stituição dessa'utópia.

.

.

~

.

'

à ~ua, traços .dessâ matriz que, diga-se d e -passag~m, está na base de muítos dos prójetos apresentados · a,o concurs~ de Br~silia, nUfll ~eio de formação predominantem ente corbusiana . . I 9 / cf.' J(enneth frampt~n (ap~d Ch~ay, 1972)' a pa~tir de Morton e Lucy White (I 96 2).


um modo de vida americano que tende a se tornar hegemônico. Ou, posto de maneira mais abrangente, o modo de vida americano resulta de um conjunto de fatores a que o urbanismo moderno também procurou responder. Nesse sentido, a realidade da cidaderegião que é Los Angeles tem sua apoteose teórica no urbanismo de Frank Lloyd Wright, que imaginou uma cidade campestre servida por grandes auto-estradas e articulada por altissimas torres isoladas. Sua Broadacre City 20 seria, por definição, "uma cidade que está em toda parte e em lugar nenhum". Será essa nova dispersão, em que não se reconhece mais a entidade cidade, a representação atual do sentido de utopia? Nesse sentido, modernos e pós-modernos parecem postos em linha de continuidade, pois, recuperando a expressão de Holston, o combate ao "mercado urbano" aparece como um ataque frontal à idéia de cidade como fabricação, em nome de um ideal público que, na ausência das categorias sociais que o deveriam amparar, abre portas para um comunalismo aldeão, laborioso, que em sua versão pós-utópica nada mais é do que o arrivismo soft e agressivo do mana9er cultural e do executivo de empresas, ou o descompromisso do capital sem forma e sem território. De qualquer modo, o que se deve admitir é que o impasse não é conjuntural, e que a realidade do consumo generalizado já operou há algum tempo mutações profundas nos alicerces das nossas sociedades feitas cidades . Ideologias compensatórias como as tentativas de ressemantizar a cidade por meio de "lugares-suporte" 21 , fundamentos de estratos ocultos da história, ou propostas de restauração de uma dimensão pública perdida baseadas em modelos passados de sociabilidade, como as de Richard Sennett, Jane Jacobs, Kevin Lynch, ou da própria Hannah Arendt, se tomada em chave propositiva, resultam anacrônicas. Não 2o

Broadacre, cidade natural da liberdade no espaço, tem seu nome ligado ao fato de que se fun-

da na unidade mínima de um acre por indivíduo. C f. Françoise Choay ( 19 9 8: 241). A própria palavra cidade, em inglês, tamb ém não provém de um conceito político, mas agrário. Town deriva do antigo inglês tun, e do teu tônico túnoz, que significa recinto fechado, parte do campo que corresponde a uma casa ou a uma granja. Cf. Fernando Chueca Goitia (I 96 8 : I I). 2I

Cf. Otília Arantes ( 1993) sobre as teorias de Aldo Rossi e Vittorio Gregotti.


há como negar que a televisão e o automóvel alteraram o caráter dos espaços públicos na cidade, e que um certo otimismo desencantado como do arquiteto Rem Koolhas em relação à cidade contemporânea- vista como um sistema de circulação mecânica entre edifícios concebidos como grandes totalidades (bigness)-traz um inegável dado de realidade acerca da identificação dos pontos de partida para a compreensão desses espaços. Na operação de replicação da cidade realizada por esses edifícios "totais", Jameson vê uma franja irônica em que, como encenação da totalidade, o edifício pode aspirar a oferecer um novo microcosmo que a replica e, "com seu novo fechamento, simula toda a liberdade libidinal caótica dos perigos do mundo exterior de nossos dias" (1 997a: 149). Contudo, se há nisso qualquer libertação e aceitação de uma realidade que se transformou e que exige novas categorias de análise, fica a constatação de que essa "replicação, entrementes, significa também a despolitização do que antes era moderno, a aceitação do poder das grandes corporações com suas subvenções e seus contratos, a redução da consciência social a limites controláveis, práticos, pragmáticos; o utópico torna-se imencionável" (idem:ibidem). Diluído o "espaço da aparência", perdida sua tangibilidade, sua capacidade de mediar as relações sociais, estaria cancelada a idéia de utopia? Teria seu sentido se neutralizado num presente estagnado (em toda parte e em lugar nenhum), sem espaço de diferenciação para dimensionar-se? Mais do que ceder a conclusões fáceis, ou enredar-se em becos teóricos como "o fim da história", ou o fim da utopia e da cidade em sentido absoluto, vale lembrar que o achatamento da dimensão prospectiva de transformação social não se refere apenas a um impasse ideológico. É no espaço que ele se dá. E é o espaço urbano-agora talvez de retaguarda, resistência-a dimensão concreta da transformação, do seu utópico e sempre

• a ser". poss1ve l" vir I

Guilherme Wisnik é arquiteto formado pela FAU/USP e mestrando em história social pela

FFLCH/USP .


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100


103 coin DominiqueTilkta Gallois

Essa incansâvel traduçào ]entrevista[


Em

I

977, Dominique Tilkin Gallois conhecia os Waiãpi do rio Amapari, grupo de língua

tupi-guarani que havia sido contatado, quatro anos antes, pela Fundação Nacional do· Índiu (Funai) no sul do Amapá. Não foi um encontro fortuito tomo. pwvam ,as tantos anos de dedicação à pesquisa que se sucederam. Construiu-se

a partir de então um diálogo intenso

que se mantém até os dias de hoje. A estudante de antropologia, recém-chegada da Bélgica, mergulhava na trajetória daquelas gentes que pareciam ter, séculos antes, ~igrado do Baixo Xingu até se confrontarem, no último quartel do século XX, com a construção da Rodovia Perimetral Norte atravessando suas aldeias. Aprendia a falar a sua língua _e passava a se intere~sar

pelos seus· assuntos, não apenas aqueles relativos ao contato com á sociedade nacional,

mas também à sua cosmol~gia e organização social. Corri efeito, surtiram daí questões que resultaram tanto em trabalhos acadêmicos-dissertação de .mestrado, tese de doutorado um livro -~ muitos artigos-como em tràbalhos de .intervenção e assessoria-projeto de educaçao, de controle territorial, de produção de vídeo, re·~lizados em parceria com o Centro de Trabalho Indigenista (C TI), uma organização não~governamental d,a qual Dominique é membro -desde I 99b. Em 2 o o r, DominiqlJe Tilkin Gallois, professora de. anttopologiada. Universidade de São Paulo há dezesseis anos, reflete sobre

o longo processo de aprendizado dos Waiãpi em

relação à sua posição no mundo que.se alargou. Hoje, eles· falam português, fazem estadiàs em Macã,pá, fazem conferênCias, organizain novas relaçõesentre suas aldeias na fOrmá de um Conselho, operam câmeras de vídeo, gerenciam fundos de artesanato;· trabalham como professores, agentes de saúde, microscopistas, entre tantas outras coisas. Eles tiveram de reconhecer limites para sua terra, conviver de maneira mais pacífica com s~us terÍüdos vizinhos e, sobretudo, compreender as razões pelas quais o Brasil os vê como índios. Diante desse quadro, a antropóloga recusa a utopia do retorno a um mundo intocado, mesmo porque este jilmais existiu. O contato com os diversos agentes de seu entorno não começou em r 97 3 mas muito antes, e uma tal evidência pode •ser colhida em documentos históricos e tradições orais,. O perigo não reside no fáto mesmo da mudança, mas na maneira como ela s-e processa e

ê interpr~tada pelos índios.'É então que, para Domini_que, o problema da antropologia rt;vela- .

r 04-


se, em especial, _na mão-dupla da tradução-

a tradução que os nativos empreendem sem ces-

sar e com riscos ao se énf~e.ntarem com as novidades que se lhes apresentam, e a tradução que o antropólogo deve ·ef~tuar ao' transitar de um código que é outro àquele d e seu entendimento. Há ID<).iS ou .m enos onze anos, Dominique encontrava~ se com um outro grupo tupiguarani recém ~ contatado pela New Tribes Mission e que teria posteriormente seu destino controlado pela Fupqi-. - os"Zó' é ·do Cuminapanema (norte do Pará). Diante do intento dos sertanistas de preservar aquele que .seria um dos últimos povos isolados da Amazônia, a antropóloga optoq por copstruir com os Zo ' é categorias que lhes permitissem lidar com situações contempori'neas, .q ue exigiam deles o reconhecimento de limites territoriais e de uma identidade in~íge!la cÕmpartilhada çom outros povos distantes. Mais uma vez, o esforço teórico e político de Dominique configura-se na mediação de um processo maior de aprendizado, que , insiste ela, é sempre .da r esponsabilidade e autoria dos próprios índios. A imagem do isolamento nada maís se ria que a utopia de uma sociedade que foi impregnada pelo excesso de gente e de informação. É preciso buscar, com os índios, outras imagens, que, por sua vez, permitám-'lhe~ construir caminhos necessários para evitar esse excesso e, enfim, reencontrar o lugar onde possam gozar do bem viver que tanto prezam, incorporando ao m esmo tempo novos conhecimentos e formas de ver, que lhes interessam e que .desejam para si. Talvez resida aí a utopia em "Dominique Tilkin Gallois. Dominique conc_ede.u esta entreYista em sua casa, no fim de tarde paulistano de

I o

de

julho de 2 o o I, a Evelyn Schuler, Florenéia Ferrar i, Renato Sztutman e Valéria Macedo. Como a busca de um? Terra sem Mal, tema que, dos mais diferentes modos, permeia as cosmologias tupi -guarani, se jaz presente

no dis~ urso waiãpi contemporâneo sobre a exploração do ouro e

sobre a demarcação física e legal de s~ws terras?

O discurso sobre a putrefação da t erra está em vários momentos do cotidiano moderno dos Waiãpi. Eles utilizava~ as palavras presentes nos mitos para explicar a difer ença entre a terra esgotada e o quanto é verde , dura e nova a vida futura. A idéia da Terra sem Mal está muito presente como um ciclo que e nvolve a Terra, uma degradação inexorável que vai dar


lugar sempre a algo novo. Há uma sensação que toi crescendo entre .os Waiãpi- já existente no momento em que eu fiz minha pesquisa de m estrado, no final dos anos

1

97o-de que

muita gente junta estraga tudo. Sua indignação consiste em questionar por que somos t'a o numerosos, por que nos reproduzimos sem resguardo, por que temos .tantos filhos e l)ão conseguimos criá-los. Hoj e, isso está mais enfatizado e muito _mais requintado. Eles dizem

que a água está poluída, o cheiro da cidade é infernal, mas sempre a dominante é o excesso de gente. Esse é um tema tupi muito comum. A noção de desequilíbrio é muito recorrente nesses discursos atuais. E a demarcação de suas terras foi para continuar vi,;endo do seu jeito, piira não ter sempre gente dentro da sua casa, ,g ente que vem estragar as suas coisas. Nos anos 198o, os Waiãpi ficayam muito irritados ccim as invasõe~, . porque encontravam animais

q~e

haviam sido

~c;>rtos

s6 para tirar a p_e le. isso é uma inj6ria

p~r~

eles, assim como matar um monte de p eix~ para comer apen~s três. O que oslevoti a ~m­ 'barcar na iniciativa de demarcação de suas terras era esse sentimento de que estay~ · tudó estragado à sua volta e que eles tinham que ter o seu lugar, um lugar ainda b~nito pa~a se Viver. Como os Wai&pi lidaram com a idéia da n ~cessidade de se est9belecer nos limites de.um determinado lugar? Isso não rompe com o ideal waiãpi de deslocamento, de expàn~~o ·contínua? .

Na verdade, eles continuam se deslocando. Eu os con}leci todos einúma s6 aldeia ; agora são 42 assentamentos! A vida dispersa é que é a vida boa, em p equenina escala, cada grUpo no

seu pátio, a distância r espeitável dos outros. Eles já mudaram sua percepção do territ6rio, já aprenderam a faz er seus pr6prios mapas, mas não caiu totalmente a ficha de que não podem mais se expandir. O s Waiãpi se desloca,m para alcançar uma m elhor qualidade de vida, para Yi ver bem num lugar novo: E a~ ~esmo tempo esse novo, Iimpo, bonito, viçoso,' faz pensar na agradabilíssima Yida lá de cima. Quando o Kasiripinã [documentarista, waiãpi] diz que não 'quer morar em aldeias Yelhas, não estava simplesm ente se referindo à falta de recursos. Fazia um juízo estético , que remete a uma visão de futuro. A estética de viver num lugar

bonito oride s'e tem tudo à mão, onde as plantas nascem bem, onde ·a água é limpa, representa a qualidade de vida, e é o que eles. projetam para o ·futuro . .

Í o6


Os Waiãpi falam, por exemplo, que o cerrado é como o mundo de baixo- amarelado, esgotado-, pois ali só crescem capim e árvores magrinhas. Até hoj e, eu não consegui explicar para eles que cerrado não tem hadaa Yer com desmatamento, com desgaste ambiental. Toda vez que eles vêm de Macapá para à area, passando pelo campo cerrado, exclamam a capacidade de destruição d~queles brancos que se amontoam ria cidade. O estrago atualmente em curso nas margens da Rodovia Perimetral Norte, até bem perto do limite da área, os choca muito. A interpretaç~o de _que a busca da Terra sem Mal seja apenas a de recursos novos elimina o ciclo t emporal e a idéia de q11e as terras, os suportes .da humanidade, necessariamente ~ão se renovar, e a cada fecriação túdo está em jogo. Essa cosmologia, ao contrário, permite que eles digam que seus ancest~ais-·_-como narram alguns de seus mitos- preferiram o ~r~o às armas de fogo. Mas isso nã~ significa· que, nu~ momento posterior, tudo isso não possa ser revertido. O mito permite essa interpretação, A terra tem também uma dimensão temporal. Quando eles me con,taram pela primeira vez que·

os Ín~ios haviam escolhido o arco e a flecha e

os brancos, as máquinas, eles não tinham motor~ e sim nós . Hoje em dia; que elés têm motor, carteira de motorista, entre tantas coisas, e não precisam mais ati,t'à~ esse tipo de formulação, o que sobra é o problema da putrefação do ambiente. e isso çontinua vigente para pensar o fim do mundo, que não é fim, é renovação, a Únicàgaràntida logicamente. Para além da chave· do mito referido, h~ :um sentimento profundo de desigualdade em relação a nós. É compree~í~el que_os jovens queiram falar português, dirigir carro, ser

torcedor :d~ um time dê fu~ebol ; usar roupa da m~dà macapaense, ter igualdade na cidade. Na cúlturà waiãpi, tudo que uma pessoa tem o outro t~m também, acaba tendo. Aí vem

ü

ciúme

como instituição avassaladóra·: quando você qUer umà coisa, você demonstra o . ciúme até a pessoa te dar aquilo que quer, É a regulação da igualdade. E assim as coisas circulam._A idéia de que não tem porque não tem dinh~iro, porque é pobre, porque é índio, porque tem que gastar dinheiro com coisas Úteis, não faz muito sentido. Eu penso que a coisa mais difícil

para eles é aprender que são índios. Eles se pensam como humanos e não como índios. Aprender a ser índio parece um contra-senso lógico, além de muito pouco atraente, pois eles se vêem privados de uma série de coisas.


A idéia de que o território tornou-se uma área fechada não pode ser pensada fora da relação que eles constroem com o homem branco. Para tanto, primeiro tiveram de construir a noção de "Waiãpi", um coletivo amplo, inexistente na r epresentação e na prática de sua vida social, para depois construir a noção de terra. Tudo isso, de maneira gradaÜ~rá . A maioria dos Waiãpi sabe que a terra que demarcaram está cercada, mas em seu pen samento não faz sentido não poder ir além, pois a vivência do território cresce à m edida do movimento de descentralização qu e continua vigente, sem grandes alter~ções d esde que foram colocadas placas e abertas picadas. Tomemos o caso àuararli-kaiowá, no Mato Grosso d'a Sul. Esses índios passaram por um processo drástico de encapsulamento. Em que medida esse fator tem relação cOm ,a prática éorrçmte

?:..

suicídios entre jo11ens? O suicídio poderia ser 11isto como deslocamento d~ utopia de um pl~no espacial para outro, relacionado ao post m ortem ? · ·

Dizer que os jovens k~iowá se suicidam porque eles fizeram uma leitura de que a Terra e;tá podre e então o Úníco ~estino é o Paraíso é uma leitura que força a mão. Na. verdade, essa

cos~ologia aponta um círculo de rejuven escimento do todo, mas não no plano individual. É por isso que eu insisto em ver o suicídio, no caso waiãpi, como atO" de rebeldia individual, que não consegue carregar~ cosmologia. São muitos os jovens waiãpi que se suicidaram por desafetos, momentos de angústia e r evolta contra certas imposições: Esses jovens costumam anunciar que desejam se matar e, por esse moti vo; seus parentes próximos cuidam deles para evitar que se matem. Dizem os Waiãpi que o suicida tem a cab eça enrolada pela cobra, ~ão consegue dormir direito, só pensa em si. Nessas horas, não cr eio que esses rapazes e moças suicidas sejam filósofo s que estão pensando na Terra sem Mal. Há uma dimensão sociológica importante, o peso da decisão da comunidade sobre a vida dos indivíduos é muito forte nuni.â soc_iedade dessas . Não há muita escolha: os casam entos são marcados pelos pais, tem de trabalhar para o sogro, tem de casar com aquele Yelho ... Todo mundo acaba se acostumando com esses casam entos, e o carinho cresce' com o hábito, como eles dizem, mas no iní cio da vida adulta, no limiar do casamento , há m om entos de rebeldia.

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Então, o suicídio não seria a busca pela realização de uma utopia, mas o resultado de um descontentamento. Não seria a vontade de conhecer um mundo maior, de ter acesso a outras escolhas?

Se um jovem vvaiãpi quiser ir para a cidade, ele vai, pois não vive em uma sociedade autoritária. Já o suicídio é visto como uma agressão à vida e é culturalmente entendido como resultado de uma profunda tristeza e de um agente externo. Um pai ou uma mãe que morreu vem se comunicar por meio de um certo pássaro que canta na cabeça do filho. O suicida fica geralmente tomado pela saudade, um assunto de que os índios da Amazônia têm horror. Ter saudade é muito ruim e pode pn:>Vocar doenças. Não se acompanha a morte de um parente próximo até o fim. Há toda uma série de distâncias para evitar ter saudade. Abandonam-se os lugares onde morreu alguém, e deve-se desviar deles. Lá tudo pode acontecer, é preciso evitar ficar triste . Depois de mais de dez anos acompanhando o processo de contato dos Waiãpi com a sociedade envol vente, o que representou para você o encontro com os Zo 'é, hojefamosos na mídia como um dos últimos povos "isolados" do Brasil?

Eu soube em

1982

que os missionários tinham contatado um grupo indígena. A princípio,

achava que eles falavam uma língua caribe. Em 198 6 ou 87, soube-se que falavam uma língua da família tupi-guarani e, então, resolvi conhecê-los. Pensei que eram outros migrados do Baixo Xingu, como os Waiãpi, pois nenhum povo tupi é nativo daquela região [a chamada região das Guianas]. Levei um ano e meio batalhando para conseguir autorização para entrar lá e só consegui realizar a viagem acompanhada de um sertanista, porque, segundo o pessoal da Funai, "antropólogo é pernicioso para os índios". As duas primeiras viagens foram realizadas com um sertanista e foi muito legal. O s Zo' é já tinham tido experiências com os missionários, viviam numa aldeia de missão. O Luiz [Donisete Grupioni), o sertanista e eu avançamos para as aldeias. Foi a primeira vez que os índios conheceram pessoas que se dispunham a um diálogo mais próximo. As três primeiras vezes que eu os visitei, riam de mim porque eu falava Waiãpi com eles. Levei três campos de um mês para entrar na chave da língua Zo'é, mas, enquanto isso, deu para se comunicar. Em julho de 199 2, fui sozinha pela primeira vez, e então a minha pesquisa rendeu para valer. Sem o conhecimento waiãpi prévio, eu não iria ter questões antropológicas


relevantes para os Zo' é. Minha primeira busca foi no sentido de perceber as semelhanças, e depois, para desconstruí-las e então encontrar as diferenças sobre uma mesma grade tupi. Havia a mesma concepção de patamares cósmicos, a m esma preocupação com a morte, o mesmo t ema da Terra sem Mal, mas uma organização social completamente diferente, uma vida ritual sofisticada, que não se observava entre os Waiãpi . Na época, os Zo' é achavam que nós vivíamos em uma única aldeia de brancos e toda a sua preocupação consistia em saber de que lado do rio ela estava. Em r 996, eu levei alguns deles aos Waiãpi, mas foi uma visita altamente vigiada pelo chefe de posto. Foi uma coisa forçada, os Waiãpi não podiam, por exemplo, mostrar que usavam espingardas e miçangas ... Os Zo' é têm uma curiosidade enorm e de conhecer o mundo dos brancos, mas quem sou eu para mudar parâmetros da suposta proteção da "cultura" indígena? Penso que foi muito proveitoso para eles terem ido aos Waiãpi, assim como seria importante que eles conhecessem seus vizinhos quilombolas. Meu trabalho como indigenista foi, no

começo, mostrar que os Zo'é, como qualquer outro grupo, não estavam, e jamais estiveram, isolados; possuíam, sim, uma história de contato enorme e complexa. Que essa experiência lhes permitia dizer e querer uma relação com seu entorno que nada tinha a ver com a expectativa da proteção. Eles vão para a frente, não estão preocupados em se descolar de interpretações que guiaram experiências passadas. Você tem se declarado crítica para com os argumentos dos sertanistas da Funai que difendem um ideal de isolamento radical dos Zo' é em relação ao mundo dos brancos-como se eles tivessem de permanecer exatamente como são, como se eles fossem peças vi vas de um museu . É preciso, por certo, romper com o isolamento, mas quais os riscos de cair em uma situação de etnocídio?

Penso que esse é todo o problema. Vocês têm toda a razão de formulá-lo nesses termos. Diz o indigenismo oficial brasileiro, há três décadas, que todo contato deve ser gradativo. Mas esse contato gradativo é, sobretudo, intelectual. Eu sempre digo que t emos de promover o encontro de conhecimentos porque surge daí uma reflexão intelectual sobre o outro. Quando chegavam os aviões que vinham me buscar, os Zo' é queriam entrar, e tínhamos de arrancá-los de dentro da cabine, o que era muito doloroso. Isso aconteceu umas duas vezes. Eles achavam

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que eu era egoísta: "Você vem aqui na minha casa, mas não quer me levar para a sua". Então, por que não levá-los? É fundàmental eles aprenderem a ser índios para lidar com essas situações. O

termo "Zo'é" não é um marcador étnico, e sim de humanidade. Eles dizem que eu sou Zo'é porque como a comida deles. O chefe de posto da Funai, se fica muito tempo na aldeia, vira Zo'é. Penso que é preciso informá-los sobre o que nós, os "brancos", pensamos deles, queremos com eles, o que nossa sociedade lhes propõe como lugar e o que ela exige em troca. Para isso, serve o trabalho com o vídeo e as visitas a outros povos. Eu não vejo diferença entre o sertanista bem intencionado, que quer respeitar a cultura indígena-

mas que

cultura é essa?-e um missionário evangélico ou qualquer outro autoritarismo que pretende selecionar traços culturais adequados, costumes que eles "podem" manter. Os indigenistas pensam: "eles são magros, então vamos dar comida", "a roça deles é uma pobreza, vamos levar novos cultivos para eles engordarem". Esse tipo de engenharia é complicado, pois são eles que devem fazer a seleção. Há brancos, como os missionários, que gostam de ver os índios vestidos, e outros, como os funcionários da Funai, que os proíbem de usar roupas. A princípio, os Zo' é querem tudo o que t emos, pois não se vêem como índios, mas como gente, gente como a gente. Então, se o outro t em isto, eu quero também. Aprender a ser índio, que não pode ter tudo o que tem o outro, é terrível, são muitos anos de processo. Os índios que vemos nos palcos de r eunião enfeitados de índios, fizeram todo o processo e voltaram. Mas isso não se dá de forma direta porque o primeiro que for como os Zo' é, pelado, numa reunião dessas, vai se sentir tão humilhado pelos olhares incomodados, que, na seguinte, vai inteiramente vestido.

É só o filho dele que vai voltar a se inter essar a exibir algum desses traços diacríticos. Os sertanistas imaginam que a transição vai se dar numa torre de marfim. Quem está preocupado com a aculturação somos nós, e não os índios. Você acha que esse processo de aprendizado requer sempre uma mediação? Minha pesquisa com os Waiãpi, atualmente , se dá no âmbito dos cursos de formação. Os jovens estão criando neologismos para dar conta dos conceitos da nossa sociedade. Só agora, depois de trinta anos de contato com agentes do Estado, eles podem pensar em traduzir uma catego-


i'ia "governo", que os mais velhos continuam sem entender. Estes ainda chamam o chefe da funai ou o governador do Estado com a palavra de "chefe de aldeia", e os jovens falam que essa associação não tem a ver e criam uma palavra em Waiãpi para dar conta do que é governo, e isso é fascinante. Para mim, o que vale para garantir o futuro desses grupos é eles pararem de dar o nome de "chefe de aldeia" para governador e bolarem uma nova palavra que não tem o mesmo significado. Então, quando eles tiverem reconhecido a diferença, conversado muito a respeito disso tudo, jovens e velhos, juntos, vão se posicionar como pessoas, com uma cultura e uma forma de organização distinta. Mas isso requer alguém que se interesse e que faça a mediação. Eu não proponho nunca tal ou tal palavra, aliás recuso-me já há vários anos a traduzir conceitos para eles, essa mediação não faço. Escuto e me delicio com as explicações, alternativas propostas, avaliações. Tento acompanhar a difusão-ou a "epidemia", como diz o [Dan] Sperber-

da

representação assim construída pelos jovens ou por algum líder mais ativo, escuto quando ela é experimentada nos dialógos entre eles, às vezes dando certo, outras vezes não. Eles não per cebem imediatamente que a for_ma de organização social, do poder, da relação entre homem e mulher, é algo tão diferente. Por isso, as traduções são experimentos, constantemente reavaliados à luz da melhor compreensão que eles adquirem de nosso modo de ser. A primeira

marca do etnocentrismo de um grupo qualquer é pensàr os outros à luz de sua organização social. Para perceber e construir a diferença é preciso estabelecer um diálogo e uma mediação. Se nem tudo é passível de ser ressign!ficado, o que pode sign!ficar"perda"nesse processo intrigante de tradução e mediação cultural? Como evitar o pessimismo demasiado sem cair num otimismo talvez exagerado? Penso que temos de pesquisar além das coisas que são facilmente traduzidas. As questões cosmológicas e percepções sobre o destino do mtindo são mais facilmente traduzidas, porque uma cosmologia não é jamais fechada . As instituições sociais é que são difíceis de traduzir. Criar uma noção de unidade com uma r epresentação étnica é muito difícil. Criar papéis sociais neutros, também. Um professor waiãpi, por exemplo, não é uma figura n eutra que pode ensinar

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qualquer um. Nenhuma aldeia vai resp'eitar uma pessoa que é, no limite, inimigo. Uma posição descontextualizada das relações sociais é algo incompreensível. É aí que eu vejo perdas. Eles têm de se descolar e têm de falar não mais em nome do próprio grupo, mas dos índios do ~rasil inteiro. Isso são perdas , porque raramente essas pessoas consegu em encontrar novam ente um lugar nas relações sociais, pois t êm de mudar de posição em relação aos seus inimigos e os seus afins . Uma das coisas que mais m e preocupam é como apoiar movimentos de autonomia sem descolar esses indivíduos das suas próprias r elações sociais. Há várias alternativas. No Conselho das aldeias waiãpi, os chefes, jovens que assumem a diretoria, todos estão marcados por relações de dentro, são cunhados uns dos outros. Quem sabe os filhos deles vão conseguir ter posturas neutras. A política indigenista obriga às vezes a preparar pessoas muito rapidamente e cria uma ruptura muito grande . Essas pessoas não conseguem mais escutar as vozes de suas bases nem conseguem voltar. A perda ·é deixar de ser parcial. Os índios são parciais, eles não

representam o Todo waiãpi, porque o Todo waiãpi não existe. Então, forçar a barra para que se r epresente esse todo é fazer -se como um karai-ko [brasileiro], é deixar de ser Waiãpi. Qyal a alternativa de abordagem antropológica diante dessas constatações?

É preciso ver as coisas com seus pesos locais. Não penso que o encontro com a sociedade nacional seja absolutamente determinante na vida social das populações indígenas. Mas sim que t emos de olhar o que se constrói no palco externo, que é o lugar da negociação. É possível, então, construir coisas muito inter essantes , aprendendo coisas novas. Me incomoda pensar que os índios vivem a digerir o mundo dos brancos, pois n em tudo é digerido. Há coisas qu'e se romp em e criam algo novo. Se insistirmos na idéia de ressignificação, pegaremos o

bonde andando, pois há momentos em que o novo perde o significado anterior e se desloca para outro lugar. É aí onde algo começa a fazer sentido. A noção de ressignificação , de adaptação' e de digestão, tem limites. Minha idéia é olhar o diálogo entre as versões das sociedades indígenas sobre o Outro, relacionando sempre com as versões do outro sobre elas . Não penso que seja possível digerir tudo por meio da cosmologia nativa. Há coisas que se instalam e criam novas relações, novos mitos, novas práticas .


Ainda a respeito de possíveis mediações: como você se posiciona diante, por exemplo, do patenteamento de conhecimentos de sociedades indígenas?

Os próprios Waiãpi tiveram experiência com um grupo de pesquisadores que pareciam estar relacionados a laboratórios japoneses, que vieram com pinta de interessados na "cultura"; e eles entregaram tudo, na boa. Dizer para eles que não podem fazer isso porque os conhecimentos são deles é muito difícil. De novo, tudo passa por uma construção intelectual. Ninguém tem coisas, e sim usa coisas. Eles têm de aprender agora que são os donos dos recursos daquela área. As espécies naturais têm -jar [donos]. Sua posse não é jamais dos humanos. Eu concordo plenam ente com o que diz a Manuela [Carneiro da Cunha], que o ganho que se teria em trabalhar a questão dos direitos intelectuais com essas sociedades diz respeito à construção da identidade, e não simplesmente a um ganho comercial. Mas para isso, como para qualquer processo de tradução, de interpretação, de valores intelectuais, é preciso tempo, muito t empo. Daí ser mais fácil o que todo mundo propõe: pagar, pagar, pagar. E daí ? Mas Philippe Descola, em um artigo publicado na Sexta Feira 4, ao debater com Manuel a Carneiro da Cunha, demonstra que é muito difícil atribuir a uma Única etnia a propriedade de um determinado conhecimento, já que este está sempre em circulação.

De fato, os conhecimentos indígenas não são étnicos e, novamente, caímos no problema da unidade. O conhecimento é o que há de mais compartilhado entre eles. Os grupos indígenas

falam entre si, seja trocando coisas, seja trocando brigas, mas sobretudo trocando pontos de vistas, idéias, saberes. Eles compartilham cosmologias. Dizem os Waiãpi que os venenos mais poderosos para matar gente são os Wayana [grupo de língua caribe localizado no norte do Pará] que detêm, mas eles também os detêm. Na hora de fazer uma patente, qual dos dois será excluído? Possivelmente quem não ousar dizer que manipula venenos capazes de matar!

O que as noções de "enunciação cultural" e de "negociação" de H omi Bhabha (O local da cultura) trazem de noFo para a discussão antropológica sobre o contato interétnico? Como você trabalha com elas nas suas pesquisas mais recentes em etnologia indígena?

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Eu gosto muito dessa questão do espaço da negociação porque, em antropologia, quando se trabalha com sociedades difer entes e sobre categorias culturais tão distantes das nossas que a sua tradução exige uma pesquisa em si, há a tendência de fixar posições. Quando queremos pensar como se constroem as categorias do outro, devemos ter em m ente que isso sempre se dá em relações individuais, sobretudo em sociedades como as que pesquiso, que não se apresentam em unidades coesas e sim em facções, pequenos grupos com posições pessoais. Essas categorias são moldadas em função de posições que são construídas em momentos altamente variáveis. Essa é a razão pela qual gosto das questões que o Bhabha nos propõe: é preciso focar o lugar · da enunciação da diferença. Se a diversidade cultural está dada por categorias macro, que estão disponíveis no saber dos etnólogos, a diferença cultural é construída localmente em uma relação interpessoal e contextual. Esse seria o foco da pesquisa, da tradução da tradução que o antropólogo teria de empreender. Penso que o trabalho de Bhabha tem muito a acrescentar a pessoas que , por exemplo na etnologia indígena, têm se debruçado sobre a etnografia da fala e que acabam se perdendo no enunciado, sem lembrar que se está tratando de r elações políticas. Bhabha apresenta uma abordagem que permite articular contextos políticos, negociados a cada momento. No diálogo cultural, se constrói uma tradução que é efêm era, mas que se dá a partir de categorias culturais possíveis.

É como se houvesse uma grade que pudesse ser ativada em det erminados momentos. Cabe a n~s focar o momento desse diálogo. Não penso que os índios estão falando algo que venha ex-

clusivamente deles, nem qualquer indivíduo. Eles estão, sim, respondendo a uma interpretação sobre eles que vem do outro. Hoje em dia, a etnologia só trabalha em contextos de

diálogo cultural, não há como escapar. Mesmo que fujamos para uma aldeia isolada no meio do mato, estaremos ali como brancos, como portadores de miçangas e lanternas. Estamos sempre imersos nesse contexto de troca de posições. Temos de lev~r em conta isso e observar como as posições são manipuladas. As questões postas por Bhabha trazem a idéia de que não podemos pensar o diálogo das sociedades indígenas com a sociedade brasileira diretamente. Há sempre posições intermediárias, e não são "sociedades" falando entre si, mas pessoas, que carregam uma memória cultural de


outros diálogos que já ocorreram. A cultura não é simplesm ente inventada, exatamente porque existe a m em ória das outras interpretações. Ninguém é um indivíduo isolado no mundo. Em um certo momento, a cultura se congela, e em outro , é reati vada . Nem tudo pode ser r einventado, penso que existe uma base. A imaaem do índio tem crescido cada vez mais na mídia, mas ainda contém arande dose de preconceito. Como a apropriação do vídeo por parte dos próprios arupos indíaenas pode vir a reverter essa situação? Como você vê esse movimento tendo em vista sua experiência no projeto "Vídeo nas aldeias", realizado durante muitos anos no Centro de Trabalh o ln diaenista (C TI)?

Caímos aqui no chão do preconceito. Ao longo dos anos em que trabalhei nesse programa de comunicação do CTI, uma das coisas que mais me deram prazer foi promover e praticar um tipo de documentário diferente, no qual os índios falassem por si mesmos. Obviamente, quando eles falam, toda uma série de pré-concepções sobre eles caem por t erra, porque eles com eçam a dizer as coisas que realmente os inter essam . Esse é um pequeno instrumento para um mar de preconceitos. Não sei se é muito eficaz, mas eu acredito que possa sê-lo, dado o acúmulo de comunidades que vão olhar e se chocar com as coisas que são ditas e, assim, se apropriar desse instrumento , pois .é bem evidente que, quando eles quiserem fazer vídeo, não será sempre motivados para rebater o preconceito, mas simplesmente porque é legal manusear a câmara. Se nós temos, por que eles não haverão, também, de ter ? Com suas câm eras , eles falam de coisas que o documentarista comum não fq1aria. Aí'nasce e cresce entre eles o prazer e a dimensão da comunicação, da capacidade deles de dizer o que pensam, de se posicionar... O gr ande risco é cair na cilada da técnica. Afi.n al, a linguagem do vídeo ou da televisão se impõe de maneira igual para todo o mundo. Então, o que um narrador indígena, que leva uma hora e m eia para contar um pedaço de historinha, vai falar em vinte minutos? A partir do momento que, para passar na Globo ou na TV Cultura, é preciso fazer um filme de vinte minutos, o índio vai ser conduzido a se adequar a uma linguagem na qual vai lhe sobrar muito pouco espaço. Isso está acontecendo nos EUA: não se vê a diferença entre o vídeo de um índio e de um não-índio. O que eu vejo com o mais valioso nisso tudo é o encontro de conhecimentos, é o controle inventiva

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da técnica, é poder falar direto sem alguém falar por trás. Essas são coisas que vão ganhar um espaço cada vez maior, mas que têm o risco de cair na prefiguração da linguagem, no blablablá do discurso do resgate cultural. É triste ver tantos projetos inovadores caírem nesse pretexto equivocado, usado muitas vezes para justificar o uso de tecnologia de ponta, como se fosse um pecado usar algo "não-tradicional". Mas ainda há uma êrifase muito forte em registrar"imagens da tradição", em reiterar a autenticidade da cultura nativa . .. ·

Há coisas novas a serem inventadas. Ouvi de uni designer sobre minhas fotos dos Waiãpi: "Ai, que pena que eles usam capacete! Ai, que pena que eles usam bota!". Eu não o critico. Esse ideal de pureza é tão forte na nossa sociedade ... Os índios, em princípio, não tirariam a bota e o

capacete para serem fotografados, mas podem ser levados a fazê-lo. Muitos são levados a filmar só aquilo que esperamos, o que é normal, dado o próprio espaço da interlocução. Além de formar pessoas para trabalhar com o vídeo, você dirigiu algunsfilmes. Como se dá para você a questão da autÓtia? Como conciliar os seus interesses, como antropóloga e realiz adora, com os dos índios, durante a filmagem e a edição?

,

. Eu m e dou o direito, absolutamente tranqüila, de

construir~

minha interpretação. O meu sonho

é fazer um filme de cinco minutos sobre a fortaleza de Macapá, muito concentrado e muito diferente da construção deles. Gostaria, também, de fazer um filme etnográfico sobre a festa do Pacuaçu-

que celebra a separação entre humanos e animais- entre os Waiãpi, informada

por uma pesquisa antropológica. Um film e ~hato de antropóloga, mas que vou curtir muito fazer junto com os Waiãpi, que são muito mais detalhistas do que nós. Isso seria fazer antropologia visual?

Para mim, não faz sentido uma antropologia "visual", é antropologia e ponto. O que eu curto

na imagem é a comunicação com o não-antropólogo, é mais uma antropologia da comunicação do que antropologia visual, é fazer tanto um texto como um filme


para divulgação, e não retroalimentar a pesquisa antropológica falando sobre ela mesma. Penso que o antropólogo . que vai lidar co~ um meio de comunicação, vídeo, filme, texto ou página na internet, não precisa, necessariamente, domil1ar a técnica. _Ser um ~ntropólogo é construir uma questão para a antropologia e não uma· questão para a fotografia. Refletir sobre o olhar, sobre o recorte, faz parte da crítica da fonte _qu~ ~stamos acostumados a fazer. E, sobretudo, há coisas que se passam bem por meio da imàgem e óutras que não. No film~ etnográfico que pretendo fazer sobre um ritual indígena, não vou conseguir dizer tudo o que quero apenas pelo vídeo, vou ter de escrever um artigo. Há coisas que estão fora dos personagens e que não vou poder tratar em imagem. Ou a antropologia visual ganha como instrumento político, ou ela se torna autofágica, porque as pessoas que se engajam nessa via vão querer dominar tanto a técnica que elas acabam se esquecendo que têm de construir uma questão. Eu aprendi a filmar, adoro filmar, mas não sou uma boa fotógrafa. O que eu sei basta para o que quero e eu não me importo muito que as minhas imagens não sejam as imagens de um fotógrafo.

É possível dizer que o seu trabalho está inserido em um estilo de antropologia propriamente uspiano? Pensamos aqui tanto nos estudos de história indígena desenvolvidos ' nas décadas de 19 8 O e 19 90 como em urria tradição de engajamento e preocupação com a causa indígena que sempre esteve atrelada às pesquisas acadêmicas individuais.

Sim, penso que meu trabalho se liga a uma tradição muito antiga na USP, de uma antropologia dita comprometida. Não se deslocava o discurso politizado do discurso cosmológico, criando, assim, uma antropologia mais preocupada em compreender situações contemporâneas. Aproveitava-se 1 por exemplo, a pesquisa da situação de um grupo indígena no meio de uma confusão de luta por terras. Então, novas perspectivas sobre a antropologia, como aquelas que privilegiam as relações entre estrutura e história, renderam bastante em solo uspiano. N a década de 1970, quando você chegou à USP, havia uma espécie de preconc;eito em relação aos estudos de etnologia indígena por parte daqueles que estudavam temas sociológicos ligados a movimentos sociais urbanos e rurais? Como a antropologia daquela época conquistou seu lugar?

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Os antropólogos eram associados àqueles que queriam preservar tradições, superstições que seriam rapidamente superadas. A noção de cultura para a antropologia traz exatamente o ·contrário do sentido da redoma. O grande projeto político de ser antropólogo era mostrar, por

todos os meios, que justamente estávamos interessados no dinamismo cultural, na tradução; na abertura e na capacidade desses grupos indígenas de dialogar com o resto da sociedade, não simplesmente porque são os privilegiados que têm terra e os camponeses ao lado não têm e são expulsos. Explicar o que é identidade diferenciada, explicar o que é a construção de ser índio, o aprendizado dos direitos, foi muito interessante, mas não foi nada fácil. Hoje em dia, como professora, o que sintb por parte dos alunos, relutantes em estudar "etnologia indígena", é menos uma CrÍtica sobre O fato de que OS Índios SãO O, 2% da população mas têm I I% do território nacional, do que uma crítica sobre a antropologia propriamente dita. Naquela época, não havia dúvida quanto ao engajamento da antropologia. Hoje em dia, mais tranqüilamente, os antropólogos voltam pará a universidade para fazer antropologia unicamente como reflexão. Enquanto fomos nos desengajando de certa maneira para fazer da antropologia um lugar para pensar questões maiores e menos localizadas, os alunos que chegam estão preocupados em saber, mais uma vez, para que serve a antropologia. Como fica, hoje em dia, para os antropólogos, a articulação entre atuação política e a produção de conhecimento? Como conciliar, por exemplo, o trabalho nas ONGs indigenistas com a vida acadêmica?

Eu diria que, hoje em dia; as universidades perderam o bonde. Os antropólogos que fundaram e ajudaram ONGs vieram das universidades. Mas é incrível que justamente o apoio foi para criar centros de reflexão sobre uma certa prática, que, naquele momento, deveria se dar fora da universidade, pois ali não havia agilidade, e as questões.que os grupos indígenas nos colocavam tinham de ser resolvidas com um pouco mais de organização e urgência. Tínhamos de dispor de um certo tipo de documentação que não era aquela vigente na universidade. Os antropólogos que ajudaram essas ONGs a se formar também são um pouco responsáveis pelo fato de ter se instaurado essa lengalenga na universidade. Mas o fato é que era preciso formar indigenistas, fora do âmbito do Estado, para agir mais rápido do que poderiam os acadê-


micos. Penso que se perçleu, nas univer sidades, a possibilidade de se acompanhar questões muito interessantes , como aquelas sobre os direitos. Há m ovimentos indígenas que gerariam pesquisas excelentes e que não são r ealizadas na univer sidade. Teríamos de recuperar essa capacidade

de agilidade, introduzir te~as que aparentemente não pertencem à antropologia clássica, temas que são colocados pela situação política e interétnica da atualidade. Acompanhar o processo de identificação e de construção da noção de t erritório vale uma dissertação de m estrado, gera conhecimento. Como ~ocê pensa o ifeito il) verso disso tudo, ou seja, a criação de cursos de pós-graduação priflssionaliz antes, que capacitem antropól og os para trabalhos assistenciais, sobretudo junto a órgãos como a Funai?

Essa é uma outra história . Penso que é muito grave o que está acontecendo, exatamente porque ·agora não dá para recuperar para as uni ver sidades o papel que ela deixou de t er ao longo de pelo m enos quinze anos . Pret ender que a univer sidade vá formar em dois anos um m estre para dar conta de um laudo antropológico para identificação de quilombo , para identificação de t erra indígena et c. é uma bobagem, p ois agora exist em as ONGs como interlocutores . Em segundo lugar, é muito interessante que isso venha de Brasília, onde os alunos da Univer sidade de Brasília (UnB) vão fazer estágio na Funaj . Na USP, estam os caminhando exatamente na direção contrária: a pesquisa de campo aprofundada fica para o doutorado, pois no m estrado, pelo m enos a minha posição é essa, deve-se .consolidar a forma ção t eórica do aluno. É preciso cobrar mais cursos de formação t eórica. A r esponsabilidade para assinar um laudo é muito grande . Por isso , penso que o .m estrado deve ser a iniciação para aprender a construir uma questão. Humildem ente , o aluno pode acompanhar um processo de dem ar cação, mas não dirigi-lo. Ele vai obser var de longe , sem inter vir, e ver que tipo de dado po de sair dali , t om ar a dimensão de sua responsabilidade ,· na tradução cultural. Penso , como o João Pacheco [de Oliveira Filho], que , no futuro , os antropólogos não terão que assinar laudo algum, serão os próprios grupos que vão assinar os seus próprios laudos . Além disso , para fazer um laudo, é preciso buscar literatura teórica na univer sidade e outro tipo de literatura nas O N Gs, que possuem um kn ow-how maior por t er acompanhado

120


diYersos grupos indígenas de uma per spectiYa mais prática . Temos de dialogar com as ONGs ate ·na formação das pessoas qu ~ vão fazer laudos . Onde estão todos os papéis que geram desde um · relatório d e identificação até uma deinarcição Hsica? Não estão na univer sidade . @ais as contribuições e os contrapontos ifetivosque

auniversidade pode ciferecer, hoje em dia, para a

ação política concentrada nas ONGs?

Exatamente o fato de .poderfazerurna crítica da linguagem utilizada pelasONGs. Outro dia, me contaram, de uma nova maneira, a antiga r elação que os Krahô [grup·o indígena de língua jê, que vive no estado do Tocantins] mantêm com s~eu entorno, por meio de "padrinhos" nas cidades vizÍnhas. O apadrinhamento, instituição tipicamente krahô, com o padeiro da cidade vizinha ~arrega uma série de outras coisas para dentro das aldeias . Mas, para muitos, eles não podem ter padrinhos · nas cidades, porque são índios. Sua autonomia é pensada como total separação em relação ao resto da sociedade. Eu vejo, em contrapartida, que eles pensam sua autonomia como cÍependênci~; não em um sentido negativo, muito pelo contrário. E isso não vale apenas para os Krahô, que têm padrinhos urbanos de longa data, mas para tantos outros. Ou seja, ser autônomo é estar con ectado lá fora. Às vezes, quando um índio nos pede algo, ele . insiste não nesse algo, mas em usar esse algo pedido c~mo instaurador de uma r elação social. É feio pedir? Para eles não parece ser. Ver, conhecer, entender, pedir para receber é, p or exemplo, um Único conceito na língua waiãpi. O

discurso das ONGs parece, mais ,u ma vez, fechar esses grupos em uma autonomia interna que é impossível, porque eles nunca viveram em autarquia e sempre trocaram. Não há dúvidas de que o que vem parà cimà deles é muito forte e muito difícil, mas eles possuem essa generosidade d e aceitar dialogar e não quer er se fechar. As universidades têm esse papel crítico, mas é também um pouco ilusório ... Não há muitos que querem ser etnólogos, menos ainda que se dispõem à minúcia da pesquisa e descrição etnográfi ca. Evelyn Schulei, Flore~ cia Fetrari, Renàto Sztutman e Valéria Macedo são integrantes do corpo editorial

da S"exta Feira.


12 3 (Kayap처) e o mundo dos brancos

Nossas utopias n찾o s찾o as deles: os Mebengokre

Cesar Gordon


Já muito·cedoys índios aparecer~m ao pensamento ocidental como exemplos para nossas utopias . A Jd~i-a da · bonda:d~ natural dtfundid'a peJos românticos do século XVIII nos é basta:nte conhecida . _Mas ela se ~ncoritta bem antés. Desde Montaigrie, no çélebre ensaio sobre os 'canibais, atravessando o século ' XVII at~ chegar a Rou~sdu e aos enciclopedistas, a figura do "selvagem" como modelo de -virtude 1 vivendo etn 'liberdade, num estado. natural, ocupou um papel central nas formulações . '

~

fllàsó-ficas_, ~oi4i~ e políticas da Europa. No interessante O índio brcJSileiro e a Revolução Francesa, de I

~3 7, A~onso ~i-in os . rêt_raça a história da idéia da bondade natural ao longo desses três séculos,

Ínost:hmdo como·~la desli~a de·um princípio filosófico e moral, em Thonias Morus e Montaígne, para Úmà doutrina jui'ídica:, n~ pena de Grotius ·ePufendorf, por .exemplo, até se tornar finalmente

teo~iapolítk~ - l!~s

base para lima

filósofós- i1uminista~. Nesse percurso, é possível perceber com

nitidez a influênCia do índjo brasileiro, ou melhor, de uma representação do índio-na gestaçãq dos

id~aisde liberdade e igup.ldad~ qu~ culminaram na Revolução Francesa ~·

.

'

.

.

.

