Inauguração da linha da Beira Alta em 1882

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A INAUGURAÇÃO DA LINHA DA BEIRA ALTA EM 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Edição, introdução e notas

Hugo Silveira Pereira Prefácio

Eduardo Beira




OBRAS PUBLICADAS

McCants, A., E. Beira, J. Cordeiro, P. Lourenço e H. Pereira, New uses for old Railways (2016) Pereira, H., Máquinas e Homens. O material circulante da linha do Tua (2016) Fonte, J. e H. Pereira, The railway from Foz-Tua to Bragança. Drawings by José R. Fontes. Text by H. Pereira. Preface by M. Paula Diogo (2016)

Lage, O., Vidas e viagens à volta do vale do Tua. História da vida quotidiana das populações (2016) Lage, O. e E. Beira, Memória oral e história do vale do Tua: materiais de um projeto (2016) Lage, O., TUA História vivida (histórias de vida) (2016) Fonte, J. e H. Pereira, A linha de Foz-Tua a Bragança. Desenhos por José R. Fontes. Texto por H. Pereira. Prefácio por M. Paula Diogo (2015) Pereira, H. (ed.), A linha do Tua (1851-2008). Prefácio de Anne McCants (2015) Beira, E. (org.), A linha do Tua, 1887, e as fotografias de E. Biel. Prefácio de Álvaro Domingues (2014) Pereira, H., Os Beça, João da Cruz e Costa Serrão. Protagonistas da linha de Bragança (2014) Santos, L., Tristão Guedes de Queirós Correia Castelo Branco, 1º Marquês da Foz: um capitalista português nos finais do século XIX. Prefácio de J. Lopes Cordeiro (2014) Viseu, A., Desenvolvimento da periferia transmontana: a Linha do Tua e a Casa Menéres. Prefácio de J. Lopes Cordeiro (2013) Lage, O. (org.) e E. Beira (fotos), TUA. Colectânea literária: o vale, o rio e a linha férrea. Prefácio por Álvaro Domingues (2013) McCants, A., E. Beira, J. Cordeiro e P. Lourenço (eds), Railroads in historical context: construction, costs and consequences - volume III (2013) Pereira, H., Debates Parlamentares sobre a linha do Tua (1851-1906) (2012) McCants, A., E. Beira, J. Cordeiro e P. Lourenço (eds), Railroads in historical context: construction, costs and consequences - volume II (2012) McCants, A., E. Beira, J. Cordeiro e P. Lourenço (eds), Railroads in historical context: construction, costs and consequences - volume I (2011)


A INAUGURAÇÃO DA LINHA DA BEIRA ALTA EM 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Edição, introdução e notas

Hugo Silveira Pereira Prefácio

Eduardo Beira

Com o apoio de:

nos 160 anos do combóio em Portugal

2016


iniciativaTUA: um conjunto de iniciativas académicas e sociais no vale do Tua, uma re­ gião periférica do interior transmontano ­ "o interior do interior". Estas iniciativas interdiscip­ linares pretendem não só aprofundar a reflexão académica sobre o vale do Tua, em particular, e as periferias em geral, mas também dar protagonismo a estas regiões at­ ravés dos canais académicos.

Coordenadores: Anne McCants Eduardo Beira José Manuel Lopes Cordeiro Paulo B. Lourenço

ISBN: 978­1­54­033954­6 Novembro 2016 Paginação e tratamento gráfico por Ana Cabral e Mónica Freitas Editado e impresso por Inovatec (Portugal) Lda. (V. N. Gaia, Portugal) Impressão da capa e encadernação por Minerva ­ Artes Gráficas, Lda. (Vila do Conde, Portugal) Imagem da capa: estação de caminho­de­ferro da Guarda (Pereira, 2012a: 39)


PREFÁCIO: do Tua à Beira Alta

1. Do Tua à Beira Alta

Pode parecer estranho que a iniciativaTUA, uma iniciativa centrada sobre uma abordagem académica multidisciplinar e internacional sobre a linha e o vale do Tua, no Alto Douro transmontano, se proponha lançar um livro sobre a inauguração da linha da ... Beira Alta. Comecemos então por aí. A iniciativaTUA integra e dá continuidade a várias iniciativas, umas já desenvolvidas, outras em curso ou ainda em preparação, incluindo o projeto FOZTUA1 , que nos últimos cinco anos desenvolveu um conjunto de iniciativas e estudos em torno da história da linha do Tua e sobre o vale do Tua, patrocinadas pela EDP Produção no âmbito das contrapartidas devidas pelo aproveitamento hidroelétrico de Foz Tua, habitualmente designado como a nova barragem do Tua. Dos trabalhos promovidos pelo projeto FOZTUA resultou um significativo conjunto de livros e textos, assim como filmes e documentários sobre a memória da linha e do vale do Tua2. Foi uma oportunidade para identificar e relevar documentação sobre a história da linha do Tua, até aí pouco, ou nada, estudada, e de aprofundar e compreender melhor a sua integração na história da região e do país, assim como promover reu1 Para mais informações sobre o projeto FOZTUA, ver https://sites.google.com/site/foztuavale 2 Para acesso aos livros, relatórios e working papers do projeto FOZTUA, aceder a: https://sites.google.com/sitefoztuavele/publications. Para visualização dos documentários, aceder a https://sites.google.com/site/foztuavele/videos gi


