Estação de S. Bento

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Estação de

S.Bento

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Nuno Jennings Tasso de Sousa


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Praça Almeida Garrett, fotografia de Emilio Biel, 1900

No ano de 1896 comemorava-se efusivamente a chegada ao Porto

ferro, das suas infraestruturas e instalações complementares em várias

da primeira composição junto à plataforma de desembarque ainda a céu

partes do mundo ocidental, a cidade do Porto foi, até aos primórdios

aberto, implantada sobre um espaço antes ocupado pela ala norte do

do séc. XX, objeto de várias intervenções de natureza arquitetónica e

Convento de São Bento. Decorriam 63 anos após concluída a primeira

urbanística, fruto do grande investimento em curso. Para tal progresso,

estação de caminho de ferro no mundo, em Crown Street na cidade de

terá contribuído a previsão e a posterior chegada efetiva do novo tipo de

Liverpool, em Inglaterra (1830). Desde essa data, que coincide com

transporte terrestre cuja linha teve início em Lisboa no ano de 1853, que

início da circulação intensiva de combóios destinados ao transporte

veio a refletir-se no acelerado desenvolvimento industrial e comercial

público de passageiros e de mercadorias, foram executados milhares de

da sua área urbana, segundo um modelo expansionista com um impacto

quilómetros de linhas de caminho de ferro naquele país, nos Estados

profundo na sua fisionomia.

os investimentos realizados na Alemanha e na França, entre outros.

Onze anos depois, em 1864, a linha do norte alcança Vila Nova de Gaia, no lugar das Devesas, e finalmente Campanhã, a norte do rio Douro,

Em cada local de partida e de chegada, bem como nos vários núcleos

no mesmo ano da inauguração da Ponte D. Maria Pia, em 1877. Aí já se

urbanos dispostos ao longo dos inúmeros traçados entretanto

encontrava em funcionamento a estação terminal da linha do Minho,

desenvolvidos ergueram-se estações, cabendo às terminais um

situada na quinta do Pinheiro na vizinhança do limite nascente da cidade.

destaque especial que incidiu sobre a forma e o dimensionamento dos espaços edificados, devido em grande parte, ao cariz simbólico das partidas e chegadas de viagem.

Devido ao facto deste equipamento ficar muito afastado do seu núcleo, onde na época vivia a parcela mais significativa da população, gerou-se uma forte contestação por parte das mesmas forças vivas portuenses

Dezassete anos depois de ter entrado em funcionamento este novo

que, anteriormente, se tinham manifestado de modo expressivo contra

equipamento urbano com uma tipologia inédita, surgiu uma reflexão

a hipótese de ser construída uma única gare em General Torres, no

por parte do arquiteto e engenheiro François Léonce Reynaud, no Traité

vizinho concelho de Gaia. Ao ser implantada à face do novo traçado

d’ Architecture (Paris, 1850), de sua autoria, onde descreve duas das três

viário de eixo alinhado com o tabuleiro superior da Ponte Luís I,

categorias diferenciadas entre si, conforme registou Carroll L. V. Meeks em

inaugurada em 1886, constituiria uma maneira de a aproximar ao centro

The Railroad Station - An Architectural History (Dover, 1995). Estas vêm, ao

do Porto sem ter de realizar um ramal específico a partir de Campanhã,

longo dos tempos, a constituir a base programática e o suporte dos esquemas

cuja construção apresentava dificuldades técnicas assinaláveis e

base de organização e distribuição dos espaços das gares ferroviárias. São

consequentes custos elevados.

elas: as de acolhimento de um só lado das linhas; as de cais em ambos os lados; as de acolhimento frontal das linhas designadas por terminais.

Tudo leva a crer que as elites portuenses tinham uma noção clara dos benefícios do caminho-de-ferro, o qual, graças à sua capacidade de

Ultrapassada a primeira metade do séc. XIX, durante a qual foram

transporte de massas, funcionava como agente “catalisador” e gerava

percorridos os primeiros passos no desenvolvimento dos caminhos de

uma abrangência territorial da cidade sem precedentes, a provocar

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Unidos da América do Norte e na Europa continental. Aí se destacaram


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Planta Topogrรกfica do Porto (pormenor), 1903.