·.

eem outros movimentos

utop!cos posteriores. O discurso europeu construiu-_escolhendo alguns elementos a partir de_ inúmeros disponíveis na literatura dos cronistas e viajantes-.uma imagem do índio como "homem natural", que se adequava a um determinado ideal de sociedade; isto é, a uma utopia. Vale lerpbrar que a maravilhosa ilha imaginada por Thomas Morus foi inui to provavelmente inspiràda no Brasil, ( 2 ooo: ~ 3 9) . E

emais precisamente em Fernando de Noronha, como nos sugere Afonso Arinos

~e a Utopia do santo é declaradamente uma obra de ficção, o ensaio de Montaigne é

explícito em estabelecer a conexão entre um estado natural benévolo e a vida dos índios das costas brasileiras. Em meio a uma descrição em tudo inspirada em Jean de Léry eThevet (idem: I 75- 84); M<mtaigne exalta o estado de natureza- modelo de perfeição- dos habitantes do Novo Mundo, ainda não contaminados pela civilização. Tudo neles era justo e belo, pois que guiado por princípios naturais. O ·ensaio sobre os canibais termina com uma impressionante provocação revolucionária, mas o relativismo de Montaigne não o permitia aferrar-se demais à idéia de que as leis naturais estruturavam a I

soci~daoe

do Novo Mundo, como se vê em _seus ensaios posteriores (Lévi-Strauss,

991 : 2 84). Não obstante, nos duzentos anos seguintes, a teoria da bondade natural e as concepções

do naturalismo.humanista. constituem fundamento das utopias iluministas e matriz dos principais movimentos revolucionários.

124


Nunca é demais observar a força e a p enetração dessas idéias nas ~ormulações intelectu<l;is dos séculos que se seguiram, incluindo o pensamento antropológico e a etnologia indígena_(Taylor, I

984). Atualmente, escutamos seu eco em alguns discursos ambientalistas e no chamado movim ento

ecológico, sobretudo em versões mais fundamentalistas, onde despontam neo-hippies , comunidades alternativas e outros grupos de contracultura tardia. Os índios aparecem aí, quase ·sempre, como a encarnação da nossa utopia pós-moderna e ecológica : modelo para um mundo mais equilibr~do, em harmonia com o meio-ambiente, onde os valores coletivos possam englobar os indivíduos, fornecendo um forte senso comunitário mas ao q1esmo tempo de justiça e de liberdade. Se,nossa sociedade é tida por mercantilista, individualista, baseada num sistema de produção industrial em massa, cujo efeito é a degradação sistemática e planetária do meio natural, os índios seriam seu contrário: coletivistas, anticapitalistas, ecológicos, exemplo de harmonia entre sociedade e natureza, talvez porque estejam, pensamos nós, mais próximos dela em todos os sentidos, ou até indistintos dela. Já vamos longe dos iluministas, e nossas utopias do novo mil ênio podem não ser exatam ~nte as m esmas, entretanto continuamos a projetá-las sobre as figuras idealizadas de sempre, ~orno ~e algum atavismo fizesse dos índios nosso eterno ideal de perfeição e pureza. Que fique claro, nada contra as utopias. O problema é quando elas se baseiam numa fantasia do .outro, numa idealização de um outro por nós imaginado, pois fatalmente esse outro terá que se haver, mais cedo ou m_ais tarde, com essa idealização, essa fanta:smagoria de si. Problema maior, visto que a idealização funcior:a como armadura moral, exógena e estranha ao outro, mas em cujos limites procuramos mantê -lo em nome de nossos ideais. E se o outro dela escapa, sendo o que é, e não o que preten.demo~ que seja, um mecanismo reverso transforma-o não mais em ideal, mas em simulacro", em ídolo de pés de barro, como se o erro em não viver nossa utopia fosse dele. Pensando ainda no século XVIII, lembremo-nos, por exemplo, das estratégias de Voltaire para derrubar o argumento rousseauniano da bondade natural. Voltaire caçoa dos ingênuos otimistas como Pangloss, que crêem na pureza do '

-

.

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selvagem, e constrói para este uma imagem em negativo: "um espertalhão bem informa_d o, co~ raciocínio de filósofo r eacionário" (Melo Franco, 2 ooo : 2) I), ou seja, como um outro civilizado oitocentista. Em ambos os casos, no entanto, é a alteridade que se suprime: ou os selvagens são aquilo que nós não somos, mas desejamos ser; ou não passam de um outro nós, com os m esmos defeitos ou


até piores. Entre a idealização e o cinismo, desapar-ece a diferença . Essa é a perversão da idealização e sua c~ntraface, portanto ~ d e muitas d: nossas utopias. N este· ensaio quero falar dos índios Kayapó e mais particularmente dos Xikrin, grupb kayapó coin quem venho trabalhando e convivendo desde ~ 998. Quero falar dos Kayap6yorque ele~ são um exemplo atual do perigo potencial d e nossas utopias. Como nos debates dos filósofos do século ~VIII, a imagem recente dos Kayapó foi aprisionada entre dois pólos. Vistos inicialmente pela mídia

internaci~nal como avatares.fi~ de siêcle do bom selvagem, defensores da floresta amazê>nica e dos .

.

.

direitos indígenas, como um povo que "poderia salvar 'o mundo", conforme célebre manchete do súplem~:;nto· dominical do Washington Post de abril de" I 9 9 2, os Kayapó passar,am a ser julgados em pou-

co t~mpo como índios mercantilistas, int~ressados .nbs luxos da civilização, envolvidos em ati~idades .· alta~ente predatórias como o garimpo e a exploração de madeira. Aqui, mais uma vez, a passagem

d e um .ideal d e pureza e perfeição-à vilania não 'd eixa espaço par~ conhecermos verdadeiramente "os Kayapó, seu modo de vida, suas escolhas, suas ambi:-ções, ~uas dificuldades e conflitos! e , por que não, suas utópias.

É disso que gostaria de fala~ agora.

O~ Kayapó, autodenominados Mebengokref são hoje aproximadamente 6 mil índios, falan-

tes de uma língua jê setentrional, habitando diversas al~eias nos estados do Pará e Mato Grosso. Cada aldeia constitui um universo sociopolítico relativamente autônomo, mas todas são lingüística ·e culturalmente homogên eas . Igualmente , a déspeito de especificidades loGais, pode-se dizer que os Mebengokre vive nciaram, nos últimos cil!qüenta anos, processos históricos rn_uito semelhantes, marcados pela intensificação do relacionamento com os brancos ouj como eles nos chamam, kuben. Nos anos I 98o e I 990, os· Mebengokre tornaram."se célebres na mídia nacional e internaciohal pela ativ_a mobilização em favor d e direitos .políticos, da demarcação de suas terras, e também pela form!l . intensa como se r elacionam com os mer ca_d os locais, em busca de produtos industrializados. No curso dessa mobilização, rostos como o dos líderes Ropni (mais conhecido como Raoni) e de Bepkoroti (Paulinho Payakã), tornara111-se mundialmente famosos, clicados pela imprens~ ao làdo de artistas, personalidades e gra~des chefes de Estadó. Mas a sag~ dos Mebengokre no mundo dos kuben começou há m ais tempo. D esde o século passado, como mostra Turner (I 99 2), eles t êm mantido cqntato com as frentés de expansão regional. Esses contatos se davam d e forma espor·ádica, quase sempre marca-

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dos por hostilidades de lado a lado. Guerreiros intrépidos, os Mebengokre faziam ataques-relâmpago e saqueavam rancheiros, ribeirinhos e pequenos extrativistas (seringueiros ou castanheiros) , atrás de armas e m ercadorias . A partir de I 9 5o, em r esposta à atuação do Ser viço de Proteção ao Índio (SPI), todas as comunidades m ebengokre, com exceção dos Gorotire (cuja "pacificação" ocorrer a em I 9 3 6), decidem estabelecer contato sistemático e pacífico com os brancos (Verswij ver, I 9 8 5:4 I). Em troca do fim das hostilidades, o órgão i_n digenista oferecia m ercadorias na forma de presentes. Para Turner

(I 99 I : 29 2), nesse sentido, estabelecer a paz aparecia aos Mebengokre como uma continuação da guerra por m eios muito mais fáceis . Os brancos estavam ali ofer ecendo voluntariamente aquilo que os índios só vinham logrando obter através da pilhagem. Parecia um bom negócio. Aos poucos foi ficando claro para os Mebengokre que o que imaginavam ser a generosidade do kuben tinha limites muito estreitos ." Seja nas mãos dos agentes indigenistas ou de missionários que .. pas~aram a ,atuar nas áreas indígenas, o fluxo de m er cadorias e presentes diminuiu após a pacificação, criando a incômoda situação de dependência em relação aos brancos (Turner,

I

9 9 I;

Caron, I97I). Para os índios, era preciso , portanto, r eadquirir controle sobre os m ecanismos de aquisição e circulação dos obj etos que eles tanto desejavam e que já tinham incorporado em seu sistema de reprodução social. Tanto mais quanto o passar das décadas só fazia r essaltar a precariedade da atuação indigenista governamental. Assim, ao longo dos anos, assistimos a transformações gradativas na sociedade m ebengokre, que podem ser entendidas como um processo de expansão de seu univer so político e econômico, com objetivo de garantir maior autonomia em suas relações com o mundo dos brancos. Evidentem ente, isso só foi possível graças a determinadas instituições socioculturais m ebengokre, a sua organização social e a sua grande capacidade de m obilização política (Turner, I 99 I; I 992). Esse processo torna- se conspícuo no final dos anos I 98o , m omento em que os Mebengokre ganham visibilidade nacional e internacional e são apropriados pelo discurso ambi entalista. Suas aparições espetaculares em Brasília, durante o processo da Assembl éia Constituinte, e a intensa movimentação de líder es como Raoni e Payakã em articulações no Brasil e no exteri or foram a marca do período. O ponto culminante parece ter sido o célebre encontro pan-indígena de Altamira em fever eiro d e I 989, de grande r eper cussão na mídia, em que lideran ças de comunidades m ebengokre,


junto com representantes de 2+ povos indígenas, além de grupos ambientalistas de vários países , reuniram-se para impedir a construção de complexos hidrelétricos no rio Xingu. No ano anterior, Payakã estivera nos Estados Unidos, a convite dos antropólogos americanos Darell Posey e Janet Chernela, para denunciar o mesmo proj eto e questionar. representantes do Banco Mundial que o financiariam . Paralelamente, Raoni havia conquistado auxílio internacional do cantor Sting, que resultou na criação de organizações não-governamentais de proteção à flores~a e aos Mebengokre, como a Rainforest Foundation e sua filial brasileira Fundação Mata Virgem (Rabben,

I

9 9 8). Em

novembro de I 9 89, Payakã foi agraciado com a m~dalha de honra da Better World Society, entidade filantrópica de defesa da ecologia e do bem-estar da humanidade, ria categOFia Proteção do Meio Ambiente (CEDI,

I99I

:336) .

No início dos anos I 990, portanto, a associação dos Mebengokre com o discurso ambientalista internacional estava no auge. Mas boa parte do movimento ambientalista incorporou-os com uma imagem edênica: eles eram vistos como nobres selvagens, defensores da floresta e da natureza, pois que- outra vez o naturalismo humanista- seres naturais. ·É possívél que, dadas as circunstâncias, os líderes mebengokre tenham se valido dessa representação-para· chamar a atenção da opinião pública internacional acerca dos problemas que os afligiam,sobretudo a situação de suas terras . Segundo Linda Rabben, em livro recente, Raoni teria utilizado a estratégia de apresentar-se ao mundo como ambientalista a fim de arregimentar aliados estrangeiros e conseguir demarcar a área indígena Mekrãknoti (I 998 :5o). Por outro lado, eles ce:r:tamente não perceb_e ram com clareza que, sendo absorvidos pelo discurso idealizado do ambientalismo, podiam estar caminhando num fio de navalha . Anos depois, pensando retrospectivamente, Payakã comentaria, em entr~vista aRabben: "Durante o período em que eu levava os Kayapó à cidade. e viajava para fora do Brasil, os Kayapó viviam bem, com o dinheiro do garimpo e da exploração de madeira. Mas ao mésmo tempo, eu estava falando em nome dos Kayapó que m eu povo lutava em favor da. natur.eza. E depois, todo mundo fi cou contra o que nós fazíamos" ( I 99 8:77. Tradução minha) .. Havia aí, portanto, um mal-entendido. A im~gem idealizada que parte do movimento ambientalista tinha dos Kayapó impediu de ver que a defesa que esFes faziam da floresta e da natureza não tinha um fim em si mesmo, nem era baseada numa suposta pureza silvícol.a . Fica a impressão

128


de que a ajuda internacional só se interessava pelos índios porque eles se comportavam como defensores da natureza. Como observou o antropólogo William Fisher (I994:229), era como se o modo de vida indígena só valesse a pena ser preservado na medida em que fosse benéfico ao meioambiente, e não em razão de seus direitos de autodeterminação como povo. E se é verdade que um simples olhar em imagens de satélite atesta que, na Amazônia, as áreas indígenas, incluindo a dos Mebengokre, são ilhas de cobertura vegetal, cercadas pelo desflorestamento do entorno, isso certamente não ocorre pelo fato de os índios pensarem como os ecologistas. Esse ponto foi logo ressaltado para a opinião pública, pois ao mesmo tempo que, no nível global, eram vistos defendendo a floresta, localmente os Mebengokre faziam negócios com aqueles agentes econômicos que mais provocam danos ambientais na Amazônia: a exploração de madeira e o garimpo. A aparente contradição (e abaixo explicarei porque digo aparente) custou caro à imagem dos Mebengokre, sobretudo após o incidente que envolveu o líder Payakã em uma acusação de violência sexual. As notícias das relações comerciais dos índios, somadas à exploração ideologizada do episódio, fizeram com que os Mepengokre passassem de heróis ecológicos a verdadeiros vilões da Amazônia. A acusação a Payakã caiu como uma luva aos inimigos da causa indígena, em meio à Eco-9 2, grande conferência das Nações Unidas sobre meio-ambiente e desenvolvimento. Freire ( 2 o o I)

mostra como a imprensa brasileira procurou demolir a versão ecológica dos Kayapó, para

substituí-la por outra, em que apareciam como ricos capitalistas, latifundiários, privilegiados, "acaboclados", vivendo todo os piores vícios da civilização. Num artifício voltairiano, mas sem nenhum brilhantismo, combateram vigorosamente o mito do "bom Kayapó", apenas para construir em seu lugar outro mito, desta vez no sentido que Barthes (I 975) dá ao termo, e cuja perversidade repousava no seu caráter circular. Ao m esmo tempo que atacavam a idéia dos Kayapó como bons e nobres selvagens defensores da natureza, cobravam deles a pureza moral e ética que supostamente faltava, e sem o que não deveriam ter seus direitos reconhecidos. Ora, o ponto nevrálgico das acusações contra os Mebengokre baseava-se numa falsa representação, cujo signo não era tanto o fato de negociarem com madeireiros e garimpeiros, mas principalmente sua razão (e efeito): aquilo que eu chamaria de "consumismo" m ebengokre, isto é , a grande demanda e conseqüente aquisição de bens, mercadorias e serviços. Se a exploração florestal e o garimpo em suas terras serviram para derru-


bar o ambientalismo indígena, o consumismo serviu para pôr sob suspeita sua própria identidade étnica. A moral da história: não dá para considerar que esses índios sejam defensor es da natureza, pois sua condição (natural) de indígena está comprometida a partir do momento em que fazem contratos supostamente milionários, vestem calça jeans, relógios de pulso, dirigem automóveis e deslocam-se constantemente para as cidades próximas em aviões particulares. Como apontou Manoela Carneiro da Cunha (apud Freire, 2oo I: I o o), "a receita é simples e surrada: reconhecemse os direitos, mas não os sujeitos dos direitos". Já que os Kayapó não são bons e puros selvagens, já que exploram a natureza como qualquer civilizado interesseiro e m ercantilista, seus direitos como povos culturalmente diferenciados seriam, na r ealidade, privilégios inaceitáveis. Em outras palavras: já que não são bons selvagens, não são doravante índios. Eis o que se pode fazer com nossas utopias. De todo modo, seja qual for o mito, o que desaparece é a perspectiva dos próprios índios. E, no entanto, da per spectiva dos Mebengokre a coisa toda é muito diferente . Não foram eles que inventaram a idéia da bondade natural, nem de pureza cultural. Alinhar-se com os ambientalistas e negociar com a ecóno.mia local com a qual convivem de longa data fazia igualmente parte das estratégi,as de relacionamento dos Mebengokre com o mundo dos brancos, parte do seu modo de enfrentar as novas condições históricas que se lhes apresentavam. Na ausência de uma política governamental para a questão indígena, os Me_b el!gokre trataram de obter recursos (simbólicos, políticose econômicos) fundamentais pára sua reprodução social. Não apenas bens de consumo, serviços, at~ndimento m édico, mas também possíveis parceiros e colaboradores. Daí a necessidade de chamar à atenção internacional para o problema da demarcação de suas terras, de quem estava disposto a ouvir. Daí negociar parte dos recursos naturais de suas terras em troca de dinheiro . Além disso, as j dealizações (positiva ou negativa) não permitiam enxergar que essas estratégias nunca foram consensuais, provocando muitas vezes conflitos internos, e até cisões nas comunidades, entre os partidários de um ou outro tipo de atuação. Os Mebengokre não são um bloco m onolítico de pensamento e atitudes. É preciso entender suas ações e estratégias tanto no context o de sua "política externa" (luta por autonomia e afirmação étnica), como no de sua "política interna", que envolve também disputas por prestígio entre lideranças intra e interaldeãs e grupos de idade.

qo


Por outro lado, a experiência acumulada diz aos Mebengokre que não se pode confiar sempre no kuben, e que as parcerias são intrinsecam ente instáveis e conflituosas. Para eles, os brancos não se comportam adequadamente, pois m entem em demasia (kuben ênhire) ou, como costumam descrever jocosamente os Xikrin, têm "duas bocas" (japê kré amé). Os Mebengokre sabem que as negociações com madeireiros e garimpeiros, apesar de importantes em algum momento, foram prejudiciais e quase sempre desonestas . Hoje, mostram-se abertos a alternativas ao modelo econômico predatório que se enraizou fortemente na Amazônia desde o regime militar. Os Xikrin, por exemplo, romperam todos os contratos com madeireiros no início da década de 1990 e apostaram no desenvolvimento de um modelo de exploração florestal sustentável e renovável, dentro dos padrões de certificação internacional. Foram o primeiro grupo indígena no Brasil ater um Plano de Manejo Florestal aprovado pela Funai e pelo lhama, e hoje começam a despontar como exemplo não só para os outros Mebengokre, como para todo o estado do Pará, no que diz respeito à questão madeireira. Atualmente, muitas comunidades m ebengokre desenvolvem projetos de alternativas econômicas sustentáveis, em parcerias com ONGs e agências multilaterais de fiminciarriento. Apesar de nossas armadilhas, os Mebengqkre seguem tentando se mover na interface entre o seu mundo e o nosso. Têm aprendido um .bocado sobre nós. E nós, o que temos aprendido com eles?Talvez seja hora de abandonarmos n.ossas visões idealizadas, românticas ou cínicas, para tentar compreender quem são eles verdadeiramente. Mas ao longo deste ensaio uma questão ficou em aberto. Por que o consumismo mebengokre? Por que eles passaram a demandar tantos bens industrializados, que hoje definem um determinado "estilo de vida kayapó"? Colocada assim abruptamente, a questão pode parecer uma obviedade. Afinal, o leitor poderia argumentar, os índios não tiveram escolha, a sociedade dos brancos invadiu implacavelmente seu mundo, impondo-lhes padrões culturais. No entanto, no caso mebengokre, temos razões para acreditar que seu consumismo não se deve à inevitabilidade da pressão externa da sociedade brasileira, rumo a absorvê-los por meio da força do capitalismo de mercado. Ao contrário, ele parece ser resultado de um movimento, em alguma medida consciente (ainda que não totalmente controlado, haja vista os mal-entendidos e outros efeitos deletérios como perdas popu-


!acionais, danos ao meio ambiente etc.) dos próprios índios em direção ao mundo dos bens. Uma necessidade interna ao regime social indígena, portanto, e não um efeito inexorável da situação de contato interétnico. Desse modo é legítimo perguntar: por que fizeram um movimento na direção do mundo dos brancos e das mercadorias? Os antropólogos que estudaram os Mebengokre não nos esclarecem sobre isso. Em geral, todos destacaram a importância da produção e circulação de pessoas (Turner, I 9 7 9), e de nomes e prerrogativas cerimoniais (Lea, I 986). Mas deixaram de observar que a circulação de "objetos", e mais precisamente dos objetos do kuben- bens, mercadorias, dinheiro-

, é central, e totalmente

impregnada na dinâmica social mebengokre, repercutindo sobre a vida política, sobre as relações de parentesco, sobre as atividades cerimoniais. O americano Terence Turner tem escrito trabalhos interessantes sobre as mudanças por que passam os Mebengokre no processo de interação com a sociedade envolvente (I 99 I, I 99 2). Mas no que diz respeito à enorme demanda por mercadorias, argumenta em termos de uma dependência originada pelo contato. Ora, uma das respostas mais freqüentes dos Xikrin, quando questionados sobre o porquê de adquirirem tantos bens "de branco" (kuben nhõ môia), vem sempre na forma de uma nova pergunta: "Por que só os brancos podem ter coisas bonitas, roupas boas, sapatos de couro, casas de tijolo? Nós somos índios, mas também queremos ter essas coisas. Queremos nossa aldeia bonita, com muita gente. Só que os brancos não dão nada. Na cidade, ao contrário da aldeia, é preciso pagar tudo com dinheiro. Então, nós precisamos de dinheiro para comprar essas coisas". Pela fala do informante, percebe-se que a aquisição de dinheiro e mercadorias funciona como um mecanismo de afirmação étnica. Mas não somente. Sem ter a pretensão de resolver a questão, gostaria de sugerir que para entender o fenômeno do consumismo mebengokre é preciso inscrevê-lo em uma reflexão sobre o regime sociocosmológico mebengokre, e sobre o lugar da alteridade nesse regime. Quero crer que a aquisição de bens pode ser entendida tanto como afirmação étnica como um processo de abertura ao exterior. Com isso, devemos deixar de ver o consumismo mebengokre pelo prisma da necessidade ou da inevitabilidade, passando a enxergá-lo como uma questão de escolha. E nesse caso, talvez, da boa escolha. Justifico-me. Muitos povos ameríndios explicam por intermédio dos mitos aquilo que percebem ser

IJ2


uma superioridade material ou tecnológica d o hom em branco. Entre os Mehengokre, a-s histórias de origem dos brancos estão associadas quase sempre ao tema da má escolha, com o ocorre entre outros grupos jê , na mitologia dos índios do Alto Xingu, nos g rupos do rio Negro e entre os Tupi (Viveiros de Castro, I 99 2: 3 o- I ). Muitas ,·er sões sobre esse te ma são surpreendenteme nte constantes no ponto central da narratiYa: a certa altura, aos índios é dada a chance de optar entre as armas de fogo e o arco e a flecha. Acabam por escolher os últimos, e disso resulta sua pobreza material. Os que escolhem as primeiras t ornam -se os hom ens brancos, opulentos e num erosos. As versões m ebengokre (Wilbert , I 9 78; Vida!, I 977) contam a história de Wakmekaprã, índio que desde o nascimento comporta-se inadequadam ente. Amedrontados com suas dem onstrações anti-sociais e não propriamente humanas, seus parentes o u afins (dependendo da ver são), resolvem assassiná-lo. Mas Wakmekaprã é imortal: o u não se deixa m atar ou r essurge das cinzas. Por fim, desiste da convivência p ois os parentes não o quer em. Tempos depo is, no local onde fo i visto pela última vez, est es o reen contram, viYenclo com o branco (kuben), de posse de toda a sorte de bens industrializados: panelas, roupas, armas, sal. Após alguma tentati\"a de reaproximação, a história t ermina com a separação de Wakmekaprã, transmudado em branco, e seus antigos parent es indígenas. Aquele fi ca em sua fazenda, que logo se transforma em cidade. Estes retornam à Yida na aldeia. Na ver são Apinajé recolhida por Nimuenclajú (Wilbe rt, I 978), a má escolha teria sido o próprio assassinato de Wakm ekaprã, que se queixa no final: "Se Yocês não tiYessem m e perseguido, hoje estariam ricos". No mito xikrin, Wakmekaprã dá ao próprio filho, a quem não mais reconhecia, a opção de levar com ele um presente : o rifle o u o conjunto de arco e flecha. O jovem, por desconhecimento, prefere os últim os , e por isso os índios hoje não possuem a opulência m aterial dos brancos (Vida!, I 9 77: 2 6 5). Gostaria de concluir est e ensaio sugerindo que a r elação atual dos Mebengokre com os bens industrializados~o que venho chamando de co ns umismo~só pode ser entendida dentro de um domínio sociocosm o lógico mais amplo, que dá signifi cado a seus modos de relação com os brancos. Aqui poderíamos p ercebê- lo expresso em uma interessante interação entre mito e hist ória . Talvez não seja absurdo arriscar que o consumism o m ebengokre pode ser lido com o uma t entativa de r everter a escolha mítica, operando uma noYa reaproximação a Wakm ekaprã. É como


se os Me bengokre r ecusassem tanto o d estino ach·inelo ela m á escolha como a separaÇão"clehnitiYa claque le que pod e ria ter feito parte ele suas r e lações sociais . Mas se no mi to aque les C] Ue esco lhe ram as arm as fo ram os que Yiraram brancos, essa noYa escolha dos Me he ngo kre signifi cari a sua t ransfo rmação? Eis uma o utra pe rgunta dificil. ViYeiros d e Castro (2oo I ) da a pista para as res postas poss-ÍYeis. Segundo ele , se os mitos r esoh·eram o problema da origem dos bran cos, deixam em aberto o destino dos índios. Assim , o "desafio ou e nigma qu e se põe· aos índios ço nsiste em sabe r se é r ealme nte possh ·el utilizar a potê ncia d os brancos, isto é , seu mod o de objeti Yação-

sua cultura-

se m se d eixar e m·enenar por sua absur-

da Yio lência, seu gr otesco fe ti chicism o da m er cado ria, sua insuporthel arrogância, isto é , por seu modo ele subj eti,·ação-

sua sociedade" ( 2 o o I :5 0-2) .

O s Me be ngokre não têm um a resposta d efiniti,·a . Mas parecem acr editar que , sim, é possÍYel utihzar a "cultura" d os brancos se m junto abso n er sua "sociedade". Tah ·ez seja d esse m od o qu e de,·am os co mpreender o fato de que , nos dias de hoje , gr ande parte d o ar cabouço material dos kubcn t ornou -se parte fundame ntal d o seu m od o de ' ida . E, indo além, entender sua d ecisão d e que , par a o btê-lo, se ria m elhor te ntar a paz . Os Mebe ngokre d ecidiram que é preciso ir atras d e Wakm ekaprã-

nós, brancos-

, e con\'ÍYc r conosco. Quiça imag inando que seja possível não

só \'Í\ er com a cultura do branco, mas e nsina-lo a \'Í\·er com o se \'ÍYe na socied ad e indígena. Sa be m qu e é difí cil , mas tah ·ez pe nsem po de r um dia, enfim , fazer com que nos comportem os co m o gente . E tah·ez seja esta a sua utopia. Cesar Gordon é m estre e do utorando pe lo Prog rama de Pós-Graduação em Antro pologia Social

do Museu Nacio nal/ UFRJ. Dese nYo h·e pesq ui sa e ntre os Me be ngokre-Xikrin do Cate t é d esde I

998. Atualme nte

é assesso r do Instituto Socioa mbi ental (ISA ) no Projeto d e Manejo Flor estal

Sust entaw l da Área Indíge na Xikrin do Catet é .

1

34


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13 9

Utopias tecnológicas, distopias

e c o l ó g i c a s e c o n t r a p o n t o s r o m â n t i c o s : " p o p u l a ç õ e s tradicionais" e áreas protegidas nos trópicos

Hcnyo T. Barretto

Filho

A l o n g o p r a z o , o p r o b l e m a central de q u a l q u e r e s p é c i e inteligente é o p r o b l e m a da sanidad [...] A única cura para sociedades insanas é u m contato brutal c o m a realidade. A sanidade é capacidade de v i v e r e m harmonia c o m as leis da N a t u r e z a . — Freeman Dyson

'

.


No capítulo 4 de seu Mundos imaginados, o físico Freeman Dyson nos apresenta a sua perspectiva sobre a evolução futura da humanidade. 'Ele especula inspirado em uma imagem shakespeariana e partindo do pressuposto de que a história humana é dominada por processos distintos em cada uma das diferentes escalas temporais em que vivemos. Para tanto, escolhe arbitrariamente "sete idades do homem", que vão dos dez anos-" o horizonte normal das atividades humanas"-a além de

I

milhão de anos, ou seja, o infinito ou a eternidade-pois"mais do que um milhão de anos em qualquer direção [para o passado ou para o futuro] e não somos mais humanos" (Dyson, I 998: I oS). Em algum momento entre as escalas de cem anos e mil anos, Dyson pinta um cenário em que as tecnologias do transporte, da habitação e da colonização espaciais conduzirão à . proliferação e à abundância de hábitats interplanetários construídos-lugares para onde se possam exportar excessos populacionais e indústrias, amenizando "os conflitos entre ambições humanas discordantes num planeta que encolhe" (idem:

I I

4). Não obstante, ele reconhece que

a expansão em grande escala da vida e da humanidade pelo espaço não acontecerá a tempo de solucionar os problemas de nossos netos. Além disso, para tornar reais tais visões utópicas, aquelas tecnologias precisariam ser radicalmente mais baratas e acessíveis do que são hoje em dia. Ele não se ilude, portanto, com as utopias pacíficas que figuram uma Terra "em que todos os problemas sociais e ecológicos t erão sido solucionados" (idem: I I 3). O acesso a essas tecnologias e aos benefícios gerados por elas t enderá a permanecer função de uma ordem social injusta, desigual e excludente, que definirá, em última instância, quem tomará parte na vindoura emigração terráquea de larga escala. Nesse quadro, preocupa-o sobremaneira o ritmo acelerado em que se dará a especiação humana. "À medida que a humanidade expandir o seu espaço vital para fora da Terra, [ ... ] nossa espécie, hoje uma só, tornar-se-á muitas" (idem: I I 7). Segundo Dyson, em mil anos a vida humana terá se espalhado através do sistema solar até os limites externos do anel de cometas de Kuiper-situado a uma distância do Sol mil vezes maior do que a da Terra ao Sol. Se por um lado a dispersão dos assentamentos humanos por lugares muito distintos e distantes tenderá a preservar a nossa diversidade e a torná-la menos perigosa, por outro, poderá impulsionar e intensificar as diferenças genéticas entre as populações humanas, devido ao m ecanismo da seleção natural


e a outro elemento da equação tecnológica : a engenharia genética. Esta tenderá a acelerar o ritmo da formação humana no futuro, comparativamente aos processos de especiação natural. Substituiríamos o mundo relativamente estático em que vivemos por um que gira mil vezes mais rápido. Não obstante, há um certo pessimismo e um elemento de dúvida e incerteza no desvario tecnotópico de D yson . Toda essa "evolução"-título do capítulo aqui referido-

represen-

taria para ele um afastamento da condição humana verdadeira e r eal. Não à toa, ele nutre esperanças de que se permitirá a uma parte de nossos descendentes-os que fi carem "presos à nossa herança humana", os que "mantiverem fidelidade à nossa forma natural humana e a nosso legado genético"-permanecer como custodiantes do planeta Terra, "de modo a manter valores humanos antigos preservados em seu lugar de origem" (idem: I I 9). Se sobrevivermos ao longo de um futuro extenso, Dyson advoga que "deveremos manter contato com o nosso extenso passado" (idem:

I

2 o).

Mesmo que alguns de nossos descendentes em outras r egiões do

sistema solar ou da galáxia atinjam a imortalidade, para Dyson "seria previdente manter na Terra uma população de seres humanos mortais, de modo a preservar algum contato com a mortalidade hunúma" (idem). Assim , nossos descendentes imortais poderiam animar seus espíritos naquilo que OlafStapledon denomina "Culto da Evanescência": "uma forma de criação artística ou religiosa em que são valorizadas a tragédia e a beleza dos seres de vida curta" (idem). Tal cult<?, segundo Dyson, constituiria uma âncora a conectar "uma espécie informatizada e intelectualizada às antigas r ealidades da vida e da morte" (idem). Na paisagem futurista de Dyson, portanto, nio seria apenas por motivos estéticos que precisaríamos preservar a Terra como "museu cultural". Com seus milhões de espécies , a Terra oferecerá aos nossos descendentes 1

_'uma lição prática na arte de viver", dando-lhes "uma m edida de r ealidade de que eles terão necessidade crescente, à proporção que se afastarem" (idem: I 2 o - I). A paisagem tecnotópica pintada por Freeman D yson é relativamente recente-o livro é de I 998-e, defende-se o autor, fundada em um balanço qualificado do estado da arte do desenvolvimento das t ecnologias a que se refere-como de r esto todas as figurações utópicas do gênero supostamente o são. Não obstante, ela traz consigo, servindo-lhe de contraponto, um motivo-ou tropo, se assim o quiser em-presente nas mais variadas formulações relativas


à proteção de áreas naturais, desde a formulação seminal da idéia de parque nacional, em I 8 3 2, até as recentes propostas de incluir a dimensão humana no planejamento da conservação da biodiversidade nos trópicos. O pintor George Catlin ( 1 79 6- I 87 2) é tido pela maioria dos historiadores como o primeiro a expressar a idéia mesma de parque nacional. Viajando pelo que era, então, uma região de fronteira- o rio Missouri, em

1

8 3 2-, ele estava ciente de que o seu sucesso futuro como

pintor paisagista derivaria, em parte, da natureza efêm era do seu objeto. Não obstante, Catlin manifestou a esperança de que a região pela qual viajava pudesse ser preservada e excluída do desenvolvimento em um esplêndido "parque da nação", para inspirar futuras gerações de pintores, viajantes e cidadãos refinados, à medida que estes se vissem cada vez mais isoladose distantes da pristine beauty and wildness. Refletindo as idéias românticas contemporâneas sobre a relação entre regiões selvagens e povos "primitivos", o nation 's park imaginado por Catlin incluiria "man and beast, in all the wild and freshness of their nature's beauty" (apud Spence, I999: Io ;cf.Nash, I982:Ioo- 7). ·.A idéia de que, ao incluir homens e bestas em um parque protegido, se estaria preservando uma amostra, um exemplar, um espécime da América em sua beleza selvagem prístina, é central e ecoa até hoje, não só nas inúmeras glosas aos parques nacionais e reservas equivalentes em diversos países, mas também na visão futurista de Dyson da "Terra como museu cultural". Trata-se de uma visão normativa do que era, é ou deveria ser, num caso, a América profunda, e no outro, a humanidade verdadeira. Convém destacar que, ao contrário de uma wilderness vazia, deserta e desabitada-que corresponde a um desenvolvimento ulterior, uma transição na concepção anglo-americana em torno da wilderness-, os povos indígenas faziam parte da paisagem de Catlin-assim como, para Dyson, os nossos descendentes propriamente humanos farão parte do museu cultural em que a Terra se transformará . O historiador Mark David Spence lembra que, originalmente, se falava de e se viajava para experimentar a /ndian wilderness, à qual estava associada a idéia romântica dos povos primitivos como expressão perfeita da humanidade, livre das condições


opressivas da sociedade civilizada. Mesmo quando Thoureau sugere a criação de national preserves, 25 anos depois de Catlin, a presença humana do ameríndio ainda é conspícua: "Why should

not we [ ... ] have our national preserves [ ... ] in which bear and panther, and some even o f the hunter race, may still exist, and not be 'civilized off the face o f the earth' [ ... ] for inspiration and true re-creation?" (apud Huth, 1 948:52). Os índios-the hunter race, nos termos de Thoureau-aparecem ao lado de ursos e grandes felinos como objetos do esforço de preservação nacional, em áreas geridas para fins de inspiração e recreação verdadeira. "Re-criação", escreve Thoureau, sugerindo algo mais que um simples entretenimento: um Ócio produtivo, um deixar-se levar para um renascimento da pessoa ao contato com a lndian wilderness. Não se concebiam, então, wilderness e índios separados. Ao contrário, um dos aspectos mais distintamente americanos da wilderness, em telas e escritos da primeira metade do século XIX, era a presença dos povos nativos em paisagens "naturais". Entretanto, longe de valorizar acriticamente a concepção de wilderness humanizada- hegemônica nesse período-

, importa assinalar a visão aistórica e indiferenciada dos

povos indígenas que ela encerrava. O entendimento que Catlin e Thoureau comungavam sobre os índios clássicos não levava em conta o dinamismo cultural das sociedades nativas. O parque de um e a reserva do outro teriam criado uma combinação monstruosa de museu aberto com zoológico humano e Simba Safári.

É evidente que tal concepção é herdeira da sensibilidade romântica, para a qual as paisagens tidas como naturais e selvagens proviam o meio mais direto de experiência do divino, e os ameríndios, como "filhos da natureza", viviam livres das condições opressivas que afligiam as sociedades civilizadas. A idéia do "homem natural" como a perfeita expressão da humanidade é parte da atração romântica mais ampla pelo primitivismo-que remonta a Rousseau -e desdobra-se na crença de que o retorno a uma vida mais simples e primitiva é o melhor antídoto para os males do mundo moderno, excessivamente refinado e civilizado. No caso norte-americano, o vínculo entre a crítica à vida urbana e industrial, oprimitivismo romântico e o fervor nacionalista deu origem ao "mito da fronteira"- que se torna especialmente significativo no cenário de expansão do espaço vital humano para fora da Terra,


previsto por Dyson . Coube ao historiador Frederick Jackson Turner, em I 896, dar o tratamento acadêmico clássico à conexão entre viver na fronteira-concebida, já em fins do século XIX, como uma wilderness deserta e vazia-e o desenvolvimento dos valores e traços culturais americanos desejáveis. Ele argumentava que, ao se deslocarem para as terras incultas do Oeste, os imigrantes vindos da costa leste e da Europa abjuravam os ornamentos da civilização, redescobriam as suas energias raciais primordiais, reinventavam instituições democráticas diretas e, assim, fertilizavam-se com o vigor, a criatividade e a independência que constituíam as fontes da democracia e do caráter nacional americanos. Desse modo, o retorno às condições primitivas na fronteira e a vida na wilderness encorajariam o individualismo, a independência e a confiança no homem comum que estimulavam o autogoverno. Daí a valorização do "pioneiro" como figura emblemática (cf. Nash, I 98 2 : I 45-7; Cronon, I 996: 76) . Assim co·ncebidas, as "terras selvagens" tornam-se um lugar não só de redenção religiosa, como na estética do sublime , mas também de r egeneração nacional: os sítios por excelência para experimentar o que significa ser um americano. Se, como alega Turner, as terras incultas foram tão cruciais na formação da nação, então seus derradeiros resíduos deveriam ser conservados como monumentos do passado americano e como salvo-condutos para o futuro do país -pois nelas se manteriam intactas, para as gerações futuras, as influências formativas que a experiência da fronteira exerceu sobre os pioneiros. Considerando que o pioneiro era, via de regra, figurado com o um homem adulto, branco e vigoroso, estava em jogo uma imagem caracteristicamente falocrática e misógina da sociedade e do futuro norteamericanos. Desse modo, os antídotos mais eficazes contra os males do mundo moderno-a sofisticação, a afetação, a superficialidade e o refinamento inibidores da virilidade e do vigor norte-am ericanos-seriam o contato com a natureza-

concebida agora já como espaço va-

zio, virgem e desprovido de vestígios humanos anteriores-e o retorno a uma vida mais simples- desta vez, contudo, distante dos ameríndios nativos. Chegamos aqui ao alicerce ideológico dos Mundos imaainados de Dyson: a topologia colonial norte-americana do mito da fronteira é invertida e estendida à Via Láctea. A alegoria da regeneração nacional em contato com regiões incultas é o cerne da sua antevisão da Terra

1

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como "museu cultural". No cenário de expansão das fronteiras da humanidade para além dos limites do sistema solar, devido ao ritmo explosivo da evolução tecnológica, a Terra permanecerá como um remanescente não cultivado do espaço vital: o lugar por excelência para experimentar o que significa ser humano, onde se preservariam valores humanos antigos em seu lugar de origem e se ofereceria a medida de realidade de que nossos descendentes pós-humanos terão necessidade à medida que se afastarem física e moralmente da vida no planeta Terra. As florestas tropicais estão-ao lado do reino marinho, dos recifes de coral e dos ecossistemas de água doce-entre os biomas mais ricos do planeta a sofrer, hoje, graves processos de deterioração, que são frutos da expansão do espaço vital humano pela biosfera e que resultam em perda de riqueza e diversidade biológica, bem como de funções ecossistêmicas diversas. Cobrindo menos de 7% da superfície terrestre do planeta, as florestas tropicais abrigam so% de todas as espécies conhecidas, incluídas aí as que vivem em ambientes aquáticos. Elas são reconhecidas como o locus por excelência da extinção em massa e têm se constituído, por conseguinte, no foco prioritário e preferencial das estratégias de conservação em escala global. Dos dezoito hot spots globais de biodiversidade até agora identificados-ou seja, áreas que contêm concentrações excepcionais de espécies e níveis extraordinários de endemismo e que enfrentam graves ameaças de destruição iminente de habitat-

, catorze ocorrem em

florestas tropicais-ocupando cerca de o, 2% da superfície t errestre do planeta-

, dois dos

quais incidem em território brasileiro: a mata atlântica e as terras altas da Amazônia ocidental (Terborgh e van Schaik, I996: I 7; cf. tb. Meffe, Carroll et alii, I994: I 23). Disso decorre que os hot spots de biodiversidade mais ameaçados, as áreas silvestres tropicais mais importantes e os países-chaves em t ermos de megadiversidade biológica- o Brasil entre eles- tornaram-se objetos das atenções e prioridades globais em termos de ações conservacionistas. Em função das alterações produzidas pela espécie humana na biosfera, as áreas protegidas, as reservas naturais e os r efúgios de vida silvestre tropicais representariam, na condição de estoques genéticos in situ, a possibilidade de continuidade ao processo evolutivo à escala global-os botes salva-vidas da "arca que afunda", nos termos de Norman Myers ( 1979 ).


Não obstante, há algum tempo vem se revendo a caracterização exclusivamente naturalista das florestas tropicais. A Amazônia sul-americana foi o sítio por excelência dessa reformulação, que afetou o entendimento tanto dos diferentes ecossistemas de floresta tropical, como dos povos que neles viveram e vivem. Verifica-se o abandono progressivo da caracterização da Amazônia como um ambiente uniforme, pleno de fatores que limitam a presença humana, hostil à civilização, de ocupação relativamente recente, esparsamente povoado, sociologicamente anestesiado e culturalmente dependente de áreas mais desenvolvidas; em prol de uma concepção da Amazônia como um bioma originalmente populoso, sociopoliticamente complexo, com uma ecologia sensivelmente alterada pela ação humana, composto de distintas e diversas paisagens, nas quais a plasticidade da intervenção humana teria desempenhado um papel fundamental (cf. Viveiros de Castro, 1996). Assim, se hoje há um consenso quanto à importância das florestas tropicais como celeiros de megadiversidade biológica e pilares da regulação do clima no planeta, cada vez mais se reconhece o peso dos fatores dos socioculturais-

diferentes ondas de ocupação hu-

mana e presença mais ou menos contínua de grupos humanos em determinados sítios-na conformação atual das áreas silvestres tropicais-ao lado, é claro, dos fatores estritamente naturais, tais como paleoclimatologia, geomorfologia e relevo. Daí porque, argumentam alguns, se todas as florestas tropicais do planeta foram virtualmente afetadas por padrões culturais de uso humano, ao se d ecidir que um dado atributo ecológico é digno de proteção, devem se considerar os desejos e as necessidades daqueles que contribuíram para moldar aquela paisagem particular e que precisarão se adaptar às mudanças produzidas pela determinação de proteger tais áreas (McNeely, 1993; Clad, I984). Esse argumento foi um dos estopins da mudança verificada no tratamento concedido às assim denominadas "populações tradicionais" no âmbito do conservacionismo internacional. Tal mudança e o conseqüente reconhecimento da existência de "estilos de vida indígenas" e/ ou "tradicionais" em ambientes ecologicamente críticos se deram, mais especificamente, na conjuntura da incorporação oficial do principio do zoneamento à definição de parques nacionais. Oriunda das I o• e I I • assembléias gerais da União Internacional para a


Conservação da Natureza (IUCN), ratificada no 11 Congresso Mundial de Parques Nacionais, realizado em Yellowstone, em I 97 2, e propalada pela I 2• assembléia geral da IUCN, em I 97 5", no Zaire, a anexação do zoneamento ao conceito de parques nacionais trouxe consigo o reconhecimento de que comunidades humanas com características culturais específicas faziam parte dos ecossistemas a serem protegidos, na figura das "zonas antropológicas"-zoha d~ ambiente natural com culturas humanas autóctones, zona com antigas formas de cultivo e zona de interesse cultural especial das sociedades nativas. Definiu-se, então, que o estabelecimento de áreas protegidas não devia trazer conseqüências nocivas aos povos indígenas e grupos étniCos-quais sejam, reassentamento forçado, expulsão, ruptura de seus estilos de vida tradicionais, desagregação cultural e econômica-sempre e quando esses grupos não afetassem a integridade ecológica da área (Amend e Ainend, I 992:46 I). Evidencia~se assim, por um lado, uma naturalização dessas comunidades humanas com características culturais específicas: grupos étnicos, indígenas e "tradicionais". Estes são definidos como partes dos ecossistemas a serem protegidos e c~mo seres que estão em uma espécie de sintonia natural com a natureza, como populações animais reguladas por parâmetros naturais, independentes da práxis sj~bólica humana. Algo muito próximo do "selvagem nobre" em suas vestes clássicas de Rousseau, Catlin e Thoreau. Por outro lado, leva-se à instauração de instrumentos de controle e subordinação dos processos de mudança cultural, por ~eio da elaboração de zoneamentos, planos de -manejo e gestão-mecanismos estes vinculados à expectativa de estabilidade e equilíbrio cultural no tempo desses grupos. Some-se a isso o emprego do termo "tradicional" pará definir e/ ou caracterizar o "estilo de vida" desses grupos. Expressão mistificadorae imprecisa· -entre o tempo e o modo-que conservamos, por comodidade e preguiça intelectual, para designar certo tipo de sociedade, e que marca exatamente o quadro simétrico e inverso"d6 modernismo ocidental. Percehe-se,como a figura do "selvagem ecologicamente nobre", para usar os termos do biólogo Kent Redford (I 99 I), se insinua na definição das "populações tradicionais" construída a partir do campo do conservacionismo. Vivendo em harmonia com a natureza, partes mesmas dos ecossistemas tropicais críticos, frágeis e ameaçados que devem ser protegidos,


custa crer que sejam, ao final, grupos humanos- sujeitos políticos coletivos, cultural e historicamente específicos, éapazes de refletir sobre o próprio destino e de decidi-lo. O biólogo Raymond Dassman, um dos idealizadores da "Co~ferência da Bios(era" (Paris, I 968), chegou até a cunhar uma expressão para d efini -los: os "povos de ecossist emas"; por oposição a nós, "povos da biosfera", que retiramos nosso suporte e nosso sustento de toda a biosfera, graças às redes de comunicação, ao transporte e comércio globais que tecemos. Não bastassem as catástrofes ambientais 16cali:z;adas que nós, "povos da biosfera", produzimos e que podem varrer do map(l ecossistemas específicos e grupos sociais d ependentes desses ecossistemas, tais grupos ainda podem ser vítimas dos enquadramentos conceituais -e administrativos das políticas e ações de conservação da natureza concebidas por nós ( cf. Dassman, _I 98 8). Entre esses enquadr-amentos, está -aquele que tentei cartografar neste texto, segundo o qual tudo se passa como se, no contexto de uma expansão sempre crescente do espaço vital humano e de transformações cada vez mais rápidas e substantivas na biosfera e em nós .mesmos, fosse sempre ·p ossível resérvar um r efúgio no qual se preser~asse "uma medida de realidade"-refúgio esse ao qual poderíamos r ecorrer para, como sugere D yson, mantermonos sãos, por me~o de lições práticas na arte de viver em harmonia com a natureza. As "populações tradicionais" residentes em áreas protegidas ~os trópicos constituiriàm, assim, a comBinação qe ·museu aberto e zoológico humano a servir de contraponto romântico perverso às nossas ut~pias modernas. Como vivemos ~uma ordem social injusta,' d esigua1 e excludente, as -utopias d e uns podem significar as distopías de outros: Se alguns grupos tomarão pane na vindoura emigração .terráquea de larga escala rumo ào infinito, outros permanecerão acorr.e~tados aos sítios assaz concretos que criarmos para eles. Se os estilos de vida e os valo~es "tradicionais"-suposta~ente estáveis e mais próximos d~ perfeita expressão da humanidade, posto que livres das condições opressivas da sociedade civilizada, -intelectualizadà e informatizada-

poderão servir de antídotos para as disfunções de nossos cenários

utópicos, ainda est~mos longe de integrar à nossa paisagem futurista os desejos, os sonhos e as aspirações dos grupos que mantêm aqueles gêneros d e vida. Não estaria aí a nossa redenção?