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niões académicas multidisciplinares sobre a ferrovia e a região3. Estas iniciativas permitiram, por um lado, promover o vale do Tua e a sua problemática junto da comunidade académica internacional que se interessa por questões de história ferroviária, desenvolvimento de regiões periféricas e história e impacto da tecnologia, tendo, por si, constituído instrumentos importantes de marketing territorial da região através do canal académico. Por outro lado permitiram reunir e criar ligações entre grupos de académicos, quer portugueses como de vários outros países, interessados pelas questões suscitadas pela ferrovia e pelo desenvolvimento regional. Esse grupo integrou historiadores portugueses, alguns dos quais do próprio vale do Tua, entre os quais alguns jovens académicos interessados pela história ferroviária portuguesa e pelas questões de tecnologia e engenharia associadas. A maior abertura dos arquivos nacionais com documentação ferroviária, muito em especial o Centro Nacional de Documentação Ferroviária, tem permitido um novo fôlego sobre estes estudos. Alguns desses investigadores publicarem as suas primeiras obras com trabalhos desenvolvidos para o projeto e com o seu apoio um resultado de que o projeto se orgulha. Hugo Silveira Pereira foi um desses jovens historiadores portugueses que desde o início colaborou com o projeto FOZTUA, onde teve contributos relevantes sobre aspetos da história da linha do Tua e dos protagonistas associados. Por isso, a iniciativaTUA decidiu promover a publicação de um trabalho seu sobre a inauguração da linha da Beira Alta. Apesar da abertura da linha da Beira Alta ser anterior à da linha do Tua, há relações entre ambas que ajudam a compreender o contexto histórico da altura. Por um lado, foi na construção da linha da Beira Alta que se formaram muitos dos trabalhadores e oficiais que viriam a integrar, cerca de dez anos depois, os trabalhos de construção da linha do Tua. Um desses homens foi precisamente Francisco Lopes Seixas, que depois ficaria pela região de Mirandela e se tornaria feitor da Casa Menéres (no Romeu), durante as décadas de grande expansão da Casa, tendo trabalhado diretamente com Clemente Menéres que, por sua vez, foi um dos principais impulsionadores da construção da linha do Tua4. Por outro lado, a história da linha do Tua esteve sempre diretamente associada à história da linha do Dão, entre Santa Comba Dão e Viseu. Ambas as linhas foram concessionadas à mesma Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, criada e inicialmente liderada pelo Marquês da Foz, uma figura incontornável da história financeira portuguesa no último quartel do século XIX, embora pouco conhecida e 3 Para uma perspetiva global do projeto, tal como inicialmente previsto, ver Beira (2013), texto também disponível como Working Paper FOZTUA, série Ensaios e Estudos, WP E.4/2013, do mesmo autor. 4 Sobre as relações entre a Casa Menéres e a linha do Tua, ver a obra de Viseu (2013), produzida e editada pelo projeto FOZTUA. Sobre a campanha de Clemente Menéres para a construção da linha do do Tua, ver ainda Viseu (2014a). Sobre a correspondencia entre o feitor Francisco Seixas e Clemente Menéres, ver Viseu (2014b). ii