José Marques da Silva, Une Gare Centrale, Desenho para o Concurso do Diploma de Arquiteto pelo Governo francês, 1895

uma redução do impacto do meio rural na vida económica e social da

diferenciadas, quanto ao seu uso e localização: a de passageiros situada

região que pretendiam industrializar. Assim, se atraía a mão-de-obra

o mais próximo possível do centro cívico que consagraria a nova

necessária às novas indústrias.

centralidade; e a outra exclusivamente destinada às mercadorias a

Resultava daí, que a interação dos aglomerados populacionais dispersos

implantar junto à Nova Alfândega.

pelo território passava a ser diferente, representando a estação um

Tendo prevalecido o princípio do desdobramento dos respetivos

momento lapidar na evolução da cidade, em que o aglomerado de

serviços, foi eleito como local mais apropriado para a chegada e partida

tradição medieval finalmente dava lugar a uma urbe liberta do casco

das composições de passageiros, o espaço ocupado pelo Convento de S.

histórico. Sem dúvida, era uma oportunidade única para consolidar o

Bento da Avé-Maria desde o século XVI. Sucedeu-se a adjudicação da

centro cívico, entretanto deslocado do seu lugar tradicional, envolvendo

obra do ramal proveniente da estação de Campanhã ao Eng.º Hippolyte

agora a Praça Nova (atual Praça da Liberdade) implantada sobre um

de Baère, no ano de 1887, cumprindo-se finalmente o legítimo desejo

espaço aberto já fora do perímetro do burgo medieval e onde a câmara

dos portuenses.

municipal se tinha instalado num palacete existente, que foi reabilitado para o efeito em 1820.

José Marques da Silva (1869-1947) que ingressara em 1890 na Escola de Belas Artes de Paris, como aluno de arquitetura, encontrou uma

No decurso do debate em torno da sua localização, foi aventada a

das cidades do mundo onde o impacto das gares do caminho de

hipótese de articular a chegada desta recente modalidade de transporte

ferro mais se fez sentir. Entre os vários protagonistas desse processo

com os tradicionais meios de navegação, marítimo e fluvial, sobre um

podem-se destacar, entre outros, Léonce Reynaud (1803-80), François

local onde poderiam vir a convergir passageiros e mercadorias. Segundo

Duquesney (1760-1849), Victor Lenoir (1805-1863), Hector Horeau

esta perspectiva, seria apropriada a plataforma situada na margem norte do rio Douro, sobre a qual já assentava a Nova Alfândega concluída no ano de 1869. Em simultâneo, criava-se um cais de descarga, exclusivo àquela instituição oficial, e procedia-se à regularização da margem ribeirinha até ao Cais da Estiva. Ambas intervenções decorreriam como obras complementares ao esforço para adaptar a cidade aos recentes desafios do comércio internacional e da acrescida circulação de cidadãos, processo esse relacionado com a criação da Bolsa, de novos Bancos, de Fábricas e do Palácio de Cristal destinado a exposições, espetáculos e a passeio público, reveladores da intensa dinâmica e da empenhada cidadania dos empresários do burgo. 6

Projeto de Marques da Silva, in Os Pontos nos ii, 1897

Outra ideia subjacente era a da construção de duas estações

(1801-72), Violet–le-Duc (1814-79) e Victor Laloux (1850-1937), cujos projetos, textos teóricos e técnicos, constituiram para as disciplinas de arquitetura e de engenharia uma referência incontornável. Na qualidade de aluno, ao frequentar o atelier daquele último que foi autor respetivamente das estações da Gare d’ Orsay e de Tours, testemunhou uma notável dinâmica de inovação dos transportes públicos terrestres que terá contribuído, a par das notícias que recebia, para apresentar como trabalho final para a obtenção do diploma, em 1895, o projeto da Gare Central da cidade do Porto. Foi, sem dúvida, um modo de sinalizar que estava atento aos acontecimentos na sua terra natal, em particular à execução dos túneis sob o morro da Cividade e das plataformas que viabilizariam o acesso do combóio de passageiros ao centro urbano.