Henyo T Barretto Filho ĂŠ professor de antropologia da UnB.


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' •

153

D a virada cibernética aos abismos da globalização

]entrcvista[ com Laymert Garcia dos Santos


O mundo convertido num banco de dados. Tal é o saldo da aliança entre o capital, a ciência e a tecnologia. Ao analisar o que chama de "virada cibernética", o sociólogo Laymert Garcia dos Santos deflagra o oportunismo e os equívocos dos profetas da aldeia global, que vêm apregoando a aceleração tecnológica como motor da disseminação e democratização da informação a todas as partes do planeta. O cenário que vislumbra é mais sombrio: a informação, processada no plano digital e molecular, foi apropriada pelo capital globalizado e opera de modo a converter a biodiversidade e a sociodiversidade mundiais em matéria-prima à disposição da tecnociência. Nesta entrevista, realizada em sua casa na noite do dia nove de julho deste ano por Valéria Macedo, o sociólogo esquadrinha esse contexto, bem como suas implicações éticas-a hierarquização das culturas, sua apropriação indevida e, no limite, seu extermínio- e conceituais-a mudança paradigmática rumo a um pós-humanismo que subverte categorias de ser vivo, objeto inanimado, ser humano, máquina etc. A despeito de sua perspectiva distópica, ele não acredita no triunfo definitivo do capitalismo. Tampouco preconiza um modelo alternativo. E afirma: o Brasil era o país do futuro. Tais temas vêm sendo sistematizados por Laymert sob influência de seu itinerário intelectual, iniciado com a formação em jornalismoFolha de S.Paulo-

trabalhou no Jornal do Brasil e na

seguida de um longo período na França, onde fez m estrado na área de

sociologia das sociedades industriais e doutorado em ciência da informação na Universidade de Paris 7. Hoje é professor da Unicamp no Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. O que vem a ser a "virada cibernética'? Há algum tempo eu vinha refletindo sobre o tema sem nomeá-lo dessa maneira. Mas aos poucos a questão foi me parecendo mais e mais importante, na medida em que fui notando uma conversão sistemática no plano da ciência, da cultura e da própria visão de mundo ao domínio da cibernética. Esse movimento é muito forte e poucas pessoas começam a dimensioná-lo. Passei a conectar uma série de fios que estavam num processamento para-

I

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lelo na minha cabeça e comecei a ver que estamos passando por uma espécie de mudança de fundo na sociedade, que se faz pela extensão do paradigma cibernético a todas as áreas e a todas as atividades. A cibernética transforma a maneira de produzir, transforma a concepção de ser vivo e transforma a concepção de conhecimento. Procuro problematizar essa virada, tanto em seus aspectos positivos como nos negativos. Você problematiza bastante e talvez dê mais ênfase aos aspectos negativos ...

Se a gente vivesse no Primeiro Mundo, provavelmente eu não seria tão receptivo aos aspectos negativos. Mas não posso deixar de notar a perspectiva dos excluídos porque vivo numa sociedade que está sendo cada vez mais penalizada pela aceleração tecnológica. Essa exclusão é perversa, pois seria possível conceber uma articulação positiva entre a cultura tecnocientífica e as outras culturas. Mas, atualmente, apenas uma é paradigmática e as demais culturas estão condenadas a se converter nesse registro ou a desaparecer. Qyais são as implicações políticas e culturaiS dessa ma,va perspectiva?

São enormes! Por exemplo,-as noçõ~s de Jlatu_reza'e cultura são completa:tl)ente modificadas, porque nQ planp da informaç~o existe uma espécie de cói:itinum entre o orgânico, o inorgânico e o-·tecnol&glco.A partir desse substratêfJzOtntJm,, posso fazer uma ligação direta homem -planta,, p~r e'xe~plô, ou homem -máquina, oü plantamáquina, ou planta-animal, ou lromém-imiin<;tl.'Éssa· coifÇep~ão pode ser instrumeti:fuli'Zada de modo positivo, considerando,·por exemplo, que a ·n atureza também é uma tecnol~gia 1 que ela trabalha como siftware no plano da info~rnação-a natureza como design, tom.o definiu Susan Noyama. No campo cultural; a per.spectiva ·ci:a informação no plano molecutar pode levar à percepção das outras culturas cÓmo diferentes~rnaneiras de desenvolver:sgtware mas que têm tanto interesse quanto fi nossa e,. ~s. V,eZes,catê:mais. O lado negativo ~elêi'a a instrumentalização das culturas e da natureza .c omcrpura ;fcmte de matéria-prima parâ uma reelaboração que só vai legitimar ou aventar o pode.:~;.da cultura tecnocientífica . De todo modo, os nossos referenciais do· humanismo rnodert_Joc~cam completamente ameaça-


dos, porque essa perspectiva subverte nossa noção do que é o humano, do que é natu reza, do que é vida, do que é animal, do que é ser biológico, do que é o inanimado etc Como você analisa o papel da tecnociência .no .capi-talismo?

No contexto contemporâneo, a inovação tecnológica é o motor da riqueza, de modo qne o capital se apropria das inovações, monopoliza-as, manipula-as e dita sua direção. É como se o capital passasse a adquirir o controle não mais das coisas ou dos produtos, mas dos processos de atualização do virtual. Isso dá um ~impulso gigantesco ao çapital, e a pr_?pria resistência ou a luta contra ele fica muito mais cofnplexa, pois saímosdo plano doprevistc e entramos no que ainda está por existir. O futuro dessa sociedade é a biotecnolo· gia, a nanotecnologia e a tecnologia digital. A produção vai ser basicamente realizada por esses três ramos. Ao mesmo tempo que abrem possibili~ades fantásticas e absolutamente inauditas para a humanidade, projetam ta~bém uma sombra tremenda sobre uma parte müitoimportante da humanidade que não acompanha esse processo. Do ponto de vista da lógica da aceleração, essas populações que estão fora se tornam sem lugar. Eu acho que a gente já ~ estávendo isso na África, em decorrência da apropriação de todas as ri<Ju~zas e do fracasso do projeto moderno naquele continente. Hoje são milhões de pessoas "descartáveis", como diria o subcomandante Marcos. Mas eu acho que essa ameaça paira também sobre outros continentes, principalmente nos países subdesenvolvidos. Há pouco, houve no Depàrtamento de Sociologia da Unicamp um seminário sobre a América Latina, tom pessoas de diversos países. Uma discussão muito interessante no evento foi a seguinte: considerando C? que está se passando nos países daAmérica Latina, isso a que estamos assistindo éo seu afundamento. No entanto, a Amazônia tem uma importância estratégica mundial, de modo. que pode ser que no futuro a-ssistamos ao desvinculamento dessa região do resto da América Latina. Hoíe i~.so:soaparanós quase que delirante, mas se considerarmos a desmontagem dos Estados NadonaiS''e arelevância dos recursos que essa região tem não só para a indústria da biotecnologia, mâs também para outros setores- por causa da variabilidade genética de sua :


m egadiver sidade, por causa da água e de uma sé rie de outros fatores - e possh el que o futuroda Amazônia não seja necessariamente vinculado ao futuro do resto da Am érica Latina. Você acha que os países ou as instituições que excluem têm esso dim ensão ou alauns acrcclitam mesmo na utopia da a/Jeia alobal, seaundo a qual a alobali zaçào Jemocrati:<oria o acesso e a troca de injormaçào?

Acho que os promotores dessa virada tecnológica em geral só salientam os aspectos posi tivos e, de certa maneira, estão em continuidade com a noção ele progresso que Yem do século XIX, desde Saint-Simon, com o algo que é sempre para m elhor c que beneficia a humanidade . Mas dos anos 19 70 para cá, coincidentemente a ,·irada cibernética se dá no momento em que os desastres ecológicos também se m anifestam, denu nciando que o progresso não traz necessariamente só benefícios. Então, e u cre io que mesm o no Prim eiro Mundo esse e xcesso de otimismo e m relação à tecno logia está a servi ço de uma determinada estratégia. Você poderia dar mais detalhes sobre a naturezo e o alconce dessas tecnoloaias da ir:fornwçào/

As te.cnólogias da informação são aquelas que trabalham no chamado plano molecular o u plano virtual. Paul Virilio tem uma defini ção muito interessante de informação, ele diz qqe é a terceira dimensão da matéria, depois da m assa c da energia. São potências que permitem atualizações e realizações, mas por meio de passagens intangíveis que se dão por operações que não são nem de massa, nem de energia, são de código.A predominância crescente dessas tecnologias permite operações de um a imensa sutileza no plano do objeto físi co, do objeto üvo, do próprio objeto tecno lógico, porque u_m a pequena -m odificação .pode trazer um grande r esultado. Então o que se YÊ' é, de um lado~ uma,aceleração tecnológica cada Yez mais intensa e , de outro, uma miniaturi zação, oU: seja, cada vez-se fazer maiscom menos matéria, energia e trabalho ; e uma combinação desses dois fatores numa disseminação de tecnologias que operam com o imi sÍ\'C~ l no plano molecu:lat, seja por meio da informação di-gital-

pequenas diferenças que fazem diferença


no s~jiwarc, por exemplo- ou da informação genética- pequenas diferenças que fazem a diferença no código genético. Ao considerar a informação como digital de um lado e genética do outro, c considerar que o trabalho, a vida e

conhecimento estão sendcrree-

laborados a partir dessas bases, Deleuze diz que temos como resultado Jlm número finito de componentes produzindo um número ilimitado de.cotnbinações. O aspecto principal desse pensamento operacional é lidar com recombinação, reprogramação, reordenarriento; Na informação digital são o e

1,

na informação genética são as quatro letras: G, A, T, C.

Como exemplo dessa nova concepção de vida da biotecnologia, o que você tem a dizer sobre a clonagem? Qye categorias de Homem ela coloca em cheque?

Toda a discussão que existe hoje sobre o pós-humano gira em torno da seguinte questão: se a biotccnologia permite a r ccombinação da vida no plano molecular, ela tem o poder de modificar a natureza humana, que , até então , era um terreno intocado. É evidente que toda cultura sempre alterou o homem. Mas desde que os homens, na evolução das espécies, se tornaram homens, eles se modificaram dentro da espécie humana. A possibilidade que se abre agora é de uma transformação da própria espécie, por meio da modificação ela natureza humana, na abertura ele uma outra espécie humana. A questão é se devemos ou não modificar a natureza humana e qual é o sentido dessa modificação. Há teorias que consideram que ela deve ser modificada porque a evolução do homem teria chegado a um limite e, a partir de agora, ele precisa ser transformado para continuar a espécie. Mas há outros que dizem que se fi zermos uma coisa dessas as gerações seguintes já vão se reproduzir com essa noYa espécie, e as conseqüências são imprevisiveis . D e certo modo, a questão da clonagem está colocada de uma maneira bastante perturbadora por essa questão. Não tenho uma posição fechada. O que eu acho muito ruim é que há um deslize progressivo rumo à pe rmissão da transformação da natureza humana sem que suas implicações sejam amplamente discutidas. A conivência da tecnociência com o capital e com os Estados que querem manter a dianteira no processo tecnocientifico pode nos leYar para uma situação irreversh e l. O fato de eu considerar que o humanismo moderno esteja


morto não significa que eu seja necessariamente a favor da clonagem. Eu acho que uma

certa concepção de humano realmente já terminou e que nós estamos diante de uma outra situação. O fato de existir um debate sobre o pós-humano já indica que há no mínimo um questionamento muito forte do humanismo. E não sou daqueles que acham que temos que ficar agarrados nesse passado, não defendo todos os parâmetros do humanismo, nem acho que foi uma maravilha. Mas isso não significa que eu vá aceitar tudo o que faça parte dessa nova situação. De qualquer maneira, é um problema que está colocado e que precisa ser trabalhado. E como você se situa em relação ao debate sobre os transgênicos?

Minha posição em r elação aos transgênicos é de precaução. Não há estudos suficientes para dizer que essa transformação fundamental na produção agrícola trará exclu sivam ente benefícios. Isso não está comprovado e sou contra o discurso de corporações , com o a Monsanto, que procuram legitimar a entrada dos transgênicos. Acho que não devem ser comercializados, mas devem ser pesquisados com r egras muito claras, porque a pesquisa tem sido muito manipulada, principalmente nos países do Ter ceiro Mundo, onde a legislação a esse r espeito é imprecisa e existe uma complacência das autoridades . De certo modo, o Terceiro Mundo sempre foi campo de test e para coisas que não se quer em fazer no Primeiro Mundo. E num país com m egadiversidade como o nosso isso é uma coisa gravíssima, pois o tipo de alteração pode ser irrever sível. Qyais as implicações na eifera jurídica advindas dos avanços no campo da biotecnologia, em particular na questão do patenteamento em nível molecular?

Quando ficou claro que a inovação tecnocientífica estava se tornando motor da aceleração econômica, a questão que se colocou era como fazer com que essa inovação fosse apr opriada. Como fazer com que isso, que não tinha valor porque nem era acessível, se transformasse em valor do ponto de vista do capital? Isso foi feito por meio do sistema de propriedade intelectual, que é muito mais do que m era ampliação da propriedade indus-



conhecimento e que impedissem que ele fosse apropriado pelo regime de patentes. Na verdade, trata-se de afirmar que não é só o trabalho tecnocientífico que tem valor, mas que o trabalho da natureza e o trabalho das outras culturas também o têm. Como a leaislação brasileira lida com essa questão?

Por uma medida provisória em vigor, a legislação brasileira finge que protege os direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Ela permite o patenteamento de recursos genéticos acessados em territórios tradicionais e de recursos obtidos por meio de conhecimento tradicional. A MP define conhecimento tradicional da mesma maneira que define o patrimônio genético, praticamente como informações passíveis de uma segmentação, de uma recombinação e de uma reelaboração-exatamente no registro tecnocientífico. Mas se você considerar a cultura com vistas à apropriação, a própria definição de conhecimento tradicional já está minada. Você acha que Brasil está condenado a ser eternamente o país do futuro?

Eu acho que esse sloaan foi completamente enterrado nos anos 1990. Até a década

de 1980 existia no nosso imaginário a idéia de que o Brasil era um país promissor. Não tínhamos passado, mas íamos ter um futuro. Porém, a falência do projeto de nação enterrou essa possibilidade. Acho que estamos num daqueles momentos de intervalo. De um lado, a perplexidade, de outro, uma espécie de preocupação com o desmanche, e, ainda, a falta de critérios para poder pensar o novo. Eu fico bastante impressionado com a falta de discussão das questões fundamentais dentro da esquerda. Nos discursos e programas atuais, eu sinceramente não consigo ver o desenho de um outro Brasil. Ou não está sendo possível formulá-lo ou aqueles de quem se espera que possam formulá-lo não querem discuti-lo. Há uma falta de imaginação política imperando no Brasil. Valéria Macedo é integrante do corpo editorial da Sexta Feira.


i 63

c Silva

Genética e ética

Franklin Leopoldo


. ..

~

Em setembro de 2ooo foi realizado o 46° Congresso Nacional de Genética, que teve como peculiaridade a presença, além dos pesquisadores da área, de cientistas ligados a outros setores do conhecimento, inclusive das ciências humanas. Os participantes ·louvaram a iniciativa pelo que ela representa para uma ampliação das discussões, principalmente no que se refere a problemas cujo aprofundamento leva aos limites que em princípio demarcam as províncias do saber e que atualmente, como sabemos, são limites cada vez mais caracterizados pela mobilidade e não pela fixidez. Não há dúvida de que quanto mais vasto for o horizonte de inserção da produção científica-sociológico, histórico, filosófico- tanto maior será o alcance do diálogo que se poderá estabelecer. No entanto também se poderia lembrar, em benefício da possível concretização dessa mesma aspiração, que algumas das relações fundamentais que hoje se procuram estabelecer, às vezes polemicamente, já haviam sido construídas, e consideradas naturais, nos períodos inaugurais da história do conhecimento. Não vamos nos remeter aqui às origens históricas do pensamento sistemático na Grécia, em que o conhecimento foi concebido, na idéia socráti~o-platônica, como uma identidade profunda entre os procedimentos formais da busca da verdade cqnceitual e a descoberta das regras pélas quais o homem pode se conduzir segundo as finalidades ético-políticas que perfazem sua integridade humana, considerando-se imposs~vel que uma coisa pudesse ser realizada sem a outra:.Talvez se pudesse argumentar que o estágio em que então se encontrava o conhecimento, principalmente na esfera do que depois veio a se chamar cientifico, favorecia a concepção dessa unidade, situação posteriormente modificada pelo progresso que nos colocou diante de uma inelutável pluralidade de conhecimentos. Mas é inter essante notar 'que, no alvorecer da modernidade, quando foram estabelecidas as bases que ainda hoje constituem, em grande parte, aquilo que entendemos como princípios mais fundamentais da atividade pensante, o que vemos é o extraordinário esforço desenvolvido por Descartes para mostrar a unidade da razão , quaisquer sejam os objetos que se pretendam, conhecer. A célebre m etáfora da árvore do saber, desenvolvida-na carta-prefácio ao tradutor dos Princípios defilosifia, desenha o conheci-

a

y . ' ;.;

164

.. ·.


:·.:Tiénto como sendo uma árvore cujas raízes seriam a metafísica, o tronco a física e os ra:rhosa m§cânica, a medicina e a moral. O que se depreende dessa definição são a unidade, à t~taliqadé e a ligação de todos os aspectos do conhecimento, desde os seus fundamentos .(metafísica) até~s~ suq,s aplicações t~cnicas nas divers~s esferas que constituem a vida humana: q, construção de arteratos que facilitem a nossa relação com as coisas, o cuidado com a saúde e com as formas de conduta. Não deveria haver ruptura na passagem de um aspecto a outro porque, acreditava Descartes, a mesma razão que ilumina, com a luz natural, a busca teórica da verdade e o estabelecimento dos critérios d'e discernimento prático na condução da existência. A discussão que hoje se trava em torno das relações entre ética e ciência indica quão distantes nos. ençôntramos desse ideáf humanista, que os avatares da história e do progresso civilizatório se encarregararnde desmentir. Observe-se que, na perspectiva do fundador da modernidade, ~pluralidade dos campos de conhecimentos e a diversidade dos objetos corr espondentes não deveriam constituir obstáculo a uma integraçãoraCional, na qual o homem deveria encontrar sua própria identidade numa sábià composição entre ,as interesses da teoria e da práxis. O que se pode notar também . é a tentativa de chegar a um equilíbrio entre a consolidação das descobertas teóricas e · a visão daquilo que o homem deve fazer de si m esmo a partir desse aporte cognitivo, que o enriquece e o expõe a novas possibilidades. Assimcomo o conhecimento não é apenas um meio de realizar finalidades práticas, mas cOnstitui em si mesmo a realização dos tnais elevados objetivos no plano da radonalidade emancipada, assim também a realização daquelas finalidades nã() deveria ser entendida como rriero prolongamento otiaplicação de uma técnica subordinada, mas como fruto do discernimento ético que nos permitiriam distinguir os critérios de afirmação concreta da dignidade humana. Se comparamos com tais metas o encaminhamento atual das mesmas questões, seráfor çoso-reconhecerque a discussão padece desvios que, 'por serem historicamente explicáveis, nem por isso são menos graves. As descobertas recentes n o campo da genética e o impacto do mapeamento do genoma humano nos permitem equacionar

e


alguns problemas. A princípio, o horizonte de ·benefícios que se abre a partir dessas descobertas é inegavelmente estimulador dé grandes esperanças, principalmente no que concerne à cura e à prevençã.o de doenças até agora fatais. O que se desenha portanto é a relação entre a aquisição de conhedmentos e sua u_tilização em benefício da humanidade, o que formalmente está em continu,i dade c~m a perspectiva .humanista que descrevemos. Mas não basta uma analogia quail~to. àforma; é preciso que~ relação seja concretizada praticamente a partir de critérios que digam respeito ao interesse da humanidade. O mais necessario, numa discussão de tais critérios, é evitar a dupla armadilha com que nos defrontamos na consideração do que ·éabstrato e doque é concreto. Ninguém duvidará de que, em princípio, o progresso científico traz benefícios à humanidade. Imbuídos dessa crença verdadeira, muitos nem sequer admitem que se possa questionar qualquer aspecto das descobertas genéticas, invocando o argUmento de que esse tipo de atitude é obscurantista e inquisitoriaL De fato, sem liberdade não há descoberta, e não se trata de proporqualquer forma de tutela da ciência. No entanto, há que se considerar qu.e a ciência, como toda atividade humana, é uma produção social. A autonomia da ciência e as necessidades sociais estão totalmente interrelacionadas, sem que isso implique a subordinação do trabalho científico a injunções de qualquer tipo. A ciência moderna, desde a sua origem, renunciou ao caráter meramente contemplativo do conhecimento e optou decisivamente, com Bacon · e com Descartes, pela ação e pela interferência no destino histórico da humanidade. Justamente por isso, seria trocar uma abstração por outra considerarmos que o ideal contemplativo deu lugar a uma concepção de atividade desvinculada de sua gênese na experiência histórica e social. Torna-se necessário, então, rearticular concretamente os laços entre a atividade científica e a experiência histórica nas urgências concretas que ela apresenta. Isso significa conferir uma significação real à relação entre descoberta científica e interesse da humanidade. Se considerarmos que o interesse da humanidade é ao mesmo tempo concreto e universal, porque a humanidade não é a espécie em abstrato mas um conjunto de seres cuja maioria experimenta a carência e o sofrimento,

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então a articulação entre o interesse geF:al e a experiênCia histôrica indica um cahnnhq: é o prôprio caráter universal da dignidade hmnana que nos leva a escolher as prioridades, considerando o jogo dos interesses que se contrapõem, para que nossa intervenção na realidade possa r edundar numa rearticulação da experiência histôrica a partir da qual seja possível uma realização efetiva do binômio humanidade -dignidade . Pois, se de um lado há a conjunção de princípio entre progresso da ciência e interesse da humanidade, por outro há inter esses que se contradizem. O patenteamento dos genes e a expectativa de lucro da grande indústria farmacêutica são interesses despertados pelas descobertas genômicas que se contrapõem à carência de grande parte da humanidade, e à expectativa de benefícios que sejam concretamente partilhados por todos. O sequenciamento do genoma humano custou cerca de 3 bilhões de dôlares referentes às pesquisas realizadas somente nos Estados Unidos; centenas de milhões de libras foram aplicadas no mesmo sentido na Inglaterra. A pesquisa européia é predominantemente financiada por fundos públicos; nos Estados Unidos., a Celera Genomics, empresa privada, aplicou fundos prôprios e de financiamento privado. Durante o desenvolvimento do projeto, ficou claro que havia uma competição, cujo ardor foi um · tanto arrefecido pela deCisão de anúncio conjunto entre a empresa americana e o projeto europeu . A cientista Mae Wan Ho, da Open University de Londres, ao com entar o anúncio de seqüenciamento, acentuou que os efeitos práticos, com o a produção de remédios, ainda dependem de pesquisas que se prolongarão por algum tempo, e que exigirão verbas do mesmo porte, no mínimo, das que foram até aqui empregadas. Não se pode esperar que tais investimentos sejam feitos sem a expectativa de r etorno por parte das grandes indústrias. O processo de patenteamento já corre de forma acelerada: os dados indicam que no começo do ano de 2oo 1 havia nos Estados Unidos mais de I 2 6 mil solicitações de patentes 1 . Dados constantes do ar tigo de Mae Wan Ho, "A morte do determinismo", Folha de S. Paulo, Mais!,

25

de março de

2oo 1.


O cenário não é difícil de compor, se observarmos o que já acontece. Na África há cerca de 2 3 milhões de pessoas infectadas pela AIDS. Na África do Sul, país que certamente não é màis miserável que seus vizinhos, 25% da população está infectada. Os governos não têm condição de custear o tratamento, muito acima da renda per capita da população. Os remédios que compõem o coquetel, atualmente a única esperança de sobrevida para os doentes, são todos patenteados e o custo é impraticável para os países subdesenvolvidos. Pressionada pelas ONGs e temerosa de um desgaste m ercadológico, uma das multinacionais reduziu o preço de alguns remédiosvendidos a governos africanos, e há possibilidade de negociação com outros países, inclusive o BrasiL Mas ela acionou judicialmente o governo sul-africano quando ele ameaçou fabricar ou importar de outros países o mesmo remédio. Percebe~se o jogo de interesses: a expectativa de lucro leva a regatear a vida de milhões de pessoas, e o preço foi reduzido somente porque a indústria não deseja perder o "mercado" e espera que a quantidade de r em édios vendidos compense a diminuição de preço. O interesse econômico se sobrepõe , sem qualquer disfarce , ao interesse da vida. Como se pode esperar, nessas condições , que uma possível droga eficaz contra o câncer, por exemplo, produzida à partir dos resultados das pesquisas com o genoma, seja colocada ao alcance da maioria da população do planeta? Como esperar que, tendo em vista os investimentos feitos, as indústrias venham a praticar preços que tornem os remédios acessíveis a populações inteiras de nações pobres? São questões dessa natureza que devem ser discutidas quando se fala da relação e ntre progresso da ciência e ben efício da humanidade. O sonho humanista de uma perfeita integração entre o progresso do conhecimento e o reordenamento positivo da práxis humana, sem deixar de ser uma verdade no plano das aspirações racionais, revelou-se historicamente uma magnífica abstração, talv~~-. um dos mais portentosos equívocos que já habitaram a m ente humana. E isso ocorreu porque a expansão do conhecimento e o progresso da civilização não implicaram uma verdadeira expansão da capacidade de compreensão racional, prática e existencial da condição humana nem

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a efetiva~ão de um sentido ao mesmo tempo universal e concreto do desenvolvimento civilizatório. A razão, que a princípio se queria totalizadora, apequenou-se na sua função exclusivamente instrumental, p erdendo de vista a substância ética dos fins humanos. Por isso, a proclamação de uma ciência a ser viço dos interesses da humanidade , entendidos como fins universais, esconde a barbárie inscrita na hegemonia dos interesses econômicos, por via dos quais as grandes corporações apropriaram- se do ideal de emancipação e de autonomia da ciência e passaram a fazer do progresso científico um instrurnento de administração da. vida e da morte. Sabemos que o trabalho de investigação· científica, a partir do final do século XIX, tende a seguir padrões cada vez mais ligados a fatores de organização e planejamento. A atividade do cientista é inseparável das..lr,tstitui.ções e corporações que fornecem as condições materiais de trabalho, e a expectativa de resultados tecnicamente viáveis está presente desde o início de qualquer p esquisa. Se sempre foi duvidosa a divisa do "desinteresse" científico, no cbntexto do mundo' industrializado é absolutamente certo que tal marca não existe. Essa é a razão pela qual não se pode separar a pesquisa científica dos interesses mercantis, militares, políticos e tecnológicos que a atravessam. O caso da pesquisa sobre o genoma é exemplar nesse sentido, pois os interesses comerciais estiveram explicitamente . presentes desde o início , e muitas das controvérsias entre os grupos concorrentes , hem como divergências internas a cada grupo, giraram em torno desses interesses 1 . Não é de m enor importância a discussão acerca do alcance da interferência propiciada pelos avanços da genética . Os defensores intransigentes da independência abso < luta da investigação científica tendem a desqualificar essas preocupações , atribuindo~as à ignorância de leigos que confundem a ciência ·c om a ficção, engendrando dessa formá a visão de conseqüências macabras que ao fim e ao. cabo não passariam de fantasias: Sem entrar no mérito dos fundamentos das previsões acer ca do ponto a que se poderia .

2 2 00 I .

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Cf. a r espeit o o livr o de Kevin Davies, Decifrando o genoma, São Paulo, Companhia das, Letras,


· chegar com tais interferências na constituição do ser humano, o certo é quea . . história recente nos fornece . exemplos bem eloqüentes .do grau de horror que pode atingir o uso político-militar das descobertas científicas. Os ensaios de clonagem humana, recentemente divulgados, tiveram uma repercussão fortemente negativa, inclusive . com a proibição dessas práticas por parte de governos e associações científicas e profissionais. Nada impede que no futuro apareçam justificativas para apoiar esses empreendimentos, verossimilmente baseadas nos benefícios esperados, como já é o ca_so· da clonagem terapêutica. Um argumento que tem sido muito utilizado a propósito dessas questões diz . respeito à inutilidade das tentativas de deter o avanço científico. Ppr um lado; a história · demonstra que, por algum meio, esse avanço tem ·superado sempre as situações em . que se vê a princípio tolhido; por outro, questiona-se a tese "de que o valor deurría descoberta científica tenha a ver com o caráter de suas possíveis conseqÜências. Assim, por exemplo, a utilização bélica de uma descoberta científica seria co~ple~amente alheia ao valor intrínseco da investjgação e de seus resultados científicos. Por conseguinte, a relação entre. os dois aspectos não precisaria estar entre as preocupações da . . comunidade científica. Curiosa visão; que institui uma pureza da pesquisa científiça já há muito completamente desmentida pelos fatos. Num mundo regido pela produção e pela competitividade, a pesquisa científica aparece cada vez mais co~o investimento, o que significa que se subordina às mesmas expectativas vinq.1ladas à mercadoria, seja em termos de retorno lucrativo, seja em termos de utilização político-militar, estando ambos os aspectos reunidos no registro da hegemonia econômica. Colocada nesse contexto, a ciência torna-se um instrumento de dominação, e isso a define histórica e socialmente. Não existe uma etapa de investigação pura e desinteressada, à qual se seguiria uma outra em que os resultados da primeira estariam sujeitos a interesses supervenientes. O cientista não vive no mundo da· inocência, pairando acima das determinações. A figura do sábio isolado que num determinado momento .descobre, perplexo e aturdido, aquilo que fizeram dos seus projetos de benemerência e grandeza, .

'

l]O


.e em que se transformou o seu apostoladq do saber, é uma ficção romântica ou uma arinad~lha ideológica. Como todo ser humano, o cientista tem uma responsabilidade ·social que o vincula à comunidade humana encarnada numa experiência histórica efetiva. A sua liberdade não tem \lffi horizonte abstrato, mas constitui um exercício concreto diante de situações reais, em que as escolhas e decisões não se pautam pela ciência como um valor absoluto e sim pelas vicissitudes e contradições que atravessam o mundo histórico~ no qual as posições éticas têm de ser construídas no embate efetivo entre os projetos humanos e as forças desagregadoras que .tendem para a desumanização. Nesse sentido, nada mais irrealista do que a suposição de uma relação de exterioridade entre a ciência e a ética, ou a concepção de que os critérios éticos se acrescentariam aos critérios próprios do saber na instância de uma derivação da prática em relação à teoria. O conhecimento não acontece num mundO só das idéias; é uma prática humana transformadora e é a qualidade humana dos projetos de transformação e de aprimoramento da vida histórica qué lhe confere o seu valor próprio. Essa é a razão pela qual as técnicas que viabilizam as intervenções no mundo a partir de descobertas científicas não podem ser consideradas separadamente da atividade científica, ficando o julgamento ético restrito apenas a essa espécie de apêndice da teoria pura. A técnica é parte essencial da ciência moderna porque esta nasce a partir de um propósito de intervenção. Não há portanto como separar a teoria da sua inserção no contexto do mundo humano porque a representação 'teórica tem como pano de fundo a representação da totalidade interligada do mundo humano. As ações humanas não se ligam de forma mecânica, mas como interdependência orgânica, no modo de uma totalidade a ser construída, portanto um .horizonte regulador e uma tarefa social e histórica. Por isso a ética não é a aplicação de valores, mas a construção histórica de critérios de realização humana. As descoberta~. genéticas colocam problemas éticos exatamente porque a cÓmpreensão da vida não ~e esgota na descrição mecânica do vivente; mas inclui a representação que o homem, ser vivo e consciente, faz, a partir dessa compreensão, não apenas daquilo que é, mas daquilo que pode e deve tornar-se.


A ética aplicada à saúde, ou a bioética, abriu, em princípio, um campo adequado para o debate acerca dessas questões. Mas ela não parece seguir o caminho mais promissor quando se empenha, como é o caso principalmente da vertente anglo-saxã, no estabelecimento de princípios que tendem a se traduzir em normas de aferição de condutas e em critérios objetivistas de decisão diante de situações dadas. Não é possível instituir, com base em um processo de dedução analítico-formal, regras que venham a contemplar a diversidade própria da prática, na contingência, complexidade e contraditoriedade com que ela se apresenta. Uma ética da vida só pode fornecer uma contribuição efetiva se assumir claramente seu caráter político e histórico sintonizado com as condições concretas em que ocorrem os problemas da vida humana, consideradas a sua diversidade sócio-histórica e as origens reais das dificuldades enfrentadas. Prescrições gerais e abstratas, por mais coerente que seja a forma de sua elaboração, segundo cânones de uma disciplina acadêmica na qual a bioética, infelizmente, já se transformou, contribuem muito mais para ocultar e disfarçar a realidade do que para mudá-la. Franklin Leopoldo e Silva é professor do departamento de Filosofia da FFLCH/USP.

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U m a festa s e m f i m — e l o g i o a Os errantes do novo século

Silvana

Nascimento

O r e i n o não seria n e m d e s t e m u n d o n e m de o u t r o m u n d o más neste m u n d o renovado. —Duglas Teixeira M o n t e i r o , .Os errantes do novo século ( 1 9 7 4 : 1 3 9 )


Não é à toa que escolhemos a apresentação d' Os errantes do novo século, de Duglas Teixeira Monteiro, para uma edição de Sexta Feira cujo tema é Utopia. Ao se debruçar sobre o histórico ~ovimento milenarista do Contestado, ocorrido na fronteira entre Paraná e Santa Catarina, no início do século passado (I 9 I 2- I 6), esse belíssimo texto, praticamente o Único livro publicado pelo autor 1 , não é apenas uma referência fundamental para os estudiosos desse movimento mas para todos os leitores que se ~intam atraídos pela cosmologia do mundo sertanejo e pelos seus projetos de transformação social . A tese de doutorado, defendida em 1 9 7 2 no antigo departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, e publicada, pela primeira vez, em I 974 pela editora Duas Cidades, completa a trilogia dos trabalhos consagrados sobre o tema, escritos entre os anos I 950 e I 970, que tentavam recuperar o caráter popular e rural desse movimento e mostrar a lógica de sua racionalidade 2 • Ao lado desses dois grandes trabalhos 3 de Maria Isaura Pereira de Queiroz (I 9 57) e de Maurício Vinhas de Queiroz (I 966), que não serão analisados aqui, Duglas elaborou um trabalho antropológico e sociológico não somente sobre a própria "rebelião" milenarista do O autor publicou também uma peça de teatro- Agua da memÓria-

e três artigos científicos

até sua morte repentina aos 52 anos. Ver artigo de Walnice Nogueira Galvão neste número. 2

O primeiro texto é de autoria de Maria Isaura Pereira de Queiroz, "La 'guerre sainte' au Brésil.

Le Mouvement messianique du 'Contestado' "in Boletim n. r 8 7, Sociologia I, n. 5, .FFLCH / USP, São Paulo, I

957, e o segundo é de Maurício Vinhas de Queiroz, Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do

Contestado-

3

1912- 1916, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,

I

966 .

Depois de quase quarenta anos, um novo trabalho foi publicado a respeito do Contestado,

de lvone Cecília O ' Avila Gallo (O Contestado-

o sonho do milênio igualitário, Campinas, Editora da

Unicamp, I 999), que propõe uma interpretação historiográfica, apresentando uma nova perspectiva em r elação aos trabalho de Maria Isaura Pereira de Queiroz, MaurícioVinhas de Queiroz e Duglas Teixeira Monteiro.


Contestado, mas sobre todo o contexto pretérito de crise da região e o momento no qual os chamados "rebeldes" construíram um mundo novo baseado em princípios religiosos, morais e políticos que se opunham à cultura dominante local. Nesse sentido, o autor se propôs a "analisar o comportamento social de uma comunidade humana que, enfrentando uma crise global, recolocou, dentro dos limites que lhe eram dados, os problemas fundamentais de sua existência enquanto grupo. Ao fazê-lo, elaboraram um universo mítico, adotando condutas ritualizadas correspondentes" (I 9 7 4: I o). Acompanhando passo a passo a construção dos capítulos, nota-se que o objetivo principal, citado acima, esconde as minúcias de um trabalho artesanal e analítico que procura dar conta do "antes"- que Duglas chama de "desencantamento do . "- o "reencantamento d o mun d o " . sua o b ra anal'1sa to d o mun d o "- e d o "d epms o processo de crise pelo qual passa a região, apresentando, na primeira parte, as raízes históricas do sistema de dominação local, baseado no coronelismo, e suas transformações ao longo do período entre o final do Império e o início da República, culminando com a Guerra do Contestado e a construção de um mundo reencantado pelos participantes do movimento. Na segunda parte-que, na minha opinião, é onde se encontra o grande tesouro do livro- , ele apresenta o "mundo renovado" das vilas santas que tenta ser construído pelos "rebeldes". Duglas menciona a idéia de um parêntese entre o antes e o depois, mostrando que o mundo da Irmandade se constrói segundo uma ordenação diferenciada e misteriosa em relação àquela de fora, do sistema social vigente: "Nos redutos tinha mistério". Vistos como loucos e fanáticos pelos seus inimigos, e cercados de violência por todos os lados, os "rebeldes" se propuseram a transformar o seu próprio mundo (e não simplesmente esperar pela salvação divina), no qual os valores, práticas e crenças sagrados, baseados em uma religiosidade rústica, passaram a ser radicalmente levados às últimas conseqüências. Na ordem pretérita, segundo Monteiro, as normas tradicionais da sociedade chamada rústica regulavam a vida social. Sua organização estava baseada na coope-


ração e nos laços de interdependência entre fazendeiros e agregados, entre patrões e peões, entre iguais e desiguais. Apesar da existência de uma hierarquia e de um "autoritarismo quase militar" por parte dos chefes locais, o autor aponta para uma "consciência de nivelamento" entre aqueles que tinham o poder político e econômico e os que estavam subordinados a esse poder. Na verdade, havia mais uma diferença quantitativa, ou seja, número de propriedades, de cabeças de gado etc. do que propriamente qualitativa, pois tanto proprietários como não-proprietários apresentavam semelhanças nos estilos de vida, baseados na cultura rústica na qual a honra, a virtude pessoal, a lida com o gado, a terra eram valores essenciais. No entanto, pela própria ambigüidade das relações entre subordinadores e subordinados, quando irrompiam conflitos, seja por interesses políticos seja econômicos, recorriase sempre a uma violência abrupta, muitas vezes à morte cruel.

[A ordem social e econômica] constituía mesmo uma faca de dois gumes que, tendo seu cabo fortemente preso nas mãos dos donos da terra e do gado, abria brechas para a rebeldia individual ou coletiva, mas funcionava mais como instrumento garantidor da continuidade do sistema. A coragem pessoal, a destreza e a habilidade nas lidas do gado, o cultivo generalizado dos valores ligados à violência, constituem-se a um só tempo fatores que fa vorecem o senso de independência e necessidades criadas por um sistema social e econômico que implicava um gênero de vida incompatível com uma subordinação disciplinada (idem: 4 I).

Na vida costumeira do sertão, oscilava-se entre a cooperação e a fidelidade integrais e o conflito radical, já que os acordos eram feitos com o comprometimento total das partes. Subordinadores e subordinados relacionavam-se entre si de maneira difusa, por meio de laços afetivos e pessoais. Essa ambigüidade criava, de acordo com a interpretação do autor, a possibilidade para uma certa autonomia do subordinado. Esse sistema de dominação e violência tradicionais começou a se transformar por diversos fatores , entre eles o aumento da população vinda de cidades como Rio

I

78


de Janeiro, Salvador e Recife para trabalhar na construção da estrada de ferro e na exploração da madeira. Monteiro indica que uma das razões da crise se deve justamente à introdução de empresas capitalistas que terminam por estremecer as bases do mandonismo local. Além disso, com a introdução .de um novo governo, republicano, diversas decisões políticas e administrativas passaram para as mãos de oligarquias estaduais e municipais, tirando dos coronéis o total controle sobre a região que dominavam integralmente nos tempos do Império. Ao mesmo tempo, para lançar mão dos recursos oferecidos pelo Estado, os coronéis tiveram que se subordinar a ele e viram sua autonomia reduzida. "Paradoxalmente, a autonomia dos estados, associada ao crescimento econômico, veio contribuir, a um só tempo, para exacerbar os localismos e forçar sua superação" (idem: 25). Seguindo a interpretação do autor, com a introdução de empresas capitalistas que ganharam concessões para se instalar no campo, formou-se uma massa marginalizada de posseiros, que foram expulsos das terras que ocupavam, até então indefinidas legalmente ou sem o controle dos seus proprietários 4 . Um novo século havia começado. Não no sentido místico e escatológico, como pensavam os.fiéis da

Guerra Santa, acalentando uma ilusão milenarista. O que havia começado, e muito concretamente, era a antinomia do sonho- o século do dinheiro, dos negócios e da violência crua (idem: 3 L). Em meio às dificuldades impostas pela introdução de um sistema capitalista, que obrigava a adequação dessa massa marginalizada a um novo estilo de vida, irrompeu 4

Em I 908, a Brazil Railway conseguiu concessãopara construir trecho ferroviário que ligava

Vitória a Marcelino de Campos. ~ ferrpviá acabou expulsando os antigos moradores. Em I 9 1 I, a Southern Brazil Lumber and Colpn,.izàti,~n Co. , subsidiária da Brazil Railway, comprou I 8 o mil hectares de terra, expulsou seus ocupantes ,e instalou -um moderna exploração de madeira, arruinando os produtores locais.


o chamado movimento do Contestado. Antes da formação das vilas santas, redutos da Irmandade, a construção dessa nova ordem, ou desse novo mundo, se fez em torno dos monges- pregadores que percorriam o sertão com o intuito de realizar batismos, encomendar os mortos, rezar o terço, fazer curas. Entre os monges que surgiram na região- personagens que se opunham ao trabalho dos padres-a figura mais conhecida foi a de João Maria, embora, até hoje, não se saiba exatamente quantos foram chamados por esse nome 5 . Os monges estavam diretamente envolvidos com a cultura sertaneja local e, especialmente, com o catolicismo rústico, que apresentava certa autonomia em relação ao catolicismo oficial. Diferentem ente dos padres, que mantinham apenas visitas ocasionais às fazendas e uma relação, digamos, externa com os seus fiéis, os monges expressavam uma visão de mundo compatível com aquela r ecorrente no sertão, na qual a religiosidade estava impregnada na vida cotidiana, sem uma separação entre natureza, sociedade e sobrenatural (idem). O mundo era visto, então, como uma sucessão de ciclos anuais, intercalando momentos de trabalho, por exemplo, de plantio e colheita, com momentos de festa. 5

Segundo a tradição popular, o primeiro João Maria apareceu no período da Guerra dos Far -

r apos e desapareceu no p eríodo da proclamação da República, quando hou ve a separação entre o Estado e a Igreja e as atividades religiosas dos m onges passaram a ser contestadas e per seguidas. Por volta de I 9 I

I - 2,

ap ar eceu outr o José Maria dizendo que er a irmão d o primeiro. "José Maria

er a antigo desertor do Exér cito ; condenado na vila de Palmas por delito não se sabe bem de que ordem (Sexual? Homicídio ?) conseguira escapar da cadeia gr aças à benevolência do pr efeito local, e afundou nos sertões do Contestado, retomando todas as atividades do seu predecessor: prédicas, rezas em comum , distribuição de rem édios e de or ações t erapêuticas, r ealização d e missas e novenas, organizações de procissões" (Queiroz,

I 9 5 7 : 2 6 3).

É inter essante obser var que Duglas m enciona

a existência de um João Maria anterior a esse descrito por Maria Isaura Pereira de Queiroz, que apar eceu pela prim eira vez em Piemonte, São Paulo , na época da Revolução de I 89 3 .

18o


Segundo Monteiro, com a perturbação dessa ordem tradicional-desorganização do trabalho no campo, quebra da continuidade das festas religiosas, aumento da população, avanço do capitalismo- houve cada vez mais uma radicalização dessa religiosidade católica rústica, culminando com a rejeição do batismo eclesiástico. Até então, os batizados, no meio rural, eram realizados de duas maneiras: em casa e na Igreja. A medida que o Contestado foi tomando corpo e se constituiu numa Irmandade, parece ter havido uma recusa radical em relação ao modelo religioso da Igreja católica oficiaL Ao mesmo tempo, criou-se uma visão de mundo baseada, acima de tudo,.na ·s~cralidade. \

Em suas manifestações.ext:remas, a religião rústica das vilas santas não incorporava um antagonismo entre ç,agrado e picifano, mas, ~o contrário, u!lla saàalização uni versal. Em troca, surge uma. aauda contradição .entre o sagrado e o secular, como realidades opostas mas equivalentes_. Se o sagrado é o radicalmente diferente; o m·undo do qual se diferencia não

é o profàno, ma,ç o demoníaco, seu equivalente com sinal invertido,. de que passou a Jazer parte O CàtoJiçismo '?fiei a} (idem l ] I).

Festa permanente Uma das interpretações mais interessantes dó trabalho de Duglas está na idéia de que, em meio à guerra, à repressão e violência policial e à incompreensão por parte dos não-adeptos ao movimento- . do qual participaram, aproximadamente, 1 o mil pessoas- as festas passaram de exceção a regra, de periodicidade a permanência. Nas vilas santas, em vez de estarem intercaladas no calendário sertanejo, como suspensões da rotina, as festas se tornaram cotidianas, -com distribuição. farta de comida, bailes, sem deixar de lado, é claro, os rituais.de r eza e -procissão. · Para o autor, as festas assumem aspecto difer enciado durante o ·movimento do Contestado. Elas passam a expressar a materialização do sagrado~-e· do contato


com o sobrenatural não somente pelos momentos de alegria mas também por um caráter curiosamente disciplinador. Nos redutos, os membros da Irmandade, cotidianamente, deviam seguir às chamadasformas-rituais que eram repetidos duas vezes ao dia, ao redor do quadro santo (uma praça retangular, com uma igreja e um cruzeiro em cada um dos quatro ângulos), onde os fiéis se reuniam, divididos por faixa etária e sexo, para receber ordens do monge e de outros comandantes. As ordens diziam respeito tanto às questões práticas em relação ao cotidiano das vilas como a questões morais e religiosas. Além disso, durante asformas, aplicavam-se os castigos a quem infringisse as regras. Depois de rezarem genl!fiexos, agrupados, por categorias, os fiéis percorriam processionalmente os limites do quadro, beijando os seus quatro cruzeiros. Há riferências segundo as quais nove voltas eram dadas em torno da praça. Só então, agitando a bandeira branca onde inscrita a cruz verde, o comandante da forma assinalava o término da cerimônia. Dando vivas aos seus oragos, todos voltavam às atividades comuns ou iniciavam a execução das tarifas de que então tinham sido incumbidos" (idem: 1 2 9).

Para Duglas, esses rituais das formas não expressavam a festa como uma comemoração e sim como cerimônia disciplinadora de uma antiordem, de uma proposta negadora do mundo circundante. Buscava-se a construção de uma ordem nova, baseada em critérios de hierarquia entre os indivíduos 6 e, ao mesmo tempo, 6

Os membros da Irmandade eram classificados dentro de uma hierarquia que tinha como grupo

dominante uma guarda de honra , chamada de "Os doze pares de França" . A criação dessa guarda foi muito influenciada por um romance de cavalaria, A história de Carlos Magno e os doze pares de França. A guarda era composta por 24 jagunços- "nobres cavaleiros de São Sebastião"-

que montavam em

cavalos brancos e lutavam com facões . Segundo a tradição popular, muitas lendas estavam povoadas pelas histórias de Carlos Magno.

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de igualitarismo e fraternização. Não significava estabelecer uma comemoração contínua, movida pela alegria, pela fartura, pela luxúria, semelhante, por exemplo, às festividades carnavalescas. Pelo contrário, era preciso elaborar uma rigorosa organização que pudesse formar centros de um mundo renovado, protegidos e opostos ao mundo de fora. As festas permitiam um abandono do tempo ordinário, regulado por um ciclo repetitivo, e criavam uma temporalidade contínua e permanente, fora do tempo linear. Para Monteiro, essas festas ~xpressavam uma ampliação e radicalização das festividades do catolicismo rústico. A interpretação do autor, durante todo o texto, procura sempre recuperar certa originalidade do movimento do Contestado dentro da própria lógica dos fiéis, que, de uma forma ou de outra, viviam, na ordem pretérita, um estilo de vida baseado na cultura sertaneja e rústica. E, nas vilas santas, terminam por radicalizá-la, criando um projeto de vida totalmente diverso do sistema usual, em que deviam abandonar suas rotinas, seus laços de dependência e se desligar dos apegos materiais. O novo mundo, neste mundo, prefigurava, então, uma monarquia santa. Na tentativa de buscar uma opção política que fosse contrária à República, a ideologia disseminada procurava numa idéia difusa de monarquia (na verdade, a única alternativa política formal que os "rebeldes" conheciam) uma possível solução para a conturbação da ordenação social diante da nova forma de governo. De acordo com Duglas Monteiro, a alternativa monárquica, ao lado da retomada da ficção A história de Carlos Magnos e os doze pares de França, em um passado longínquo, significava a construção de um ideal de refundação da ordem. As angústias concretas não se reduziam, desse modo, ao presente vivido, não apareciam como experiências singulares de privação, scifrimento e opressão, mas adquiriam o estatuto de um corte dentro de um tempo grandioso, tensão e crise de passagem entre uma ordem pretérita que degenerou e a construção de uma ordem sagrada (idem: 1 19).


