Mapa Távora

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JORGE FIGUEIRA

Mapa Távora FUNDAÇÃO MARQUES DA SILVA 14 MARÇO 2016


Mapa Távora 1 Quero começar por sublinhar a utilidade deste Mapa e do percurso pela obra de Távora que é aqui registado. Analisando-o é interessante verificar como Távora é um arquitecto do Norte, claro, mas especialmente do Norte litoral, Porto-Minho. A presença de Távora na arquitectura portuguesa, já se sabe, produz-se a vários níveis. Esta iniciativa regista, em boa hora, edifícios e espaços e portanto trata do seu trabalho profissional. Já tive a oportunidade de, como outros, falar e escrever sobre Távora como professor e personalidade inesquecível. Sobre este último aspecto sabemos como o tempo é inexorável e como gradualmente o testemunho pessoal acabará por desaparecer. Mas, especialmente em Távora é necessário enfatizar sempre a sua inteligência e sentido de humor, que se confundiam, mesmo quando como hoje se celebra a sua obra registada num mapa. Em qualquer caso vão ficando traços da sua memória, certos gestos. Quando tive a oportunidade de escrever para Guimarães Capital da Cultura sobre a Viagem que Távora realizou ao Mundo, em 1960, em que me concentrei sobre a parte americana dessa jornada, foi exactamente o meu conhecimento pessoal de Távora em articulação com aquilo que ele nos deixou no seu maravilhoso Diário, que me permitiu avançar com confiança. O modo como entrou em confronto com o que viu na América é muito revelador da sua mundivisão mas também do seu temperamento. Conhecendo-o, como muitos de nós o conhecemos, é possível imaginar, visualizar, esse confronto. E assim registar também a sua personalidade como parte integrante da sua arquitectura. De qualquer forma, em muitos textos que foram escritos ficaram registados aspectos da sua personalidade, que bem sabemos era tão conservadora como desafiante, tão tradicional como moderna.

2 Estamos aqui para falar da obra, especialmente a registada neste Mapa. Gostaria de dizer que este conjunto de edifícios, criteriosamente selecionado pelos autores, é um testemunho necessariamente parcial da arquitectura de Fernando Távora.


Sem dúvida que os tijolos e o cimento podem sobreviver ao tempo de

de Távora começam a deixar explícitos elementos da arquitectura moderna

vida do arquitecto; mas o tempo também acontece nestas obras e pode

e outros tradicionais e até clássicos, sem qualquer convergência.

ser igualmente cruel.

Nas obras das Universidades do Porto, Minho, Guimarães (como na Po-

Estas obras são testemunhos fidedignos da arquitectura de Távora; não

lícia de Guimarães) isso é muito claro: a linguagem moderna, por um

são a arquitectura de Távora. E um mapa, embora tenha uma indesmen-

lado, e a matriz clássica quase monumentalidade, por outro, ressur-

tível utilidade e didactismo, pode ser também algo cruel: porque não

gem como elementos autónomos, quase descarnados; sem síntese, sem

enquadra, apenas territorializa.

fluência.

Nesse sentido gostava de brevemente propor 3 coordenadas que permi-

Esta síntese desfeita, esta desconvergência, é difícil de digerir, e encon-

tissem enquadrar, talvez até acolher, este conjunto de obras.

tra-se em pronunciado afastamento das linhas mas proeminentes da arquitectura contemporânea a partir dos anos 1990.

Coordenada 1 A primeira coordenada é que a obra de Fernando Távora não é fácil de visitar porque as características que hoje são valorizadas – a leveza, a transparência, a fragmentação – estão ausentes destes edifícios. Pelo

É interessante notar que o Auditório de Direito da Universidade de Coimbra é normalmente celebrado porque, talvez se possa dizer, é um edifício que tenta esboçar um regresso a esse momento inaugural dos anos 1950.

contrário, a obra de Távora é em vários sentidos “pesada”, dá importância à parede, à fundação, à espessura do traço construtivo.

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Para os parâmetros de hoje é uma obra que, não sempre, mas a partir dos

Concluindo estas breves notas de apoio e enquadramento ao Mapa Tá-

anos 1970, é anti-visualista, anti-plástica e historicista.

vora que hoje se apresenta, gostava de enfatizar a complexidade parti-

De facto, a própria estrutura dos edifícios – talvez com a excepção de

cular da última fase da obra de Fernando Távora.