Litografia oferecida ao Conselheiro Pereira de Miranda, 1901

O estudo foi por ele editado, sob a forma de litografia para oferecer às

o mundo, arquitetos e engenheiros, em libertarem-se dos estilos

autoridades, viria a dar oportunidade a um prolongado debate, durante

historicistas e regionalistas, numa época em que surgiam formas

o qual o arquiteto foi submetendo toda uma série de propostas diferentes

inovadoras devidas ao emprego de materiais produzidos em massa pelas

(esboços), sempre no género definido como frontal de planta em U. Sem

industrias modernas. Ainda hoje, entre nós, esta tecnologia construtiva

dúvida, a iniciativa revelava um conhecimento profundo sobre esta

que dispensa o recurso a paredes portantes, enfrenta dificuldades de

classe de edifícios cujo surgimento no tecido urbano era recente, seja

aceitação, decorridos mais de cem anos sobre aquela data.

sob o ponto de vista programático, seja pelo aspecto plástico, acabou por conduzir à encomenda do projeto definitivo do edifício da estação em 1899.

No entanto, aquele que viria a ser o grande protagonista deste processo - o Arquiteto - não era de esmorecer face a tamanha dificuldade. Assim, veio a encontrar uma solução de consenso, configurada sob a forma

Perante o “arrojo” da nova arquitetura do ferro e do vidro, onde o

de um palácio renascentista francês com coberturas amansardadas,

espaço das plataformas de embarque e o da área de acolhimento e de

à face da praça Almeida Garrett, que abriga um vestíbulo de grandes

escoamento dos passageiros era formado por uma nave única que se

dimensões a preencher grande parte da àrea de implantação do corpo

fazia anunciar na fachada principal, as reações não se fizeram esperar.

frontal. Esta imensa massa pétrea, rasgada por altos portais encimados

Mesmo a proposta alternativa de sugerir um modo formal de cariz

por arcos envidraçados que recordam a imagem de marca das estações

pitoresco frequentemente utilizado nos promórdios desta recente

gaulesas, encobre o outro corpo destinado a albergar as plataformas

tipologia edificada, não foi bem recebida entre uma sociedade que

de passageiros, onde se revela a linguagem arquitetónica de índole

combinava em intenso progresso com um conservadorismo arreigado

tecnológica e funcionalista própria dos novos tempos. Aí predomina

que se exprimia através do gosto pelo neoclassico de influência inglesa. Apesar de não ceder ao estilo “oficial”, ou instalado, entendeu manter a tradição do uso da cantaria em granito nas fachadas de edifícios institucionais e representativos que vinham sendo construidos Os esboços iniciais expunham bem as possibilidades do emprego do aço para proporcionar amplos vãos estruturais e espaços interiores de grande dimensão, ainda amparados por corpos laterais em alvenaria, necessários ao “contraventamento” de tais estruturas por não estarem disponíveis meios técnicos eficazes que permitissem desmaterializar os limites dos edifícios.

uma estrutura metálica desdobrada, composta por asnas triangulares do sistema Polonceau, revestidas a telha e vidro, apoiadas em colunas de ferro fundido pouco espaçadas, configurando um espaço arquitetónico complexo e mais intimista, ao invés da imensa nave de volume único percetível como um todo, que tinha proposto inicialmente. Aprovada a última proposta, que aderia inteiramente ao programa recomendado por Léonce Reynaud no seu tratado, seguiu-se o aprofundamento do projeto e a execução da respetiva obra, a qual decorreria em simultâneo com os demais estudos, como era usual na época. Este processo veio a revelar-se muito atribulado, tendo, inclusive,

Em todo o caso, aqueles estudos espelham bem as enormes dificuldades

passado pelo despedimento do arquiteto e pela previsível retoma da sua

reveladas pelo próprio autor, ou melhor, pelos projetistas de todo

participação algum tempo depois. As consequências da confrontação

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Estudo de alçado com a instalação do serviço central de Correios e Telégrafos, s.d


Corte longitudinal .