Assim, diante do sistema costumeiro, mediado pela terra, pela honra e pela política, a forma de dominação e violência foi reinterpretada. No plano político, os fiéis defendiam, como dito logo acima, a imposição de uma nova ordem social, baseada em um ideal monárquico. Em vez da valorização da honra, as relações sociais passaram a ser reguladas pela Santa Religião ditada pelos monges e que deveria ser seguida pelos demais membros da Irmandade. A terra, por sua vez, tornou-se não somente o lugar da produção e da fonte de subsistência mas "o solo onde estão sepultados os irmãos mortos que dele sairão redivivos em uma esperada e próxima ressurreição. E o mesmo solo onde os infiéis não podem ser enterrados. E uma terra sagrada" (idem:49). I

I

O fim e a espera Dois povoados ficaram conhecidos como os grandes redutos da Irmandade: Taquarussu e Santa Maria, na região serrana de Santa Catarina. Com essas, outras diversas vilas santas formavam uma rede de agrupamentos que se faziam e se desfaziam seguindo os avanços e recuos da guerra. Esses agrupamentos, chamados por Duglas de "novos centros do mundo", esforçavam-se em separar-se do universo circundante e secular, do diabólico. Na verdade, os rebeldes conduziam uma guerra cujo caráter mais prcifundo era difensivo. Não desejavam outra coisa, senão garantir o espaço sagrado da expectação até o momento em que, da conjunção entre os combatentes da terra e os do céu, resultasse o aniquilamento completo do inimigo. Visavam, antes de qualquer coisa, proteger o modo de vida que construíam

(idem: I 35). Assim como em Canudos de Antônio Conselheiro, no interior da Bahia, as primeiras expedições militares para exterminar os redutos não tiveram êxito. Os fiéis de

I

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João Maria e José Maria se defendiam com táticas de guerrilha; quando um dos redutos estava ameaçado, abandonavam-no e seguiam por caminhos desconhecidos dos policiais. Em I 9 I 2, começaram as per seguições ao povoado de Taquarussu que, inicialmente, conseguiu reagir contra as forças policiais apesar da morte de José Maria durante o combate. Até o final da guerra, em I 9 I 6, os irmãos do Contestado faziam e desfaziam os agrupamentos, circulando por outros povoados, na tentativa de se desviarem dos ataques. E, finalmente, com a direção das repressões nas mãos do general Setembrino de Carvalho, os redutos foram, aos poucos, destruidos, culminando no final da guerra e na dispersão dos fiéis. Ao lado de outros movimentos constestatórios, como o de Canudos, no periodo inicial da República, o Contestado foi duramente repreendido. Por intermédio de uma guerra santa, os rebeldes do Contestado esperavam a vinda do Exército Encantado, no qual os anjos chpados por são Sebastião trariam consigo, ressurrectos, não apenas os monges, mas, com eles, todos os que haviam perecido nos combates. Instaurar-se-ia a coextensão entre o céu e a terra. Com a realiz ação da monarquia, o fim da História e a parada no tempo, o contingente seria eliminado, inaugurando-se o absoluto

(idem: I 37). O inimigo, dentro dessa cosmologia milenarista, r epresentava muito mais do que as forças dominantes, que acabaram por exterminar o movimento. Era a representação de um mal historicizado, ameaçador e destruidor, que irrompia das antigas relações de dominação e, ao mesmo tempo, de um pesadelo real que emergia do novo "século do dinheiro, dos negócios e da violência". Em m eio ao caos-o final dos tempos- , os irmãos aguardavam e acreditavam no término da etapa em que se cumpriam, naquele momento, mil anos desde os tempos de Carlos Magno. No entanto, não bastava esperar pela Providência para que o Mal fosse


definitivamente combatido, mas lutar, de forma concreta, organizada e racional, pela realização de um mundo novo na Terra, com uma lógica própria, na qual o mistério poderia ser, finalmente, revelado. Silvana Nascimento é integrante do corpo editorial da Sexta Feira.

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Riferências bibliogréiflcas

MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os errantes do novo século. São Paulo, Duas Cidades, I974·

_____ . "Um confronto entre Canudos, Juazeiro e Contestado" in: História da civilização Brasileira, III-0 Brasil republicano, III. vol. 2. São Paulo, Difel, I

978.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. "La 'guerre sainte' au Brésil. Le Mouvement messianique du 'Contestado"', Boletim n.l87, Sociologia I, n. 5, FFLCH/ USP, São Paulo, I 957.


189 (1926-78)

para

Marianna

DuglasTeixeira Monteiro, um intelectual a contracorrentc

Walnice Nogueira Galv達o


Um princípio de resistência bastante peculiar era o que Duglas encarnava. Sua maneira de se opor à sociedade de consumo, cujos primórdios anunciavam o flagelo que se abateria sobre nós, consistia em recuar sempre que possível na cadeia dos avanços tecnológicos. Nada simplório, sabia do alcance meramente simbólico de tal atitude, e por isso dispensava alarde ou proselitismo. Pensando bem, o procedimento de Duglas, a contracorrente dos projetos individuais de ascensão social que o assediavam por todos os lados, significava esforçarse por assumir cada vez mais a origem caipira e os ancestrais tropeiros de Sorocaba. Para começar, substituiu os sapatos por botinas ringideiras, dessas amarelas, com elástico dos lados e alças de calçar, que só se adquirem onde é boca de sertão. Iria para o túmulo com um par delas nos pés. Entre gestões semelhantes, vale lembrar que abdicou do automóvel em favor da bicicleta. E lá ia dar aula no campus da USP, pedalando por mais de uma hora, pois não morava assim tão perto. Note-se que ainda não estavam na moda, como atualmente, os excessos da malhação. Ganhou um presente que o encantou, uma binga usada por pescadores, no caso espanhóis, a quem o vento impede de acender o pito com chama de fósforo ou isqueiro. Deu as boas ~ vindas ao cordão de algodão trançado, enrolado vários vezes até ficar do tamanho de um punho, que se acendia mediante faísca desferida pela rodinha na extremidade. Depois de muito girar de rodinha e assoprar, a ponta do cordão lentamente se incendiava, o suficiente para ir queimando sem flamas e fornecer a combustão desejada. Duglas perdia (ganhava) instantes preciosos acionando aquela engenhoca primitiva. Mas tudo partira mesmo do cigarro de palha. Duglas não demorara a desistir do similar industrializado, comprado pronto em maços de vinte, em favor do palheiro. Por ser artefato e não provir da linha de montagem, sua feitura leva tempo, sendo preciso aparar a palha com canivete e desmanchar o taco de tabaco na palma da mão, para depois o enrolar. Viria a descobrir um aparelhinho,

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constituído por uma caixinha de madeira redonda com pregos internos fixos, bastando girá-la nos dois sentidos para que o fumo se esfiape. O palheiro davalhe bem mais prazer, apesar das baforadas de odor penetrante do fumo de corda. Entre seus defeitos, também não queima uniformemente, extinguindo-se a toda hora. Tanto melhor: consoante o modelo caipira, Duglas guardava o cigarro apagado atrás da orelha, e assim dava aula, ia a festas, presidia simpósios. Não sendo simplório, como se viu, por outro lado nada disso relevava nele de qualquer sofisticação ou esnobismo. Via-se ali uma identificação espontânea, um protesto contra o mau uso do tempo. Time is money, como reza a aceleração da vida trazida pela máquina e pelo consumismo, era um lema que Duglas renegava com decisão. Por isso era de acolhida generosa, sem poupar suas horas livres. O que se aliava a uma rejeição da descartabilidade, que aos outros fascina na figura do fetichismo dos objetos "de última geração". Embora fosse um homem bonito e bem-apessoado, ninguém o pilhava de terno egravata, nem mesmo em casamento, enterro ou defesa de tese no salão nobre. Sereno, porque muito amado: os alunos o adoravam, sua casa vivia cheia de colegas e amigos, tinha um casamento harmonioso e foi um pai incomparável. Reticente ante as vaidades deste mundo, recusava o título de "professor universitário", que sem explicações corrigia para "professor"; e acumulava prêmio sobre prêmio na esfera intelectual. Sua maior alegria, que procurava realizar ao menos uma vez por ano, era se embrenhar pelo mato adentro, a pé. Levava um cachorro, um cantil, um estojinho de primeiros socorros, uma espingarda pica-pau dessas de carregar pela boca-claro-e um saco de dormir. Não dava para portar muita coisa porque ia a pé, carregando tudo nas costas. Comia o que os caboclos que encontrava em casebres perdidos no mato lhe davam, e arranchava em qualquer canto; retorna" gente boa!". Por exceção, guardava nos bolsos dois saquinhos va dizendo: "O com paçoca, uma de carne-seca e outra de rapadura, que ele mesmo pilava no


pilão que adrede comprara. Passava uma semana assim, na mais absoluta solidão, num programa ao mesmo tempo estóico e ascético: albergava esses dois traços, mas viscerais, e não chatos, nem moralistas. Foi nessas condições que sofreu um acidente que, marcando-lhe as faces, faria tais traços mais aparecerem. Sozinho, no alto da serra entre Ubatuba e Parati, quando por segurança descarregava a espingarda ao cair da noite, preparando-se para dormir, ela estourou pela culatra em seu rosto. Já que não dava para fazer nada nas trevas do mato, untou-se de óleo de cozinha e pegou no sono. Só no dia seguinte faria sentido procurar socorro. Ficou com o rosto de belas linhas pipocado de pontinhos pretos, que ostentaria pelo resto da vida. Ninguém era assim, só ele, e por isso fascinava a tantos. De uma lhaneza de trato a toda prova, e despretensioso, ficava difícil a conciliação com sua intransigência e radicalismo politico. Em 1964, no auge do movimento popular dos militares de baixo escalão em apoio a Jango Goulart, do comício da Central, do levante dos sargentos etc., Duglas ganhou um cocker spaniel branco-e-preto e deu-lhe o nome de Sargento. Gostava de iscá-lo no bairro burguês onde morava: "Pega, Sargento!". Nisso se manifestava seu senso de humor do tipo pince sans rire, em que era perito, e numa espécie de espírito caipira, sonso e sorna, mas que nada deixa passar e nada perdoa. Em outra ocasião, Duglas comprou a prestações uma Enciclopédia britânica. Quando acabou de pagar, o vendedor ofereceu-lhe um pergaminho, a ser preenchido em caligrafia gótica, dedicando a coleção a quem o novo dono quisesse: "a sua senhora, à senhora sua mãe". Duglas, sem titubear mas com a maior seriedade, pediu-lhe para escrever na linha pontilhada "Topaze cj' Oiford'', nome de pedigree de um outro cocker que teve depois de Sargento, o bom amigo Topy. Aos dezoito anos, quando estava no primeiro ano da faculdade, estudando ciências sociais, era comunista e fora preso empunhando a bandeira do partido num comício ,liderado por Luís Carlos Prestes no Anhangabaú. Nos tumultos

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de 196 8, e mesmo ante professores mais exibidos e mais demagogos, os alunos não se equivocaram e elegeram Duglas para a Comissão Paritária que dirigia a ocupação da Faculdade de Filosofia na Maria Antonia. Em ato publico, manifestação, passeata, lá estava Duglas, sempre calmo e acalmando os outros. Acolheu gente em sua casa e ajudou no que pôde. Embora não se pretendesse cozinheiro ou gourmet, devotava-se ao preparo de um prato caipira, que recuperou e transformou em iguaria. Brindava aos amigos o arroz :com suã de porco, em que até o grão tinha que ser beneficiado de uma maneira pouco requintada e rustica, de que sai mal quebrado e ainda com alguma película. Seu natural modesto e reservado, embora caçoísta ao extremo, deixava entrever o quanto era inconformista e avesso a convenções. Era como se zombasse das instituições de url!a maneira sutil, bem disfarçada, por isso mesmo mais insidiosa. · Tranqüilo em suas bases, observava ironicamente como alguns de seus companheiros comunistas se transformaram em direitistas hidrófobos, sob o influxo da ditadura, e aderiam rápido, desde que contemplados com altos cargos. Gostava de alfinetá-los. Ao diretor da faculdade, antigo correligionário depois quadro do regime, que reclamava dos alunos esquerdistas que ameaçavam depredar "os próprios do Estado" (era assim que ele falava), obtemperava- sim, porque Duglas obtemperava, jamais retrucava ou retorquia- , citando a Bíblia·, que se fôssemos até o fundo da conduta das pessoas quem escaparia à chibata? Era clara a alusão ao passado ~ubversivo do figurão. Que estremecia, contrafeito. Lance de saci, ou de trickster, aliás traço saliente de seu feitio. Seu humor era antes uma estratégia para desestabilizar a enfadonha gravidade da vida. Tendo dado um curso em Oeiras, no interior do Piauí, e sendo obrigado a escrever um relatório, resolveu parodiar o estilo de um naturalista alemão do século XIX. Garantiu que o tamanduá é uma invencionice, pois onde


já se viu um bicho ter cauda em forma de bandeira; uma tromba contendo uma língua comprida e fininha para introduzir no formigueiro, do qual sai cheia de formigas; e matar as pessoas com um abraço, cravando as garras em suas costas? Em compensação, atestou a existência local do boto, aduzindo como prova haver por lá tantas moças solteiras grávidas, o que a sabedoria popular decantou na expressão: "Foi boto, sinhá". A burocracia engoliu o relat6rio e nem engasgou. Além do som da viola, amava o Jazz: apreciava a arte do oprimido, expressando anseios paralelos aos das revoluções e surtos milenaristas. Na cerimônia fúnebre que lhe foi consagrada na igreja dos dominicanos-um culto ecumênico oficiado por pastores, padres, rabinos, um monge budista e uma mãe'-de-santo- a música foi feita por um pequeno conjunto cantando gospels e spirituals. Quando soou a canção final, todos os presentes idealizaram Duglas no número dos que engrossariam as fileiras when the saints go marching in. De educação protestante presbiteriana e filho de membro da igreja que era um de seus pilares, Duglas conhecia bem a Bíblia e acabou se especializando em movimentos messiânicos, tendo sido fruto desses estudos sua tese de doutoramento sobre o Contestado. Foi no início dos anos I 960 que se dedicou pesquisa de campo no norte do Paraná, com vistas a um trabalho sobre as relações sociais no universo rústico. No entanto, o que resultou dessa investigação não foi a tese, qu~ ainda levaria dez anos para ficar pronta, mas uma inesperada peça de teatro, Aguada memória 1, que em 1965 ganhou o prêmio do Serviço Nacional de Teatro. A tese, como veremos, endereçou-se a outra, embora aparentada, matéria. Agua da memória se passa naquele mesmo territ6rio, num presente indefinido, mas preserva unidade de tempo, de espaço e de ação, concentrando-se em algumas horas nas quais os conflitos eclodem. As personagens são posseiros

a

Agua Ja memória, Rio de Janeiro, Letras e Artes,

1 96

~.

1

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ameaçados de expulsão por uma imobiliaria, a qual, comprando juízes, militares e civis, vai demonstrando seus direitos com títulos de propriedade, coisa de que os posseiros, por sua própria natureza, não dispõem. (A história soa . familiar: teria sido lida n~ jornal de hoje?) A nova força econômica na região, o café, veio liqüidar a economia de subsistência; acompanha-a o pentecostalismo, fazendo adeptos na circunvizinhança. Mas chegou também uma ponte, a qual leva o café e em troca traz as tropas que vêm expulsar os ·posseiros, conjuntamente com coisas que todos desejam, como o relógio, a biciCleta, a lanterna, o salario. Perto de dez anos depois, Duglas apresenta a tese aguardada, Os errantes do novo século 2 : outro prêmio, desta vez o Governador do Estado. O espaço é o mesmo da peça, mas o foco andou para tras, em busca de um momento inaugural, que Duglas encontraria na rebelião milenarista do Contestado ( l9 1 2 - 1 6), que constitui não propriamente uma origem- porque essa é dada pelo sistema de dominação cuja vigência vinha de antes-mas um ponto de ruptura. A conflagração irrompe quando se inicia a construção da estrada de ferro, que atravessa as terras dos posseiros, os quais expropria e expulsa, provocando uma insurreição duradoura, difícil de debelar. Situada nos limites entre sociologia e antropologia, a tese trazia a novidade de se valer de teologia, literatura e teoria do mito, desenhando uma interpretação que aderisse tanto quanto possível a uma visão interna . É assim que Duglas encontraria uma explicação para o monarquismo inerente a tais movimentos: erigia-se como Única alternativa política formal que os insurretos conheciam, porém com utilização apenas simbólica, e nesse sentido apontando não para o passado mas para o futuro. Tornou-se um classico, pela finura ·da . analise, pela erudição, pela beleza da escrita e pelo alcance explicativo. 2

Os errantes do novo século, São Paulo, Duas Cidades,

1 974 ·


A abordagem que desenvolveu tinha afinidades com a de autores que à época estudavam fenômenos similares, como o Hobsbawm das rebeldias prépolíticas e o Ralph Della Cava do padre Cícero; a ambos Duglas conheceu pessoalmente e estendeu sua amizade. Com o primeiro encontrou-se no congresso de hist6ria da Unicamp, em I 97 3, entendendo-se com ele para que recebesse um orientando seu, recém-mestre, para doutoramento na Inglaterra. A prop6sito, Hobsbawm teve um gesto digno de registro em Campinas. Já tinha ocupado seu lugar no palco, quando Maria Isaura Pereira de Queiroz, que igualmente fazia parte da· mesa-redonda da sessão, entrou no audit6rio. Ele se levantou, caminhou até a escadinha de acesso, esperou que a colega a galgasse, equando ela chegou a sua altura beijou-lhe a mão. Inesquecível. Do segundo tornou-se amigo quando, encarregado de organizar todo um setor da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em Recife, em I 974- Duglas foi, até a morte, um militante da agremiação- , incumbiu-me de compor uma mesa-redonda sobre o mundo rústico . . Atenderam a meu convite: José Calasans, da Universidade Federal da Bahia, que deu notícia de outros conselheiros afora o de Canudos; Richard Morse, à época presidindo a Fundação Ford com sede no Rio, que explicou a diferença entre plantation e Jarm; e Ralph Della Cava , vindo especialmente dos Estados Unidos, que falou sobre as conseqüências da penetração do capitalismo no campo. Caio Prado Jr., que acabara de sair da prisão, completava a mesa, mas à última hora não pôde c9mparecer. Essa foi a SBPC que, pioneiramente, divulgou uma declaração de princípios em favor da liberdade de pensam ento e de expressão, confrontando a ditadura, em texto que s6 foi publicado localmente no jornal do Comércio e censurado no restante do país. Na produção subseqüente de Duglas, sempre na linha da sociologia da religião, merecem destaque dois outros trabalhos de peso. Um deles, "Um confronto entre Canudos, Juazeiro e Contestado" 3 , publicado na prestigiosa coleção

r 96


dirigida por Sérgio Buarque de Holanda, estuda esses que, tão semelhantes e tão díspares uns dos outros, constituem os três principais surtos insurrecionais religiosos de nossa história. Outro é "Roger Bastide: religião e ideologia"\ que foi prefácio da edição norte-americana de As religiões cifricanas no Brasil, do mestre francês. A Duglas instigavam os fenÔ1penos de sincretismo a que estão sujeitos os sistemas de culto, absorvendo, ao se expandir, elementos de outros. Tanto ia ao estádio do Pacaembu assistir à pregação do evangelizador americano Billy Graham, como se levantava 'às cinco h.oras da manhã para ouvir os programas pentecostai~ de rádio; Desse madrugar r·esultaria uma de suas derradeiras publicações, "Cura por correspondência" 5 • Inteirava-se assim de todas as manifestações de relig~ão, sua área de trabalho, pela qual, embora fosse um salutar ateu, guardava interesse particular nas metamorfoses contemporâneas. Quando apareceu sua tese de doutor.a mento, Duglas deu uma entrevista, estampada nas páginas amarelas da revista Veja. O jornalista questionou o esco. po desses estudos, alegando. que a religião é o ópio do povo. Duglas respondeu, com deliçadeza mas sem papas na língua, que não sabia de qualquer sociedade na história que tivesse subsistido sem alguma espécie de ópio. Walnice Nogueira Galvão é professora titular de teoria literária e de literatura comparada na FFLCH/USP. Tem vinte livros publicados em suas áreas de especialidade: Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, crítica literária e cultural. Ultimos livros: A donz.ela-guerreira (1998), Desconversa (1998), Guimarães Rosa (2ooo), Le Carnaval de Rio (Paris, 2ooo), O Império do Belo Monte (2oo1). I

3 III-

.

"Um confronto entre Canudos, Juazeiro e Contestado" in: História da civilização brasileira, 0 Brasil republicano, Ill, 2. ed., São Paulo, Difel, r 97 8, vol. 2.

4

"Roger Bastide: religião e ideologia" in: Religião e sociedade. ISER I CER, n. 3, outubro de r 97 8 .

5

"Cura por correspondência" in: Religião e sociedade, ISER/ CER, n.

I,

maio de I 977.


199 vista[ com JosĂŠ Arthur Giannotti

PĂ­lulas de contra-utopia ]entre-


Em entrevista concedida a Marcos Nobre e José Márcio Rego, publicada recentemente em Conversas com fi1ósifos brasileiros (São Paulo, Editora 34, 2 ooo), José Arthur Giannotti, professor em érito da USP e ex-presidente do Centro Brasileiro de Análise de Planejamento (Cebrap ), argumentava: "Não há palavra que desconfio mais do que a palavra 'utopia'. Se o pensamento é sempre situado, dizer que se vai para um não-tópico é falso. A idéia de construir visões imaginárias do que poderia ser o nosso futuro me repugna. O que me interessa, acima d e tudo, é verificar, dentro do espaço em que se trabalha, quais os vetores que ultrapassam o cotidiano". De fato, a utopia se apresenta como antagonista do pensamento de Giannotti, que não hesita em desconstruí-la. Não surpreende, pois , sua leitura de Karl Marx c dos caminhos do socialismo, que pode ser e ncontrada em seu livro recente Certa herança marxista (São Paulo, Companhia das Letras, 2ooo ): é preciso limpar o terreno da pura imaginação para refletir sobre os limites de nossa própria ação. Ao descartar a utopia, o filósofo vislumbra a política como .instrumento eficaz d e transformação e alerta que é preciso saber lidar com as zonas de indet erminação que a constituem: se n em _toda transfor~ação é possível' currrp"re voltar a. atenção ao real para nele colher saídas plausíveis. O elogio do realismo na po1ífíca tém -éus~ado a Giannotti duras acusações vindas de alguns colegas. Ao longo deste ano, não foram poucos Ós debates travados nas páginas da Folha de S. Paulo quanto à telaç~o entre políiica 'e moralidade . Estaria o filósofo legitimando as m edidas do governo a9 defender a existência de lapsos de amoralidade nas decisões políticas? Ciannotti nega: de maneira sempre racional bastante provocadora, preservando o seu lugar de pensador crítico e.atacando a suposta h.ipocrisiade séus adversários. · Qa posição dista~éiada de filósofo austero à de professor que procura um elo çom a nova geração, desenrolou-se dia 26 d e junho de 2~·o1 a entrevista concedida a Florencia Ferrari, Renato Sztutmán e Silvana Nascimento.

e

2oo


Qyal a distinção decisiva entre yisÕes imaainárias sobre~ futuro e ôs vetores que ultrapassam o cotidiano? Práticas não existem no imaginário, pois imaginar é pensar sem ter de levar em conta a viscosidad~ dos caminhos, os obstáculos e as pedras que neles encontramos. Desse modo, uma utopia, como construção imaginária, pensa um mundo ou 11ma sociedade como gostaríamos que fossem sem que nos diga o que deveria.ser feito para que isso acontecesse. :Pelo contrário, transcender é lembrar que() fato social sempre quer ir além, diz mais do ·que é, e, por isso, o futuro está inscrito no presente sem que, assim creío, esteja inteiramente determinado nele. Como circunscrever essefuturo no presente} . Esse é um ·velho -problema. Os socialistas do sé·c ulo XIX acreditavam que o futuro estaria inscrito no presente e que a ciênçia deveria desvendá-lo. Mas um acusaváo outro de"utópico" sem ·encontrar urn critério de verdade que Josse consensual. Issó porque o problema não'_é ·teórico, mas prático. Quer dizer, somente a prática ·política vai decidindo se o vislumbre do real-futuro está certo ou errado. Enfim, na verdade criamos o mundo a partir de dados elo presente. É com inyenção que traç~mos esse futuro. ~ntão, a invenção estari~ associada aó presente e não ao imaainário?

A üwenção. é pensa:mentõ, inas desde que se pense o pensa:mento como alargamento das regras que seguimos até agora, mas sem porra-loúquice, sem acreditar que tudo é possível, que o mundo é um sonho e assim pQr diarite . .V.ocê está quer-endo dizer que os socialistas do XI X acredit~vam, que tudo era pessível? Nà.o, por.que os socialistas eram tão diversos como são os.políticos de hoje:


proudhonianos, marxistas, chartistas, e assim por diante. A luta era interna até mesmo na I Internacional, que rachou porque não soube digerir suas divergências internas. Em que medida o socialismo pode prescindir de utopias? A utopia existia como sempre existiu. Meu problema é aprender a imaginar o futuro, mas levando em conta, sempre, as técnicas necessárias para alcançá-lo. No fundo, estou insistindo no fato de que um juízo, para ser seguido, necessita levar em conta as conseqüências que a conduta em vista da: pauta produz. Como é possível pensar em uma experiência traniformadora do mundo? Se vocês acreditam que o mundo é apenas dor, então o ópio teria grande importância na vida cotidiana. Mas acredito que o cotidiano também pode ser feliz, . · acredito que ficar de olhos bem abertos leva a compreender algum pedaço da máquina do mundo e que o mundo gira, vai para diante, além de nossa m.orte; , Voltando às primeiras questões, seria possível conceber uma noção de imaginário social desvinculada de um pensamento situado? . Meu caro Renato, seu nome diz que você nasceu de novo. Do mesrno modo, a imaginação sempre lida com dados da percepção para que eles possam renascer. Mas da mesma forma que seu renascimento pode vir a ser um gesto inútil também a imaginação pode ser um sonho e nada mais do que um sonho. Mas mesmo como sonho, o imaginário não poderia conter um germe crítico? Sim, numa sociedade de consumo, quando não se faz outra coisa a não ser passear pelo shopping center, talvez seja importante sonhar que há ruas lá fora, inclusive com alguns miseráveis querendo entrar para consumir. Mas ·meu grande problema é separar a crítica sonhadora da crítica que venha a ser eficaz. ·

2o2


E como estamos beirando a política, importa lembrar que um programa de transformação deve ter muito em mente os constrangimentos do presente. Em que sentido Marx e o marxismo teriam caído nas armadilhas da utopia?

Não me façam uma pergunta como essa: "Marx e o marxismo". Você quer que eu, em poucas, em "singelas linhas", resuma o drama das esquerdas nos últimos cem anos? Riformulando a questão: quais os impasses para a criação de um socialismo dito cientifico? Como evitar a utopia?

Todo argumento científico quando dito na luta política se sobredetermina como político. Em política, a verdade - isso é muito importante para evitar a utopia - é sempre orientada em vista de seus fins de luta. Mas acontece que nem sempre se pode determinar a luta política como se ela devesse tender para uma polarização entre, digamos assim, burgueses e proletários, numa oposição que atravessasse a sociedade por inteiro. Na medida em que o proletariado perdeu a polaridade que devia t er, segundo o marxismo, na medida em que nossa sociedade se tornou uma sociedade de massas, em que a maioria é de assalariados, não há como encontrar uma dualidade que se supere. Daí a importância de se aprender a conviver com a diversidade e com as contradições. O diabo é não ser pós-moderno nessa admissão. _A lit_opização do m -arxismo seria um fenô men o contemporâneo? Nãó creio q.u~ se deya pensar a obra de Marx como a verdade do movimento

soéiaJista, tomo fi~ením os marxistas e os bolchevistas. O movimento socialista é-dinâmíc"a .e to.do ele se centrou em torno da questão da socialização da propriredade e dos meios de produÇão. Quando se fundou, em 198o, o Partido dos Traba1hado'r e-s, aipda se pensava que éle teria o·'s egredo da história, mas h o-


je em dia vemos como esse partido - corretamente, creio eu - anda à caça das classes médias e de novos aliados na própria burguesia. Em suma, a política contemporânea é um caleidoscópio no qual é preciso aprender a ver as figuras. Marx acreditava no proletariado como classe revolucionária, como bloco uno. Como pensar o movimento dos trabalhadores hoje, à luz dessa polaridade? De fato, ac;edito que essa polaridade era produto da "imaginação" hegeliana de Marx. E preciso le1nbrar que Marx somente se tornou hegemônico no moviinento operário continental (pois nunca isso aconteceu no Reino Unido) depois da Revolução de Outubro. Mas creio que não se deve perder de vista que as conquistas sociais e todo o Welfare State não existiria sem as lutas operárias. Do mesmo modo, no Brasil, um país mais justo não brotará de nossa imaginação, mas das lutas que os excluídos serão capazes de levar a cabo. Em que medida a passagem do PT de lugar de "oposição" para "governo': já em prática no plano muniôpal, e também visível no projeto para a eleição presidencial de 2002, acarretou alterações substanciais no discurso da esquerda brasileira? Ela estaria passando, para usar os mesmos termos que você (em um artigo publicado no Mais! de 1].12.00), da"convicção"para o"gesto'? Toda política moderna, creio eu, é coreográfica, vale dizer, pauta seus gestos por uma escrita prévia sem que se saiba de antemão o resultado da cena. Uma bela coreografia pode dar num balé horrível. No que diz respeito aos partidos de esquerda, creio que o problema é que até agora não decidiram se vão dançar de acordo com Petipa ou Béjart, se vão dançar forró ou samba-canção, o que resulta numa traj etória diferente, contestatória, mas pouco eficaz como proposta de governo. Porém estou falando como se ainda estivéssemos antes de o PT ter lançado sua proposta de governo, algo que representa uma inflexão em sua traj etória .

2o4


Teria erifim a esquerda brasileira "aprendido" as regras do jogo político? Ou ela ainda está por demais agarrada às armadilhas da bandeira da moralfdade? E possível um projeto de esquerda desvinculado desse substrato moral? E possível pensar a. esquerda totalmente fora da "utopia'? I

Ninguém aprende "enfim". Até mesmo o PFL - o partido mais competente do ponto de vista político, vale dizer, capaz de nos encurralar - está sempre aprendendo a lidar com a nova realidade brasileira. Mas a questão é que a lqgica política não vem do céu, a esquerda também será responsável pela lógica da política brasileira. Em suma, creio que estamos diante de uma enorme crise "política" não porque a política esteja sendo posta em xeque, mas porque ainda não sabemos quais serão as regras pelas quais os políticos e nós mesmos vamos nos pautar. Estamos diante da tarefa de refundar o Estado brasileiro, e não se pode de antemão predizer o que será Útil e o que, para usar uma expressão antiga , "será jogado no lixo da história". I

E nesse sentido que a "amoralidade" seria inerente à lógica da política?

Nunca afirmei que a política como um todo se move no nível da amoralidade, apenas lembrei que exist~m certas condutas que, precisamente porque estão inventando novas regras, não cabem dentro da bipolaridade do bem e do mal. Todos os partidos estão infringindo as regras· tradicionais do bem e do mal, a medida do tipo d_e sociedade que seremos capazes de formar virá depois. No final das contas; sempre houve uma "utopia" na política dos últimos anos: fazer com que a igualdade, a justiça, a liberdade, se não fossem fatos desse mundo, não ~stiv~ss~m t;:lo distante de nós. Em resposta às crÍticas de Roberto Schwarz, você se distingue do liberalismo por insistir na idéi a de que há uma contradição entre o exercício da produção e o da apropriação dos frutos do trabalho social. No entanto, você apresenta a


idéia de superação das contradições proposta por Marx como assaltada por malentendidos lógicos. Se não é possÍvel apostar numa traniformação radical ditada pelo real, como conceber a ação política diante das contradições ? Não é conveniente esquecer que a solução da contradição entre trabalho e capital era vista, por Marx, como um processo que haveria de se realizar no nível da própria produção, precisamente com a socialização dos meios de produção e superação da "alienação" política quando as questões levantadas por ela seriam resolvidas mediante instrumentos científicos e administrativos. Ora, estamos percebendo que não existe essa solução apolítica dos conflitos sociais que se representam no plano da política. Isso significa que não é possível assumir um ponto de vista a partir do qual os conflitos políticos revelariain suas verdades, em suma, deixariam de ser políticos. Se não há como evitar a vida política, se a política é pior do que o pecado original, pois nem Cristo poderá nos salvar dela, creio que é mais conveniente tratar de conviver com ela, com todo o risco, as indefinições e as franjas de amoralidade que isso implica. Ha veria um acordo tácito na política a respeito da amoralidade? Viver implica seguir as regras sociais e saber em que momento é preciso rompê-las. Mas o diabo é que nunca se sabe de antemão em que momento se cria a regra nova que corresponde ao novo que irrompe diante de nossas vistas e de nosso comportamento. Só se poderá sabê-lo depois que mergulharmos na ação. Existe seguro de vida, mas não existe seguro para a vida . Não há como evitar em nossa vida cotidiana a invenção, o risco, a aventura, a beleza de um pôr-do-sol que não se realiza. De outro modo, estaríamos todos no cemitério e, pelo que me consta, não existe uma sociabilidade entre os defuntos. Então, nada pode ser dito sobre a política? Somos impotentes diante dela? Pelo contrário. Não é que não temos o que dizer da política. A afasia provém

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do fato de que, em política, se faz à medida que se cria a norma - obviamente estou falando dos grandes feitos políticos e não da politicagem dos anões (do orçamento) da po~ítica. Existe obra de arte mais bela do que uma bela constituição, um ordenamento das condutas humanas orientado para a justiça? (Tenho vergonha de mencionar nossas aspirações mais Íntimas neste mundo "materialista".) Existem certos quadros que volto a ver constantemente. Mas imaginem a beleza de um mapa de nossa sociabilidade que, além de nos indicar como devemos agir, também comportasse as zonas cinzentas de nossa invenção. Imaginem-se diante do Davi de Michelangelo, mas tendo diante dele uma reação proativa, como se fosse necessário sair da Academia correndo para criar tantos novos Davis como novos Golias. Você poderia iferecer um exemplo mais concreto? Vocês entenderam, mas não querem compreender. Você ficou diante daquilo que você dizia da utopia, mas sem projeção utópica, sem imaginação, uma tarefa a ser cumprida depois de ter apreendido um modo de fazer. O Davi não é apenas um objeto de contemplação, mas objeto de conquista, de todas as forças e todos os amores impossíveis que nunca poderemos realizar n1as que nos aparecem como déveres, projetos a serem trabalhados como possíveis, a fim de que não nos rendamos a um cotidiano chato, sem força, coragem e anseio pela beleza da adequação entre nossos pensamentos e nossas forças. Voltamos, assim, ao problema da imaginação.. . O impossível não precisa ser procurado na imaginação, mas na prática de viver além do que nós somos neste momento, seres finitos. Um velho e três jovens diante de um computador, de um lado, tentando transmitir uma experiência de vida, de outro, tentando beber um conhecimento que não existe como conhecimento, mas como forma de aproximar gerações. Essa é


uma de nossas tarefas. Num mundo em que a tradição se perdeu, que tudo parece começàr de novo e_por·isso mesmo não tem mais começo, cabe resgatar o elo do presente-passado com o presente-futuro, pelo simples fato de que eu volto !!leu intelecto para meus instrumentos de trabalho e vocês, para as vicissitudes de construir um itinerário que os ensine a sair do impasse em que nos encontramos. E que impasse é esse? O impasse de viver sem saber o que se deve esperar. [Ele se prepara para desligar o computador]. · Nós ainda temos uma pauta de dez questões "sérias"... Minha tarefa é desconstruir a entrevista, sou "pós-moderno" sem acreditar na desconstrução, pois me penso como aranha fazendo sua teia.

Colaborou para ~ elaboràção>da pauta Stélio Marras. Florencia Ferrari, Renato Sztutman, Silvana Nascimento e Stého Marras são integrantes do corpo editorial da Sexta Feira.

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211 ]Entrevista[ inacabada de uma pergunta s贸 com Paulo Eduardo Arantes


Seria difícil evitar o assunto da Teoria Crítica ou das alternativas de organização de nossas próprias sociedades-ocidentais, de mercado, modernas ou . históricas- se quiséssemos aproximá-las ao tema Utopia. Igualmente difícil não lembrar do filósofo Paulo Arantes, cujo pensamento tão consistente, tal sua lucidez e sistemática, reserva a esse respeito opinião que em sã consciência não poderíamos deixar escapar. Uma vez o abordássemos, restaria então um esforço especial de estudo, sobretudo para a elaboração da pauta de entrevista, e, se possível, angariar dele texto inédito e tocante ao tema . Depois de um curioso período de aproximação, aquele que desde o início já se mostrara tão solícito só foi reiterando sua generosidade. Mesmo, como de regra, pressionado que ia por prazos e compromissos, houve por achar tempo e atenção que dedicar ao nosso convite. Por e-mail, telefone ou por Otília sua esposa, por impressos, manuscritos ou pessoalmente, fomos crescendo a conversação e a · empatia, de maneira que no final tínhamos a entrevista e o texto acalentados. Entrevista inacabada de uma pergunta só era o que lhe pareceu suscitar a primeira de nossas nove perguntas. Resposta que durou algumas horas de uma tarde de junho, em que se reuniu com Florencia Ferrari e Stélio Marras. Ali o pensador engajado- sem que com isso, rara disjunção, fosse ingênuo ou panfletário, mas, ao contrário, rigoroso e criativo-Paulo Arantes remontava em perspectiva histórica, e numa espécie de exegese, as noções e sentidos de revolução e socialismo, percorrendo sem vacilo século após século da chamada tradição crítica, libertária ou emancipadora. Mais compreensível tornava-se então, por exemplo, a ·relação entre utopia e história. Aqui, ao que parece, a acepção forte de utopia é a que associa suas promessas às aspirações dos de baixo. Inacabada apenas por ora, mas por ora além de suficiente, a pauta inicial desta entrevista vislumbra cumprir-se na próxima edição da Sexta Feira, lá porém a versar-se sob o tema Guerra. Por ora, enfim, uma só pergunta para uma resposta tamanha.

2 12


Tem-se a impressão hoje que o uso do termo "revolução"tornou-se proibitivo. Nessas circunstâncias, o que sianiflca dizer-se ainda socialista?

Um futuro para o socialismo? Atualidade da Revolução? Vocês não estão pedindo pouca coisa. E ainda de quebra, Utopia hoje. · Acho que dificilmente alguém se arriscaria a empregar a palavra Revolução na sua acepção histórica original neste início do século XXI . A sensação prevalecente é de que a Era das Revoluções se encerrou de vez, e com ela teriam se esgotado as energias utópicas do nosso tempo. Basta olhar para as expectativas rebaixadas no Brasil dos últimos anos e a opção preferencial de suas elites pela mediocridade, que a famigerada "utopia do possível" resume tão bem. Trata-se, é bem verdade, de uma anomalia, pois historicamente a mentalidade utópica sempre foi um sopro vital vindo de baixo, das camadas oprimidas da sociedade. Para os conservadores do século passado era a rebelião das massas que constituía uma ameaça à civilização; hoje ela vem do alto, é o mito neoliberal do mercado auto-regulado que trouxe de novo a peste ao mundo. Há quem fale em utopia a propósito desse fundamentalismo de mercado, pensando por certo na linhagem autoritária das utopias da ordem absoluta, muito embora a tirania do mercado seja a da mais completa e destrutiva anarquia. Mas com certeza o espírito da utopia que está nos interessando ver renascer é muito diferente desse e de outros pesadelos passados. É bem verdade que uma dialética sinistra costuma converter o impulso utópico no seu exato contrário, mas não se trata de uma fatalidade, longe disso, uma razão a mais para refinar nossa percepção histórica. Num livro recente, . Russel Jacoby, justamente sobre o pretenso fim da utopia, procura desmontar a lenda que atribui toda a violência política dos Tempos Modernos aos sonhos utópicos dos deserdados. Voltando ao forte sentimento de que a Era das Revoluções chegou ao fim, é preciso cautela. Afinal quem poderia antever a implosão da sociedade supostamente unidimensional, cujo diagnóstico os teóricos de Frankfurt fecharam


com tanta ênfase como o fim de linha de um mundo totalmente administrado? E no entanto também esse mundo caiu, como derreteu o iceberg soviético sem que sequer uma ogiva fosse disparada. Mesmo assim, sendo irrecusável a percepção de estarmos atravessando uma verdadeira ruptura de época, pela primeira vez pressentimos com um certo calafrio que já não podemos mais dizer que a História está do nosso lado- estou falando é claro da esquerda, dos grandes derrotados do século XX. Quer dizer-nos termos em que vocês formularam a questão- , o movimento ascensional da Revolução Francesa à Revolução Russa simplesmente estancou e saiu de cena. Seria o caso de dizer o mesmo do impulso utópico libertário que pelo menos as deflagrou? E que por sua vez elas abafaram, para no entanto renascer adiante? Como nitidamente estamos num limiar, não será demais uma digressão retrospectiva. No futuro do socialismo- se ele ainda tiver algum- algo terá a ver com esses momentos memoráveis em que ruptura histórica e imaginação utópica se cruzam. Ou não? Seria um pouco descabido f<ilar em "revolução" a propósito das guerras camponesas no início do século XVI, na Alemanha. Sem falar no fato de que naqueles tempos rebeliões camponesas eram tão correntes quanto as greves no mundo industrial, como já se observou. Mas no caso da irrupção milenarista numa guerra camponesa daquele porte, pode-se dizer-como o fez Mannheim- que a revolução foi por assim dizer inventada como um valor em si mesmo e não como um meio para se alcançar algum fim socialmente calculado, era a brecha por onde se insinuaria algo como a atualidade absoluta de um presente transfigurador. Curiosamente, o que não deixa de ser revelador, o mesmo Mannheim achava que uma tal espiritualização da política-essa transcendência de imagens incongruentes com o curso normal do mundo-poderia ser vista como a certidão de nascença da política tal como a conheceríamos . mais tarde com a entrada em cena de liberais e socialistas. Até aqui Mannheim, procurando apartar a ideologia dos integrados da utopia dos outsiders.