Pavilhão de Ténis – é conservadora, isto é, sublinha o equilíbrio, a gra-

Porque, de facto, o modernismo das fachadas limpas e fenêtres en lon-

vidade, a regra, a fundação.

gueurs tem dificuldade em dialogar com elementos axiais, ou motivos monumentais que frequentemente ressurgem.

Coordenada 2

Esta opção foi talvez uma forma de Távora voltar à origem do problema;

Uma segunda coordenada: é uma obra mais ou menos feliz conforme o

como sabemos entrou na Escola enamorado pela Vénus de Milo e saiu

tempo e o contexto; e não é uma obra somente de talento, ou de facilida-

apaixonado por Picasso; talvez nestes últimos trabalhos quisesse testar

de, mas também de esforço e trabalho.

na fonte, a dupla matriz que soube superar nas suas obras mais felizes.

Fernando Távora não tinha a leveza do bom desenhador de mente rápi-

Por isso expõe cruamente uma linguagem funcionalista intersectada

da; desenhava muito bem e era muito arguto, mas estava sempre impli-

por eixos monumentais, simetrias, molduras, cantarias, fontes, orna-

cado numa ideia de ordem, organização ou firmitas, que impediam que

mentos, parafernália clássica, refeita ou inventada.

o gesto fluísse naturalmente. O talento era sempre vigiado pelo esforço

E ao mesmo tempo que nas obras de raiz assistimos ao surgimento deste

de tentar que a arquitectura cumprisse uma função maior – a de organi-

estranho corpo, nas obras de reabilitação há um cada vez maior conforto

zação quase regulação do mundo.

e cumplicidade. É nestas que Távora se sente bem, entrando na história

Por isso podemos dizer que Távora combatia a inclinação para desenhar

e esboçando operações arriscadas de reposição, de cópia, de continua-

ao modo moderno com a urgência que sentia para regrar, estabelecer,

ção.

fundar.

Conforme Távora vai perdendo confiança no edifício novo, ganha cada

Por isso falava muitas vezes da dificuldade que sentia em projectar.

vez maior desassombro na intervenção em edifícios antigos.

No entanto, gostava de mencionar três estados de graça: nos anos

Esse desassombro nas intervenções no património – também patente

1950/60 quando executou a “terceira via” que tinha teorizado, parti-

nas obras de Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura e partilhado por um

cularmente na Casa de Ofir, no Pavilhão de Ténis, no Mercado da Fei-

conjunto alargado de arquitectos em todo o país – e é a sua contribui-

ra, e na Escola do Cedro; nos trabalhos patrimoniais de tempo longo,

ção mais notória nas duas últimas décadas de trabalho: a ideia que não é

Convento da Costa, Refoios, Museu Soares dos Reis, ou em pequenas

preciso mostrar, a todo o momento, a diferença entre o antigo e o novo.

estruturas urbanas e rurais; e no espaço público em Guimarães ou em

O que, embora comporte riscos, é valioso porque significa um modo

Coimbra, porque aí encontra-se com a tradição da cidade portuguesa

mais orgânico e vivo de entender o património.

que saberá interpretar e reviver sem ruptura de pressupostos.

Em boa parte esta cultura deve-se a Fernando Távora e está bem presente em alguns dos edifícios que este Mapa apresenta.

Coordenada 3 A terceira coordenada é porventura mais complexa mas parece-me

Concluindo

fundamental. Nesse momento de felicidade que são as obras dos anos

Estas breves notas poderão ajudar a compreender melhor a obra de Fer-

1950/60 que citei, Fernando Távora consegue executar a convergência

nando Távora registada neste Mapa, em boa hora realizado.

entre o “tradicional” e o “moderno”, como se diz habitualmente, nessa

Como dizia, as obras de arquitectura são eventualmente mais perenes

“terceira via” que defende precocemente já nos anos 1940. A partir dos anos 1970/80 assistimos a um desfazer dessa síntese e as obras

que as pessoas, mas são também frágeis e testemunhais; são pequenas vozes que precisam de um coro para se fazerem entender…



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