seriam inevitáveis pelo que, entre outros aspectos, não será de estranhar

avançadas naquela altura e verificar a sucessiva alteração das formas. As

o propagado esquecimento das bilheteiras tenha sido atribuído ao autor,

torres laterais, com um desempenho estrutural seguramente justificável,

como ainda é voz corrente. A sua ausência é desmentida pela imagem

estavam inicialmente reduzidas ao mínimo, aparentando um mero

registada num postal da época, onde se constata terem sido executadas

suporte dos enormes relógios, cujo tamanho dramatizava a importância

em madeira e vidro, com um cariz efémero, conforme era habitual em

fulcral do tempo, na era dos transportes de massas e no contexto da

diversas estações europeias.

industrialização. São modeladas, diríamos quase livremente, de tal

Faz sentido que a análise crítica deste edifício e da sua envolvente urbana que se encontram praticamente num estado pristino, a menos

confirmar para uns, os atributos eróticos da arquitectura, e para outros

do vazio provocado pela irrupção da alameda D. Afonso Henriques em

algumas imagens de ficção presentes na banda desenhada.

direção à Ponte Luís I, dê primazia à observação direta, pois o discurso

À medida que se sucedem os estudos alternativos constata-se uma

escrito tenderá, neste caso, a distorcer a realidade objetiva que aí se nos

gradual valorização da presença daqueles elementos a formar gaveto,

depara. Nessa medida, referiremos somente o suporte disciplinar que o

acompanhando a crescente materialização do corpo central do alçado,

informa e, por outro lado as questões que a conceção da Estação de S.

o que lhes veio a conferir um destaque bem diverso do inicial. Trata-se

Bento levantou em relação à sua envolvente. Mesmo que algumas delas

de um notável jogo de formas, que se pautam mais pela dialética entre

tenham permanecido sem resposta até aos dias de hoje.

a materialidade e a imaterialidade, do que por uma questão de estilos

Este profissional de génio, reconhecido já no âmbito escolar, em Paris, -

ou de linguagens, conformes à disciplina da arquitetura. Processa-se a

onde sua memória prevaleceu por bastante tempo - modelou os diversos

gradual transformação da imagem de vitalidade e irreverência próprias

volumes de forma a relacionar cuidadosamente o corpo frontal da Estação

de um jovem arquiteto, ansioso em veicular as novidades estéticas

com os espaços exteriores imediatos: a Praça Almeida Garrett, a poente,

e tecnológicas face a um modelo institucionalizado que refletia a

a Rua do Loureiro (a sul), e a Rua da Madeira (a norte). Na transição dos

identidade de uma “urbe pétrea”, como se pode caracterizar o Porto.

planos de cada fachada alinhada pelos arruamentos envolventes surgem

Vale a pena destacar a maneira como ousou compatibilizar a

as duas torres que flanqueiam a frente e demarcam os corpos laterais, respetivamente destinados ao Centro de Comunicações (a sul), e aos armazéns de acolhimento e de expedição de mercadorias (a norte). Uma pontua o “enfiamento” do eixo da Rua Mouzinho da Silveira à maneira do desenho urbano barroco e outra assinala discretamente a Estação quando avistada partir da Praça da Liberdade.

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modo que segundo algumas das atuais correntes reflexivas tendem a

confluência dos arruamentos laterais com a estação e o vasto espaço público fronteiro, à custa do imenso vestíbulo configurado como uma praça coberta, rasgada por amplas aberturas em todas as direcções. Desenvolvido ao nível do piso térreo, este espaço desempenha o papel de assegurar a permeabilidade pedonal entre aquelas vias, conjuntamente com a o acesso às plataformas de embarque. Ultrapassada aquela

Graças ao conjunto de esboços que chegaram até aos nossos dias, é

dificuldade, Marques da Silva procurou ainda articular o nível geral

interessante retomar o percurso da apresentação das várias hipóteses

da construção com o perfil inclinado da praça contígua, a poente,


cuja configuração resultava de sucessivas intervenções urbanas cuja

influência do seu mestre Laloux, repescou um modelo de um palácio

diacronia é indisfarçável.