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E bom não esquecer que Engels viu na heresia plebéia de Thomas Münzer a instauração imediata do Reino de Deus. Sobretudo o comunismo de um precursor, dissimulado por uma fraseologia profética. Porém, foi preciso esperar que uma sensibilidade política formada na atmosfera anticapitalista da Grande Recusa característica do expressionismo alemão, como foi o caso de um Ernest Bloch, para que o espírito utópico daquilo que parecia mera "fraseologia" fosse tomado ao pé da letra, a consciência antecipadora entranhada nos sonhos diurnos, nos sonhos para a frente, como dirá, por oposição marcha retroversa dos sonhos noturnos da psicanálise. Não estou fazendo esse rodeio toa. Se afinal estamos interessados em vislumbrar uma política para a esquerda no século XXI, e portanto, na reconstrução de uma Teoria Crítica altura da atual reconfiguração do capitalismo global, será do maior interesse não perder de vista essa primeira manifestação do acento utópico, sem o qual o esforço de emancipação ficaria privado de sentido, e uma Teoria Crítica radical mal se distinguiria de uma análise estrutural da dinâmica de crises sistêmicas. O caso inglês ajudará a esclarecer esse ponto, além de constituir o primeiro capítulo de nossa Era das Revoluções. Como se sabe, a Revolução Puritana se distingue por um qüiproquó de semântica histórica. Uma guerra civil que opôs o Parlamento Monarquia, culminando num rei decapitado e numa República proclamada, sem falar na gigantesca reviravolta social e econômica na origem dessas peripécias políticas, passou para a história imediata apenas como uma rebelião a mais, verdade que uma Great Rebellion, ao passo que a Restauração posterior da realeza, em condomínio é claro com as prerrogativas parlamentares das novas classes proprietárias, recebeu a chancela de uma revolução, além do mais gloriosa, a Glorious Revolution, na acepção astronômica original da palavra, embora de modo algum se tratasse de um retorno ao ponto de partida inicial. A verdadeira revolução obviamente foi a primeira, tanto é assim que acabou fornecendo, justamente como a francesa, no século seguinte, o

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estereótipo das chamadas revoluções burguesas, sem falar no roteiro básico para as rupturas socialistas vindouras. Marx costumava dizer que era próprio dessas revoluções ditas convencionalmente burguesas enganaram-se a si mesmas quanto à sua verdadeira natureza de classe; assim, recorriam a reminiscências históricas (Antigo Testamento nos tempos de Cromwell; história romana no auge jacobino) para camuflar com o verniz sublime de um passado heróico o raso prosaísmo dos interesses em jogo, sem o que lhes faltariam a energia e o entusiasmo para levar até o fim a sua tarefa de liquidação do Antigo Regime. Enfim, era necessário que a fraseologia suplantasse a estreiteza do conteúdo, enquanto na revolução social do futuro seu conteúdo de verdade dispensaria tais excessos de imaginação, seria enfim, por uma vez, realista. A essa altura, alguém poderia confrontar tal prognóstico com um slogan famoso de Maio de 6 8: "sejamos realistas, exij amos o impossível". Pois foi justamente um historiador emérito da Revolução Inglesa, Christopher Hill, marxista ainda por cima mas nem por isso menos impregnado pela ambiência libertária das jornadas de Maio de 68, que aliás deu a volta ao ·mundo, e na França, em particular, desaguou na maior greve de massa de que se tem notícia numa economia industrial moderna, pois foi na esteira dessa nova sensibilidade (que para alguns autores encerra e1n 68 o longo ciclo das revoluções históricas, desfecho reprisado em 89 com a Queda do Muro de Berlim, inaugurando uma outra longa marcha de contestações anti-sistêmicas, que mais adiante trataremos de identificar) que Christopher Hill recontou uma outra história da Revolução Inglesa, uma outra revolta no interior da Revolução, pr otagonizada por grupos radicais como os diggers, os levellers etc., para ficar nos mais conhecidos. A seu ver, houve duas revoluções na Inglaterra em m eados do século XVII. A que venceu foi a da gentl) ' e dos grandes comerciantes que tornou o mundo seguro para os homens de negócio , escorado firmemente pela soberania parlamentar, monarquia limitada, política externa imperialista e, sobretudo, pela triunfante ética protestante do

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trabalho. A institucionalização de tudo isso não precisaria esperar ate a gloriosa restauração de I 6 8 8, se não tivesse sido bloqueada ou pelo menos retardada por um período de fabulosa mobilidade social e fermentação intelectual, ao longo do qual, sempre segundo Christopher Hill, literalmente qualquer coisa parecia possível, em que o mundo pareceu, por momentos, ficar de ponta-cabeça (como aliás anuncia no título do livro [O mundo de ponta-cabeça]), como se as hierarquias sociais e as estratificações do decoro pudessem ser permanentemente invertidas, enfim e mais uma vez, como se o reino dos ceus pudesse ser alcançado na terra, acrescido de um tempero inedito de franca sensualidade. Tivesse essa verdadeira "utopia militante" triunfado, e teria quem sabe estabelecido um sistema comunal de propriedade, uma democracia de verdade, e com certeza repudiado a famigerada etica protestante, quer dizer, nem mais nem menos que o próprio espírito do capitalismo nascente. O relato de Hill se encerra com a lição do Marcuse teórico das grandes reviravoltas dos anos I 96o: liberação da imaginação pelas grandes revoluções da história, no entanto logo sacrificada quando a nova ordem revolucionária entra nos eixos. (Embora não cite, e bem provável que Christopher Hill tenha simplesmente atinado com o filão carnavalizante da cultura popular, cuja subversão em ato Bakhtin estudara no mundo de Rabelais. Mas isso já e uma outra história). Voltando a 6 8, e bom não esquecer que nem sempre a imaginação no poder e a salvação da lavoura, como demonstra , para começar, a própria "herança impossível" legada pelo Maio de 68 segundo Jean-Pierre Le Goff, pensando (não só ele) na metamorfose liberal dos libertários daquela revolução cultural que acabou alimentando a teoria e a prática de "flexibilidade" do novo capitalismo em rede. Pois bem. Pode-se dizer que a revolta dos diggers em meio à Revolução vencedora e responsável pelo curto verão de uma "utopia concreta", na acepção que lhe deu o marxismo profetico de um Ernest Bloch. Os diggers estão na origem de um dos primeiros atos radicais desses grupos não conformistas: simples-


mente começaram a ocupar terras improdutivas e cultivá-las por sua própria conta e de modo comunitário, proclamando tratar-se de um direito dos pobres, cujo acesso ancestral às terras comuns já estava sendo vedado pela crescente disseminação dos "cercamentos" senhoriais. Reforma agrária como ação direta., em suma. Essas comunidades digger, que não foram concebidas apenas pararesolver o problema econômico de seus protagonistas imediatos, segundo nG>sso Autor, caso se alastrassem e vingassem poderiam funcionar como o embrião de . uma outra civilização, desta vez francamente emancipatória. Relembrada ~ssa -. virada memorável que não se efetivou, podemos avaliar a mutação da sensibili'dade política radical em nosso tempo. Meu termo de comparação, no caso, vem a ser um livro muito original de duas estudiosas inglesas, Sue Branford e Jan~o­ cha, sobre o MST, que tenho a intenção de publicar na coleção Zero à Esquerda, não por acaso intitulado Turning the world upside down e ao longo do qual, como .~ enunciado no título, situam o nosso MST na mesma linhagem histórica daqueles mesmos grupos radicais cuja utopia em ato poderia ter mudado o rumo da Revolução. Aqui o ponto: por isso mesmo, visto assim em perspectiva histórica, . não se deveria mais encarar o MST como um movimento revolucionário "dás~ · si co", com o vento da história soprando a seu favor, na direção da concp1iStá "socialista" do poder-pelo qual se interessa tão pouco quanto os zapati$tas,· com os quais de resto costuma ser comparado com freqüência. Há algo de nli:. lenarista nesse movimento de protesto e resistência que nada tem de arcaico, pelo contrário, nossas duas autoras chegam a vislumbrar nele um espírito muito aiém da sensibilidade sacrificial do velho socialismo de combate, uma cultura de liberação que não temem qualificar de "pós-moderna", querendo com isso .de~ignar um conjunto de iniciativas propriamente pós-capitalistas, por assirn · clher de uso imediato em benefício das pessoas, da economia camponesa, solid _ária e sustentável, à luta pela desmercantilização das sementes, passando por úinareformulação total da noção de educação básica. Como diria Naomi KleiQ, ·

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entrincheirados no vasto jront antiglobalitário dos ativistas que não estão esperando mais por uma remota "revolução" mas empenhados em remover aqui e ag ora as novas enclosur.es por meio das quais o grande capital corporativo e seus patronos p:Olíticos estão privatizando e patenteando todos os recursos da vida coletiva no planeta. Nesse limiar civilizacional, reforma agrária é muito mais do que mera posse da terra. Não que essa agenda, por assim dizer, "imanente" ao sistema tenha caído em desuso (suplantada pela maior eficiência econômica do agrobusiness ... ) mas que se sobrepôs uma segunda dimensão apontando para a vida possível além do mercado, transfigurando-a inteiramente. Com a Revolução Francesa entramos finalmente em terreno conhecido, sobretudo porque ela fixou de uma vez por todas na imaginaÇão da~ gerações futuras a "idéia" mesma do que se deveria entender por revolução. Basta lembrar o modo como os bolcheviques durante as peripécias da Revolução Russa recorreram às reviravoltas revolucionárias e contra-revolucionárias da matriz francesa para "figurar" as suas próprias, tiveram até um Termidor (stalinista, como se sabe). Como ainda estamos nos prolegômenos, vamos acelerar o passo. A idéia "astronômica" de que se trata de uma outra revolução-retorno, a restauração das antigas liberdades francesas usurpadas pelo despotismo da monarquia absoluta, não dura mais do que um brevíssimo momento. Logo se viu que nem mesmo se ,tratava de uma sedição ou mais uma revolta: pela primeira vez se impunha a experiência inaugural dos tempos modernos, a de uma avalanche incontrolável, irreversível, enfim a idéia mesma de uma torrente com sentido próprio arrastando consigo uma multidão persuadida de que; no entanto, era a protagonista de um processo que claramente a ultrapassava. Em suma, estava ali, em movimento, a ~atéria-prirha da·s grandes narrativas filosóficas e romanescas vindouras. E também -a certeza de estar 'em presença de uma instauração absoluta do novo, um momento inaugural sem precedentes, cujo marco zero era uma Declaração,


graças à qual a RevoluÇão se apresentava como fundada nos Direitos da Humanidade, nem mais nem menos, de-modo que os homens se viam transfigurados e renovados em todos os· aspectos, do político ao moral. Utopia em ato, portanto, que algvns viveram como uma verdadeira ultrapassagem da história, cujo curso iqexorável, entretanto, estavam presenciando como uma série de catástrofes fatais. Nas palavras st;mpre citadas de Michelet, tudo se passava como: se o próprio . tempo tivesse sido, abolido, suspen~ó o seu curso num perene .estado de graça · ·revolucionária em que tudq enfi_m seria possível. Mito· ou não, o .fato era quepela pr~meirà vez confluíam e' se confundiam a tradição. do pensamento utópico e ,a nossa tradição que _se inaugurava, a do pensamento histórico. Já p.o~so ir 'adiantando qúe nesse traço de .u nião en~re História e Utopi'a, o filósofo Jürgen Hab~rmas reconhecer~ a cifra .m ésma .da modernidade,. só que devidamente ex~ purgada de sua origem revolucionária. Chegaremos lá, e à Utopia substitutiva que ele propõe no lugar da exaurida utopi~ da soéiedade do trabalho, co~o, .à sua maneira; entende a falência da idéia socialista, sobrevivência de uma primeira idade industrial. Um terceiro elemento entrou. em .cena com a Revolução francesa. Refiro-me à Questão. Social. Até .onde sei, Hanriah Arendt foi a. pri:_m eira a assinalar o caráter crucial dessa irrupção em massa dos pobres na arena revolucionária. Ressalve-se o anacroni;Iho terminológico, po)s a expressão "questão social" torna-se corrente apenas a partir d<;>s anos i. 8 3 o, significando o reconhecimento enfim da existênc.ia escandalosa de populações pauperizadas pelo proce~~o mesmo de industrialização da qual eram os agentes indispensáveis. Anacronismo compreensível póis HannahArendt está peri~ando., entre tantos outros motivos polêmicos que deixarei de lado ( cómo o caráter nefasto das políticas miserabilistas), no modo como M<1:rx interpretou o caráter .inconduso· da · Revolução Fran~esa.: falhara na fundação da liberdade por t~r se detido n:éJ. met~­ ~e do caminho da resolução da questão social, concluindo por fim que ,liberdade e pobreza são incompatí,veis., Noutras palavras, da m esma Aren~t; fazendo u!ll

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balanço des~a prim~ira revolução social interrompida, Marx se deu conta de que era preciso pe1;1~ar a pobreza de massa em ter:mos ·po~íticos, e mais, como uma sublevação por uma questão de liberdade, e não apenas de pão, o que seria reiterar a ditadura da mera necessidade. Esse o ponto explosivo, segundo· nossa · Autora e que lhe permitirá avaliar á funesta virada das futuras revoluções socialistas. Mais üma vez: .aRevóluç~o Fran·cesa ensi~1ar;:1: Marx a reconhecer _na penúti,a·· . maciça das classes despossuídas uma força política explosiva; .mas nem por isso imaginou que o socialismo pudesse vir a ser pensado como uma sociedade de afluência voltado exclusivamente para a eliminação da escassez, soterrando sob o produtivismo modernizador a utopia de uma sociedade emancipada fundada na liberdade. Dito isso, faltaria acrescentar um derradeiro elemento ao nosso quadro: a partir de I 789 entra em cena a figura social do "revolucionário". Durante a Revolução Inglesa, surgiram, como vimos, "agitadores", e dos mais radicais, mas ninguém que pudesse afirmar estar "fazendo" uma revolução, quando muito experimentando uma. Agora a Revolução é alguma coisa que se faz, e a expressão de uma vontade política que culmina na conquista do poder. Quando a Revolução Social finalmente entra em cena em I 848, emergindo da brasa dormida deixada pela Grande Revolução, a batalha final (e o massacre de junho) se dará justamente em torno dos controles do mando político central, o Estado passava a ser o alvo primordial da Revolução, conduzida por um "partido" de revolucionários. E esse o modelo que um século e meio depois entraria em crise, senão em extinção. Mas vejo que preciso apertar o passo. Na verdade dar um salto um tanto arbitrário até a Revolução Russa. No resumo de um teórico dos sistemas mundiais, Giovanni Arrighi, o esquema básico de Marx- segundo o qual a acumulação capitalista a um só tempo fortalece socialmente o proletariado como produtor de riqueza material e o despoja nessa mesma proporção, na medida em que precisa desvalorizar a mercadoria força de trabalho, de tal sorte que ao fundir assim I


numa mesma classe o poder social e a penúria de massa estaria preparando a sua própria deslegitimação política como sustentáculo da ordem burguesa- pois esse esquema, segundo Arrighi, não podia prever uma disjunção fatal entre o poder social crescente da classe operária, porém sem conseqüências políticas revolucionárias decisivas, de um lado, e de outro, a via de fato revolucionária seguida por um proletariado acossado pela penúria endêmica que afetava igualmente os demais grupos e classes subordinados, como o campesinato, e uma disjunção tanto mais fatal quanto espacialmente localizada, quer dizer, acompanhando a polarização do sistema entre centro e periferia. Assim, nas economias modernas do núcleo orgânico, o poder social do proletariado tornou-se cada vez maior, porém a revolução socialista não conseguiu ganhá-lo, enquanto na semiperiferia (para ser exato) a revolução venceu, mas em nome de um proletariado que não tinha nem teria poder social. Foi este último o caso da Revolução Russa e uma das razões de sua posterior reversão trágica. Naufrágio histórico de um modelo que adotou, entre outras estratégias igualmente fatais, a estratégia dos dois passos, como a denominou Wallerstein, e cujo embrião exemplar se encontra, como vimos, na Revolução Francesa, a saber: primeiro a conquista do poder, depois.'a ttansformação do mundo. Na opinião do mesmo Wallerstein, uma estratégiaautodestrutiva (se!Jdifeating), em função da limitação do poder de Estado na economia-,mu,ndo capitalista, um espaço econômico de acumulação hierarquicamente:d1stribuído por jurisdições políticas em competição, visando justamente ascender na referida hierarquia ou então simplesmente não se deixar rebaixar e dominar. Ao tomar. o poder central nessas condições, os movimentos antisistêmic0s acabamfor:talecendo o próprio sistema de concorrência interestados, exercendo inclusive as funções de classe dominante em relação às suas próprias popúla:ç0:eS', por- mais igualitários que tenham sido os seus propósitos originais, sem mencionar.o fato de que a desconexão anti-imperialista, inaugurada pela via soviética da economia de comando, condenava o país aos horrores da acumulação

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primitiva num só país, transformando-se aos poucos numa {mica fábrica em regime de caserna. A esse respeito recomendo o livro de Fernando Haddad sobre o sistema soviético (O sistema soviético: relato de uma polêmica), da editora Scritta. Aliás, não por acaso, num· ensaio recente e ainda inédito do mesmo Autor, reencontramos noutros termos a mesma crítica à estratégia dos dois passos, tomando como ponto de vista as teses de Marx sobre a anarquia do mercado e o despotismo da fábrica capitalista: ficou-se no primeiro passo, o do planejamento central, enquanto o segundo, o da democracia pela elimínação da subordinação pelo assalariamento, -como se sabe, precisou ficar para depois do futuro que nunca chegou. Creio que poderemos sentir melhor o drama acompanhando a reconstituição feita por Paulo Singer {Economia socialista, Per seu Abramo) do raciocínio marxista clássico acerca da passagem ao socialismo, resultante da contradição entre a produção social e sua apropriação capitalista privada, ou nos termos políticos de há pouco, o antagonismo entre o despotismo da produção na fábrica individual e a anarquia da produção na sociedade inteira, contradição a partir da qual a teoria explicava a necessidade primeiro da centralização monopolista do capital e daí a irrupção da produção planejada, característica da sociedade socialista. Quer dizer, a certa altura desse processo, o Estado, representante oficial da sociedade capitalista, teria de assumir finalmente a direção da produção sem se confundir com a mera estatização dos setores produtivos. É nesse momento que a sociedade socialista irrompe, ajustando finalmente, pela regulação social planejada da produção, a natureza social das forças produtivas modernas e sua apropriação aberta e direta pela sociedade. Aqui o ponto nevrálgico de todo o drama, na visão de Paulo Singer que estou acompanhando: por um lado, tudo se passa como se o socialismo fosse um desdobramento linear do desenvolvimento capitalista das forças produtivas; por outro lado, a confiança numa espécie de milagre dialético _ de que uma relação capitalista levada ao extremo se inverte, quer dizer, a propri.e~


. dade estatal-proletária dos meios de produção se interverteria abolindo o proletariado como classe e o Estado como Estado. Sabemos no que deu. Aliás o próprio Lenin, vendo a esperada revolução mundial afastar-se cada vez mais do horizonte próximo, não viu outra solução- que obviamente supunha provisória- senão imitar em ritmo' de marcha forçada o capitalismo organizado alemão (a expressão é de Hilfending, é bom não esquecer). Nossa tarefa, dizia, é fazer ainda mais sistematicamente o que Pedro, o Grande, fez quando acelerou a cópia da cultura ocidental pela Rússia bárbara, confiando mais uma vez nos milagres da dialética,: usar métodos bárbaros na luta contra a barbárie. O resultado não foi brilhante, como sabemos-e isso não é nem jamais será um argumento a favor do capitalismo, além do prejuízo incalculável de converter o marxismo numa ideologia da industrialização retardatária, cujo objetivo pouco ou nada mais tinha a ver com a emancipação da condição proletária, mas convergir com o mesmo nível de riqueza e poder dos Estados do núcleo orgânico da economia capitalista mundial. O colapso final dessa trajetória anti-sistêmica apenas comprovou seu caráter inerentemente autodestrutivo, decorrente, em última instância, de sua dinâmica imanente ao próprio capitalismo histórico como sistema mundial de concorrência interestadual pelo capital circulante global. Hoje já podemos diz~r que pelo menos sabemos o que o socialismo não é nem pode voltar a ser. Florencia Ferrari e Stélio Marras são integrantes do corpo editorial da Sexta Feira.

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227 Eduardo Arantes

Nação c imaginação

Paulo


Costuma-se dizer com razão que Ernest Gellner revogou nossa compreensão rotineira das relações entre nação e nacionalismo 1 • Revirou -as de ponta-cabeça, como se sabe. O nacionalismo não deveria ser explicado pela alegada existência de "nações", mas sim o contrário, e bem ao contrário do que comum ente se entende como o despertar da consciência nacional: o nacionalismo não acorda uma nação entorpecida por uma alienação secular, ele simplesm ente inventa a nação que antes não existia. Concentrando-se sobretudo nos fenômenos de modernização pelo alto- no qu e deve ter contribuldo seu estágio nas antigas sociedades coloniais- , Gellner acabou enfatizando "o elem ento de artefato, de invenção e de engenharia social que entra na formação das nações" (Hobsbawm, I 9 9 I : 1 9). O ponto de honra de sua demonstração r eside , portanto, na capacidade de reconstituir a cristalização das "nações" sem evocar qualquer dos estereótipos consagrados pela auto-imagem do sentimento nacional: territorialidade, consangüinidade, patriotismo, aversão ao domlnio estrangeiro, cultura vernacular ou qualquer outro atavismo do gênero. No fundo, acabou deri vando a idéia de nação- para não falar na sua realidade- de uma espécie de nacionalismo de elite 2 , e de uma elite sufi cientem ente esclarecida em suas providên cias institucionais a ponto de dispensar, e, no limite, desacreditar, as visões românticas qu e costumam ornamentar esse tipo de fabricação a frio da hegemonia- para empregar um termo estranho ao vocabulário de nosso Autor. Mas não inteiramente ao esplrito, pois afinal se trata da resolução do problema da legitimidade numa soci edad e industrial, cuja tendência Th oug ht anJ change é de 196 4 , N ations anJ nationalism , de 198 3, para dar duas bali zas. Ver

ainda a coletânea N acionalismo e democra cia ( 198 1) [Introdu ção de José Guilhe rm e Me rqui or] . 2

Tom and o um a outra direção um a obsen ação de Me rqui or, à qu al Yo ltar em os, pois foi dos

primeiros a notar qu e a ser plausível o esqu em a de Gellner então não haYeri a lugar para os m oYim entos nacio nalistas da Amé ri ca Latin a do início do sécul o XIX . Pelo Yi sto o suporte sempre reapar ece . Ver o recente Perry And er so n , "Max Weber e Ernest Gellner ", Zo na ele engaj amento ( 199 5).

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niveladora- em princípio as desigualdades óbvias de uma sociedade tradicional não são mais toleradas- pede homogeneidade social e cultural: ora é a necessidade moderna de homogeneidade que gera o nacionalismo e, mais uma vez, não o contrario. Uma resenha menos sucinta deveria mostrar que, a rigor, Gellner sistematizou. os traços organizacionais relevantes do Estado nacional moderno, revelando tanto a fWicionalidad e econômica do nacionalismo- que sai justificado do enredo contemporâneo como um princípio construtivo e progressista 3- como sua data de validade : o processo de difusão da civilização industrial por obra justamente de "unidades nacionais", aos olhos do Autor, o evento dominante de nossa época. Ocorre que essa industrialização imperativa- os que chegarem tarde arriscam a marginalização- se alastra por uma economia-mundo cuja lei é o desenvolvim ento desigual- alias é o próprio Gellner quem o diz e não um comentador marxista simpatizante, até porque, na esteira de Gerschenkron, cujo livro sobre o "atraso econômico" é de r 96 2, nosso Autor também foi dos primeiros a identificar no marxismo soviético o "espírito" que teria presidido a marcha forçada da industrialização pesada, fazendo pela modernização "nacional" e "mimética" o que o·calvinismo fizera para a em ergência individualista do capitalismo. Ora, o nacionalismo é fundam entalmente a conseqüência da tensão gerada pelo desenvolvim ento desigual numa economia mundial unificada, como resposta política a uma situação de "atraso" que se tornou tão inaceitavel quanto a desigualdade de princípio numa sociedade industrial particular. Desse esforço recuperador surgira então 3

Na avaliação d e Perry And er son ( I 9 9 5 ). Não ser á dem ais r elembrar, a essa altura de obso-

lescência avançada e degradação política dos "artefatos" nacionais, que para Gellner igualitarism o e nacionalism o modernos são complem entares-

não que a seu Yer a sociedade industrial seja igua-

litári a na di stribui ção de riqueza e p oder, "m as é igualitári a enquanto requer qu e todos os cidadãos sejam da mesma espécie, sem distin ções de casta ou categoria social profundas e/ ou manifestamente simbolizadas" ( I 9 8 I :8 9).


a convicção retrospectiva de que o nacionalismo não se origina das nações mas as faz nascer. Convicção datada, como se está vendo, mais exatamente, do auge da regulação keynesiana dos sistemas econômicos nacionais, cuja ascendência balizou igualmente a onda descolonizadora e industrializante nas várias periferias reestruturadas ao longo da primeira Pax Americana 4 . Isso tudo se foi, mas os conceitos ainda fazem pensar, notadamente a idéia de que a nação e seus derivados são artefatos de um tipo bem peculiar, como logo se verá de um outro ângulo, que aliás não n ecessariamente encobre essa perspectiva induzida pela experiência do rattrapage econômico do pós-guerra. Resta ver se com tal idéia ainda poder emos remontar a corrente até o ciclo histórico anterior- afinal o período no qual o Brasil foi "inventado" pela primeira vez-e, de lá, retornarmos, com outros olhos, ao desenlace de hoje e saber se ficaremos devendo ou não uma terceira "invenção" do Brasil. Se somos de fato um constructo, seria preciso então atinar com o "nacionalismo" muito peculiar a que devemos nosso nascimento como nação. Nos m esmos termos de Gellner, um "nacionalismo" paradoxalmente anacrônico na sua estrita funcionalidade para um sistema produtivo carecido de uma arrancada salvadora. Ou não? E se proviesse do Novo Mundo uma primeira e decisiva sugestão para a idéia de "nação como artefato"? 5 Para além é claro da constatação não tão óbvia assim , porém indis4

Data que também transparece no com entário distanciado de Perry Ander son: hoje custa

m enos o sarcasmo da constatação de que a disseminação do impulso de criar Estados cuj as fronteiras políticas não coincidam exatamente c~m as fronteiras étnicas gerou moYime ntos nacionalistas que r ecrutavam tipicamente entre "uma intelligentsia alheada e um proletariado desenraizado- aquele pretendendo benefi ciar-se do monqpólio dos cargos públicos num Estado indepe ndente , e este no sentido de ser explorado ao menos por seus concidadãos" (I 9 9 5: I 3 o) . 5

Título do estudo de Márcia Regina Berbel (I 999) sobr e a atuação dos deputados do Brasil

nas Cortes Portuguesas de I 8 2 I- 2 2-

título obviamente inspirado na constelação de idéias que

está nos inter essando por à prova-, no qual se faz, entre outras coisas , um inventário sistem ático


cutível, de que à gênese multissecular do moderno Estado nacional europeu-de cuja trajetória incerta a rigor não se pode dizer que tenha sido traçada pelas sucessivas gerações dos seus formadores- corresponde na América, no momento da decomposição do antigo sistema colonial, uma criação deliberada de formas organizacionais e estruturas ideológicas de legitimação que pudessem ser reconhecidas·como "nações", de acordo por certo com as formações metropolitanas bem -sucedidas na concorrência com as formas rivais, como os impérios ou as redes transnacionais de cidades mercantis. Contornando a funcionalidade industrial da nação como artefato segundo Gellner- cuja hora histórica restringia-lhe o raio explicativo--:-' BenedictAnderson aproveitou a deixa e, assimilando a "invenção" das nações, identificada por Gellner, à "imaginação", abriu a brecha que nos concerne 6 : como foram "inventadas" as nações · das diferentes acepções da palavra "nação" nos debates destinados justamente a "constituir a nação portuguesa", como se dizia então. Em suma, à primeira vista, "a nação era proj eto político, e nã; era unívoca", e sobretudo um "artefato a ser concluído" ( 1 999: 2 9). 6

Num certo sentido, a unilateralidade da teoria (por outro lado muito original) de Gellner

pedia üm corretivo que a reequilibrasse. Pois ao sustentar, contrariando os mitos românticos compensatórios d<;t perda de sentido iner ente aos processos mod ernos de racionalização social, que a economia precisa de um novo tipo de arregimentação cultural, e que esta por sua vez precisa do Estado , o qual, por seu turno, carece da marca cultural homOgênea do seu r ebanho, todo esse sistema de encaixes atendendo aos requisitos de um sistema produtivo industrial moderno, tudo se passa-

segundo Perry Anderson- com o se Gellner, reagindo às representações consagradas do

nacionalismo como "uma força atávica destrutiva e irracional", tivess e produzido algo como a sua imagem especular chapadamente oposta. Com isso, continua o comentário, teria simplesmente negligenciado a evidência esmagadora do significado coletivo que invariavelmente o nacionalismo moderno in~ taura quando entra em cena, a ponto de sua dimensão identitária sobrepujar a sua m era funcionalidade para o mundo social que o industrialismo criou .


de proprietários coloniais que emergiram em meio às rebeliões que sacudiram a luta pela hegemonia no Atlântico a partii:· da independência norte-americana de r 776? E inventadas precocemente, pois foram as comunidades creollas da América que desenvolveram bem antes da maior parte dà Europa uma concepção enfática de nation-ness .(Anderson, ·r 9 8 3). Quem '~abe~ uma o_~tra. e preciosa vantagem do atraso, que por certo nos daria novamente voz no capitulo, numa época de metamorfose da . hegemonia do sistema mundial de acumulação e governo, sem désfecho previsível e ao longo da qual, justamente, a desintegração social-e como se há de recordar nisso a periferia 'largou, ou foi largada, na frente,- j~stamente ·a desintegração e não mais a reforma social permanente e, digamos, progressista-, passou a ser vista como normaF. Precoces na invenção do artefato nacional, também pioneiros na experiência do seu deslocamento, para nós (mas "nós" quem?) catastrófico. No que segue, passo então a resenhar livremente o que no raciocínio de Benedict Andersón interessa mais de perto ao nosso roteiro de busca de um futuro para a imaginação nacional, começando no caso pelo passado deste futuro na berlinda. Também inverto o raciocínio, e do enigma da invenção americana da nação-aqui sim literalmente pós-colonial;-rem<;>J)..to à definição célebre de nação como comunidade imaginada. Talvez seja desnecessário antecipar que foi precisamente tal imaginação nacional que rios permitiu começar a pensar-e quando ela se apagar é possível que a extinção do pensamento a siga de perto, a menos de uma nova invenção de uma e outro, ou coisa que os valha como impuJso liberador da reflexão. Vejamos portanto como nosso Autor enquadra o mistério da forma nacio7

Ver Immanuel Wallerst{Cin (r 995). Não estou citando por acaso Wall~rstein, segundo o qual,

na origem desse impulso includente que hoje se esgotou e se converteu no seu contrário, encontrase precisamente a quebra do princípio da legitimidade dinástica, suplantada pela eficácia sistêmica das soberanias nacionais como fonte do poder político r esponsável por algo como uma reforma social contínua. Ver o último artigo da obra citada, "The agonies of Liberalism".


nal assumida pelos movimentos de independência na América Espanhola-e por extensão na América Portuguesa. Antes, porém, um lembrete: é bom deixar claro que o foco na "imaginação" (ainda por definir) não dispensa, longe disso, a explicação por assim dizer material da r esistência antimetropolitana no hemisfério ocidental na virada do século XVIII para o XIX, de resto bem conhecida e incontroversa nos seus elementos básicos; o ponto é que os óbvios interesses econômicos em jogo, bem como o papel igualmente fundamental do Liberalismo e do Iluminismo na composição do arsenal ideológico mobilizado contra o Antigo Regime, não podiam criar sozinhos o tipo peculiar de "comunidade imaginada" que se prot,e gesse contra a espoliação colonial. Aliás, um outro lembrete: é bom deixar claro também que, ao rever a nação como uma comunidade imaginada, o Autor, em hipótese alguma, está desconsiderando a evidência histórica da desigualdade de classe e da exploração econômica que caracteriza a cristalização moderna da forma-nação, na verdade está justamente considerando o mistério sociológico de exploradores e explorados só poderem imaginar a nação na figura de um "companheirismo profundo e hori. zontal"- em suma, como foi possível imaginar como comunidade uma sociedade antagônica? Para além da resposta óbvia: só mesmo na imaginação, pois afinal se trata de uma imaginação por assim dizer instituinte. Por fim, ao salientar que a idéia nacional, bem como os movimentos nacionalistas que a entronizaram, é um artefato muito peculiar, nosso Autor está lembrando que não se pode enquadrar a nation-ness no bloco das grandes ideologias- aliás, nada exaspera tanto intelectuais ·'· -- . c~smopolitas e poliglotas, imbuindo-os ainda mais da própria superioridade, do que o vazio, a pobreza e a incoer ência conceitual do nacionalismo, em contraste com o seu poder político assustador- , devendo, pelo contrário, num espírito antropológico, ser compreendida em analogia com os sistemas culturais amplos que a precederam, a partir dos quais, bem como contra eles, passou a existir. Passemos então ao enigma com o qual se deparou Benedict Anderson, na origem do interesse incomum que até hoj e d espertam os novos Estados Nacionais


americanos, na exata medida em que parece quase impossível explicá-los segundo os padrões definidos pelos nacionalismos europeus do período oitocentista clássico de nation making, na fórmula consagrada por Bagehot. A língua, por exemplo, nunca foi um problema, nem mesmo um tópico programático naquelas antigas lutas de emancipação nacional, senhoriato colonial e camadas dirigentes metropolitanas falavam a mesma língua. Tampouco a cristalização daquelas novas nacionalidades esteve ligada ao batismo político das classes inferiores. Ocorreu justamente o contrário naquelas rebeliões de elite, salvo no caso exemplar do Haiti. Nunca foi tão grande o medo de insurreições de escravos e índios como naqueles tempos de turbulência em todo o sistema mundial. No caso da América Portuguesa então, pode-se dizer sem muito exagero que a Independência foi feita para melhor assegurar a continuidade da escravidão. Daí o mistério: a mesma aristocracia limenha que ainda conservava bem viva a memória apavorante da jacquerie liderada porTupacAmaru acataria pelo menos com fervor r etórico, porém sem jamais abrir mão de suas prerrogativas de mando irrestrito, .a exortação patriótica do libertador San Martin no sentido de que a partir de entao não chamassem mais os aborígenes quéchuas de índios ou nativos, ·mas de "peruanos". Assim, províncias coloniais na América Espanhola, abrangendo grandes populações oprimidas que nem sequer falavam o espanhol, se metamorfosearam em naçpes de creollos que deliberadamente redefiniram tais populações como compatriotas,.a o mesmo tempo que tratavam como inimigo estrangeiro a mesma Espanha à qual estavam ligadas por um sem-número de laços. Do mesmo modo, nossos mazombos se contrapunham aos reinóis portugueses e se diziam "brasileiros" como os índios que massacravam e os africanos que continuavam escravizando. Os dois fatores comumente mencionados.para explicar a súbita fragmentação em dezoito Estados distintos de um Império colonial que tivera existência tranqüila durante três séculos são rejeitados por nosso Autor, que continuamos acompanhando quase ao pé da letra, como anunciado. N em o agressivo enrij ecimento do controle metropolitano, nem a voga liberal, a favor e contra- pois as políticas do

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despotismo esclarecido à moda de Madri também irritaram e alarmaram a classe alta creolla- , ainda que fundamentais para a compreensão do impulso separatista na América Espanhola, são insuficientes para dar conta do fenômeno: por que entidades como o Chile, o México, a Venezuela etc., se tornaram não só politicamente viáveis mas também emocionalmente plausíveis? Para começar sua resposta, Benedict Anderson remaneja um dado aparentemente óbvio, a existência das unidades administrativas coloniais que precederam as futuras repúblicas sul-americanas. Acontece que a configuração original dessas unidades er~ em grande medida arbitrária e fortuita. É verdade que com o correr do tempo elas se tornaram uma realidade mais estável. Todavia, nem mesmo mercados regionais, de caráter geográfico ou político-administrativo, são suficientes para criar lealdades. Quem estaria disposto a morrer pelo Mercado Comum Europeu, com ou sem euro? Tampouco o decisivo critério de demarcação pelo contingenciamento da força de trabalho, ao qual sem dúvida coube a última palavra. Em jogo, o nexo moral demandado por Caio Prado ] r., na reconstituição de nossa transição de colônia à nação, que viria enfim se sobrepor ao vínculo bruto da mera exploração econômica. Também para Benedict Anderson, trata-se de saber como tais unidades político-administrativas, a um tempo praças comerciais e pólos da territorialização da força de trabalho, puderam passar a ser percebidas como "pátrias" (sem humor negro, é claro), verificar enfim como tais espaços-entrecruzamento de fluxos mercantis transoceânicos e lugar de coerçã~ política- acabaram "criando significados". Talvez seja a mais engenhosa das explicações do Autor, que passo mais uma vez a resumir, achando impossível que ela não fale à imaginação de um brasileiro. Reportando-se aos trabalhos de um antropólogo que estudou um tipo o ri~ ginal de experiência geradora de significação, à "jornada" eptre, t~mpos·; l11gares, status, jornada que exige explicas;~o, .como por exempló a jotnad'a do nascimento à morte, na , origem das religiões, Benedict Anderson concebeu um tipo de "peregrinação"- por analogia com as peregrinações religiosas, caracterizadas pelo


movimento constante de peregrinos até o centro de uma geografia sagrada, vindos de localidades longínquas entre as quais não existia qualquer outra relação, observação que o Autor manda grifar-que batizou de jornada da imaginação, no caso uma peregrinação secular mais modesta e limitada, que são as diferentes viagens propiciadas ou exigidas pelo surgimento das monarquias absolutas e dos Impérios europeus transoceânicos. Como se há de recordar, contraposto ao particularismo da nobreza feudal, o absolutismo criou um aparato unificado de poder, e com ele a "permutabilidade interna de homens e documentos". Permutabilidade favorecida pela arregimentação meritocrática dos homens novos: as jornadas da imaginação eram as viagens dos funcionários do absolutismo, peregrinações inéditas se comparadas às dos nobres feudais. A jornada feudal é Única, uma só viagem de ida e volta, até o centro do poder, para receber a investidura e o retorno aos domínios ancestrais. Já o funcionário peregrino, como não tem "pátria" com qualquer valor intrínseco, não conhecerá nenhum lugar seguro de repouso, em sua jornada toda pausa é provisória, aliás a última coisa que deseja em sua carreira é voltar para casa. "Enviado para a municipalidade de A no posto V, pode retornar à capital no posto W; vai, a seguir, para a província B, no posto X; prossegue para o vice-reino C no posto Y; e termina sua peregrinação na capital no posto Z." E mais: "em sua rota espiral de ascensão, depara-se com companheiros de peregrinação igualmente ansiosos, seus colegas funcionários, oriundos de lugares e de famílias de que nunca ouviu falar e que espera certamente jamais ter de ver. Porém, com a experiência de tê-los como companheiros de viagem, emerge uma consciência de conexão, sobretudo quando todos compartilham uma Única língua de Estado" (grifo meu). E como se disse, consciência de permutabilidade-o funcionário A, vindo da província B, administra a província C, enquanto:o.- funcionário D; da província C, administra a província B. A expansão ultramarína, ,ao :desenvolverenormes burocracias transcontirientais, multiplicou e encompridou as rotas dos· funcionários peregrinos. E inaugurou o capítulo das preteri'ÇÕes, as peregrinações dos funCionários creollos- barrados -em suas carreiras . "Sé os·funcio-


narios peninsulares podiam percorrer a rota de Saragoça a Cartagena, Madri, Lima e de novo Madri, o creollo mexicano ou chileno típico prestava serviços nos territórios do México ou do Chile coloniais; seu movimento lateral era tão tolhido quanto sua ascensão vertical." A consciência emergente de cOnexão começara então a dar uma outra resposta à questão "por que estamos nós .. . aqui . .. juntos?". O raciocínio histórico classico costuma acentuar o carater bifronte do senhoriato colonial: ao mesmo tempo classe superior e subjugada, não obstante ser essencial à estabilidade dos negócios ultramarinos-e com isso registra a ambigüidade da independência, que não deixa de ser uma revolução (não é pouca coisa a reviravolta operada por uma colônia que se transforma em Estado-nacional), embor.a pelo alto, renovando a submissão dos de baixo e antagonizando mais acima o jugo ~etropolitano de seus pares, dos quais precisam entretanto se dessolidarizar, enquanto "imaginam" confraternizar com os que oprimem. Podemos ~crescentar então que o esquema de nosso Autor oferece uma plataforma a partir da qual visualizar esse jogo de bascula entre identidade e desidentificação. Nossa peregrinação limitada encontrava companheiros de viagem, os quais ·acabavam por perceber que o companheirismo entre eles não se baseava apenas naquele determinado trecho de peregrinação, mas na fatalidade, que compartilhavam, do nascimento transatlântico. Ainda que tivesse nascido na primeira semana depois da migração do pai, o acidente do nascimento na América destinava-o à subordinação-ainda que, em termos de língua, religião, origem fàmll!ar ou mqneiras,fo;se praticamente .i ndistingüfvel de um espanhoZ nascido na Espa~ha . .. Não havia nada ·a fazer quanto a i~s~: ele eta' ir;emediavelm~nte' um cr~ollo.

Em pouco te~po, inoculado o vírus colonht~ do racismo, era· simples fazer a dedução vulgar e conveni~nte: diferente~ dos metropolitános, eram ii:J.feriore~ e portanto inadequados para os cargos superiores 8 . Mas. para · que essas peregrinações tivessem ~

8

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Sobre jornadas brasileiras da imaginação, ver José Murilo de Carvalho ( 1 998) .


conseq üências d ecisivas, ou seja, para que suas exten sões territoriais pudessem ser imaginadas como nações , era prec iso que outros personagens entrassem em cena. São basicame nte dois, no rote iro de Be nedict And erson. Com ecemos pela impre nsa. Os primeiros jornais sul -am eri canos apareceram praticamente como prol o nga m entos do m er cado. "Os mais antigos jornais continham - ao lado das notícias sobre a m etrópol e- noticias comerciais (partidos e ch egadas d e navios, quais os preços, para que m ercadorias, em que postos) bem como ordenações políticas coloniais, casam entos dos ricos, e assim por diante . Em outras pa lavras, o qu e co locava lado a lado na m esma página, este casamento com aquele navio, este preço com aquele bispo, era a própria estrutura da administração e do sistema d e m ercadorias co loniais. D esse modo, o jornal d e Caracas, d e maneira muito natural e até m esmo apolítica, criava uma comunidade imaginada entre uma d et e rminada congregação de companhe iros, à qual p ertenciam esses navios, noivas, bispos e preços . Naturalmente , só se podia esperar que com o correr do t empo, aí entrassem e lem e ntos políticos"( 1 9 8 9 :7 3). Vimos h á pouco a burocracia colo nial lavrando o t erritório, conferindo- lhe um "se ntido" gra~as aos destinos cr.uzados·dos .funcionáúos peregrinos. Essa me~ma eonsci~ncia-de ·éooexão em~rge t~fotçacla. Oq jm>taposiçâü', -vis_ ualizaâà-na ·pág,ü1a·-de urnj_()rtJaJ ~ - d e àe-~ m .e ntos h et en k hto S' a: u'm tempo nivelados pela-forma m ercantil(rioi\ ras e bispo~ s5o tambêm .artigos, aliás -preciosos:, do comércio colonial) e rea~çádos pda significaç:ã.o · méd)tq da circ:unstânc~a que os o<:mgr~ga ;. como s<;: p.or. um_mom ento á -lenda d9 doux cor~m?.~rc-e; T?-atriz ,da··sqê:iàbilíd'ade ci\rill zató~i à, bril?asse no,s .c onhns dõ à~~igó s~sfeina col ô'ÍüaJ.,'"e m cris-e·mas só:aos õlhos das imaginaçôes propri etá~ias, ob~riam ente-a imaginaÇão da. comunrd"â de elos -çohsumidôl~es d e "uína economia d @n:assa ainda ~sta­ va no limbo. O decisivo nessa prime ira invenção da nação- artefato . ,cuJaJi:uúa,sia plasmadora não poderia estar mais materialm ente ancorada, _c:o ,r no·esta_n:os v~ndo, se nosso Autor tem razão- é o "mundo imagi nado d e leiton:s'', "á congregaçi~ companh eiros proprietários dos navios, bi.spos, noi v~s e o~ demais g~neros co l o!li~i s que pautaram o "se ntido"daq;u ~lq fabric;lçãci,.leitqres.de jornal, p Q çasq, mtirlêlo nb.

dos.

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qual se refratam idealmente os eventos idênticos "lidos" por assim dizer ao mesmo tempo, simultaneidade tanto mais efetiva por ser imaginada. Essas temporalidades paralelas e simultâneas têm a ver, é claro, com o tipo de consumo exigido pelo jornal- sabemos que suas edições serão lidas muito provavelmente entre tal hora e tal hora, apenas neste dia, e não em outro. Qual a vinculação entre as notícias da primeira página de um jornal? Para nosso Autor, ela é da ordem do imaginário, mas a fantasia, no caso, também é exata. Não é o mero capricho que liga os eventos justapostos na página impressa, contudo "é óbvio que a maioria d~stes aconteceu independentemente, sem que seus autores tivessem consciência uns dos outros, oU de que os outros estavam fazendo. A arbitrariedade de sua inclusão e justaposição demonstra que a vinculação entre eles é imaginada" (idem:42). Ou melho,r, precisa,st;r imaginada, pode ser imaginada. Essa vinculação imaginada provém de duasfonte.s-·.-sempre segundo nosso Autor, inútil lembrar. "A primeira é simple·s mente 2oincidência no calendário. A data no alto do jornal, a marca mais peculiar quf elê ·apresenta, fornece a conexão essencial-a marcação regular da passagem do ,Jempú. Dentro daquele tempo, o mundo caminha decididamente para a frente". O #nal dissQ: ·s e uma determinada localidade, depois de ser notícia durante dias seguidos_, subitament~ desap<~.re­ ce por m eses a fio, nem por um momento os leitores pensara que ela' ~~~plesmente desapareceu, mas que em algum lugar fora das páginas impressas continuá·~ exjstir e_ por isso aguardam sua reaparição naquelas mesmas páginas. Tal como o leitor cificionado imagina um personagem de romance. Pois esse é o outro dos achâdos .pretiosós de Benedict Anderson. Não sei se m e explico b em: obviamente não se. e.stá querendo dizer que r edescobriu sozinho o sistema de vasos comuni cantes que, há tem:P?S·, .a_sseguram a circulação entre a moderna prosa de ficção e as técnicas liter.árias do jornalismo, pois a rigores~ê últiroQ coh(empqr~n~o: da narr;atiya re alista européi(l, e pelo menos ·se entrecruiam -d:eséle ·o ·set.ecentrs·inglês :.Ma.s.n'à'o djr!aJ!pce·:é tão tri \Ti~) assim ·ressalo caraterficdonai da col,1.v~n<;ãqliterÁr:fa·Jundarriêb,:tal dq jornal ~ e m·~is particular-mente SeU; feitio de romance:. Cooluma~s~~ · a()c-CQllfFirio;: qqa~do nã'o 'se contrapõe

o

e

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frontàlmente o ·adiatamento do fato à profundidade multidimensional da ficção, invoc~u~ a paralisação- da imaginação do leitor pelos estereótipos da apresentação jor~aÍística ·do ~undo. Walter Benjamin, como se sabe, deu forma canônica a essa demonstraçãó do déficit .crônico de que padece a notícia de jornal, sobretudo quando .confrontada, como ·e le mesmo fez, à figura seminal do Narrador, de tal sorte que o jornal comparece ·no limiar da modernidade como um sintoma da crescente degradação da experiência-como capacidade de articular e comunicar conteúdos no longo curso de um aprendizado histórico: a seu ver, já a própria. composição em mosaico de uma página de jornal, cujo ponto de honra é a ausência de correlação entre as informações, é a primeira e intransponível barreira entre os acontecimentos e a experiência do leitor, apressando um pouco mais o seu lento definhar. Ora, curiosamente, no que esbarrou Benedict Anderson senão na força estruturante da justaposição de uma notícia ao lado da outra-este navio, este bispo, esta noiva, estes pr~ços-, uma composição que, longe de nivelar e compartimentar, parece articular-· no 's enti_d o em que a narração articula e põe em perspectiva-uma experiência <:;oletiya de comunicação, em que o nexo pode muito bem ser duas formas sociais modernas, amercadoria e a burocracia, ao contrário exatamente do que sugere a imagem retroativa do Narrador em Benjamin. Um parênteses: tampouco estou sugerind_o , como (arão logo mais, e a seu tempo discutiremos, os desconstrucionistas pós~coloriiais, que nosso Autor simplesmente antecipou o trocadilho metafísico que torna a Naçã~ niero "efeito de real" de uma Narração originária 9 . Um cotejo esclarecedor: paraBenjamin, sendo os jornais reproduzidos numa multidão de exemplares, não fornec~m aos seus leitores histórias que possam em seguida ser contadas aos outros,quebrando as cadeias narrativas formadoras da tradivão. Pois essa mesmé} multidão-de jornais e leitores-mudà de figura quando passamos- sempre com nosso Autor-à seg~nda fonte de vi'ncul~Çào Ífi.l~ginada entre as notícias -de uinjor9

Ver, por exemplo, HórriiK..'Bhabha.(Iqqo).


nal: o rito coletivo que vem a ser o consumo quase que exatamente simultâneo do jornal-como-ficção. "A significação dessa cerimônia de massa-Hegel observava que os jornais são, para o homem moderno, um substituto das preces matinais-é paradoxal. Ela se desenrola em silenciosa intimidade, bem no fundo da cabeça." Em feitio de oração, portanto. Todavia, mesmo arriscando o mal-entendido, e antecipando imprudentemente o segundo movimento do argumento geral deste capítulo de abertura, o ato solitário dessas leituras concomitantes apresenta um outro feitio, nada mais nada menos do que uma imagem do pensamento, mais exatamente, dessa auto-regulação silenciosa que se chama "pensamento", como se pode ler (à revelia) numa outra formula de um outro autor, e que a seu tempo trataremos de recuperar. Voltando: uma alheamento paradoxal, pois reforça o senso de realidcide. Com efeito, "cada um dos comungantes está bem cônscio de que a cerimônia que executa está sendo replicada, simultaneamente, por milhares de outros, de cuja existência está seguro, embora não possua a menor idéia sobre a identidade de cada um. Mais ainda, essa cerimônia é repetida em intervalos de um dia, ao correr do calendário". Interrompo a citação para indagar se não se poderia tomar esse ritual como uma das tantas ilustrações possíveis da metáfora de Renan, sua definição da nação como um plebiscito diário; nosso Autor diria que nem tanto, devido à sua conotação deliberativa explícita e que a geração da vontade impessoal-se é disso que se trata, no caso da conversão da desigualdade de classe real em igualdade abstrata de cidadãos, por intermédio dos mecanismos convencionais de representação política-se encontra, pelo contrário, sobretudo nas "regularidades diárias da vida da imaginação". Voltemos então a um de seus mecanismos mais eficientes, pelo menos no âmbito do primeiro ciclo da invenção da nação: se alguém invocasse pela enésima vez o caráter burguês dessa fabricação, Benedict Anderson não diria que não, desde que acompanhada tal evocação pela seguinte ressalva: não sendo possível conceber uma burguesia analfabeta, será permitido ver nessa classe discutidora e leitora de jornais a Única durante um bom período, a inventora patenteada da marca nacional, desde que se entenda


a nação como produto da imaginação de uma "coalizão de leitores", e precisamente uma coalizão de classe, a rigor a primeira classe social a "consumar solidariedades numa base essencialmente imaginada". Retomando a citação interrompida: "o leitor de jornal, vendo réplicas exatas do seu jornal sendo consumidas por seus vizinhos de transporte coletivo, no salão de barbeiro, em casa, sente-se permanentemente tranqüilo a respeito, diante do fato que o mundo imaginado está visivelmente enraizado na vida quotidiana" (idem:44). Uma encarnação "nacional" do sensus communis dos fil6sofos? Afinal, tudo parece se passar como se uma sensação muito forte de realidade brotasse dessa espécie de sexto sentido compartilhado durante a cerimônia coletiva de leitura de um jornal, como se esse senso comunitário-para voltar a falar como os fil6sofos-por assim dizer ajustasse a auto-regulação silenciosa no fundo da cabeça de cada leitor ao modo (e não ao conteúdo) de representação de qualquer outro "imaginando" a realidade a partir do que está impresso no mesmo jornal. Acresce que essa presença muito real de um mundo comum está calçada num pacto ficcional. Mas como vimos, não se trata de qualquer ficção, mas precisamente daquela capaz de deslizar "silenciosa e continuamente para dentro da realidade, criando aquela notável segurança de comunidade anônima que é a marca garantida das nações modernas". Aqui o outro achado de Benedict Anderson- banalizado até o grotesco teorizante pelos ide6logos autodesignados p6s-coloniais-, a ligeira inflexão num velho t6pico de hist6ria literária tão velho e datado quanto o Romantismo e o Nacionalismo literários: como e por que uma estrutura básica de se imaginar, surgida na Europa no século XVIII, também forneceu, tal como o seu contemporâneo, o jornal, os recursos técnicos para re-apresentar a espécie de comunidade imaginada que é a nação ou, para emendar no achado anteriormente referido-por iluminar a invenção precoce da forma nação na periferia-, para que as extensões territoriais percorridas pelos funcionários peregrinos começassem a fazer "sentido", para além do mercado e da administração. Foi o caso do romance, como era de se prever- numa palavra, oromance como um instrumento privilegiado de descoberta do país e de interpretação

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social, como Antonio Candido caracterizou o aparecimento da ficção entre nós, quando a ex-colônia recentemente emancipada também estava carecida não só de se tornar politicamente viável màs também "emocionalmente plausível". Como se viu, esse o ponto de nosso Autor, e se me antecipei invocando Antonio Candido foi para sublinhar melhor a novidade do esquema que estamos apenas recapitulando, pois a novidade não reside apenas no registro da vocação histórica e sociológica do romantismo literário e portanto, atender à demanda "nacional" de criar a expressão nova de um país novo; para além da cor local e seus derivados, vem ao caso agora pesquisar nos elementos da forma romance as condições de possibilidade da representação daquela comunidade especial que justamente carece de tal forma se constituir e se ver como realidade-em suma, uma excelente explicação histórico-estrutural do porquê do papel privilegiado de instrumento de "descoberta" do país desempenhado pelo romance. Passemos então à segunda matriz da imaginação nacional. Embora a ressalva não pareça invalidar a hipótese geral, é bom deixar claro que o argumento de Benedict Anderson deriva de considerações sobre a estrutura de romances "à moda antiga". E nem poderia ser de outro modo. Quer ela se apresente nas obras-primas do Grande Realismo europeu, ou num romance qualquer do período, a Era do Romance e o momento histórico em que transcorreu o auge do processo de nation making são rigorosamente contemporâneos 10 • No seu modo de ver, o romance é antes de tudo um instrumento de apresentação de simultaneidades. Eis o seu esquema: "tomemos, para fins 1o

A exceção Machado de Assis (já que estamos antecipando) confirma a regra, quer dizer:

os efeitos miméticos produzidos pela prosa machadiana com recursos não realistas . Escritor que primeiro atinou que a formação da nacionalidade não se completaria, que o país estava entrando de costas na modernidade burguesa: daí a forte sensação de realidade que até hoje provoca sua ficção, prova de que "imaginou" em profundidade a "nação" abortada porém estritamente contemporânea do mundo do capital. (Fácil dizer, depois que Roberto Schwarz decifrou o enigma Machado de Assis) . Outra exceção confirmadora, Borges . Tal como em Machado, a referência nacional em Bor-


de ilustração, um segmento de um enredo simples de romance, no qual um homem A possui uma esposa B e uma amante C que, por sua vez, tem um namorado D"; a seguir supõe uma seqüência temporal em três movimentos ao longo dos quais transcorrem ações paralelas, de tal sorte que se poderá verificar que, no correr dessa seqüência, "A e D jamais se encontram, e podem na verdade não ter sequer conhecimento da existência um do outro se C tiver agido inteligentemente. Então, o que é que realmente liga A e B? Duas concepções complementares: primeiro, que eles estão encravados em 'soci_e dades' (por exemplo, Wessex, Lübeck, Los Angeles). Essas sociedades são entidades soCiológicas de uma realidade tão firme e estável que seus membros (A e D) pode~ até mesmo ser descritos como passando um pelo outFo na rua sem jamais se relacionarem e, ainda assim, estarem ligados. Segundo, que A e D estão encravados na mente de leitores oniscientes. Apenas eles percebem os vinculos. Apenas eles observam A telefonando a C, B fazendo compras e D jogando sinuca, tudo ao mesmo tempo. O fato de que todos esses atos são desempenhados no mesmo tempo, medido pelo relógio e pelo calendário, mas por atores que podem passar em grande medida despercebidos uns em relação aos outros, demonstra a novidade desse mundo imaginado evocado pelo escritor na mente de seus leitores"(idem:34-5). A esta altura devemos recordar o principal traço determinante da definição de Benedict Anderson da nação como uma comunidade politica imaginada. Como vimos, a deixa lhe veio da tese inovadora de Gellner: a consciência nacional não resulta do ges- habilmente camuflada, como exigia sua composição não realista- é tanto mais presente quanto a "nação imaginada" é a cifra local de uma seqüência mundial catastrófica . Por isso mesmo, o invólucro cosmopolita de um e de outro, Machado e Borges, é mais do que despiste destinado a encalacrar o compatriota intoxicado de fumaça universalista, algo terá a ver com o esforço artístico de captar o alcance transnacional das respectivas malformações nacionais. Nesses termos precisos, seria então o caso de conduir que ambos são autores "globais". Ou épicos modernos, .c omo preferiria dizer Fran.co Moretti ( 1 996).


despertar para a vida autoconsciente de uma realidade nacional prévia que jazia adormecida, alienada de si mesma, à espera de uma ressurreição, mas é a inventora de nações onde elas nem existem. A essa primeira indicação do caminho a seguir veio juntar-se a tradução de uma frase de outro historiador do nacionalismo, Se.tton-Watson, segundo o qual se pode dizer que uma nação existe "quando um número significativo de pessoas de uma comunidade considera que constituem uma nação", e se comportam em conseqüência. Nosso Autor propõe simplesmente que se traduza "considera" por "imagina". Encontra em seguida confirmação de sua intuição num documento clássico do primeiro ciclo longo de formação das nações, a conferência de Renan de 18 8 2, na qual interpreta a "vontade de viver juntos" da forma célebre como resultante política de um ato de imaginar: todo cidadão francês, dizia Renan,' para se considerar membro da Nação (com maiúscula desde a Revolução, quando a soberania do povo reunido em Nação destronara a soberania dinástica), precisa é claro ter muita coisa em comum com os demais, mas sobretudo, precisa ter esquecido muitas coisas, como A Noite de São Bartolomeu, que não há mais de dez famílias na França que possam apresentar provas de origem franca etc. Feitas essas preliminares, acrescenta a grande novidade de sua definição, para a qual nem . sempre se deu a devida atenção, o acento recaindo sempre no caráter imaginário da "invenção". Trata-se de comunidade imaginada "porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão" (grifo meu). A seu tempo veremos esse Outro imaginado reaparecer noutra cena. Completemos a citação: De fato, todas as comunidades maiores do que as primitivas aldeias de contato face a face (e talvez até mesmo estas) são imaginadas. As comunidades não devem ser distinguidas por sua falsidade/ autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas [será permitido intercalar: a nação e o nacional não são idéias intrinsecamente falsas ou verdadeiras; e mais uma vez: o nacionalismo não é uma ideologia, mas um sistema cultural amplo}. Os aldeões javaneses sempre


souberam que estavam ligados a pessoas que Jamais haviam visto, mas tais vínculos eram outrora imaginados de maneira particularista-como malhas indiflnidamente extensas de parentesco e dependência. Até mais recentemente, a língua javanesa não possuía uma palavra para signifJcar uma abstração "sociedade"(idem: 14-5).

Essa última menção da abstração "sociedade" pede uma breve digressão, sobretudo porque parece estar servindo de contraponto a uma outra abstração, a "comunidade". Ora, talvez seja necessario deixar mais claro que nosso Autor não esta reativando o par antitético clássico de Tonnies, que sua comunidade não é uma comunidade de origem e destino, tecida por relações pessoais personalizadas, aquecidas pelo calor do grupo primário etc., embora não esteja longe das "comunidades emocionais" de Max Weber. Seja como for, o decisivo é que Benedict Anderson em nenhum momento tomou o termo em uma acepção realista. Digamos que por mais variada que seja a conceituação da "realidade" da sociedade, por sua vez a comunidade, se nosso Autor tem razão, só pode ser imaginada sob pena de ser uma fraude toda vez que se apresentar como uma entidade substancial realmente tangível: daí sua condição de artefato-no caso da comunidade nacional imaginada-sugerir a analogia profunda que estamos vendo com uma forma artística- o romance, entendido em sua associação com a estrutura básica do ato de imaginar- na qual a promessa utópica da reconciliação não pode se apresentar jamais como realizada, salvo justamente na aparência estética, que como tal não pretende enganar ninguém, trata-se apenas de uma imagem, e mesmo assim cada vez mais rarefeita: o mesmo para o senso comunitario alimentado pela imaginação nacional, para além do fracionamento real de uma soçiedade antagônica. Dito isso, a saber, que o essencial de uma comunidade imaginada esta na referência ao Outro desconhecido 11 , voltemos à afinidade estrutural entre a comunidade imaginada como nação e o I I

Porém nada mais próximo e sem elhante do que o Ninguém sem nome, o ocupante ausente

dos túmulos do Soldado Desconhecido, monumentos que floresceram depois da carnificina da Pri-


sobrevôo do leitor onisciente de um romance, onisciente à moda antiga, claro. E assim é: "um norte americano jamais encontrará, nem mesmo saberá como se chama, mais do que um pequeno número de seus duzentos milhões de compatriotas. Não tem idéia alguma do que estão fazendo, mas está absolutamente seguro de sua atividade constante , anônima e .simultânea". A mesma segurança ficcional do leitor de jornal, como se viu, quanto ao enraizamento do Outro, anônimo e imaginado, na vida quotidiana comum, na acepção mais enfática deste último termo. Reproduzo a seguir os três exemplos comentados por Benedict Anderson, lembrando de saída que todos se referem a situações coloniais, embora em momentos dife rentes de conformação da periferia-Filipinas, México e Indonésia, os dois primeiros compostos na língua da metrópole (espanhol), o último em "indonésio". Repetindo : tais romances não são nacionais pelo assunto de extração local, em que pode estar até explicitamente figurado o antagonismo com o Ocupante (para voltar a falar como Paulo Emílio), mas são tais pelo isomorfismo entre os dois mundos imaginados, aquele evocado pelo escritor na mente dos leitores e o da comunhão de embarcados que nunca se verão: A idéia [ficcianal] de um organismo sociológico [sic} que se move pelo calendário do tempo homogêneo e vaziD apresenta rima analogia precisa com a idéia de nação, que também é concebida {imaginada] coml> uma comunidade compacta que se move firmemente através da história

(idem:35). Em última instância- por assim dizer, no plano dos elementos constitutivos de uma Gestalt- bem pode ser essa a orige~ do poderoso efeito mimético da r eferência nacional, que não precisa ser patrioticamente ostensiva para ser tal: a sociedade do romance 'à antiga" já se apresenta de saída como sendo nacional- como se poderá verificar no m eira Grande Guerra . "Por. mais que esses túmulos estejam vazios de qualqu er restos m ortais, e les estão; porém, Sa.l:Uràd~S

defantàsmagoricas imaginaçÕeS nacionais" ( I 9 89 : I J).


nos fazia e permitia pensar; e se assim foi, a agenda "que fazer?" segue atrelada à resposta para a pergunta: o que nos fará pensar, à medida que avança nossa absorção por um Império geoeconômico pós-nacional? Fim de parêntese. Trata-se de uma sátira da administração colonial do México, porém não são de modo algum os temas evidentes do empenho antimetropolitano que lhe definem o caráter, mais exatamente o vínculo estrutural entre romance como tal e a "imaginação nacional": pois é esta última que vemos "funcionando nas andanças de um herói solitário por uma paisagem sociológicâ de uma estabilidade que funde o mundo de dentro do romance com o mundo de fora. Esse tour d'horizon picaresco-hospital, prisões, aldeias longínquas, monastérios, índios, negros-não é porém um tour du monde. O horizonte é claramente delimitado: é o do México colonial. Nada nos assegura mais dessa solidez sociológica do que a sucessão de plurais. Pois eles evocam um espaço social cheio de prisões comparáveis, nenhuma delas por si só de qualquer importância singular, mas todas representativas (em sua existência simultânea e distinta) da tirania desta colônia" (idem: 3 9) . Finalmente, o romance de um jovem indonésio nacionalista-comunista, publicado em folhetim nos anos 1 9 2 o, Marco ·Kartodicromo. Estamos de novo num mundo de plurais, nota Benedict: oficinas, escritórios, carruagens, kampongs e lâmpadas de gás. Como no caso filipino: Nós-os-leitores-indonésios mergulhamos indiretamente num tempo de calendário e numa paisagem familiar; alguns de nós podemos bem ter caminhado por aquelas "peguentas" estradas de Samarang. Uma vez mais, um herói solitário é sobreposto a uma paisagem social descrita em detalhes cuidadosos e gerais, Mas há também algo de novo: um herói que nunca é chamado pelo nome, mas · coerentementé mencionado como nosso jovem. Exatamente o caráter canhestro e a ingenuidade li~erdri~~ po texto -cotifirmqin a "sinceridade"não deliberada desse adjetivo pronominal. Nem Marco, nem seus léitor~s~ têm "q,~alqu~r dúvida quanto à riferência. Se na ficção jocosa e elaborada na Europá dos s?culos'XVJ/1 e XIX, o trapo "nosso herói" simplesmente ressalta um jogo do autor com um leitor (qualq·~e;), o"nosso jovem" de Marco, não menos pela ino;ação, significa um jovem que


pertence ao corpo coletivo dos leitores do Indonésia, e assim, implicitamente, uma embrionária "comunidade imaginada"indonésia . Observe-se que Marco não sente necessidade de especificar essa comunidade pelo nome: ela já está aí. (Mesmo que os censores coloniais holandeses poliglotas se juntem a seus leitores, eles estão excluídos de participar desse "nosso': como se pode ver peloJato de que o ódio do jovem se dirige"ao"e não ao"nosso': sistema social (idem:41).

Fechando o círculo, a confirmação da comunidade nacional imaginada pela réplica interna da leitura cuja teoria estamos acompanhando: é que mal iniciado o relato "nosso jovem" se depara com uma notícia de jornal acerca da morte de um "miserável vagabundo", abandonado à beira de uma estrada; literalmente "o jovem comoveu-se com esse breve relato; Imaginava perfeitamente o sofrimento daquela pobre alma quando jazia moribundo ...". Corno se queria demonstrar. Para sublinhar a novidade, voltemos ao contraponto armado pela opinião oposta a de Benjamin, que talvez tenha pago um preço alto demais ·privilegiando a figura arcaica do Narrador, sem dúvida porque lhe interessava arriscar a hipótese de largo fôlego histórico que sugeria entroncar a recepção coletiva da arte de massa à transmissão da experiência pelo relato face a face nas sociedade tradicionais. Assim, quem ouve um relato forma sociedade com o narrador, mesmo quem o lê participa também dessa cómpanhia, ao passo que, na outra ponta da atrofia moderna da experiência, nada mais anti-social do que a individuação burguesa do leitor de romance, nada mais solitário do que o ato de ler um romance,erri cujo encasulamento desaparece de vez a antiga comunidade dos que escutam. No afã de rastrear as derradeiras promes_sa.s desta última na Era da Reprodutibilidade Técnica, Benjamin deixou 'escapar-se . Benedict Ander'Son esbarrou numa pista verdadeira-um·traço notável do capitalis~o ~ditorial· -semp~e segundo-nosso Autor: o fato de que o livro foi -a primeira mercadoria industrial produzida em· série no estilo moderno e que, assim sendo, "o jornal não passa de uma fornia extrema do livro, um livro vendido em escala imensa, p~rém de popularidade efêmera. Poderia dizer-se quesão best-sellers por um só dia" (idem:43). Daí a conclusão oposta-o paradoxo do leitor solitário, que se reproduz eresolve ana-

250 -


logamente nà cerimônia de massa do consumo diário do jornal e no isolamento absoluto em que avidamente o leitor se apropria do sentido de um romance: como vimos, e não custa repetir para melhor frisar a inversão da perspectiva, a leitura de um romance se desenrola bem no fundo da cabeça, "em silenciosa intimidade", e, no entanto, cada leitor não seria senão a comunidade de leitores "solitários" que por assim dizer lêem por sobre seus ombros. Na opinião de Franco Moretti ( 1 998), para encerrar esta primeira, aproximação, que também deve ter ficado muito impressionado com as páginas de Benedict Anderson acerca da afinidade estrutural entre a forma de se imaginar a sociedade num romance e a descoberta de algo como uma imaginação nacional, uma página precisa ser virada: uma vez estabelecida, explorada e reviradá (mas a cada caso sempre uma surpresa) a conjunção entre o romance e o cur-so do mundo capitalista, te~ia chegado a hora (por quê?) de estudar a fundo as relações entre o romance e o Estad-o -nação, mais exatamente a realidad~ geopolítica da forma-nação no âmbito do capitalismo como sistema mun. aial de acumulação e governo-para tornar mais explícitos os apoios do Autor 12 • A seu ver-na pista é claro de Benedid And~rson-sempre se pode abarcar com o olhar o sistema ''ci eorte e a cidade", e mediante uma metonímia apropriada, até mesmo o universo, mas um Estado Nacional; formação de restorecente? Somente a forma simbólica · Romance pode representá-lo, quase que num processo de invenção recíproca. Ato contínuo, Moretti p'!ssa à verificação sistemática da "imaginação nacional" em seus primórdios, estudando,a "invenção" da Inglaterra nos romances de Jane Austen. E invenção igualmente na acepção nada óbvia: de que para os seus contemporâneos o alcance especial de seus I2

Ainda que sobriamente, Moretti se apóia na teoria dos sistemas mundiais (Wallerstein, Chase-

Dunn, T. Hopkins etc.), e também no esquema de Charles Tilly (por exemplo, Coerção, capital e estados europeus, São Paulo, Edusp, I 996), no que se refere às trajetórü1s de passagem das lealdades locais

para às "nacionais"- um sistema: inédito de integrações e rejeições, mais abstrato e enigmático, e que assim carecia de uma nova forma simbólica parp. ser entendido.


romances era algo de escassa evidência, de sorte que foi preciso. um ·delicado jogo de andaimes para que tal espaço fosse aos poucos fazendo sentido--e um "sentido" que- se apresentaria enfim como "npcional". A seguir~ uma reminiscência .de achados conhecidos nossos. Por exemplo; um ou dois mapas-·-. entre ·vários-.- representando os lugares em queprincipiam e.terminam os enredos, em geral a residência da heroína, para os primei~ ros, e a: do futuro marido, para os segundos, e de tal modo conectados que as mulheres passam a se sentir seguras, ''emcasa'', numa palavra, quando se deslocam nessas viagens domésticas, que logo vão assumindo proporções ''nacionais"~ Nada mais nada menos. do que mapas· de verdadeiras "peregrinações" que vêm a ser tais·"jornadas de s~dução'', e~­ trelaçando a aentry provinciana: a algo como urna elite nacional ímm mesmo terdt<:>.rio demarcado por um mercado nacionàl de casamentos; mapa~ portanto de distâncias mé<:lias e viagens cujos custos sentimentais se pode avaliar, literalm~nte uma rede de intrigas "casando" pessoas de diferentes locali9ade~. ,.. Até aqui a resenha, como combinado. E pelo caminho, algumas insinuações, E. hora de desenvolvê-las, invertendo o raciocínio. Pois vimos até agora mediante quais ...práticas não planejadas-das peregrinações coloniais ao senso comunitário do ato de ler-·-·. tornou~se social e historicamente possível a representação de uma.cotimnidade imaginada, nurria palavra, tornou,se possível "pensa;"a naÇão. Digamosque se trata ago:ra de tirar .as aspas e encarar .o,cáminho oposto: quem sabe não é essa comunidade de . "outros" imaginados na forma de uma "nação" (que já sabemos não ter uma realidade substantiva) que simplesmente-ou melhor, modernamente· torna possível essa autoregulação silenciosa na cabeça de cada um qu.e chamamos pensamento. Enfim , uma cotn:u~ ·nidade política imaginada e implicitélmente imaginada como soberana e limitada pode muito bem oferecer umaimagem fiel e conforme do ato de rifletir. ,.

Paulo Eduardo Araátes é professor aposentado de filosofia da. FFLCH/USP e dirige a

coleção Zero à ESquerda (editora Vozes)


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/ .'


Hai-K眉 de la Utop铆a A Eduardo Galeano

O poema, dito p~lo pr贸prio Fernando Birri, fecha seu filme 路che: M~rte .de 1t;~ Otopia? (Argentina/ Alemanha, 1~997)


La Utop.ía·está en ·el horizonte. Un truq,o del Destino. Si camino "Dos ·pasos., Dos pasos, se me aleja. Y si un ·paso·camino '· Se me _aleJa .cien pasqs Para·. qué : sitve~ ·digo, Entonces la Utopía? Para esta sirve, .digo, Para.seguir Y se.guir.caminando, :Mi amigo·. .

Fernando Biiri


2 55 De gestos e políticas: utopias realizåveis—ligeira ]entrevista[ com Lula


O momento atual do Partido dos Trabalhadores (PT) é um bom mote para abordar a idéia que o seu presidente de honra, Luiz Inácio Lula da Silva, tem da palavra "utopia". A reconfiguração do partido, não apenas no lugar de oposição ao governo, mas com um projeto de governo, transforma sua posição política e revela sua maneira de ver o futurc, . Já nos anos I 970 as utopias de Lula eram utopias realizáveis. A construção da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e do PT passaram de um projeto inatingível para o plano das realidades concretas. A formação de um partido e de uma central sindical que pudes sem organizar a classe trabalhadora ensinaram o que Lula chama de "convivência democrática" entre diversos segmentos políticos, muitas vezes com interesses contraditórios. Assim, diferenças e conflitos entre os fundadores do PT uniram-se em prol de uma causa . Cada utopia, um passo: o que parecia inalcançável concretizava-se. Foi a partir dessa noção de utopia que Lt,Ila iniciou sua entrevista com Florencia Ferrari, Renato Sztutman, Rose Satiko Hikiji, Silvana Nascimento e Stélio Marras, em uma tarde

de abril de

2oo 1,

no Instituto Cidadania, em São Paulo, do qual é também o coordenador.

Apesar da interrupção da entrevista por compromissos, viagens, reuniões e debates, decidimos publicar esta parte inicial, que se prolongou por pouco mais de cinqüenta minutos, e apresentar, ainda que de maneira fragmentada, rápidas reflexões sobre as utopias gue permeiam as preocupações políticas e sociais de Lula, desde o início de sua carreira como sindicalista até o período atual de campanha política para as próximas eleições . Uma semana d epois de ter se pronunciado no seminário "Socialismo e Democracía", organizado pelo Instituto Cidadania, Lula reafirmou não acreditar na idéia de construir l!lm proj eto socialista de maneira unificada e tampouco na idéia de uma revolução, no senti!do clássico do termo. Para ele, hoj e, o socialismo deve ser compreendido como um processo longo , a ser construído dia a dia, a convivência democrática, preservando as diferen~as. O proj eto de uma nova forma de socialismo acompanha a idéia de uma revolução cultural-

não uma ruptura abrupta com a situação social, política e econômica atual, mas uma

transformação radical e em longo prazo das práticas, dos gestos e do pensamento. Levaria essa forma de revolução à construção de novos tipos de organização social?


~ais foram as utopias que marcaram sua vida?

Acredito que a utopia está para o ser humano de acordo cOm o estágio de desenvolvimento que a pessoa está vivendo, um estágio político. Possivelmente, a grande utopia de um companheiro que dorme debaixo do viaduto seja conquistar o direito de comer três vezes ao dia. Muita gente pode dizer que esse homem pensa pouco, pensa pouco para quem está comendo três vezes ao dia. Mas, para quem não está comendo, já e um sonho impossível de ser atingido. Consegui concretizar algumas coisas que considerava utópicas em determinados momentos e consegui transformá-las em realidade. Por exemplo, eu tinha uma

verdadeir~ alucinação, quando assumi o movimento sindical, em I 97 5, de fazer uma greve . Chegava a ser quase uma obsessão. Eu achava que jamais iria conseguir realizar aquele sonho. E, de repente, nós estávamos fazendo, depois de três anos, a primeira grande greve no Brasil. Em determinado momento depois das greves, eu tinha a utopia de organizar a classe trabalhadora politicamente. Era muito difícil organizar a classe trabalhadora em um partido polftico, ate porque não havia tantas experiências nesse sentido entre os trabalhadores. Em I

980, já tínhamos criado um partido político.

Em 19 7 8, fizemos um congresso no Guarujá- um congresso de metalúrgicos-e a utopia daquele congresso era construir uma central única de trabalhadores, num país em que a legislação sindical não permitia que houvesse uma entidade geral para juntar os trabalhadores. I:"m ·r 98 3, fundamos a maior central sindical da America Latina . Eu penso

que o ser humano consegue realizar várias utopias em determinadas fases da sua vida. E e esse conjunto de cohqtiistas que permite que a gente, um dia, alcance uma utopia, um mundo melhor que a gente sonha construir no Brasil e no mundo. Digo. sempre que um nordestino que consegue ultrapassar os cinco anos de idade sem mdrre'r de fome já realizou a grande utopia da sobrevivência. Depois, para m.im, diria que as coisas acontec~ram ate um pouco por graça de Deus e um pouco por causa de milhões de pessoas. E, em

um determinado momento, uma força conseguiu juntar todo

mundo em torno de algumas coisas . Eu penso que, ate agora, as duas coisas grandes que nós realizamos foram efetivam ente a construção do PT e da CUT. Se formos analisar a história


do século XIX, não tem em nenhum lugar do mundo um partido com as características do PT. Não tem . Há o partido comunista russo, que surge depois da revolução de 1917, mas não se pode dizer que foi um partido nascido da classe trabalhadora e dirigido pela classe trabalhadora . A nossa grande realização foi conseguir fazer um partido político que estabelecesse uma cultura de convivência democrática na diversidade. Algo que não estava escrito em nenhum livro de ciências políticas dos mais importantes sociólogos que já tivemos no Brasil. Não sei se o tributo foi do Partidão [Partido Comunista], mas nós conseguimos fazer aquilo que o Partidão não conseguiu fazer. De repente, o PT conseguiu juntar trotskistas das mais diferentes ramificações, que nem se olhavam na cara, maoístas, cristãos, ateus ... De repente, c~nseguimos fazer uma Torre de Babel em que as pessoas se aturavam, mas não com facilidade . O PT é um exercício permanente de democracia. Pensando no socialismo como utopia, existem duas dimensões: a dos que sonham e aquela presente na obra de Marx, a de uma tendência inexorável ...

Eu tenho dúvidas sobre o inexorável. O inexorável é forte demais. O socialismo nunca será uma dádiva de Deus, construída por acaso. É preciso entender o socialismo com os defeitos e as virtudes do ponto de vista de quem está vivenciando o socialismo. Tenho tentado polemizar esse debate porque acho que, para educar as pessoas, você não tem que vender as facilidades, você tem que vender a realidade. E a realidade é sempre muito mais dura do que a mentira. Quando você observa a União Soviética-que foi o país que fez a primeira grande revolução e que se transformou .num modelo de um país socialista, com todas as virtudes e os defeitos-depois de 87 anos, percebe-se que não se tinha construído o essencial.

É uma bobagem imaginar que o ser humano se contente com educação, saúde e comida . O ser humano tem outros valores, que são diferentes de um para outro. O socialismo não pode ser impositivo, algo que um partido ou o Estado pode criar, mas uma coisa cultural da evolução da espécie humana. Você faz a revolução socialista para criar um outro homem ou você vai primeiro criar um novo homem para ele criar o socialismo? Se você for hoje conversar com Fidel Castro, ou com qualquer dirigente que fez a Revolução Cubana, eles

26o


vão dizer que o socialismo é um processo. É um processo que já está lá há quarenta anos e que tem como um dos grandes trunfos a boa qualidade da educação, da saúde e tal. Mas para quem vive como nós, no mundo ocidental, numa democracia, existem problemas! Tem problema no mundo sindical, no mundo religioso, no mundo partidário. Eu não tenho

uma utopia de construir o socialismo com um partido único. Não tenho uma utopia de que o meu partido seja o tutor da sociedade. O orientador de tudo que a sociedade tem que fazer. Não acredito nisso. Acho que a grande utopia é a convivência democrática entre pessoas que pensam diferente. A grande utopia é você fazer com que as pessoas respeitem os que pensam antagonicamente, ao estabelecer um modus vivendi que se permita viver com tranqüilidade. A utopia que eu tenho de socialismo é a mais democrática possível. Quando alguém ainda hoje fala em ditadura do proletariado, digo que não existe a ditadura do proletariado. O dia em que a maioria chegar no poder é a democracia levada às suas últimas conseqüências. Eu me lembro de uma metáfora de um pastor que estava tocando seu rebanho e veio um lobo para comer as ovelhas. O pastor meteu o cacete no lobo, o lobo correu, e as ovelhas ficaram gritando para o pastor: "Meu libertador, meu libertador!". E lobo escondido ficou dizendo: "Meu ditador, meu ditador!". Ou seja, o ideal seria que não fosse nem um nem outro. O idea:l seria que se pudesse estabelecer uma convivência pacífica entre o lobo e o carneiro. Mas se você não pode fazer isso, tem que ferir os interesses de alguém e decidir sempre . com a vontade da maioria. O' PT tem como horizonte o socialismo. Mas o PT sabe que o socialismo não será construído por medida provisória nem construído em pouco tempo. Construir o socialismo significa construir uma sociedade em que a riqueza produzida seja distribuída de forma justa, para que todos os cidadãos tenham acesso aos bens materiais, à educação, à comida, à saúde, à moradia. Já houve uma mudança no meu discurso. Eu falei de distribuição equânime, não falei de igualitarismo. Por quê? Nós temos que entender a diferença do ser humano. Eu, por exemplo, trabalhei I 7 anos no torno. Tinha um que fazia trinta peças, o outro fazia vinte, o outro fazia quinze. Então, era justo que aquele que fez vinte ganhasse um pouco mais do


que aquele que fez quihze; porque isso seria Um estimulo para o que fazia quinze fazer pelo menos vinte, não é isso? Se você não fizer isso, a tendência é aquele que fez vinte baixar para quinze. Dai o socialismo ehtta em parafuso porque ele não produz a quantidade de bens que a sociedade precisa para ser distribuída para todo muhdo. O ser humano é um ser eminentemente competitivo. É bobagem imaginar que se possa evitar que os seres humanos compitam entre si. A gente compete na escola, compete para entrar numa faculdade. Você pode ter uma classe com cinqüenta socialistas, tem um que estuda mais do que o outro, um é mais interessado do que o outro.

É possível pensar em um socialismo ainda fundado em uma revolução? Em que sentido pode-se ,falar em revol~fão, hoje?

Não necessariamente. A Nicarágua fez uma revolução e eles ficaram dez anos no poder e não teve nada de socialismo. É uma revolução cultural, uma revolução de método,

é uma revolução de comportamento. Quando se fala em revolução só se pensa em revolução armada. Mas há vários tipos de revolução. Por exemplo, quando o PT ganha uma cidade e adota o orçamento participativo, está fazendo uma revolução. Ele está garantindo que a parte pobre da população possa participar de uma reunião, definir onde e como será gasto o dinheiro da cidade e definir as prioridades. Isso é uma revolução. Uma dona de casa, depois de duas ou três reuniões sabe definir claramente quais são as prioridades da sua cidade. Então, quando o PT ganha uma eleição, é a garantia de que toda criança tenha oportunidade de ir para a escola. No Brasil, isso é uma revolução, é um gesto importante num país da América Latina. Em Cuba não seria mais, como não seria na Suécia. A Revolução Cubana, hoje, não depende apenas dos cubanos. Lamentavelmente, Cuba não tem tudo e nenhum país do mundo tem tudo para conseguir sobreviver sozinho. Agora, você só pode fazer as coisas de acordo com os seus próprios recursos . É exatamente como na sua casa, onde você só pode ter aquilo que o orçamento da sua casa permite. Se tentar dar um passo a mais, vai ter que entrar no FMI para pedir dinheiro emprestado e vai quebrar.

Nós não temos que esperar um partido fazer a revolução, nem ganhar as

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eleições, nem fazer o socialismo. Mas podemos fazer o socialismo no nosso diaa-dia. Seria tão bonito se a gente conseguisse fazer com que todos os estudantes brasileiros que tiveram acesso ao saber pudessem dedicar uma semana por ano para alfabetizar aqueles que não tiveram possibilidade ... Isso é um gesto socialista . Alguns poderão dizer: um gesto _cié solidariedade. Imagine se pudéssemos pegar todo quarto anista de medicina e fazer com que ele passasse a freqüentar durante três dias por m ês uma favela para dar orientação sexual para as mulheres ... Que revolução no comportamento que a gente estaria fazendo! Há coisas enormes que podemos fazer antes de fazer o socialismo. Podemos ir construindo passo a passo o dia-a-dia. Então, a revolução não deixou de existir...

É que antigamente havia dogmas. Quando fundamos o PT, a tudo o que a gente dizia que ia · fazer, as pessoas retrucavam: "Ah, isso não adianta, só quando vier o socialismo". Ou seja, isso é um atraso. Você não pode ficar sentado numa cadeira esperando o socialismo chegar. Você pode ter um comportamento socialista todo santo dia, tratar bem os outros, r espeitar os outros, ajudar os outros, tentar discutir igualmente com as pessoas. Imagine se milhões e milhões de pessoas pensassem todo dia como tornar o mundo menos sofrível e mais harmonioso do que é hoje. Como é possível ter um comportamento socialista do ponto de vista do empregador? Sem dúvida ele está se servindo do trabalho do empregado para obter lucro. Como pensar em uma mudança na relação capital-trabalho?

Do ponto de vista econômico, você pode pensar diferente . Nós vivemos num regime capitalista mas tivemos e ter emos sempre exemplos extraordinários: centenas, milhares, milhões de pessoas trabalhando em sistema de cooperativa, no qual o resultado do ganho deve ser distribuído de forma justa. Então, m esmo num regime capitalista, esse trabalhador não vai ter a mais-valia porque o resultado da produção é dividido entre todos. Esse é um dado para tentar levar as pessoas a pensarem soluções diferentes. Não tem coisa pior no mundo do que não ser forçado a pensar.


O -grande benefício da Revolução Russa não foi para a Rússia, foi para a Europa _OcidentaL Nunca ostrabalhadores do mundo tiveram benefícios tão grandes como ostrabalhadores e':lropeus depois da Revolução Russa. O medo do comunismo russo fez com que, primeiro, houvesse muita organização ·dos trabalhadores e, segundo, o governo e os empresários cedessem com medo de perder, com medo de que o comunismo ocupasse as suas praças. Hoje, eu nâo .fico nervoso quando vou a debates. na Dinamarca, na Suécia, na Finlândia e os trabalhadores não pensam como eu. É porque ele~- têm uma renda per capita de 25 mil dólares por ano. Eles têm. acesso a coisas que eu não. tenho, não podem pensar como eu penso. Eles pensam a partir do que elesjá conquistaram, e não foi de graça, não. Os suecos, pára chegarem ao estágio em que estão hoje, tiveram praticamente uma revolução popular no começo do século.

_

É muitO cômodo, e até falta de informação, dizer tomo ofensa que alguém é social~­ democrata. No PT,.para ofender uma pessoa, a coisa-mais fácil é dizer: "Você é um social-democrata'.'. Não se pode ter a ilusão de que é possível te~ um estado de bem~estar soçial para todo o pl~Qeta Terra nos njoldes em que as riquezas do mu~do são .exploradas,. transformadas e distribuídas hoje. No atual e's tado tecnológiÇo, no atual estágio de exploração da~ matérias-primàs, para gara~tir que cada habitq.nte do planeta tenha? padrão de vida de um alemão, seria necessário que aTerra fosse três ve-. zes'maior. ATer~a não vai cr~scer, pelo contrário, a tendência é que ela ~eja vítima ~a destruição. Neste século,~ questão ambiental deve ganhar uni peso enorme. A preservação pode garantir uma maior cÚs.t ribuição para todo mundo; _a ~i~tribuição gradativa da riqueza produzida. Eu, como terceiro-mundista, não m e conformo que o povO pobre da América: Latina, da África, da China, não possa ter um ar-condicionado ou um carro. Não há-en er gia no mundo para produzir um ar-condicionado para cada um. Hoje, quase dois terços da população humana estão predestinados a ser pobres e a não ter acesso às coisas a que todos nós aqui tivermos. Acho que essa será a discussão deste século. Se será com o nome de socialismo, de solidariedade, eu não sei. Também não m e importa o rótulo. Me importa conquistar o objetivo.


Como articular a idéia de solidariedade e a emer9ência de morimentos sociais do terceiro setor,

das ONGs, com uma proposta do Estado?

É um equÍYoco querer discutir o socialismo hoj e nos moldes em que se discutia I c;o anos atrás . Os aYanços tecnol ógicos foram tantos ... Havia um tempo em que a gente pen saYa assim: a classe operária Yai chegar ao pod er e quando a ela chegar ao poder haYerá a ditadura do proletariado. Veja, hoj e n em a classe operária é mais o que era há cinqü enta anos! Hoje,

a classe operária tal como ela era pensada, o trabalhador com macacão, dentro de uma fábrica, com carteira assinada, com fundo de garantia, registro, é minoritária! Então, o mundo do trabalho também mudou. Eu brinca,·a outro dia com o seguinte : em

I

9 78, era charmoso ir na porta da Volkswagen e dizer "peãozada daqui, peãozada de lá" .

Hoj e , a m eninada já não aceita isso, não. No m eu t empo, quem tinha um diploma técni co, como c u, era o bambambã da fábrica. Hoj e , essa m olecada já está fazendo universidade . E eles quer em outro tratamento. A pala \Ta "peão" já não tem o charme que tinha em

I

97 8. E isso

ocorre também porque surgem no mundo outras organizaçõe s. Na França, hoje, as ONGs são mais fortes que o sindicato, apenas I o% dos trabalhadores e stão sindicalizados, o que repre senta muito pouco. Há outros tipos de organização que conquistaram mais credibilidade da sociedade do que as Yelhas institui ções. Na Itália, por exe mplo, o Berlusconi (ele é o SilYio Santos de lá) ganhou uma eleição negando o partido político. Criou um monte de ligas em que o grande tema era criticar o partido político, e o cara chegou à presidência. Eu dou muita importância para as organizações populares. Quanto mais tiYer m e lhor. Eu acho que essa pluralidad e de organizações nle a p ena para consolidar o pt-ocesso de consci enti zação da sociedade e o fortalecim ento da democracia. Hoj e , um resultado é o Fórum Social Mundial, qu e aconteceu em Porto Alegre. Eu faço política há muito tempo, já fiz comício de um milhão de pessoas, mas , do ponto de Yista da organização d a sociedad e , nunca tinha Yisto uma coisa tão forte como no Fórum Social Mundial. Alijai uma colcha de retalhos, cada um com o seu ponto de t·ista, suas demandas... Seria possírel ter uma unidade de projeto em meio a essa di versidade?


Há uma coisa unitária. Aqueles que estavam lá não concordam com a globahzaç_ão tal como ocorre no mundo hoje. Não concordam com as injustiças sociais que são feitas no mundo hoj e . Os empresários

é que não concordam ...

Mas é claro! É importante que haja muitos que não concordem. Nos temos que entender que nem todo empresário é igual, nem todo estudante é igual, nem todo socialista: é igual, nem todo cristão é igual. Até os dedos das nossas mãos são diferentes. De vez em quando falo pa~~a· os companheiros: Deus queira que haja milhares de empresários participando lá com' a g'e nte . Significa que se poderia sonhar em não ter mais trabalho escravo nas fazendas, _n ão ter mais exploração de m enores . Significa que se poderia ter um grupo de empresários p ensando ein diminuir a margem de lucro, as diferenças do salário que é pago. Em São Bernardo, tinha um empresário chamado Salvador Arena, que morre u na greve d e I 98o, quan_do fom9s pre~ sos. Ele foi o único empresário d e todo o estado de São Paulo que negociou a pauta·que queríamos . Então, sou obrigado a dizer que esse empresário é diferente do Mário Amato. Então, obviamente, tenho que tratá-lo diferente.' Hoj e há empresários que assimilam mais a necessidade de melhorar a distribuição de renda no Brasil. Em I 976, havia empresários que lutavam por democracia. Hoje, falando para um jovem, parece que não .t em nenhuma importância. Mas, em I976, era muito importante t er José Mindlin, Bardella, falando que era preciso democratizar o país. Eis uma pauta comum: democracia ...

É possível uma pauta comum. Num primeiro momento, não estávamos preocupados em tirar uma pauta porque tinha um milhão de movimentos e cada um queria uma coisa. Você não podia comprar .uma briga para construir o seu documento. Tinha que ser um documento genérico, não dava para ser um documento específico. Ninguémpodia achar possível fazer isso num primeiro momento. Em julho de I 990, o PT organizou a primeira reunião do f6rum de São Paulo, que reuniu todos os partidos de . esquerda da América Latina. Da Argentina, havia doze organizações de esquerda que não conversavam entre si; da República Dominiéana,

266


havia oito que não conversavam entre si. o processo 'de convivênc~a foi permitindo. que se Gomeçassem a tomar algurr~:<;ts dêcisões.conJuntàmente.. O Fón.Jm Social M:undialpreçisa ter esse cuídado. Se formos para lá: in1aginando tiràr um programa único, ô Fórúp1 Social ·qeíxa de exis~ir..E)e tem que 'ser do jeito que é porque _ a.sociedade está <?rganizada assim ;.

Çôlabor6~ p~ra a elaboração d~ ·p~u'ta Valéria M~eeâo. Florencid Ferrar i " Renato ' ~ztutman, . Rose S(liiko· Hikijl, Silvana Nascimeáto, Stéb.o·Martas Ya]ér{a Macedo são integrantes do corp~ .edi~ torial da Sexta Feira .

e



No final do

curta~m etragem Ilha daÇ Flor~s, o ,l)iab cél;ebrcfiime do ~i~ea.'>1:a gaúcho Jorge

Furtado, há uma citação do

CanCiol]ei~ó

da 'Jncenfiâêq_Çia·, (_[-~ _Cecília Meireles: "Liber1ad'e é uma,

·. palavra que o sonho humano aliment_a, qúe nãó há rlin~!Jê m q'ue exph_q ue e hingu_~ rri que não entenda". Tah·ez essa defini<;:ão possa serystehdkla:aopo;der(qu.àutopia) do cinemà de rriostr.ar,

explique..e ninguem .que pãó , ên~enda". A0

criar ou reinventar o que "não há ningüén). que. menos essa é a sensação com. que héa o ganhou dezenas de prêmios

êsp~ctaclor de}lha . da s~

Flores, Não,por ac;;tso, 'o hlm_e

naçión~is: ~ tntetnaciori~is ~\ lai_l.çfiu. Furtado

eminentes r ealizadores nos torma.t os curta.e Furtado treqüeritoucursos

d~

como um .dqs mai·s

rriédí.a ~ :fTI~.t:tage[Il.

m e dicina,jorf1t.flisl;1JO.·,

~r.re~

plasticas .e f>sicoiogia, sem

que tenha concluído nenhum. Com9 driea_,~ta;·sualrá}etót;facgnfHhdf: ~~e éoin. :a cta prodUtora Casa de Cinema de Porto Alegre , ;criad~ E:: 111, deze mbro de.t9 8 7

e:responsáveJ·por hlme s., ví ~

de os e programas televisivos, múitos ~ele~ ~prenjiad9s em f'esti\rais no Brasil e nó inun~!o ..O cineasta também está associado ao núcleo çqordenado -por, Gue l Ar.raeS' na Rede ·Çlob9 de teleYisão, no qual trabalha como diretor~oirigiu a>minisserjê Luiw 'f aliente e episoclios da·sé de Comédias da vida privada- · e como rc)teiri'stai___das

mini~sér~~ s Ago!tq.,,

A invenção do Brasil, além das séri es CorTié,q1dhia.vid.aprivadà

Mef!Jóha}de

Maria: :M~ ura,

e Ds norrhajs; ehtreoutra.s . .

Seja no dcleo ou na película, o- cqtlcli~n,o ~· 1:1111 rej:na prívilegi~~o em·'Seu trabalho. Fur~ tado cria situações e pessoas comuns par;l.revelarque .(iªJ"i.existem sit\_làções·;e pessoas co111uns. Sua obra produz essa espécie de encantanient:() a!J iaz ex ~om: que aquilo que lhe

o .esp e cp~Çior pass~

a estranha}'

e familiar (inclusive SeUs ptÓpPiOS val<)re§ E>CÓStUmes), <;lÓ f)à~~o . qlle pe~Cebé

familiaridade no que lhe era estranho: Mais üma Ye:z;-!Jba.~ dâs.Fló i:es é co desse artifício.

o subtítulo do film e b~rrt que

pód·erja.·

um exemplo emblemáti-

ser "1\ odísst~ ia (le _um ttqm.ate", pois

· começa (depois de letreiros di zendo _"Éste n';lo é U_rrÍ fihrie deo:fis:ção'!, '~Existeurri)ugar chamado Ilha das Flores", "De us não existe") c~)m múa imagern d(fgl?bo t errestre som da trilha sonora de

2001,

Uina odissé(a no dp_açó

("A~simJalava

suhn IiQ _espaçt/ao ,

Zaratmtra" de: J3.ichard

Strauss). A partir de então, tem iní.cio· o pret enso _Joç:ument~.r'i.o sobre a traj ~ t6riã ~~e- um te>,ma te, desde sua plantaçao,.passáJ)dOpot' seu transporte , cOm erçializaçao;.ç onsumo ec ~cgtact.açao r quando(· oferecido como alimento aos porcos, qu e o recusam. Quando se-pensa qüe chegou

2]0


-~?iinai d~ se-~ ~tiherátlb, 0 totnate e disputadq p.ordezenas de homeils; mulheres. ~ crianÇas que buscamalim~-nto-río 1ixãó.pfox}riw à .càpitat'g~úcha, ~ham.adó Ilha das Flores. Corno.se ~stives~ s_e explican_d_o:esst. estranho mundo -a um e:Xtratetrest~e, o _locutor vai defirÚndo r:Din~ciosamen ~ te, e 2-órn:s_upósta ·<;bfdividade,·t~d<')s os'elem~Ótqs,' qÜe aparece~ natela: o que é um tomate;·o" homem, p -dinhein?, ~s flores','Qs p~rcos et~. No de~Ble dessas <ÍefipiÇões,_que en} princípio ~e' riam. óbvias,á prdem das.coisas pa~sa- a s~r qÚest}o!J.ada-é r~Y~l~·seu _c~ráter arbitrário ou injusto: O ilr.tif{ciosla linguagem_\'docu~.e11tar' ~ Yargamente útÍlizado pel6 cin~asta.

Esta'nào é

a sua vida, outro e;xetnpl(); ·tirr·como protagorií,s!a úm~ ·s.e ~hora 'cómum, ~-s~olhida_ ao acaso ~q-~subúrbí6 d·e ·_~orto Alégre, ec;~4 casos"ipbt~ -.~ ~ua. vi~da -acaba se pa~ticul~rizanclo ~-os_

que

e

olho_s cio ~spec~ac!,m>As injustiças edesigualô(ld~s .sodai'S ta:rnbéni· s~o matéria-prima para vários-outros argumentos; cqmo ép ·ç;.~só de O diq imqve Doriirq] en~arov a guarda. N~ma rio ite quente . de :v e~.ão, o_prisionéirô. ~égro DotÍval desej~ ardentemente, tomar _tpn ban.h:~)'. Par~ is~o,acába.

tend~

quy. entr~r e m;conflito ~com

Ângelo and~ sUmidO, o, reencor/tro

~rP 'sold~do,, um .cabo i Um ·sarge~to e um t~nente.' já

em

ieq?ís~vell1b~ ~fnigo~'é rri~diaélo·, ei~\iabÚiz~do, em razão \ las

_grades, muros e.portões que:po-\roam· c;_s ç:entros'urhanos, ·, 'o -Outra par1:Íçt'Üatidadé~o çin~m,a dejq;g~: furiado -~ ·a ~xploração'criativad(js recurso~ cinefuaf()gráfiços; .6 c.inem~:·~ .s~nhq,r. 4~;;f~q:ipb" :·e.,~'~irí lf~tbo,s,a; .cócdi.rigido·pbrA~a L~íz~Aze~ .ve~(),· um_h? l1,l.em 'tetr<Íc~de 3 s·; an~~~:ó'm : _~ p,r~pbsito de iru~-~dir ó g~l que dert~tou qBrasil na Copa do' Nlu~4o. ele 1 9

so:'destruir1?o se~s ~qnhos. sfe'i~'rârisia e acaqando ·com a carrei~~­

·do gol~irô ~Barho~~.· Nãô s~ :9 t~~JiO., . ~as besp~ÇO -~ hidi~ament~ m·anipulaclo. nD ~pisódio ·A

~strada: Jo filme-Felicigóde l :..;:p.or rn~i6. ·d.·a m8ntàg~·n1. p~r?-lelâ; éêrias ele c±oú~' sa~~is num carro · d~:' passeio t'umo a. Gni g'~stpso fin'af de ~em;na n~m 'síti() ;ão· alte.n iadas ~o~ cena~ · e:le ~rr{ imenso,camip:hã'o·serri' fr~jo:Iudo Índici q~cos destinÓs dessas pe rsonagens ü~iaru se cruzàr de·

trtQ_~lo yi-1gico ná Úti·ada': M;is,p<? destino q~em manda e o diretor. Por fim, O sanduiche 'ta!llbem

brinca com a linguage~ dp -~i~1erria abord.a pdo en contros e' desencol!tros amorosos , <:i~e, por · s~;:t_v~z,_são o,m o.t e do :primeir~_ l6nga-metragem de Furtado, que_deverá ser exibido no início .de 2 oo? : ~as es~a ·é uma iong~ historia. .. '. .· . ' Esta entreústa foi reaJiz~da, viae-mail, por Valéria M~eedo, em

24

de agosto de

2oo I .


Em g eral, seusfilmes procuram inw riw dar e)o u COI]wver o esp'éctadqr;se] a diri&indo-se.diretamente · .

.

~.

.

·a ele, sej a construindo um ~iscurso crÍti co .·e piH vez es ind ig n ado da reáli dade social . Você acredj ta

no potencial do cinema de tra niformár q espectador e, assi;n,, traniformar a-reali dade?

Acredito gue o cine~a, pela sua magnífi.ca: !~pressão de realidade, é a-linguage m d e m ai()r p0der ele convencimento , em razão da utilização gue fa.i de elem entos ele todas as útes (teatro , literatura, música , fotogr afia etc.) e também por exig ir poucos pré-conheCim entos do espectador. A convi vê ncia, m esm o gue tempor ária e par cial, com muitas o utras Yiclas, o u com um uniYer so poeticam ente impregnado de idé ias , um U!1iver~o inteiram ente nm·o construído pelo cinerná, é .

'

.-

~

.

:

.

· capaz de transfo rmá r o ·espectador. Po r enguanto , é ess~ o n-o sso li~1i te . Tah ·ez

o gue r ealmente buscamos como gualguet

.

a nossa utopia,

çriador, seja roubar da luz o fogo da criação para

entregá-lo à criatura. ~ais as utopias mais belas e con tunden tes q ue

ocinenw já prod uz iu el~u retratou?