francês do renascimento (séc. XVII) também utilizado na estação de

cionalmente majestática, conforme se confirma na sua memória

Amesterdão, ambos matizados pelas diferentes culturas, inclusive a dos materiais construtivos,

descritiva, sem par com as restantes fachadas envolventes, o arquiteto

Pode-se afirmar que o projeto final, apesar de alguma austeridade e

refez o desenho daquele espaço urbano. Para o efeito, articulou a

rigidez, é precusor da influência da arquitetura francesa historicista

variedade de situações que vão desde a complexidade topográfica,

do período Beaux-Arts, que veio a pôr termo ao neopaladiano anglo-

à descontinuidade de alinhamentos e às diferentes secções dos

saxónico prevalecente na cidade do Porto, conforme referimos. Entre os

nove arruamentos que aí convergem, aos quais há a acrescer as duas

sinais desta mudança será de destacar a drástica redução da presença de

servidões laterais aos cais. Tudo a perfazer um total de onze ligações na

frontões, pilastras ou colunas na fachada e, por outro lado, a emergência

sua imediação, a concorrerem de modo descontrolado para aquela área

de hesitações “estilísticas”, resultantes da profunda e aturada investigação

disforme, contígua à antiga Porta dos Carros. Conforme se constata na

teórica que caracterizou a Escola de Paris durante o século XIX.

planta geral, ele desenvolveu uma distribuição geometrizada que se baseava numa pequena rotunda no topo sul, na cota de chegada da Rua Mouzinho da Silveira (1872) localizada num ponto onde distribuia radialmente seis dos arruamentos, a sul. Os restantes permaneceram acantonados no extremo oposto, a norte, junto à fachada da Igreja dos Congregados.

Trata-se de um processo de ruptura com um passado de vários séculos, durante o qual era difícil esconder as dúvidas, explícitas através da permanência de elementos “antigos”, que, por vezes, confundem o profundo racionalismo subjacente e um futuro já em plena gestação. Ambos são bem percetíveis graças ao rigor geométrico e à ortogonalidade

Estamos perante uma das primeiras intervenções em espaços públicos

sistemática das projecções em planta, bem como na elegante estrutura

exteriores, onde Marques da Silva começa a revelar uma consciência

metálica que suporta a extensa cobertura da gare. Tudo concebido

apurada do desenho urbano. Ao debruçar-se sobre uma questão bem

segundo um critério de desenho com grande rigor e simplicidade, que

complexa, aproveitou a oportunidade para abordar outro assunto que já

abrange grande parte do conjunto edificado.

tinha antecedentes associados à localização da Ponte Luís I. O alinhamento do tabuleiro superior desta, que determinou o do traçado da atual Avenida da República em Gaia, também sugeriu o seu prolongamento para norte na direção da Praça Almeida Garrett, onde a Estação Central do Porto poderia marcar assinalável presença como remate do extenso eixo a unir as centralidades modernas dos dois aglomerados.

Esta estação “terminal”, com a gare coberta, ofereceu à cidade uma nova tipologia, cujos atributos a remetem para a terceira geração desta família de edifícios de planta em “U”, a distinguir-se como construção pública afrancesada, sem a encontrar “sacralizada” pela presença do usual do frontão clássico na fachada principal. Apesar da opção formal de índole historicista de raíz estrangeira, aquele espaço ficou bem marcado pelos

Sem dúvida que o corpo frontal da gare reflete um recuo perante a

hábitos culturais portugueses de revestir espaços interiores, privados e

resistência oferecida pelas autoridades, apesar de colher alguma

públicos, com painéis de azulejos cuja temática figurativa não escapou

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Perante a grandiosa presença do corpo frontal da Estação, inten-


Fotografia do Vestíbulo da Estação, com as bilheteiras e iluminação original, Aquivo CP

à influência das tendências históricas e nacionalistas, associadas a

Pena é que aos pés de uma obra carismática da cidade, cujo autor foi um

apontamentos regionalistas que já se exprimiam entre nós à data, tanto

dos mais dignos intérpretes do mote de Vitrúvio – Venustas, Utilitas e

na literatura como nas artes plásticas.