Acho gue a m ais bela utop!a já produzida pelo cinem a fo i' per cebida, já na sua criação, P.? r · um jornalista do La Poste, em 30 de d àembro_ele r 895 (infe lizm ente não assinou a màtétia). Falando sobre a primeira sessão de .cin ema, escreYeu : "Quando esses aparelhos forem

entregues ao público, quando todos puderem fotografar os seres que lhes são éaros, não mais em sua forma i~óvel, mas em s e u movimento, em sua ação, em seus gestos familiares, com a palavra nos _lábios, a morte deixará de st;r absoluta''. Seusfi lmes costu mam ter w~á li ns uagenÍ mui tq próxima à do docum en tá rio. Qye alcance você at ribui ao cin ema defi cçÕo

~. ao documen~Ório cÕnÍo Ineio. de cqmpreender e iT'lteJ'pretar a reafid~de/

Pára começa;, não acr ed ito gue existam Íim ite; m uito clàrcís entr e a ficção e o documentário. A apreensão da re.alidade é uma utopia inalcançável, po rtanto, o gue 'impo rta é a narrativa , gue . pode ser artificial (fi cção) C) U não. A nar~atin art ificial firig~

dizer ~ verclàde sobre o .uniYer so' r eal ou afirma di zer a verd-ade sobre um uni\·e;so fi êc'ional; êontando com~"a suspens.ão .dá descr ença", a éumplíciclacle clocs.pect~d or. Na fi cç~o não há dúYidas, b uniYer so se lim ita à narrativa . Na nã.o ~ . ficção, com o dizia o Pasquim, "se ,~ocê não está em dúvida é po rgue fo i rnal infor mado". Ü út ra ·'

2 ]2


-diferença sensí\'el é que a narratiYa artificial permite.ao espectador "prese-nciar" acontecimentos da esfera pr:iYada. A narratiYa não precisa denunci_a r a p~esénça da ' câm ~ra, de modo que t~do denuncia ojogo ficCional; o que não diminUi a ficÇão com o "uma represBntação da l:ealídade,

e~ perspectiva , medi~da por uma'subj etivldade", como áfirma o crítico ~usso Pt1d?vkin. Ao con~ trário . Já no docume ntário a. presença da câmera altera ine\'itavelmente a realiclade . Pessoas reais, quando sob a mira de uma câ'mer~, agem de maneira diferente do que fariam na priyacidade . E o espectador sabe disso.Talvezos fatos narrados por um documentário acontec~ssem me.s mo sem a existência da câm era, mas certam ente não ácoôte.ceriam do mesmo modo. A dif~n~nça fundamentá] e~tre um~- e outra n:arrativa estaria no p~ratexto·, -que são mensagens externas que

cha~1emos isso dé parafl1me: os créditos, os atores, o trailer. É possível, é claro, subverte~ as 1:egr~s do par~fi1m~ . Como em Cidadào Kane, que inicia co_m um cercam o texto. No caso do cine.ma,

'falso documentário sobre um personagem de ficção, ainda que baseado num personagemreal; ou Bob Roberts, que afir111_a-ser um docun1entário ~inda que a narrativa- e a presença de atores conhecidos- denuncie o truque; ou Ilha das Flores, que afirma s~r um documentário mas, em muitos momentos, revela-se ·uma ficção. Esses '\ruques", elem~ntos de docuinentário inseridos na ficção-COJ:Tl o objetivo de impre_gná~Ja de "veracidade", não foram criados pelo cinema. Machado de Assis inicia seu Alieni sta dizendo que "as crônicas de Itaguaí contam que lá viveu ...". Itaguaí é uma cidade reaL Para não d~ixa1~ de responder a sua pergunta, acredito que tanto o

documentário·comoa ficção têm enorme capacidade de "interpretar" a realidade; mas acho que o poder da ficção é maior. Shakespeare não precisou de Freud nem de Marx para entender (ou inventar) o ser humano. A recíproca não é -verdadeira. D~pois de muitos a~os de cârreJra .com.o curta-metragÚta, você estáfin~lizando seu primeiro lonaa. Qya_is os principàis reéu.rsos e. limitações de um e_outr; formato?

As diferenças entre um curta e um longa com~çam p~ roteiro; passam pela filmagem e terminam

~a r ecepção pelo público: O curta sugere um r?teiro com uma idéia central (orte e clara, poucos personagens e _uma ·história cOntada em tempo lin~ar. Não -há tempo para aprese-ntar' muitos

per:sonagen~; eles tenderiam a se ~ornar esterei)tipos. É clifkil (mas não iinpossh-~l). estabel ecer


um tempo narrativo preponderante e

~nda

deixar claro os recuos ou avanços. Já um longa pe-

de personagens mais definidos, tridimensionais, detalhados~ e uma_história com mais caminh~s possíveis, variações de ponto de vista e_alterações de ritmo na. narrativa.

A_-_

filmagem também_é

muito diferente , o curta é. uma córrida de cem metros ràsos, um esforço concentrado de alguns 'dias, quase uma atividade anaeróbica. Um longa é: uma ma_ratona,·você acorçla todos os dias para filmar, durante dois meses, filma oito horas por dia e segue a vida r ealnos:horários de descanso. A ~ecepção do público é inteir_a mente diferente também._Um curta é visto pelo pú~lico. quase como um brinde, uma amostra grátis, algo que ~~e não esperava ver, -I!ã_o saiu d ~ casa para isso, não pagou para ver. O que vier é lucro. Um-longa é u,rrt produt~ tom valor .de.mercádo, com espectadores que pagaram o ingresso e esperam algo em troca. Qyal a pGIÚcularidade da Casa de. Cinema Qyal utopia de jazer cinema

erri

rdação a outros pólos cinematogrijicos no· Brasil?

o tem 'inspirado?

Talvez nossa particularidade seja cantar nossa aldeià, fazer cinemá (uma indústria c~ra e típica de grandes centros econômicôs) fora do eixo cultural, e isso no fundq do quintal de tim país de Terceiro Mundo . Acreditamos que o cinema é arte coletiva, de tur-~a. Nenhum de nossos filmes traz nos créditos a frase "um film e de ...", que considero um pouco ridícula. Filmes são trabalhos coletivos. Meus filmes são também os filmes de Nora Goulart (minha esposa e produtora), Giba Assis Brasil (sócio e montador), Fiapo Barth (diretor _de arte), Alex Sernambi (fotógrafo), Ana Aze~edo (assistente e sócia). E de muito mais gente. Como você analisa o papel da Rede Globo de tele visão na história recente e no quadro atual do país, no que diz respeito aos planos cultural e sociopolítico?

Precisam;s definir primeiro o que seria a "história I:ecente". Se a história r ecente é a democrati ~ zação pós-regime militar, diria que a Globo é uma grande empresa que raciocina na lógica de mercado e tenta, dentro dos seus limites, construir condições sociais que lhe sejam favoráveis. A análise do mercado de televisão sob a ótica do monopólio da Globo não faz sentido há bastante ·t empo. ·A Glo~o disputa cada ponto de audiência com muitos (e crescentes) competidores. E é,

274


de -longe, a televi~ão;que ~~is utiliza·atores, autores, diretores, .artist;:ts

e histórias br~sileir:as. A

per spectiva eque e~~a·competição se acirre com a aber~ura: do me~c::ado as e mpresas estrangeiras: Em algum n;omento ca uso u~lhe constrangimento trabalhar na emissora? Em algum momimto ela ·o . constrcmgel.! afazer .oú a não Jazer algo que çtuis~sse?

Essa é uma pergunta romântica:. Qu_alqÚer e;npresa que lh_e .pague ·salirio o :constrange éo'nstan ~ .

.

i.

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.

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-,

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.

.

tem ente afazer coisas que você !lão qver. Trab<,\lhar, por exemplo. Acho que tninha posi~ão na

Glo~? ' tr~balhando quase q\le ~.exclusivàm ente tom ·o G_u d Arraes, é bastante. priyiÍegiada. To# . . ,, indústria precisa ter ·o seu "departameQ.tO de pesquisa", .um setor que produza não exàtamenteaquilo que ela já sab~ q.ue o çonsumidOr quer (coin o as novelas) , mas sim aquilo qu.e;·em te;e, o '~ onst~midor .ainda nao sa~e que guer. É ~·essa (cada vez m~is) estréi~a f~f~a que -~ G~eJ se move. Há-t~unbém uma pouco lembrad~ limitaçã'a Eara o t.r~balho em televisão: ~ público potencial ~ de cerca de I so · mílhõ~s pessoas .. Nesse u~i.vers~, o_peicent.u~l de leitores , -~specta~ores de teatro I. consumidores de filmes artes plá-sti,c_as. é qiiase estatisticamente desprezhiel. o autor de tele_visão fala ~empre p~ra iun p~blico q.4e só v~ televis~o: Por i~so a.televisão é tão auto- refe~ente . E pÓr isso ·o valqr inqú'estion_áv~l das ad~pta.çÕes .1itedria;,';' aju_da:m a veU:der livros. Há tam:béin . as limit~ÇQ~S de,. lidgli~gem. Pa~à -Üm roteirista;.é -duro :~~crever· u.m.~ : Cepà ônde, po:r ex~mplo, um pe~igoso ba~cÚâ'Q :aponte··. ü~~ ~tmapara o seu rlvãl .e.· diga: "'Dartt:-se!". Aliás, éassiin qu~: os tradutores 'b~~silei~os legendam:os milhares de "fuckyou;, do cine~a americano. Os "~~sho~ les" viram "bal;>aeas", oi "~otherfuc_kers" virain .''sacanas" e ''k:iss .my-.ass" yira '''não ··~nche o s~~o" ; . . . . . .

.

.

.

:.

de

e

.

~

.

Você poder.io sintetizar seus p~Óxim'Ôs p/oj etos cin ~m'at?gréificos e anàlisá~los à-lu z de sua film ogrifia anÚ;,iór (quais as rupturas e "quais as co~tinuidades) ?

Estou faz endo,· no m omento.,· d~is longas. O p~i~eiro, Hou re uma vq dois verões, já está em fase de s~norização e deve fiÇa~ pr6~t:ó no inkib de- 2 o~ 2. o segundo, o hotnem:que ~opiava, .come'çou a ser filmado errqeterp.bro . HolfVe uma vez doi; ve.rõé;é U:cià 2omédia -i~minti~a com pe~so~a:gens

adole~céntes (o "ator pripcipal tem dezesseis anos.) .·o pr.oj:~ to ~ecebe~ um pr.êmià a; MinC pãra fil~es ' de baixo orçament;e foi feit; · e~ vídeo digital.. "É a histéi~ia de_dois garotOs de clas~e'·


m~dia-b~ixa qu~ passa~ as fériasri~l;ll~_ praiag~úclú, - ~ora_dét:tr!Porada. S_e~ m~ito ~ .{)_Üe fai.e~ nà p~aia vazi~, procuram diversão e; garotas:·E eri~oiú:r~w. kcontinhidadé em telação aos meús trabalho~ a~ter.iores aqui ~ ínaispéÍ; hu'i:n 0 t . e por ;a,lgull!a.s t~ntah':a~ d~ brinçar ·com a)inguagem cinerriatogr~flca. A ruptura ma{s .dara para mi~ é que ess~ é,, s~m dú),ida, 'p1eJ fili_'rte.'Inais "realista'1;.·Sé eu ~entáss~ classificar o ·h;me~ qrie ~Opiáva e;n um' gên~ro",'dírià qúe~é .ufuà c~média~n~éa­ r~mântica (acho que hoje vi;ou p~litfÇarti~i-Ite in~ofret~ cha~~-r is~o -de c~inédia '"rieg~a", i:n~s Tlã~ achei um borri sin<)hi~o ); se b~m que, nas )ocadoras, va(~cab;lr ri~ pra.teléirá<d~ ~',fiJjne: nac,:i;n~l'.'. Orot~iro foi escrito a. ·partir da .pe~soriage~ André, ·op~racior· de fÓto~opi~dor:a -numa páp~i~ria de subúrbio. É. um .garoto s~litário·, disper~i~o, intelig~'Íit~, _cria~iv~.' -triste, qrt~' sé r~fugiüu'.e.~ s,ua própria caheç~, seus desenho~, ·seu quartó, ,de _onde· 9hserva ~- vid~ de hinó~úl,o. Na~ .sirit? nesse projeto grançles ruptura~ em f~lação aos· me~~ otitr9s filmes, :lll~ pare2im~i~ COJDO uma radicalização de muita's outras c~isas: que já ~X.p~rÚnentei. Pela _ling~ág·~m fragmentada 1 pela 11fiS tuta de ficçã~ e documentaria; pela inclusão de d~senh~s ani~ados, pelo fluxo !desco~tÍm.lo 'do tempo harra~ivo; ~rripar~do -nu~ "lüpertex~o" da nar~.içã?; tal:ve~: sej~' o. mê~, filme .m'ais;-p~r~ç~do cmh 1lhq da .flore~. ~as m~ esf~rço'para riã9 inÍjt~ . ~ · ~ir.n ·~ésm~.' (às, yqes s~?m. suees~o ): pqr .fim u~ outro projeto qüé. d~~o: realiiar·:.6 u~ çlq:çum.~qÚfio.: c~ll}. .,Giba-·}\,ssis'.i3rasÚ; sobre iftídia·e dem~cr~ci~:' O títtilo:O po-~o e O e~ nóine dó''pqvo: . Qyajs as. per:speC'tivas doJ inemÇl no Bz:asi}?;" ··

que o Brasil tein . de melhor é·a sua d.iv~rsidàdéculturàle)s~q riunCa}~stêve)ãô rep~esenta,do ri~ çine~a como no ~t~aL~ome~to. Não ~~stp d6 e~ces~i;o p6,d~-í- do ~ei~dti tl~_4êÚ:rinihar

o

padr?es audioviwàjs·,.pode~; ~~esc ente gr~Ç~s i fógi~a m~~2a4,ológicó1 que .tomou ~o~ta d~ p~ís e das leis de incen~ivo à ~ultura: No futuro; ·êspáb que as 'novas t~cn,ologias .digitais démocratize'in o ~cesso i~ t.el~s : . . - .- . . Qyal ofuturo da llha das Flores?

e

Segue um lugar pobre _çheio de contrastes chocantes. Ç?mo o B-rasil.


Fiimoarafta O dia

em que Dorival encarou a guarda

(I 986; ·I4 min·.)

Barbosa ( I 988; I 3 min.) Ilha das Flores (I ~89;

I2

mln.)

Est.a não é a sua vida (I 99 1; r.6 min.) Estrada, episódio do longa-metragem Felicidade é.... ( I 99 5; I 7 Ínin.) · Ângelo anda sumido (I 997; I 7 niin. )

O sanduíche·(2ooo;

I

3 min.)

Valéria Macedo é integrante do corpo edito ria) da Sexta Feira. O cineast~ Daniel Augusto colaborou na realizacão destà ' ... entrevista .-


2 79 • inesquecível

Chico Lopes

Futuro


Uma idealização de futuro no cinema é sempre uma queda no paradoxo: idealiza-se com o espírito presente, fortemente alimentado pelo passado. Não se quer senão um certo modelo, corrigido, do que um dia se conheceu e se tomou pelo certo, bom e desejável. A novidade tecnológica passa a ser uma mascara para um desejo potencialmente reacionário de imobilidade no tempo. Os produtos da ficção científica no cinema estão, assim, inscritos nesse estranho panorama em que o futuro é ao mesmo tempo evocado e exorcizado. A projeção é deslumbrante, mas contém perigos, e o espectador não pode topar com originalidades radicais- assim, há sem.pre as máquinas que se descontrolam, os computadores vilanizados, as centrais informáticas habitadas por monstros dignos dos mais antigos pesadelos medievais, a banalização do inimigo. A distopia acabou por constituir-se uma vertente importante do cinema de ficção científica. É freqüente que o gênero apresente um futuro ameaçador e a luta d9 herói seja para conservar as condições de um passado idealizado e ofendido. Desde o ano de

I 9 8 2,

influente que Blade· Runner-

quando foi lançado, não apareceu filme de ficção científica mais

0 caçador de andróides. Quando se anuncia uma nova superprodução

do gênero, sua crítica e marketing garantem "um novo Blade Runner", assim como, há muito tempo, um ruído mais impressionante e qualitativo que apareçà no cenário do rock é logo classificado como "os novos Beatles". Muito antes de ser lançado, Matrix, sucesso marcante do gênero no fim do milênio, foi anunciado assim. E não era isso. Mas o espírito de Blade Runner o assombrava.

De volta ao fascínio Blade Runner, naturalmente, descende do seminal Metropolis, de Fritz Lang. O filme é uma produção

alemã de I 9 26, que se tornou um clássico venerado e reverentemente esmiuçado, embora um dia tenha sido considerado "o mais tolo dos filmes" pelo escritor de ficção científica H. G. Wells. Lang tinha ido à América e, impressionado com Na"va Iorque, baseou-se na visão dos edifícios para construir sua cidade futurista onde os ricos e hedonistas estão na parte alta e os operários e pobres, na baixa; e o amor fará a pouco plausível aproximação de um filho de milionário com uma mulher que lidera os operários . No filme, que o próprio Lang considerou depois "ingênuo", não se importando com a importância que os críticos posteriores lhe atribuiriam, a idealização mostra-se claramente co-

28o


mo uma operação ideológica destinada a abolir do conceito de "luta de classes" suas verôades mais ásperas. O movimento básico desse gênero cinematográfico- a construção de um futuro utópico visando remendar as falhas de um presente provavelmente insuportável- está ali, perfeitamente desenhado. Revendo Blade Runner, entramos no filme como num ofício religioso em que a música de Vangelis vai nos conduzindo a um futuro único: o ano de

2o 19

em que fogueiras explodem a

distância. A sensação é a de estarmos num lugar elevado, improvável fora do sonho, da imaginação, onde o que nos rege é o miraculoso mas é também o desmedido, o ameaçador. Estamos no olho do replicante Leon, examinado com crueldade por um policial que pretende descobrir, em suas reações, se ele é um ser artificial. No olho, está a cidade, com suas fogueiras. A viagem do monumental para o minucioso, do gigantesco para o Íntimo, torna essa abertura particularmente eficaz em termos de deslumbramento. As desm edidas estruturas arquitetônicas, desde Metropolis, arrancam-nos uma estupefação básica, ainda mais porque, estando na tela, são belas, não podem nos ameaçar e nos parecer simplesmente inumanas como fariam se estivéssemos sob elas, na realidade. Estetiza-se o medo e o fascínio do descomunal. Dentro dessas estruturas, pode acontecer tudo. Em obediência à regra do cinema, é preciso cativar primeiro, depois enredar. Se o fascínio foi operado a contento, qualquer inverosimilhança rião só é aceita como parecerá puro deleite. A ameaça converte-se em promessa. Dick Deckard, o policial, está fascinado por um enorme veículo/ outdoor que passa pelo ar anunciando as delícias de férias nas colônias de Marte. Los Angeles é um lugar desagradável e aquilo é como um cartaz do Havaí em um velho filme sobre detetives fatigados da vida soturna, sórdida, infecunda das grandes cidades de que desejam evasão. Ele próprio é um clichê completo- o policiàl (em outros casos, o agente secreto) que está temporariamente em férias e sente-se aborrecido quando é chamado para mais uma missão. Quando se dirige à chefatura de polícia, de onde o con~ vocam sem possibilidade de recusa (ele pode morrer; "ou se é policial ou se é gentinha", lembra-lhe o colega- "gentinha", mata-se; a tara policial corporativa está aí na culminância) , olha, e olhamos com reverência, encantados, os grandes edifícios através dos quais os carros aéreos (uma fantasia persistente na ficção científica é distanciar os automóveis do c hão, realizar o sonho de um trânsito fluido, eólico) vagueiam e zumbem como vespas douradas numa atmosfera de sonho. A chefatura


de polícia é, a seguir, uma realidade dura, seca, azulada, necrosada, diferente da luz feérica dos edifícios mágicos e pirâmides astecas lá fora. O que há é o interior claustrofóbico do filme noir, com o ventilador no teto baixo e o chefe de polícia gordo, cínico, desagradável, adulador. Diante dele, por mais que Deckard pareça resistir, só o que ele pode fazer é obedecer. Blade Runner jamais teria tido tamanho apelo e perenidade se não estivesse imbricado nesse

gênero de filme policial americano dos anos I 940 . O filme é amado principalmente por seu aspecto híbrido: é confortador transportar-se para

2o I

9 sob a garantia de que o que está se vendo é

uma versão high tech de Sam Spade (Humphrey Bogart) envolvido com uma mulher de condição ontológica indefinida (Rachei), mas que evoca Joan Crawford no penteado e nas roupas. Blade Runner, apesar de ter tido uma versão do diretor em que se elimina a narrativa em

?iJ, essencial para a

sua configuração como um sucedâneo do no1r, é melhor na versão comercial, a primeira conhecida pelo público. A narração em cjJ é um artifício precioso para criar a atmosfera pela qual se tornou cult . As frases típicas dos detetives durões , cínicos, mas secretamente atormentados pela consciência

ética e pelos afetos românticos, caem na voz de Deckard como luva. É o velho sobreposto ao novo: aquela narrativa vocal desiludida, autodepreciativa, melancólica, paira sobre um futuro a um só tempo esplêndido e arruinado e nos guia confortavelmente: pode-se, como sempre acontece no cinema comercial, apreciar o alienígena com os pés fincados solidamente no conhecido. O filme, com todo o seu futurismo, aposta seu miolo nos moldes do cinema de ação tradicional, traçando formas que ficam originais menos pela inventividade que pela acumulação disparatada de estéticas e tempos diferentes. O que vai se ver é o "tira" perseguindo sem trégua os "bandidos". Ele vai eliminá-los um por um com sua efici ência maníaca, contando com a ajuda da mulher que o ama e, que por isso, deixou o lado dos proscritos para ficar com Deckard . A diferen.ça é que não podemos, como espectadores, partilhar de seu entusiasmo porque esse é um heroísmo distópico: Deckard vai matando personagens com que simpatizamos, "rebeldes com causa" que são eles próprios a melhor, encarnação da distopia científica: programados pela engenharia genética de um superinventor genial, o Dr. Tyrell (o edifício de sua corporação é um dos destaques da arquitetura visionária do filme) , revoltam-se porque têm pouco tempo de vida e

~spalham-se

pelo planeta procurando

não se afastar um do outro, já que formam uma pequena comunidade perseguida. A promessa do

282


humano redimido pela genética foi por água abaixo: transformado e m andró ide, eis o ser humano indignado outra Yez com a Yelha (e com certeza eterna) Lluestão do tempo de Yida finito rondando-o :e fazendp:.9· duvüfar, çom ótifl1as razões, da bondade .de setl-Criador,

É éur.,H.i~' que o ponto alt_o desse filrn-t: seja pmicô ·.comentado. Nele, temos· uma seqüência s.igríificatiy~.•e_ fabulôsa~ertte bem-feita, na qüaLo Xt1plicante Roy, líder dos Fe\rolt'osos_, entra n:o apartaménto. d.e·J.P~~ástia~; forrado· de companhi:ás inumanas_('.'I_ntakê ·friend~j', diz)- 'F, .num trocadilho ótimô) -para· chegar ao Alto, ao' Pai, ao Criador, e jogar cofu Ele. ~éiy faz isso sabe,ndo ,<jüe

J. F..·(inyfin\\ento'r,_de bfinq11edo~·que lkJàze_m cotnpá~hia) jog~ xadrez com o· b~. Ty;rel.-Á-1)1etÚôra do filho rebe-l de querendo· esclaréci~entos do-Pai

e Criador~lhêi o é tâo forte nes1s,e•moru~nto que•

a ascensão de Roy, acompanhado pelo assustado

J-

E, é r epleta d ~ uma iluminação mística, com.

músi.ca equjvalente . Roy ouve de um Tyrell amedrontado e tàscinado que ele é sua obra mais acaba~a : Entãó, pó r que tão pouco tempo é dad~- a uni-replicartte ?Tyrell ,·fazendo-s e Deus .P ai, tem re5posta·s que nada explicam. O filho rebelde tem que se contentar com os "insÓndheis desígnios" da Criação. E chora. E-· - surpresá- --. vaza :os _olho.s .do Pai. Vingado1 ~ esce para as ruas ~ iÍuminado ·como Lúçifer, "anjo da lu~''; exult:ante com a lucidez sem solução de ~ua c011diçâo de criátur~ precái-iâ, datada para morrer. Além d e Lúcifer, ele é Prometeu, o "ladrão do fogo": briga pela corÍdiçao "humana" contra a

arbitrariedad~ cruel dos deus es. Pouca~ cenas na -história do cine~a são tão densas de filosofia e

metafísica quanto essa. Roy é o he_rói do film e . A fita poderia acabar quando ele morre, mas antes é preciso salvar o covarde Deckard. O diretor c erco~ sua mQrte de tantos símbolos de martírio e heroísmo-

não se esquecendo dos pregos da cruz de C~isto e do pombo que simboli za a alnia que

se evade do corpo-

que tudo isso é uma apoteose sentimental p.a:ta um film e at~ aí virtuosístico em

visual, mas seco e cético corno um bom e Yelho noir _Depois da morte de Roy, a fuga de Qeckard com a r eplicante Racnel já não nos interessa tanto: ;É um anti -clímax que , rnecanicarriénte, nos leva para o final, e há a visão_de urna tornada de · céu e montanhas que significaria um vago "Norte" _ond e os . fugitiYos tah·ez possa:rn encontràr .uma paz romântica, "natural" . Esse final pouco convincente foi r ejeitado pelo dir~tor Ridley Scott .e !'eito de sobras do material das filmagens de_ O Iluminado, de Stanley Kubrick (as sObras procede m das tomadas ~onumentais das montanhas do Col01·ado, no início d~ filme · de t error, também produzido pela Warner).


Blade Runner mantém uma relação estranha com a natureza . Ela está ausente do filme -quan-

do se mencio na algum enca nto natural, ele é publicitário , pertencente apenas aos bem-aventurados que podem se refugiar em colônias interplanetárias, deixar a Terra . Mas retom a com a utopia genética: em um mundo de cultura, sintéti co , duro , fun cional , o que se faz? Introduz-se o sucedâneo possível do natural- assim , há uma coruja artificial Yigilante no gr ande escritório da corporação do Dr. Tyrell, há uma jibóia artificial para fazer númer o com a bela dançarina Zhora (a primeira das assassinadas por Deckard ) , há o obsessivo gosto do policial amigo de Deckard por animaizinhos de gozação. É um mundo de onde se baniu o natural, mas não o se u simulacr o, cuj a falha, com o ver em os , é conser var "defeitos de fabricação" tipi cam ente humanos , no caso dos r eplicantes. A natureza é apenas um com entário irônico no film e. No entanto , a utopia anacr ônica de um "Norte" onde um homem (ainda que um "tira" covarde) possa ser feliz com sua mulher (ainda que uma duvidosa boneca d otada de em oções e m em órias alheias) aparec com o uma estranha forma de alí vio. Vimos o tempo todo uma Los Angeles escura, poluída, infernalmente caótica . O nde estava esse "Norte" da Terra, com sua prom essa de regener ação p elo verde típica da utopia ecológica, se logo no início se viu que só em colônias interplanetárias um hom em poderia encontrar esse tipo de alento?A Los Angeles d e Blade Runner apresenta um mundo onde a principal nota distópica é a mistura. Nada é o que pret ende ser, tudo se m escla e imbrica, há um idiom a que parece um esperanto degener ad o falado por atendentes de bar es e lojas, a arquitetura é uma mistura d e d elír ios egípcios, maias, neogóticos e o que m ais se queira . Esse m osaico imenso de estilos e épocas é a própria disto pia, visto que elimina t oda a possib ilidad e de um mundo clean , purificado. N o entanto, a pureza "natural" m antém seu apelo com o promessa de r edenção individual, para quem quiser acr editar nela .

Um g ên ero sem "nobreza" A ficção científica, como gênero cinematogr áfico, tem uma história relativam ente curta . Sempre foi considerada um primo pobre , desprezível, do cinema de aventuras, e ligada implacavelm ente ao filme B-

nas décadas de 1 9 3 o e 1 940, dificilm ente er a levada a sério, com seus monstros e cientistas

mal inte ncionados . Nos anos 19r;o , continuou a ser B, tornando -se inter essante em suas m etáforas


pela óbvia proj eção. dos medos ~m e ri canos

em_cliríí..a

de Guerra Fria-. todo e xtr;te rrestr~ tinha .

algo de ru sso ou comunista. Hi st ori ca m ~ nt e, · atipg e a ~na~oridad e e a "nobreza" com

200 1-··-· uina

odisséia no espaço.

Lui z Carlos Me rten ~scre~·eu : '1Kub ri ck ' limpou' a fi cção cientLfi d [.:.] ~;p1>oduções eram. mod estas e a fi cção científi'ca ficaYa se mpre pos limites.do h?1-ror, co rn n1 onstros ass ustad ores Yindos do espaço. Em Yez deste Yi sual

' s~jo' , Kubri ~J<

propôs _um YisÚal clean, ·_qu ase

an~issépti co_.

Impôs

as superflci es brancas que se tornaram domin \l~te's no .g ên(óT9 nos anos 1970 , ] e,·a,~do a: ~ma reação · de Ridley Scott .. ·.".A reaçãq de Scott,

s~g~nd~ ~o ·críti co , foi

trazer de voltá ·6"suj ~" dos.a nos 19 so .

Acresc~nte-.se: com uni poder.de orça mento e de sofisticàção ~tecndógica que os '".~ lbós film es·B ·de màd~ algum. ti,·eram . Ali en, o oitavo-p:~ssafj~iro ·nãoé mais_que um- filmeB g~andi.os.ain~nte produzido.: . a nave .N ostromo é um _ca_s t_~ lo gót1.c9 orid e se ao'i~ha. um mo~stro. i~preYis'Ível, quas~ 0m simbólo d~ paranóia s~x~afdos a~o's 1980---a fi gura 'ob~Çm2 a , esqui\-~, de f;cei ~difinida, ·~a~ horr~!lda em -~ ·gosma, sangue e dsceré).s (ela

é ~elho'r e.Xp~stã i{n . O _e~if}ma ·do outmmu~d;, d~ j~hn

Ôárp-enter))

quase urn en{blema inequívo~Ó -d~ AIDS .._Os-~l{n~_s, :5ofistiÇ;é.los .o u ~idic~lcis: \ ~tsa;rLsempre

sobr~ ·

_es~e m edo de um ví;,u~ , de -u~ e~Yi atlo inte rplanetári ~ desco nhecido e ~~1-intencionado.-~ Eicilm~ri­ t e, a pr.ofusao de go~rna pode-ser · ~ssoci,a.d-a ·a~ horror cl~ se~13e,çÕ.es; ~má alusãú 'diret a' aos te~1idÇ>~ · fluid os sexuais; aa e~p~~m.a.·

.

-

.

. -

,..

.

O av;mç~ têcnõ lógico '~ as~p ã;·a~Ói as d ~s' anos 1·98o foré).m, ao:spollcos·, sendô su]Jst]tuídos

te~~· obsessivo dõ~ 'ano~ ·, 99~ : ~1unc;lo~ ·vii->tu~i~-; ~ô~put~d9;e;n~ü:aculoso~ e tn~l~fl~o~ .

pefo

Out!·o .

'.l}â9:~-~ ~ssunt~ d~ 'J,tqt,n x; ~lil.e 'estillzadLssi.rrw : a&a~(~,ssidó pút.':: mit~s -~ rego~,' jógo~ knigmatit;s·d~ .· Ü\vis_:cilrJ.bJl. Ç,H~)p 'ána:gin~~i~·da~ ~istqri;s e.m qu à~h\f!h?s._ D.e - un; mu~d!?-.o_~d~ o ~ai é o utr_a yez ..

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.d:e'Í6g{ca_s~ , ~~i; ail}q~ uma fant;~ia' cd mp énsad.ot<l ber,n .~'elh,il_;.:_N e o~ qu e não é nada",·_ pódç:r ts'et ; ·M essi as ~ q 'espectador ven ce . _

O · gê~~ro: que , .g1~osso m.odo:; ry.c ü u rie br~ co m o ·2QOI d e · Kubr{ck , tiâo t ein · àt~ahnente · preocupação '

al~n~ .com "nC)brezasP e._, n~ t~adi çã~ d~ cine~ra cÓ-~erciar'~-m ~ri~a~ci, '"ards~ico" só pot3. ••

-

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-

-

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...Ir,

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acidente, r ecicla sempre qu e ·possív.el ·se\.ls padrões ·e··seus· rúéjioJes s.ú cessos em bu.sca da biJh~te ria;

n~da mais. Pe la reação de Scott, opo~d_p -s.e..a:<? aean CJe

Kubri ck o "sujo" de suéi

L~s Ange1 es · ~a6ticâ ,


apro:vei~~~se

da atmosferá de_"vale-.ttido" visual que BJOxle Runherpossibi:litou ~pode, ocasionalmente,

ret~rnar a um maior rigorfórmal, seguind'o Kubrick, rrias vªi pêrdendp

espec.ulativo, e

o gosto pelo poético,_pelci ·

cohcentrando~se mais e mais, em a·spectos d~ vide~ g~~é'~ parafernálias tecnóiógi'cas

do tipo que joga "areia nos nos·sos olhos" para nos distrair .da faiia d.e -roteiros e--boas idéias. Vivemos num filme, ou melhor, num "fllmeco" de ficção científica plenainerite distópico: as promessas de uin futuro cirternatógri~c:o fada vez mais brilhante, corno .se houvesse uma evoluçãode qualidade idealmente linear, já foram sub$tituídas peÍa -~anipulação aberta dos mais deslavados clic,hês, sem remorso.

Tempo, te_m po ... Viagens no tempo, deslocamentos deÍirantes, possibilidades abertas·: o qi.Ie se quer, de todo' mut:J.do, é domínio sobre o imensurável, o incontrolável, a enlouquecedora autonomia de uma reaJidade oposta a todos os desejos, o que se quer é o tempo como objeto fácil, que se comprimi e 'se dilate à nossa mercê, que não seja o que é: indomável e dado a rir dos esforços humanos, mesmo os mais nobres. O tempo na ficção científica é sempre um fardo - por isso a estranha e constante mistura de anacronismos persistentes e plenitudes futurísticas: o Homem é velho e se ajusta mal às novidades que ~ria para vencer inimigos eternos como .os dias que passam, a velhice, a morte, dispõe de um corpo ~ue não çonhece bem e de fantasias que mesclam acolhimento e hostilidade com fronteiras tênues. O desejo furioso de compensar-se dessas fraquezas é muito pronunciado na pátria de todas ess-as fantasias, de todo esse cinema- a América. Lá, onde a morte tem que ser sempre suprimida ou atenuada, não importa qu~ a sobrevivência seja bizarra ou inaceitável; algum último recurso, algum dispositivo extravagante, algo que o dólar possa comprar e a imaginação mais otimista (ou mais ingênua) possa conceber há de eliminar da Terra a tragédia do tempo, da finitud e ; a imensa máquina de sucedâneos, próteses, reposições e compensações funciona como um mundo autônomo louco a que se deu corda e que não pode parar. Nesse aspecto, Blade Runner continua vivo, porque prenunciou o tema dos últimos filmes de ficção científica: o clone. Os replicantes tinham tempo limitado de vida e, tendo adquirido emoções

286


humanas, passaram a viver com uma melancolia tipicamente humana: a da não-aceitação da finitude. Criados para serem escravos de colônias interplanetárias da Terra, não queriam apenas se libertar. Queriam mais: queriam tempo. Terceirizado pela indústria genética de Tyrell, o fabri cante de brinquedos]. F. Sebastian, m enino e velho, sofre de um mal que chama de "decrepitude acelerada".

É forçado a viver só naquele apartamento repleto de brinquedos tão vivos quanto patéticos-

os

amigos que faz- , os Únicos que pode fazer, num prédio abandonado onde há imensos painéis holográficos de japonesas que entoam litanias publicitárias arrepiantes e a chuva cai indefinidamente . Blade Runner, com sua obsessão melancólica pelo tempo concedido pelo Criador, tratou seres arti-

ficiais, pela primeira vez , como humanos, aliás como seres mais inter essantes que os rasos humanos do filme.

J. F., um humano em terminal solidão, doente, rendido à vida artificial, é seu personagem

mais completo. O clone tinha que vir. De um modo geral, o cinema americano- como o americano em geral- parece não ter notado ainda como esse tema é trágico. Propicia reflexões mais que assustadoras sobre fantasias humanas de narcisismo e duplicação; basta lembrar os clássicos William Wilson, de Edgar Allan Poe ou O sósia, de Dostoievski. Otimiza-se uma fantasia sombria: o duplo pode ser gozo. É o assunto de O sexto dia, filme deslavadamente comercial em que Arnold Schwarzenegger é trocado por um sósia e precisa ser eliminado. Nada de excepcional acontece : o herói . não s~ incomoda com a perturbadora duplicação à sua frente ; o filme euforiza o encontro, serãà dofs Schwarzeneggers distribuindo pancadas certeiras sobre os bandidos que os perseguem inutilmente·. Mas está repleto de fantasias de clonagem, como os animais da empresa Re-Pet, que satisfâzem ·

à ansiedade básica dos americanos quanto à vida após a morte- se você perdeu seu bichinho, a empresa fornecerá outro, idêntico. De modo algum as crianças acham ruim. Dificilmente o cinema americano com ercial mudará-tem compromisso inexorável com a idéia de que a vida, se não é boa, é remediável. A idéia intolerável de que estamos destinados ao desespero e, humanos ou replicantes , afundados num enigma ontológico a que Tyrell algum pode dar resposta, não é considerada sadia o bastante para garantir a sobrevivência das almas- ou da bilheteria. O futuro, ele também tem que ser domado, manipulado, esquecido ou nostalgicamente evocado. Blade Runner, muito sintomaticamente, é o ponto alto da carreira de um cineasta que


nunca mais fez nada tão bom e hoje em dia oferece ao público o revival de um gênero que m erecia plem.mente continuar esquec_:ido- o film e bíblico-

com Gladiador, ou a seqüência de um clássico

,de·te'tror: Silmcio -dos inocentes, uma triste ava@alhaçao ~hamada_ Hannib;J . Se~ futiln'l_, em. r 98 'l-, foi inesquedv~ t ,<::t:iDttinuamos a

viver.à esp~ra de um · 2o 19 .decinema.

Ch1có Lopes é jornalista eescr:itor, cómentarista de dnemà no cinevideodub~'do ihst'itüto -MóreirãS~l­

'les (IMS) de·Poços de Caldas, MG. Lançóurecenteinente, pelo IMS, olivr.o de conto~ Nó de sombras.

288


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291

Pierre Clastres, etn처logo da America* T창nia Stol/.e lima

Mareio Goldman

E mal ver que o centro do assunto seja ainda de indiscuss찾o, conformemente? Guimar찾es Rosa.


A leitura de qualquer ensaio de Pierre Clastres faz-nos estranhar esta singularidade de sua obra: o uso de termos antropológicos antiquados. Parece haver algo mais forte que desatenção para com o velho ritual com que se cerca toda r efer ência aos selvagens e sua sociedade: aspas, ditos, chamados, supostos et c. É um uso que toca o coração da obra e, ao mesmo tempo, decorre de uma visão da antropologia. Pois Clastres , por certo, tem uma concepção própria do que seja essa ciência e do que ela poderia tornar-se. "Ciência do homem, mas não de qualquer homem" (I 96 Sa: 3 7), a antropologia é ciência dos selvagens, do "conjunto dessas civilizações primitivas ; rejeitadas justamente pela nossa para fora do campo de súa própria linguagem" (idem :36 )'. Seria inútil buscar em seus escritos alg~m fun,dam~nto de caráter epistemológico para a antropologia:No t;ntanto, seria falso concluir disso

uma omissão casu~f do autor. Resolut_a mente, Çlas~res ~ecusa um discurso científico para justificar o que faz .·e, nesse caso, t em de conviver com sua pr~pria hesitação: ."a ciência do homem talvez não seja necessária" (I 969: 19). Essa forma lacôni~a e indireta, negativa mesmo, de situar

~questão epistemológica, muitos poderiam subs"crever, Ínas Clastres se. distingue por fazer disso outn~ cais~ que urna formula acadêmica, por tomá-la como impulso primeiro de seu pensamento e sua obra. A antropologia e~iste e fala dos selvagens-

isso é um fat~)-.e é ~sso que imJi~rt~ .

E como a condição histórica dessa ciência é o ponto de partida ~e todo antropólogo, é preciso

da política. ·.

interpelar o discurso científico que pret ende tê-la supe_radob situand~-se fora ..

Em mais de uma ocasião, Pierre Clastres sustenta que aanúopologia é ~ma experiência da partilha (I 968a: 37), uma ciência qu~ "inscreve seu projetop? horizonte da partilha" (I 976a: I;.I4)

que o Ocidente há muito instaurou, isolando-se do 'conjunto dos grupos humanos que falam linguagens estranhas.

Como Clastres , muitos parecem concordar em ver aí a condição de possibilidade, no plano histórico , dessa ciência (I 968a). A discordância surge .no que diz respeito ao lugar a partir do qual se reconhece que o discurso antropológico é enunciado. Pode-se pretender situá-lo além ~a partilha, no elemento da uni versalidade. Pode-se-

como é o caso Clastres-

tomar

apartilha como

algo mais, como o ponto de vista a partir 'do qual é possivel falar. No primeiro caso, poder-se-ia sustentar que tal partilha é nossa forma particular de atualização de um dispositivo ideológico


universal, o etnocentrismo, cuja superação caracterizaria e instauraria ao mesmo tempo o olhar antropológico no campo do relativismo e da universalidade. Ora, o exemplo de Clastres é diferente. Primeiro, trata-se de questionar a universalidade do etnocentrismo a fim de colocá-lo em sua verdadeira dimensão sociológica. Que o Ocidente compartilhe com as mesmas sociedades que exclui esse traço cultural é apenas parcialmente verdadeiro, pois nada justifica separar o nosso etnocentrismo e a nossa prática concreta de aniquilação das outras culturas. Nosso etnocentrismo é rio mesmo golpe etnoddio. É insuficiente , por isso, abordar o etnocentrismo como uma propriedade da natureza humana, ou das formações sociais, é preciso apreendê-lo em sua incidência sociológica. No Ocidente (como de resto em toda formação estatal) o que se pode observar é um movimento constante e deliberado de incorporação do Outro, de "supressão mais ou menos autoritária das diferenças socioculturais" ( 1 974b:54). Ao tomar o etnoddio como perspectiva, Clastres surpreende nossa relação com o outro . e~ sua qualidàde verdadeiramente sociológica, sugerindo que o etnocentrismo que r ege as

relações das sociedades primitivas umas com as outras é algo que não compartilhamos. Somos levados em suma a apreciar o fato de que, longe de irromper como um acidente, o etnoddio _é uma política indissociável de nossa civilização. É uma função do Estado. Clastres escreve: "o etnoddio [ ... ] ·está inscrito de antemão na natureza e no funcionamento da máquina estatal", "é o modo normal de existência do Estado" (idem:s4-5). O etnocentrismo ocidental sendo, pois, o que é, haveria algumaperspectiva que não o universo da partilha para a antropologia? Ressaltemos, antecipadamente, que é a essa indagação

que seremos _conduzidos pelo segundo aspecto da concepção de antropologia desenvolvida na obra de Clastres. Trata-se de repensar o estatuto da ciência antropológica diante de uma situação de fato. Se, mais do que uma visão ou repr:sentação, a partilha é um funcionamento político atuante e vigoroso, e se, éomo ciência que pretende dominar a verdade das sociedades tratadas como inferiores, a antropologia é um desd'o bramen'to da civilização ocidental, ela não deixaria de ser, portanto; l.lm aspecto da relação qu"e o Ocidente mantém com o Outro. Assumir-se como tal é a .

decisão da antropologia de Clastres.

-

'


Em vários de seus ensaios, podemos observar Clastrei aplicado em surpreender a antroc pologia naquilo em _q ue ela se revela um saber ativo, naquilo em que se mostra coextensiva ao discurso ocidental sobre os selvagens, discurso que- é preciso ressaltar- nos inclui. Poder-seia dizer, numa leitura muito simplificadora, que Clastres é um tr,ítico -do evolucionismo (entendido aqui como escola antropológica). Na verdade, o que pretende ·é bein mais do que isso, é submeter o discurso familiar sobre os' selvagens; que a antropÓlogia pós~evolucionista direta ou indiretamente subscreve, a um trabalho crítico. Trata-se de fazer uma arqueologi9 da linguagem antropológica (I 969: I s-8), em suas referências às ·s óciedades primitivas cotilosem escrita, sem .

.

~

Estado, de economia de subsistência, sem história. E destacar,' na-,d~nsidade quase nuli} desses conceitos, o real sociológico de nossa opinião e

etnocentri~mo.

Naturalmente, Clastres não ignora a dedicação a_n tropológica, ~a bl!sca de superação .,

.

~

'

.

progressiva do etnocentrismo: "essa intenção"·, ele mesm,o assinala com ironia, "é louvável" (idem: I s). No entanto, objeta duramente: em que medida essa ?edicação 'não -passa de um ritual antropológico? Os antropólogos acabam sucumbindo ao etnocent~isrpo, "mais ou menos tranqui-

lamente, mais ou menos distraidamente"

(idem:ibi~em);

deixamos

"a ciência degradar-se em

opinião" (idem: I9). Mas não é por esse tom um tanto arrogante que nos afastaremos, em.sua clareza, do teor ,. . •'

da obra. A intenção dé Clastres não é corrigir um rumo de que nos . teríamos desviado. Não propõe-ao contrário, ele contesta a existência desta alternativa-uma passagem progressiva da ideologia ao esclarecimento da ciência. Não há sustentação possível para uma ótica positivista.

É preciso cuidado com todo retorno das luzes . Ou adotamos a visão corrente na qual aparecemos como o telas das sociedades primitivas- e permaneceremos mant~ndo ém .sÜênci<? o fato de que é por essa via que o saber antropológico participa da relação que o Ocidente estabeleceu com o Outro-ou a recusamos. O trabalho crítico de Clastres implica ou supõe essa recusa. Ainda uma vez queremos ressaltar que não se trata aqui de substituir um olhar etnocêntrico por uma visão clara. Seria inútil acreditarmó ~nos capazes de nos tornar detentores da verdade _ dos selvagens. Seria falso t(;l.mbém, e pretensioso em todo caso. Inútil e falso, visto que aceder à verdade dos selvagens, tomar a ciência por um discurs~ dos selvagens, é simplesmente um contra'· -

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senso. "A todo mundo", a nós como à antropóloga selvagem que foi Elena Valero, "recusa-se igualmente a astúcia de um saber que, ao se tornar absoluto, abolir-se-ia no silêncio" (I 969a:4o ). Pretensioso, pois, condenada a falar como experiência da partilha, a antropologia consiste em princípio em um discurso sobre os selvagens (I 968a: 3 7; I 969a:4o ). Sucede que Clastres não pensa que isso seja irremediável, nem definitivo. É possível trasformá-la em um diálogo. "Se a antropologia é uma ciência", escreve, "ela é ao mesmo tempo outra coisa que uma ciência" (I 968a:37). Dupla face de que é preciso dispor como um privilégio. Mas ... como? Se o que nutre o olhar antropológico não é a superação da partilha mas sim a própria existência da partilha, que a atividade antropológica, abandonando o qlle de mais tolo o século XIX inventou: o cientiflcismo (I 9 7 8: I 67), seja uma arma contra a partilha. Que, inquieta com a verdade

e Única ponte entre os dois mundos, forje uma linguagem nova, que nos conduza a um novo pensamento, e nos dê a chance de falar com o pensamento deles (I 968a: 3 7- 8).

Seria preciso lembrar aqui que, se o diálogo é o sentido da antropologia de Clastres, ele jamais o utilizou para engrandecer seu próprio nome. Como ocasião para uma homenagem, afirma que já se enunciaram as primeiras palavras, que são a obra de Lévi-Strauss, particularmente dediçada ao desmantelamento da Razão e a sua contrapartida: o estudo atento do pensamento selvagem. Mas, como sabemos, é a sociedade dos selvagens que Clastres pretende interrogar, e isso acabaria por afa~tar de forma sensível os dois autores . Por O'casiã? de··seu p~imeiro ensaio-.-o an:o é I96Z-

, Clastres parece considerar a possibilidade

d~ inscrever uma pr9blemática sociológica precisa, _ à q_u~l $erá fiel ao longo de toda a sua obra,

no campo da -antropologia lévi-straussian~. Essa problemática pode ser formulada assim: em que Çondi~ões a .vida social índígena pode desenrolar-se fora das relações de coerção ou poder. "Tro-

ca .e pt;der:~ Hlosofia da chefia indígena" já a enuncia com clareZa e, ao mesmo tempo, representa uma tG.ntativam~lognl.da, Nesse ensaio,

o autor analisa a instituição .política dos índios ~a América do Sul tropical,

a chefia, abordando-a--sob o aspecto do paradoxo que ela apresenta ao Ocidente:

o fato de que

o chefejmJ.ígena é a Um só tempo chefe e homerri destitwdo de poder: Urna análíse emp._Ír_ica


abrangente das propriedades da instituição e das funções do chefe permite a Clastres isolar fatos e relações importantes que permanecem, contudo, ao menos em parte, insuficientemente explicados, até mesmo destituídos de existência sociológica concreta e irredutível. Lowie havia indicado três atributos essenciais da chefia americana: a generosidade, a manutenção da paz e o uso da palavra. Lévi-Strauss, em sua breve reflexão sobre a chefia nambikwara, assinalara os seguintes traços: iniciativa, generosidade e poliginia; e definira, além disso, a relação da sociedade com a instituição política como relação de reciprocidade. O bando retribuiria com mulheres jovens e bonitas a segurança propiciada pelo chefe.