Firmitas –, pouco ou nada aparenta a conformidade com estes ideais,

Da autoria de Jorge Colaço, o notável conjunto azulejar (1915), rematado superiormente por um friso historiado sobre os transportes que se tornou num elemento chave da iconografia urbana do Porto, já estava previsto numa estimativa orçamental anteriormente elaborada por Marques da Silva.

apesar dos inúmeros estudos elaborados desde os finais do século XIX até aos presentes dias. Ao invés da incongruência de sucessivas intervenções pontuais, à maneira das cidades informais, poderia ocorrer uma convergência colaborante entre as várias entidades representadas na Praça Almeida Garrett cuja presença a tranformou num verdadeiro “campo de batalha” quanto ao seu uso com evidentes reflexos

Apesar da primeira pedra ter sido assente em 1900 na presença do rei D.

formais. Aí ocorre diariamente um conflito entre diversos tipos de

Carlos, as obras tiveram início efetivo em 1903. Seguiu-se a inauguração

transportes motorizados, públicos e privados, do qual os peões tentam

da gare em 1915 e, coincidindo com o 6º aniversário da proclamação da

desembaraçar-se sob constante ameaça da sua integridade física.

República, o vestíbulo só ficaria aberto ao público no ano seguinte.

No sentido de ir ao encontro de uma resposta qualificada dirigida aos

Decorridos cem anos sobre a inauguração do vestíbulo da Estação

cidadãos, tanto a CP, como os SCTP, os Táxis, o Metro, a CMP, os

Central de S. Bento no Porto, implantada junto do espaço mais nobre e

comerciantes locais e a população portuense estão à altura de encontrar,

representativo do espírito da urbe - a Praça da Liberdade - constata-se que

finalmente, um modo de compatibilizar a qualidade ambiental, as

o projeto da autoria de José Marques da Silva ainda não foi concluído,

acessibilidades, os direitos, a segurança, a salvaguarda patrimonial, os

nem constitui algo de intocável face à evolução dos tempos que

valores estéticos e o conforto exigível. Admitir uma praça em dois níveis

exigem um permanente ajustamento às diversas solicitações sociais,

e uma estação única a integrar o metro, a culminar com uma ligação de

económicas, culturais e tecnológicas.

nível com a Ponte Luís I, mesmo que pedonal, para unir os dois centros

Constata-se com alguma facilidade que, por um lado, as alas laterais se

ponto de partida para ultrapassar este velho embaraço.

encontram desajustadas ao uso atual das instalações e, por outro, que não mereceram o desenvolvimento formal e a diversidade programática que potênciam conforme o próprio autor sugeriu ao propor uma central de comunicações desenvolvida ao longo do lado sul. Entende-se, à luz do atual conhecimento relativo à conservação da arquitetura que

cívicos, do Porto e de Gaia, ainda de costas voltadas, seriam um bom

Reconhecida como uma das 10 mais belas, visitada diariamente por centenas de turistas que se misturam com passageiros no lugar de chegada e partida, de encontros e de desencontros, é símbolo da celebração de todas as estações ferroviárias distribuídas pela área do Porto.

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as intervenções não devem ocorrer sem a devida ponderação das compatibilades formais e de uso para evitar a aviltação dos princípios

Nuno Jennings Tasso de Sousa

disciplinares que nortearam o procedimento do autor.

Porto, 2017.03.30


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0 PÇ. LIBERDADE 1 DEVEZAS 1A GENERAL TORRES 2 PONTE D. MARIA 2A CAMPANHÃ 3 PONTE LUÍS I 4 ALFÂNDEGA NOVA 5 S. LÁZARO 5A S. BENTO 6 AV. DA PONTE


Obras de Referência Cardoso, António O Arquitecto José Marques da Silva e a Arquitectura no Norte do País na primeira metade do séc. XX FAUP Publicações Porto, 1997 Choay, Françoise «Le règne de l’urbain et la mort de la ville». in La ville, art et architecture en Europe, 1870-1993 Éditions du Centre Pompidou Paris, 1994 Kruft, Hanno-Walter A history of architectural theory: from Vitruvius to the present. Princeton Architectural Press New York, 1994 Meeks, Carrol L. V. The Railroad Station - An architectural History Dover Publications, Inc New York, 1995 Pevsner, Nikolaus Historia de las Tipologías Arquitectónicas Editorial Gustavo Gili, S.A. Barcelona, 1979 Reynaud, François Léonce Traité d’architecture Cariliam-Gesvry Paris, 1850

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Rossi, Aldo La Arquitectura de la Ciudad Editorial Gustavo Gili, SA Barcelona, 1966



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