À contribuição de Lowie, Clastres acrescenta a poliginia destacada por Lévi-Strauss, e desenvolve a partir daí dois argumentos. O primeiro, claramente dirigido contra Lowie, propõe uma distinção entre o ser e o Jazer da chefia (I 96 2:3 3): oratória, generosidade e poliginia devem ser encaradas como condições de possibilidade formais da instituição. Opõem-se, portanto, àquela· dimensão empírica e (uncional de moderação dos confli,tos internos. Tal distinção, que é talvez inesperada ou m esmo arbitráría, prepara o segundo argumento e pr~vê a conclusão geral

d~ estudo. É que Clas~r~s percebeu. algo qU:e n~~ poderia desprezar como ~ma "coincidência sem significação" (I 969 : 34), a saber, o ser da chifla põe em jogo os mes~os termos- (p~lavras, mulheres e bens) cuja circulação compõe, segundo a teoria levistraussiana, as estruturas ~e troca instauradoras do estado de sociedade. O segundo argumento é, por sua vez, uma contestação, não explicitada como tal, da hipótese de que a relação entre o chefe e o grupo seja uma relação de reciprocidade. Bem ao contrário, a instituição política destaca-se muito mais como um nódulo que desvia mulheres, bens e palavras de sua função de comunicação, fazendo-os aparecer ali como valores, seja porque a via que cada um desses termos percorre, entre o chefe e o grupo; é unidirecionada, seja porque o grupo não abriria mão de mulheres em troca de qualquer outra coisa. Sendo as mulheres ·o bem mais precioso no mundo indígena, ninguém aceitaria aliená~ las. Permanece então um problema: o fato objetivamente constatado de que a chefia' impllca quase de forma m~cânica a poliginia. Esta última exprimiria, portanto, certa relação de desigualdade entre o. chefe e o grupo. Não fosse isso, como um homem destituído de poder poderia gozar desse pri vilégio


exorbitante? Clastres entende, então, que o ser da chefia consiste em relação privileaiada com os

termOS da reciprocidade. Que, por implicação lógica,

O

poder é contra O arupo (I 96 2:3 8)-sendo

este último fundamentado na reciprocidade à qual, justamente, se furta o primeiro. O problema é ainda a condição aparentemente paradoxal do chefe indígena. O s elem entos de uma solução já estariam dados. Se a relação entre chefe e grupo tematiza a r eciprocidade, então a esfera política no mundo indígena constitui, presume Clastres, uma problemáti ca inerente ao nível mais prcfundo da estrutura social (idem:39-4o), uma problemática situada no ato sociológico fundamental, con cernente à gênese m esma do social. Nesse primeiro movimento da explicação, que não nos convence da necessidade de atribuir à chefia indígena um enraízamenta nas condições inconscientes da vida social, é assim bastante notável certa solução de continuidade. A explicação prossegue: se o chefe indígena exer ce sua função de moderador dos conflitos internos (o seujazer) sem usar coer ção e violência, é que o seu ser foi tornado impotente ao ser instaurado no ext erior do universo da comunicação. Será que sem elhante proposição dissipa r ealmente o paradoxo? Ora, é bem o r ecurso a uma tautologia que faz as vezes de solução. Primeiro, Clastres afirma que a sociedade rejei ta ou exclui (idem: 3 8) o que já lhe é exterior; depois, convida-nos a concluir que é nas m esmas condições de possibilidade da instituição, o ser da chpa, que está dada sua impotência.

A fraqu eza da conclusão do autor, segundo entendemos, deve-se, então, ao seguinte: t endo atingido um nível de generalidade profundo, no qual pôde descobrir a relação neaativa entre o político e a troca , e concluir de modo justo que o poder é contra o arupo, Clastres desvendava,

sem se dar inteiramente conta, uma propriedade do político que é geral, ou seja, independente de ser o seu r egime de funcionamento selvagem ou estatal. Pretendeu, em seguida, singularizar a chefia indígena por m eio de uma exterioridade que é também um fenômeno geral-pois não _sucederá o mesmo. a u.m poder que .é . pot~nte.? E flSSim, por Qão desejar perder de v_ista.o obj eto

an~ropológiço con~reto qüe · c~~pr~ende~a·-rual na,pa:rtid:a, ~fásta-se ainda ~ais- da s~lu_Ção

d.p.

problema. Pois ·pareée-nos que -~e de~()U é?nf~d~r ·p:lo valor ~as mulher es para um poiJ.tq

de.

vista indígena, perdendo, nesse golpe, o al~ance sociológÚ::o.verdadeiro da poliginia. Além disso,.


como a análise não malograria se no ponto de partida havia a aposta numa distinção precipitada e de utilidade muito restrita entre o ser e o Jazer da chefia, entre a estrutura e a função? O pri vilégi o, com o notará ulteriormente ( I 976b: I 3 7), não é do chefe sobre o grupo, mas deste sobre aquele. Pois a poliginia, propõe mais tarde, é o m eio para o exercí cio da generosidade de que deve dar prova um chefe . Encará-la como tal , como um fato determinado pela generosidade, irá levá-lo a apreender a relação entre o político e a sociedade tal como ela é : uma relação de dívida-

noção que lhe p ermitiu situar a problemática do político em um plano

que não é o do inconsciente, sem por isso deixar de ser geral a toda sociedade. O sentido da dívida indicará de uma só vez a presença ou a ausência do poder coercitivo no funcionamento da instituição política. Nas sociedades indígenas amazônicas, o chefe t em uma dívida para com o grupo que mantém r eunido em torno de si. Ele será chefe enquanto puder alimentar essa dívida . Dito de outro modo: será chefe enquanto puder não exercer poder. Observemos de passagem que a noção decisiva de dívida é introduzida na obra de Clastres sem maior tentativa de justificação. Isso parece m esmo uma atitude bastante comum do autor: a utilização de certos conceitos centrais como se deri vassem diretamente da r ealidade etnográfi ca, e não como categorias transcendentais logicamente deduzidas . Assim, ele se entusiasma ao constatar que Marshall Sahlins critica a noção de economia de subsistência não lhe opondo "uma outra concepção , mas simplesmente os fato s etnográficos" (idem: I 29). Se em seu primeiro ensaio é notável, como pret endemos ter mostrado acima, que o compromisso do autor com a teoria levistraussiana da sociedade prepara-lhe um malogro, Clastres o pressente a tempo. Nas páginas finais do ensaio, r ecoloca abruptamente o problema dado no início. Pôde explicar, diz, a causa do não-poder do chefe indígena, mas não sua ra zão de ser profunda ( 1 9 6 2:3 9). Seria muito indelicado, na hora do dissabor, exigir-lhe uma justificati va para esse tipo de distinção. Levantar de novo o problema já é, parece-nos, confiar que por outras vias será possível elucidá-lo mais tarde. Donde a impressão de curto-circuito que sentimos. ao ler os últimos parágrafos, em que , contudo, r econheceríamos um primeiro eshoçÕ. dé ~U<:l hipótese mais original: "Longe portanto de nos oferecer a imagem terna de uma incapacidade para resolver a questão do poder político, essas sociedades nos espantam pela sutileza com a


qual a colocaram e determinaram. Pressentiram muito cedo que a transcendência do poder comporta um risco mortal para o grupo, que o princípio de uma autoridade ext erior e criadora de sua própria legalidade é uma contestação da cultura; foi a intuição dessa ameaça que determinou a profundidade de sua filosofia política" (idem:4o ). Já observamos que o objeto da antropologia de Clastres deveria afastá-lo daquela de LéviStrauss. Em seus últimos ensaios (1977a; 1978), ele m esmo r efl et e sobre esse afastamento. O estruturalismo oferece certamente uma concepção de sociedade, e é justo dela que é preciso se afastar. Pois esse discurso foi elaborado para falar de outra coisa, dos sistemas de parentesco e dos sistemas mitológicos. É claro que são sistemas fundamentais na sociedade primitiva, e não é isso que se contesta. Mas sim, como é claro também, que não são essa sociedade: "Qual é

es~~ lacuna onde se enraízá o malogro do estruturalismo? É que esse discurso magno da antropolog~a ~~~ial não fala da sociedade. O que é eliminado, suprimido do _discurso estruturalista .[ .. ·.]; aquilb d~ que um tal discurso não pode falar, porque não foi feito para isso, é a sociedade pi-im!tivg concreta, seu modo de funcionamento, sua dinâmica interna, sua economia e sua

po·l~tica" ( 1 9 7 8 : ' s 8) . O que é, com efeito, antropologia estrutural? Uma teoria crítica sobre as condições de possibilidade da vida social: a emergência do pensamento simbólico torna a-sociedade ao mesmo t empo possível e necessária. Como uma antropologia stricto sensu, a grande importância do estruturalismo é apresentar uma teoria que põe em xeque toda a r eificação da sociedade ou da cultura, toda a antinomia entre uma ordem social transcendente e uma ordem do indivíduo. O ponto é que é difícil contentar-se com a triagem antropológica efetuada ·por LéviStrauss. À r eciprocidade , Clastres contrapõe a violência da guerra, por um lado, e a dívida, por outro, como dimensões igualmente essenciais da vida social. Pois se a reciprocidade, em certo sentido, pode ser tida como fundadora do social, em outro, não é absolutamente suficiente na constituição dos grupos humanos: sem ruptura da reciprocidade não se forma uma sociedade concreta. Sob esse ponto de vista, a troca, em sua figura priro'ordial de proibição do incesto, distingue o homem da natureza; sob outro ponto de vista, a ruptura da troca distingue grupos


humanos entre si. Aqui, quer dizer, na Amazônia indígena, uma tal ruptura assume a figura da guerra quando se trata de relações entn.: os grupos e a da dívida quando se trata de relação entre instituição política e sociedade. Com essa hipót ese, Clastres define o estruturalismo como um discurso troquista sobre a sociedade primitiva. Efetuando uma confusão inadequada entre dois níveis distintos, o do inconsciente humano e o da sociedade, o fundamento do social vem a ser confundido com o funcionamento da sociedade e uma teoria do humano com uma teoria do ser social primiti vo (I 977a: I 8 3-8). Retomaremos adiante, em seu duplo aspecto, essa distinção.

O tema da não-reciprocidade está já, de alguma forma, presente na obra de LéviStrauss. Recordemos que ele encerra As estruturas elementares do parentesco mencionando mitos que imaginam uma idade de ouro, passada ou futura, na qual as pessoas viveriam fora da reciprocidade, ilustração do desejo humano de viver chez soi. Poderia parecer, talvez, que Clastres simplesmente estende essa perspectiva. Em "O arco e o cesto" (I 966), de fato, partindo de uma abordagem estrutur~lista detalhada das relações sociais constituintes da sociedadeg,uayaki , Clastres também cuidou de isolar uma prática-o canto dos caçadores-que s11bverte o esquema dareciprocidas}e. ~ois os caçadores, à noite, cantam solitários, cada um para si. Desvio d~ palavra de sua função de signo para a de puro valor, Pártia-se da reciprocidade, chega-se a._sua negação. A primeira constitui o grupo; a segunda, a ·s ubjetividade do caçador. . · Mas

tra~ar-se-á mesmo de uma simples extensão? Parece-nos,-<;J.O contrário, que há aí

algo mais. Pois Clastres também adverte, ao final do mesmo ensaio, _que não ~stamos diante de um simples mecanismopro jetlvo, mas de uma estrutura imanentealinguage~. A n~g~Ção da reciprocidad~, longe de ser episódica, é um dos aspectos da dupla natureza dalinguagem: esta pode desdobrar~se em signo e promover a rela~ão com outrem, mas também em valor e promover a relação consigo. Tomando essa ambivalência da linguagem ·como índice de uma ambivalência da natureza humana, Clastres sustenta que o homem não é só urrí animal político, plenamente instalado na troca,' mas um animal doente (I966: Io9), e parte em busca . ~Çt

incidência Sociológica desse segundo aspecto da linguagem, do qual O estruturalismo l}ãO sabe dar conta exceto tratando-o como motivo para um mito ou rito, ou seja, para um m~o sonho sociológico. Seja signo, seja·valor, a palavra, segundo Clastres, sempre encerra unia política.


No 'mundo dos selvagens 1 essa P?lítica encontra-se de imediato inscrita na relação de nãoexteriori&íd~ radical entre homem·e ·linguagem, o que faz com que a última sej~ sobretudo ~

~.

.

~-

..,.

.

-

valor: sufidentemehte rica para interrogar o mundo, mas demasiado vazia para servir de instrumento de ação de uma pessoa sobre outra.

É assim que a palavra-valor que enuncia um chefe cria para a instituição política um limite. Pois é na própria eloqüência de que é capaz e que se lhe exige, que o chefe encontra o obstáculo para agir contrariamente à vontade do grupo. Presa de seu próprio discurso, ele cumpre a atividade política no exterior da comunicação (I973a:135). Desse modo, o que havia aparecido como doença humana mostra-se, em outro registro, um mecanismo sociológico eficaz. Importa enfatizar que não estamos mais, nesse contexto, confrontados com um mero sonho humano: o limite imposto à comunicação é o limite imposto às ordens que a comunicação pressupõe, e está agora ligado ao domínio fundamental da vida social concreta em que consiste o político. A utilização das categorias da dívida e da guerra mostra por si mesma que Clastres não aplica apenas ao campo da linguagem sua reflexão sobre o tema da não-reciprocidade. O autor parece mesmo muito seguro de que essa é a via para se pensar o funcionamento da sociedade. ·Vimos que o ensaio de I 96 2 constatava certa curvatura do fluxo de trocas no campo da chefia indígena e deveria revelar que, do ponto de vista da reciprocidade, a relação entre sociedade e instituição política em geral é uma relação de exterioridade. É justamente como dívida que Clastres a define em um de seus últimos ensaios (I976a: I4o-1). A dívida demarca a esfera do político na sociedade e expressa a relação de poder. Que o chefe seja generoso para com o grupo é nada menos que a contrapartida do poder que o grupo exerce sobre o chefe. A dívida aparece assim como categoria política de importância decisiva. Permite sustentar a perspectiva do caráter plenamente político de uma sociedade em que a instituição política · funciona no exterior da relação de poder. Permite sustentar, também, a descontinuidade essencial (I 976b: 140) entre a sociedade primitiva e a sociedade de Estado. Ora, encontramo-nos aqui . diante dos dois aspectos centrais da obra de Clastres. Para formulá-los, ele teve de abandonar o enfoque inicial que se restringia ao aspecto interno da política indígena, para abordar sua


p.olític-a exterior. É naquilo ·q ue limita e opõe umas às outras as comunidades primitivas;-que o lugar da instituiÇã~ política se define com toda clareza:

.

.

Q!}e Jaz um chife sem poder? Essencialmente, ele é encarreaado de difender e assumir a vonÚ;.de da sbcie~ade em aparecer como uma totalidade una, isto

é, o eiforço combinado, deliberado da comunidadé com

vistas a cifJrmàr sua especificidade, sua autonomia, sua independênci'a com relação às outras c~munidàdes: Em outr~s termos, o líder primitivo é principalme?.te o homem que fala em nome dà sosiedade. quando circunstâncias e acontecimentos a colocam· em relação com outras. Ora, estas últimas,· para toda comunidade primitiva, se distribuem sempre em duas classes: os amiaos e os inimiaos. Com os primeiros, trata-se de estabelecer ou riforçar relações de aliança; com os outros, trata-se de conduzir, quando é o caso, as operações auerreiras. Resulta que as junções concretas, empíricas, do líder se desdobram no campo, poderse-ia dizer, das relações internacionais . . . (I 9 7 6: I o 5).

Nesse sentido, ao ser articulada à dimensão exterior de cada comunidade, a chefia tangencia o essencial da relação que cada comunidade mantém com as demais-a guerra . Vemos aqui se aprofundar a distância de Lévi-Strauss. De fato, Clastres critica Lévi-Strauss por fazer da guerra um simples fracasso da reciprocidade. A questão, evidentemente, não é negar que a primeira seja o contrário da segunda, mas buscar encarar a guerra em sua positividade. Ou seja, enquanto no discurso estruturalista a guerra rigorosamente nada produz-a função criadora sendo atribuída de modo integral à reciprocidade-para Clastres, mesmo sendo ela primeiro limitadora do circuito de trocas, essa função de limitação é essencial na formação e no funcionamento da sociedade primitiva como tal. Não se poderia pensar essa sociedade sem levar em conta o caráter restrito das unidades que são aí integradas pela.troca. A sociedade primitiva, fora desse estreito círculo de reciprocidade que ga~ante sua independência e autonomia, é um ser-para-a-auerra. . Eis assim .que Clastres subverte a perspectiva estruturalista. É preciso certamente haver troca para haver sociedade. Mas a esse transcendental, a sociedade primitiva responde cóm a delimitação do espaço da troca, que só pode funcionar no interior de um campo demarcado pela

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'

aliança política, aliança que é por sua vez parte integrante do mecanismo geral da guerra: contrai-se a aliança tendo em vista fazer a guerra contra um terceiro; ou proteger-se dele. A guerra consiste, então, segundo nos parece, em um transcendenral empírico determinando o ser social primitivo.

A violência que atravessa a sociedade primitiva, longe de ser fortuita ou extrínseca à condição social, traduz e instaura um processo sociológico fundamental: a dispersão entre os · grupos centrados na figura de um chefe. A guerra permite definir a natureza da sociedade primitiva na medida em que, pondo em relação grupos distintos-

inimigos ou aliados- é pos-

sível isolar-se a dimensão empírica das comunidades, sejam elas grupos locais ou conjuntos de grupos locais reunidos do mesmo modo em torno de um chefe, de um plano sociológico mais amplo. Quer dizer, a verdadeira unidade de análise-a sociedade primitiva, ou o ser social primitivo-não se confunde com nenhuma unidade sociológica empírica tomada isoladamente. A sociedade primitiva aparecerá, então, como "uma multiplicidade de comunidades . indivisas que obedecem a uma mesma lógica do centrífugo" ( 1 977a: 2o6). A perspectiva de Clastres nos permitiria, portanto, notar que subsiste no estruturalismo, devido à lacuna na abordagem de uma questão propriamente política, um certo _ naturalismo. Neste, o social se destaca da natureza pela troca, e, uma vez que esta está dada, a constituição dos grupos, relegada a segundo plano, não faz parte da problemática antropológica. A antropologia de Clastres distingue-se por seu caráter nitidamente artificialista. Aqui não há passagem imediata de uma condição de possibilidade, ela mesma enraizada na !latureza humana, para um estado social constituído. Este supõe necessariamente um mecanismo sociológico instituinte, isto é, uma política. Podemos agora voltar sobre nossos passos e recolocar a questão central da obra de Pierre Clastres. Qual é á afirmação fundamental dessa obra? Todos ·o sabem: a sociedade primitiva é contra o Estado .

Essa verdadeira reconversão do olhar tem implicações que fazem a antropologia de Clastres ser interessante . A que conduz esse deslocamento do olhar sobre a sociedade sem


Estado para um outro sobre a sociedade contra o Estado? Veremos que não se poderia conferir, de verdade, à sociedade primitiva um estatuto francamente político sem que a reflexão culminasse em um questionamento do Estado como princípio necessário à fundação da sociedade. D esejamos antecipar também que essa reflexão exprime uma certa r econfiguração das relações entre o ser e o fazer, aquela distinção introduzida no primeiro ensaio (I962) e que entrará em um estado de t ensão exacerbada nos últimos (I 9 77 a, I 9 77 b), como se o fazer estivesse prestes a assumir a dianteira do ser. Sabe-se bem que durante muito tempo as sociedades primitivas foram caracterizadas por reflexões antropológicas muito diversas em t ermos de falta de Estado. Pôde -se atribuir essa falta ao estado embrionário do desenvolvimento da sociedade como um todo ou das forças produtivas em particular. Observou-se, também, que nem por isso aquelas sociedades embrionárias e retardatárias careciam de mecanismos de controle , manutenção da ordem, ·coesão ou outra coisa da m esma esp écie. D e forma que essas fun ções de um Estado ausente bem podiam ser efetuadas pelo restante da estrutura social, já que em seu estado originário as relações sociais seriam indiferenciadas, e o parentesco e a r eligião, dotados de multifuncionalidade. A questão que Clastres colocou a esse tipo de discurso antropológico é até que ponto uma atenção concentrada na ordem, na coesão, nas instâncias de controle, não é a afirmação do ponto de vista do Estado, que encara como n ecessidade antecipadamente dada aquilo que talvez só exista como seu modo próprio de operação. A uma tal filosofia da· história que , de resto, confunde o efeito e a causa, Clastres opõe uma antropologia na qual, mais do que como objeto, estamos excluído_s como ponto de vista . Poderíamos,_contudo, indagar por que Clastres não encara a ausência de. Estado simplesmente como indiferença legítima de certas sociedades para com esse gênero de instituição política, isto é , como um aspectó a mais da diversidade cultural. É que um tal relativismo trai muito mais a indifer ença da àntropologia por um questionamento do Estado do que a das sociedades primitiva.s. Indiferença que conduz inevitavelmente, em sua opinião, a ·u ma má compreensão da natureza do político : os termos com que se deve Circunscrevê-lo não podem, é evidente, ser 6s m esmos que o Estado propõe. Mas má compreensão também, e sobretudo.,


do" ser' d~s :sociedades primitivas. Evolucionismo, funcionalismo, culturalismo, não -podem, por conseguinte;· aeeitar que ·os selvagens tenham um saber profundo de sua situação e d~ que aconÚ.ceria .caso ~la se modificasse . A sociedade primitiva é tida como sociedade 'qu~ funciona mecânica e: naturalmente , e os selvagens como seres que reagem passivamente a· .e sse fÍmdonain~nto. Çlastf.es recusa esse mecanicismo naturalista, e seu empreendimento, de algum m~do . análogo ao dé~ LéVi-StráUss e m to.r:no da Razão, é uma problematização do Estado. Afó~mula contra o Estado traduz o caráter artificial-politico-da sociedade primitiva. Longe de estar

dissolvido por todo o corpo social-visão que supondo, implícita ou explicitamente, uma especialização progressiva das relações sociais não pode escapar de um esquema evolucionista, nem da pressuposição de que o Estado, ainda que ausente, é o princípio de organização do social-

, na sociedade primitiva o político aparece claramente em uma instituição individu-

alizada: a chefia. Ao lado disso, Clastres sustenta a universalidade do poder, uma necessidade inerente à vida social (I 969: 2 I). Visto sob esse ângulo, o poder define-se como aforça centrípeta

qu e agrega um certo número de partes convertendo-as em um certo tipo de totalidade. Achefia é essa força centrípeta da sociedade primitiva. Força que é mantida sob o controle da sociedade, que dispõe de m ecanismos-

mecanismos sociais primitivos- capazes de estancar a força

unificadora da chefia em um determinado limiar e impedir, por assim dizer, a condensação de um núcleo pesado que logo se destacaria da sociedade e _passaria a comandá-la de fora . Esses mecanismos sociais primitivos não são menos integralmente políticos do que achefia. Sua natureza, contudo, é diversa, pois trata-se aqui de forças centrifugas. Quais são essas forças? Fundamentalmente, a economia e a guerra. Em cada uma delas traduz-se, respectivam ente , o ideal de autarquia e o ideal de independência política da sociedade primitiva. A economia não é aí a _grande força unificadora que conhecemos, e no seio dessa sociedade cada comunidade busca ser economicamente independente. Além disso, no seio da comunidade subsistem unidades econômicas potencialmente autônomas que· impelem a sociedade para fora de si mesma, impedindo ao m esmo tempo sua identificação com outras comunidades.

É verdade que um chefe pode, por meio de sua generosidade, conter por certo período a


irr{inência de dispersão da comunidade qlle a .economia encen<t· Mas :ó· que eahe ré S.sa,ltat é' qu~ a comunidade reunicl~ . em tor.~9 ~do ' chefe : pó; ta já' a_díve~gànêia e ~·· ~~ltipli~idade

(I-9,6J ~ S-2),

dadas não sÓ na

~~tru\ur~_~çorôtrl.iS.~ -~,ãs no pr6prio :p~;~ntesco; po~s as çh~ui)a~

das famílias extensas podem possuir cada uma um chefe ao lad~ do chefe do gr~po como um todo, assumindo assim sua tendência centrífuga (idem:s2-3). A guerra-

o estado de auerra permanente entre as comunidades primitivas-

traduz do

m esmo modo um outro mecanismo social primitivo . Um estado de guerra permanente respon de pela pulverização da sociedade em um conjunto de comunidades que dispõem, todas , de meios diversos para preservar ou reatar hostilidades umas com as outras. Da gu erra primitiva decorre, pois, a não-identificação das comunidades, e as alianças políticas entre algumas delas são transitórias, instáveis e subordinadas a uma guerra que se queira mover contra uma outra. Em resumo, Clastres busca tomar a guerra pelo que e la r epresenta: um impulso cen trífugo da sociedade e , portanto, contrário à constituição d e grandes massas sociai s. É por isso que a encara como ato político contra o Estado. Guerra e Estado surgem assim como dois atos políticos essencialmente distintos e opostos. Isso já que , segundo o autor, a essência do Estado é a unificação (I 9 7 4: I 8 I), o Estado é a força centrípeta liber,ada de todo constrangimento (I 974b:53). É o Um. Já a essência da sociedade primitiva é a guerra, a dispersão e a multiplicidade : o contra- Estado. Mas, ao nos exprimirmos em termos de forças, não deixamos d e perd er uma dimensão, fundam ental contudo, do p ensamento de Clastres. "Só os tolos", escreve , "podem acreditar que para r ecusar a alienação é preciso primeiro tê -la experimentado: a r ecusa da alienação (econômica ou política) pertence ao próprio ser d essa sociedade , exprime seu conservantismo, sua vontade deliberada d e p ermanecer Nós indiviso. D eliberada d e fato, e não somente efeito do funcionam ento de uma máquina social: os selvagens sabiam bem que toda alteração de sua vida social (toda inovação social) só poderia r epresentar para el es a perda da liberdade" (I 977a: 2o6). Tocamos aqui em um ponto complicado: como é possível recusar um Estado que ainda não existe ? Que é esse saber que o s selvagens detêm ? Notemos, primeiramente, que a interrogação do autor é dupla. Trata-se , por um lado,


da sociedade como máquina e, por outro, daquilo que faz a máquina funcionar concretamente e que consiste, ao mesmo tempo, em efeito de sua existência e condição de seu funcionamento. Longe, portanto, de pressupor a existência de totalidades sociais que tenderiam a se auto-reproduzir por meio da interação concertada de suas partes, cumpre reconhecer que a sociedade é uma totalização complexa, que comporta níveis que se relacionam de modo intrincado e não simplesmente por intermédio de um jogo de reflexos mútuos ou de efeitos homólogos. É ao funcionamento e não à função que se visa; e os funcionamentos determinam a irrupção de determinadas figuras sociológicas. Assim, no caso da chefia, não devemos supor uma sociedade preexistente que possuiria uma instituição responsável por sua manutenção ao preencher determinadas funções. Ao contrário, a chefia compõe a sociedade: "Pode-se dizer não que o chefe é um homem que fala, mas que aquele que fala é um chefe" (I 96 2:3 7). O mesmo acontece com a guerra: "não é a guerra que é o efeito da fragmentação, é a fragmentação que é efeito da guerra" (I977a:37). Não se indaga aqui qual a função social da guerra, dada sobre um fundo de fragmentação prévia das comunidades primitivas. A guerra é um funcionamento, uma prática: o que se busca seguir são seus efeitos e as figuras que determina. Entre eles encontra-se, em primeiro lugar, a fragmentação. O ponto básico é que os efeitos determinados pelos funcionamentos não se limitam ao plano sociológico empírico. Ou, para sermos mais exatos, os próprios funcionamentos transcorrem simultaneamente e~ outro nível, determinando a irrupção de certas figuras subjetivas. É uma nova forma de tratamento da antiga questão das relações entre o indivíduo e a sociedade que Clastres anuncia. Não se trata mais de indagar se a primazia cabe a um ou a outro, mas de r econhecer que os mesmos processos aparecem simultaneamente nos dois níveis. Livramo-nos das armadilhas de uma falsa causalidade e estamos prontos a descrever os processos em sua real complexidade: "De minha parte, tento delimitar o campo do desejo como espaço do político, estabelecer que o desejo de poder não pode realizar-se sem o desejo inverso de submissão. Tento mostrar que a sociedade primitiva é o lugar de repressão desse duplo mau desejo ... " (I 9 77: IS" 4 -5).


A existência da chefia aparece simultaneamente como um prestígio concedido ao homem que a ocupa, e esse homem experimentará por sua vez um desejo de prestíaio, que não é senão sua vontade de aparecer como chefe. Mas não há aqui desejo de poder: assim como o funcionamento dá máquina social primitiva impede objetivamente a irrupção do Estado, ele reprime o mau desejo. O desejo de poder aí não aparece pelas mesmas operações que fazem o Estado não existir. A existência da guerra como força centrífuga da sociedade primitiva acompanha-se de um desejo individual do guerreiro; esse desejo, por sua vez, pode ter como incidência no plano sociolóaico a constituição de um grupo social particular constituído pelos guerreiros,

devotados à busca de um prestígio que a sociedade está pronta a conferir -lhes ( 1 9 77 b). Trata-se sempre do mesmo fenômeno apreendido em diferentes níveis, que, além do mais, remetem incessantemente uns aos outros. Em suma, expressões como vontade, desejo e repressão não remetem a constantes enraizadas em uma pretensa natureza humana dada de antemão, mas sim aos efeitos subjetivos de determinados funcionamentos que se dão sobre um plano de intersubjetividade primeira e que se manifestam igualmente no nível sociológico propriamente dito. Podemos compreender melhor agora o que significa a expressão sociedade contra o Estado. Pois, como Clastres a encara, ora como propriedade das máquinas sociais primitivas, ora sob o ângulo das figuras subjetivas que as acompanham, corremos o risco de perder de vista que estamos nos dois casos diante da mesma coisa. Nessa perspectiva, os selvagens, ganhando uma subjetividade geralmente excluída das análises antropológicas, estão vivos, têm paixões, são ativos, e a indivisão da sociedade selvagem aparece como uma prática política deles . A obra de Pierre Clastres é inacabada. Não só porque interrompida por uma morte precoce, mas também porque o pensamento vigoroso que exprime preferia o gênero do ensaio e da crônica, evitando a elaboração de um sistema, como se seu autor não só recusasse mestres , mas também discípulos. Algumas vezes Clastres anunciou o projeto de conjugar sua reflexão sobre a sociedade primitiva com uma pesquisa sobre a emergência do Estado, ou a


ruptura do ser social primitivo. Entretanto, nada escreveu de concreto (I 977: I .P ). Estamos seguros de que, acaso viesse a realizar o projeto, seguiria afastando-se cada vez mais de uma distinção teórica, a nosso ver enganosa, entre o ser e o fazer da sociedade, e que o . diálogo que procurou criar com os selvagens nos mostraria como somos, mais do que uma sociedade com Estado, uma sociedade a favor do Estado. Uma última palavra e terminamos. Em um ensaio intitulado Whitman, poeta da América, Octavio Paz, retomando uma sugestão de Reyes, escreve que "a América é a súbita

encarnação de uma utopia européia". O que mais nos atraiu ai é a conjectura de que a invenção de Whitman, a América-texto poético, não é essencialmente distinta da América histórica. Ambas têm o mesmo sonho com uma realidade que se projeta infatigavelmente no porvir. É por nos parecer que Clastres também tem muito de inventor de uma outra América que demos ao nosso trabalho o título que tem. Trata-se, desta vez, de um sonho que nos dirige tanto ao passado longínquo como ao momento mais atual: dos selvagens Yanomami que ajudou a conquistar, ao retraído paraguaio que, em um estabelecimento indígena destinado a visitas turísticas, examina com presteza a ponta de sua flecha. Tânia Stolze Lima é professora do programa de pós-graduação em antropologiae ciência politi-

ca da Universidade Federal Fluminense, e desenvolve, desde I 984, um trabalho de pesquisa com o povo Juruna do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso. Mareio Goldman é professor do programa de pós-graduação em antropologia social (Museu Nacional) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do CNPq e do Núcleo de Antropologia da Politica (NuAP, Pronex), com projetos sobre politica e eleições desenvolvidos em Ilhéus, sul da Bahia.


Buscando rn:~úà:f:éiafez;a, deéídífuôs··réínêter tódos Q's .én~~tlbs d'e' Pie.rre G1!1st:rd à pa,t.'l d.e: publicação ~riginal, embora aqueles qu~Íor~~ ~eêclí'ta:dps~Uí:l.<i-.-.&i?e}~é~.(::ohtt;;{:Êtat (SCE)·e

Recherches d'Anthropologie Politique (RAP) ten_h~m sido .<iion~tilta'éló~·p~S,~e.s Çoi~Ji'yros.. I 96 2 "Échange et pouvoir: philosophie de la chefferie i;rofeiJ.h~'':,irl:La Soáét'lú?ÍÍf!et,Etat. · '

.

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'

Paris, Minuit, I 974· I 96 3 "Indépendance et exogamie" ( SCE).

.

_

I 964 "Compte rendu de mission chez les indiens Guayaki (Par~g4a)'f~ : .t':Homme,,"vol.' i~):r.· pp. I 22- 5 . 966 "L' Are et le panier" (SCE). 2,

I

967 "Mission au Paraguay et au Brésil". L' Homme, vol. VII, n. 4, pp, I o Í--;IL . . I 967a "Ethnologie des indiens Guayaki: la vie sociale de la tribu". L'Homme, vül.VII;n. 4, pp: I

s - 24. I 967b "De quoi rient les indiens" (SCE).

I 968

"Ethnographie des indiens Guayaki". journal de la Société des Américanistes, vol. LVII,

PP· 7-6I. I 96 8a "Entre silence et dialogue" in: Bellour, Raymond et Clément, Cathérine (orgs.). Clau-

de Lévi-Strauss. Paris, Gallimard, I979, pp. 33- 8. I 969 "Copernic et les sauvages" (SCE). I 969a "Une Ethnographie sauvage"in: Recherches d'Anthropologie Politique. Paris, Minuit, I 980. I 970 "Prophetes dans la jungle" (SCE). I 97 I "Le Clou de la croisiere"(RAP) .

Chronique des indiens Guayaki. Paris, Plon . I 97 2- 3"De l'Un sans le multiple" (SCE). I 97 2

I 97 3 "Élém ents de démographie amérindienne" (SCE). I 97 p "Le Devoir de la parole" (SCE). I 974 "La Société contre l' État" (SCE). I 974a Le Grand parler. Paris, Seuil.

3IO


1974b"De l'ethnocide"(RAP). 1976 "La Question du pouvoir dans les sociétés primitives"(RAP) . 1976a "Liberté, malencontre, innommable"(RAP). 1976b "L'Économie primitive"(RAP). I 977 "Le Retour des lumieres"(RAP). I977a "Archéologie de la violence: la guerre dans les sociétés primitives"(RAP). 1977b "Malheur du guerrier sauvage"(RAP). I 978 "Les Marxistes et leur anthropologie"(RAP). I 980 "Mythes et rites des indiens d' Amérique du Sud"(RAP) . Muitos dos artigos citados neste ensaio figuram nas seguintes edições brasileiras: A sociedade contra o Estado-pesquisas de Antropologia Política. Rio de Janeiro, Francisco Alves,

1990. A fala sagrada. Mitos e cantos sagrados dos indios Guarani. Campinas, Papirus, 1990. Crônica dos índios Guayaki-o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai . São Paulo, Edi-

tora 34, 1995·

* Escr evemos este texto há muito t empo. Sua intenção não era apresentar em

detalhes o conjunto da

obra de Pierre Clastres, nem elaborar nenhum tipo de recensão crítica. Partimos, ao contrário, da força que essa obra exerce, e do ar de liberdade que aí se respira, e buscamos analisar, em um certo número de pontos específicos, as razões para isso. É a m esma força que nos fez enfim decidir publicar este t exto praticamente tal qual foi escrito no verão carioca de r 9 8 6 . Apenas no ano seguinte seria publicada a coletânea organizada por Miguel Abensour, L' Esprit des lois sauvages (Paris, Seuil, I 98 7), que resultou de um seminário organizado na França sobre a obra de Clastres. Se escrevêssemos hoje, procuraríamos situá-la não apenas nesse debate que estimulou no contexto da filosofia política, como também no debate que só na aparência não teria estimulado na etnologia sul-am ericanista das terras baixas. É preciso assinalar, igualmente, que a "homenagem à m em ória de Pierre Clastres", prestada por D eleuze e Guattari em Mille plateaux (Paris, Minuit, I 98o ), foi fundamental para nossa leitura.



Em I 6 .. , Blaise Pascal, ele mesmo um adepto dos métodos da ciência, propôs aos ateus um desafio que, como o célebre teorema de Fermat-não por acaso seu conhecido e correspondente-, ficou por séculos sem solução, pelo menos até a morte do meu tio jesuíta, que tinha um câncer no cérebro. Dirigindo-se aos homens da razão, Pascal os desafiou a fazer a melhor escolha baseados exclusivamente na lógica que tanto prezavam: assim como não podemos conhecer o infinito e, no entanto, sabemos que ele existe (simplesmente porque seria falso dizer que os números são finitos), também podemos supor que haja um Deus embora não possamos saber o que ele é . Diante da incerteza, portanto, perguntava Pascal, não seria logicamente mais vantajoso aos homens, além de mais racional e ponderado, apostar na existência de Deus e não na sua inexistência? Se ainda assim, depois de uma demonstração tão lógica, e pesando o muito que tinha a ganhar e o pouco a perder com tal aposta, o ateu persistisse na sua incredulidade em relação ao incompreensível, estaria provado que agia na sua teimosia por paixão e que nada tinha da racionalidade que exaltava e reivindicava para a sua conduta. Em I953, enquanto fazia uma pesquisa na biblioteca da Ordem, meu tio jesuíta tomou conhecimento da armadilha lógica proposta por Pascal e dai em diante passou a vida tentando conceber, por mais paradoxal que pudesse parecer a um religioso, um mundo onde já não seria racional apostar na existência de D eus. Passou o resto da vida tentando desmontar o silogismo de Pascal, como um matemático à procura da solução de um teorema. Jesuíta tradicional e conservador até as raias da caricatura, no intimo ele ainda mantinha acesas as desavenças contra os desaparecidos jansenistas, como se vivesse no século XVII. Achava que aquela demonstração não passava de um sofisma e que portanto só podia enfraquecer o argumento da fé em Deus. Em I 98 2, um ano depois da morte do meu tio, para o meu desespero e perdição, ao sairmos de um túnel minha mãe me disse no carro que, no delírio da sua agonia, entre uma aula e outra de biologia, de física ou de matemática que proferia amarrado à cama do quarto de hospital-para constrangimento das eventuais visitas que precisavam r esponder


a suas perguntas e entregar os deyeres de casa como se fossem alunos disciplinadosele teria revelado a solução para a sua lónga busca, diante de uma única enfermeira que não podia prestar atenção no que el~ dizia, pois tentava acalmá-lo e mantê-lo deitado _a despeito das amarras que sua excitação por pouco não o levava a arrancar~- Te,ria chegado por fim, na demência, ao que tanto procurara pela razão: Teria feito a descrição detalhada desse lugar imaginário onde o sofisma de -Pasca:l já não teria o menor sentido ou efeito. Sua utopia. O mundo dos seus sonhos e pesadelos, onde apostar na existência de Deus já não seria mais vantajoso. E de lá para cá, tentando inutilmente concebe~ o que poderia ser tal mundo, nunca mais consegui pensar em outra coisa, embora sinta, ainda sem poder conhecê-lo, já estar vivendo nele. Bernardo Carvalho é escritor e jornalista, autor de Teatro, As iniciais e Medo, de Sade, entre

outros livros.


Corpo editorial

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Evelyn Schuler

Licenciada e m A n t r o p o l o g i a , Filosofia c T e o r i a Literária na U n i v e r s i d a d e d e B a s e l / S u í ç a e pesquisadora d o N ú c l e o d e História Indígena e d o I n d i g c n i s m o / U S P . [evelynschulcr@hotmail.com]

Florencia Ferrari Cientista Social ( U S P ) , mestranda e m A n t r o p o l o g i a S o c i a l / U S P , p e s q u i s a d o r a d o G r u p o . d e A n t r o p o l o g i a V i s u a l / U S P e holsista da Fapesp. [florcncia@ig.com.hr]

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Paula Miraglia Cientista Social ( U S P ) , mestranda e m A n t r o p o l o g i a S o c i a l / U S P e p e s q u i s a d o r a d o G r u p o • '

dè A n t r o p o l o g i a V i s u a l / U S P . -

'

[paulimi@uol.com.hr]

Renato

Sztutman

Cientista Social ( U S P ) , jornalista ( P U C / S P ) , m e s t r e e d o u t o r a n d o e m A n t r o p o l o g i a S o c i a l / U S P , pesquisador d o G r u p o d e A n t r o p o l o g i a V i s u a l / U S P c d o N ú c l e o d e História Indígena c d o I n d i g e n i s m o / U S P . . [sztutman@uol.corh.hr]


Rose Satiko Hikiji Cientista Social ( U S P ) , jornalista ( I M S ) , mestra e doutoranda ém Antropologia Social/ USP, pesquisadora do G r u p o de Antropologia V i s u a l / U S P e bolsista da Fapesp. [satiko@usp.br] Silvana

Nascimento

Cientista Social ( U S P ) , jornalista ( P U C / S P ) , mestra e doutoranda e m Antropologia Social/USP, pesquisadora do N ú c l e o de Antropologia U r b a n a / U S P e bolsista da Fapesp. [silnasc@usp.br] Stélio Marras Cientista Social- (USP)-e mestrando e m Antropologia Social/USP. • [smarras@usp.br] . • .

Valéria Macedo '

.

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Cientista Social ( U S P ) , graduada e m Cinema ( F A A P ) , mestranda e m Antropologia Social/USP, pesquisadora do G r u p o de Antropologia V i s u a l / U S P e m e m b r o da equipe do projeto Povos Indígenas no Brasil do Instituto Socioambiental. .

[vvaall@uol.com.br]


Ficha

técnica

corpo.editorial F.velyn S c h u l c r , F l o r ê n c i a F e r r a r i , Paula M i r a g l i a , R e n a t o S z t u t m a n , R o s e S a t i k o H i k i j i , Silvana N a s c i m e n t o , S t é l i o M a r r a s , V a l e r i a M a c e d o .

concepção Evelyn S c h u l c r , F l o r ê n c i a F e r r a r i , K i k o F e r r i t e , Paula M i r a g l i a , Paula P i n t o e

Silva,

R e n a t o S z t u t m a n , R o s e S a t i k o H i k i j i , Silvana N a s c i m e n t o , S t é l i o M a r r a s , V a l e r i a M a c e d o .

projeto

gráfico

Rodrigo Gervino Lopez

conselho

editorial

Alcir P é c o r a ( U n i c a m p ) , Aparecida Vilaça ( M u s e u N a c i o n a l ) , Beatriz

Pcrronc-Moisés

( U S P ) , Glarice Peixoto ( U E R J ) , D o m i n i q u e Gallois ( U S P ) , Eduardo Viveiros de Castro (Museu

Nacional), Etienne

Samain

(Instituto de A r t e s — U N I C A M P ) ,

Ismail

Xavier

( E C A / U S P ) , G u i t a G r i n D c b e r t ( U n i c a m p ) , H e i t o r F e r r a z ( P o e t a ) , H e n y o T. B a r r e t t o Filho ( U n B ) , J o s é de Souza Martins ( U S P ) , J o s é G u i l h e r m e Magnani ( U S P ) , Julio W a i n e r ( P U C ) , Filia M o r i t z Schvvarcz ( U S P ) , M a n u e l a C a r n e i r o da C u n h a ( U n i v c r s i t y o f C h i cago), Mareio Goldman (Museu Nacional), Maria Fucia M o n t e s ( U S P ) , Mariza C o r r e a ( U n i c a m p ) , O m a r R i b e i r t o T h o m a y ( U N I C A M P ) , O t í l i a A r a n t e s ( U S P ) , P e t e r Pál P e l bart ( P U C ) , Pierre Sanchis ( U F M G ) , Philippc D e s c o l a ( E H E S S ) , R o b e r t o D a M a t t a ( U n i v e r s i d a d e de N o t r e D a m c ) , Sylvia C a i u b y N o v a e s ( U S P ) , V a g n e r G o n ç a l v e s da Silva (USP),Walnicc Nogueira Galvão ( U S P ) .

revisão

• •

CristinaYamazaki c Lívio Lima de Oliveira


colaboradores Cesar G o r d o n , Chico L o p e s , Franklin L e o p o l d o e Silva, Guilherme Wisnik, Henyo T. Barrctto Filho, Maria das Graças de Souza, Paula M o n t e r o , Paulo Eduardo Arantes, Tânia Stolzc Lima, Mareio G o l d m a n , Bernardo Carvalho c Walnice Nogueira Galvão fotolitos Editora 34 impressão Prol Editora Gráfica apoio Nanograph

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agradecimentos Alcir P é c o r a , Beatriz A z e v e d o , Bia Labate, Cassiano Elek Machado, Daniel Augusto, David Marques de L e m o s , Deborah O s b o r n , Edson Passetti, Eduardo Jordão N e v e s , G u i d o Mântcga, Hélio C a m p o s M e l l o , Ivanetc, J o ã o A m o r i m N e t o , J o s é Lira, José Luis Fiori, Leila Marrach Basto de A l b u q u e r q u e , Leon Ferrari, Luiz Schwarcz, Maria das Graças de Souza, Mayana Z a t z , Mônica Teixeira, Otília Arantes, Philippe Dubois, Renato Cymbalista, Soraya G e b a r a , Spcnsy Pimentel, Sylvia Caiuby Novaes,Tatiana Bacic O l i c , T i a g o R o d r i g u e s , Vânia Fcichas Vieira. agradecimento especial Mareio Ferreira da Silva


Aos colaboradores A Sexta Feira r e c e b e artigos, ensaios, t e x t o s literários, entrevistas. Todo o material recebido será submetido a uma avaliação prévia dos editores e,do Conselho Editorial, que decidirão o seu ajuste à linha editorial e ao tema da edição. O limite para os textos é de 15.000 caracteres. O s autores deverão apresentar o crédito a* ser publicado. O t e m a do p r ó x i m o n ú m e r o é G u e r r a . O. material deve ser enviado para a Editora 3 4 , •rua H u n g r i a , ^ 9 2 , J a r d i m Europa c e p o 1 4 ^ — 0 0 0 São Paulo SP Brasil T / F 3 8 1 6 - 6 7 7 7 e d i t o r a 3 4 @ u o l . c o m . b r ou para o . c o r p o editorial para p l e t o r a @ i g . c o m . b r . A Sexta Feira está indexada e m : I U P E R J , Ulrich's International.Periodicals D i r e c t o r y e . C l a s e — C i t a s Latinoamericanas e m Ciências Sociales y Humanidades.


NANOGRAF


11

O real e seu avesso: as utopias clássicas

Maria das Graças de Souza

Qual

25

estação do porvir (por causa de uma visão em Chico Buarque) Stélio Marras 53 Utopias missionárias na A m é r i c a Paula Montero 85 Utopia e fabricação da cidade GuilhermeWisnik 103 Essa incansável tradução ]entrevista[ Nossas utopias não são as deles: os Mebengokre

com D o m i n i q u e T i l k i n Gallois

123

(Kayapó) e o mundo dos brancos

Cesar Gordon

139

Utopias tecnológicas, distopias

ecológicas e contrapontos românticos: "populações tradicionais" e áreas protegidas nos trópicos

Henjo T. Barretto Filho

153

D a virada cibernética aos abismos da globalização

lentrevista[ c o m L a y m e r t Garcia dos Santos

163

G e n é t i c a e ética

Franklin

Leopoldo

Uma festa sem fim—elogio a Os errantes do novo século Silvana Nascimento 189 Duglas Teixeira Monteiro, um intelectual a contracorrente (1926-78) WalniceNogueira Galvão 199 Pílulas de contra-utopia (entrevistai com José Arthur Giannotti 211 ]Entrevista[ inacabada de uma . pergunta só com Paulo Eduardo Arantes 227 Nação c imaginação Paulo e Silva.

Eduardo

17c

Arantes

c o m Lula

269

inesquecível Mareio Goldman

D e gestos e políticas: utopias r e a l i z á v e i s — l i g e i r a ]entrevista[

2 cç

Ilhas de histórias ]entrevista[ com Jorge Furtado

Chico Lopes 313

291

279

Futuro

Pierre Clastres, etnólogo da América Tânia Stolze Lima e

O inferno de Pascal

Bernardo

Carvalho


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