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estudada5. Ambas as linhas eram de via estreita e constituíram durante décadas o negócio da Companhia Nacional. A visão do modelo de negócio da CN era explorar uma rede de linhas secundárias em via estreita, inclusive com possíveis ramais que permitissem uma capilaridade adicional da rede em regiões periféricas. A periferia justificaria um modelo de negócio baseado no financiamento inicial pelo mercado de capitais, conjugado com a segurança de contratos de concessão a longo prazo com garantia de juro. Um modelo antecipado como seguro sob o ponto de vista financeiro e ao mesmo tempo coerente com as expectativas de desenvolvimento que o progresso das comunicações ferroviárias deveria permitir despoletar nessas periferias. A realidade viria a ser mais ingrata, mas de qualquer modo a Companhia Nacional acabou por ser uma das empresas ferroviárias privadas (não estatal) mais resiliente e bem sucedida, apesar de até 19286 ter apenas contado com as linhas de Mirandela e de Bragança (no seu conjunto, a linha do Tua) e a linha do Dão, ou seja, com uma tipologia de difícil geração de sinergias, baseada na exploração de duas linhas sem qualquer ligação direta entre elas e com uma ligação indireta longa e complexa (de Foz Tua ao Porto pela linha do Douro, do Porto à Pampilhosa pela linha do Norte e depois à Pampilhosa a Santa Comba pela linha da Beira Alta). A linha do Dão acabou por durante muitas décadas assegurar a ligação entre a linha da Beira Alta e a cidade de Viseu. Como se explica na parte I desta obra, a não passagem da linha da Beira Alta por Viseu foi sempre a “pedra no sapato” no projeto desta linha e justificou a deslocação “política” do rei e sua comitiva a Viseu, integrada nas cerimónias de inauguração da linha da Beira Alta, quando nada havia a inaugurar em Viseu, ou no percurso de Mangualde a Viseu. Recorde-se que Viseu ficava a uma distância tal da linha da Beira Alta que, na prática, tornava inviável o seu uso pela cidade de Viseu. A excentricidade ferroviária de Viseu nunca viria a ser completamente resolvida. Na década de 20 do século XX esteve mais próximo disso, quando a Companhia Nacional conseguiu a adjudicação da construção da uma linha entre Viseu e Foz Tua, que colocaria Viseu com acesso direto à linha do Douro, através de Foz Tua, para além do acesso já existente à linha da Beira Alta pela linha do Dão7. Já com obras no terreno, a construção não foi avante: a CN exigiu um aumento da garantia de juro (de 5% para 6%), as negociações com o governo acabaram por não dar nada, 5 Para uma primeira biografia do Marquês da Foz, ver Santos (2014), obra produzida e editada pelo projeto FOZTUA. 6 Em 1928 a Companhia Nacional acordou com a Companhia de Caminhos de Ferro Portugueses e com a Direção Geral dos Caminhos de Ferro tomar de subarrendamento as linhas do Corgo, Sabor da Régua a Vila Franca das Neves (em construção) e seus eventuais prolongamentos, tudo linhas de via estreita (ver Beira (2014)). Apesar das expectativas, o negócio rapidamente se mostrou ruinoso para a Companhia Nacional, perante a recusa governamental em aceitar pagar os prejuízos de exploração, ao contrário do que a Companhia Nacional antecipava. 7 Ver Azevedo e Salgueiro (2014). iii


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

e entretanto a força da rodovia começava a impor-se, assim como a opção governamental de lhe dar prioridade8. 2. As origens

Este livro reedita (na parte II) um texto originalmente publicado em francês, da autoria de B. Wolowski, editado em Paris, em 1883, no ano seguinte ao da inauguração da linha da Beira Alta, por E. Dentu, Editeur. Sobre o autor quase nada se conhecia - mas Hugo Pereira desvendou uma parte do segredo, como se descreve na parte I do livro. Já sobre o editor foi mais fácil obter alguma informação. O livro de Wolowski terá sido um dos últimos que o editor publicou, antes de falecer em 1884. Eduard Dentu (1830-1884), de nome completo Henti-Justin-Édouard Dentu, herdou da família uma livraria no Palais-Royal, em condições financeiras difíceis, que conseguiu recuperar, vindo mesmo a tornar-se “livreiro oficial da Societé des Gens de Lettres”. Publicou inclusive obras de Proudhon. A livraria de Dentu terá sido ponto de encontro famoso pelas reuniões e discussões literárias e, em meados do século XIX, seria uma das mais antigas na Galerie d'Orléans9. Depois da morte de Eduard, a casa viveu atribulações e acabou por falir em 1895, ficando então a Fayard com uma parte do seu fundo editorial.

8 Sobre a concorrência entre rodovia e ferrovia na primeira metade do século XX, ver Santos (2014b) 9 Gravura da época, da livraria E. Dentu, na galeria de Orléans, em 1829, disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Boutique_de_M._Dentu,_libraire,_dans_la_galerie_d%27Orl%C3%A9ans, _en_1829.jpg iv


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Em 1958 a Gazeta dos Caminhos de Ferro, uma publicação central na história ferroviária portuguesa, começou a publicar a obra de Wolowski, numa tradução de Busquets de Aguilar, com prefácio e anotações do mesmo. Secções da tradução apareceram em vinte e dois números diferentes da Gazeta, entre os números 1681 e 1732, publicados nos anos de 1958, 1959 e 196010.

Foi com base nessa tradução que esta edição foi preparada, com algumas revisões e acrescentos, como as traduções dos poemas que aparecem em francês na versão publicada por Busquets de Aguilar e que foram agora traduzidos para português por Maria Leonor Fernandes. Manuel Busquets de Aguilar foi um colaborador da Gazeta dos Caminhos de Ferro, onde publicou notas de viagem e artigos sobre temas históricos. Licenciou-se em história pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 1935, com uma dissertação sobre o Real Colégio dos Nobres, de 1761 a 1837. Quatro anos 10 Ver as datas e páginas de publicação no anexo bibliográfico sobre Aguilar. Imagem digitalizada da página inicial do primeiro artigo com o trabalho de Busquets de Aguilar e de Wolowski, a partir de: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/GazetaCF/GazetaCF.htm v


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depois, em 1939, doutorou-se na Faculdade de Letras de Lisboa, com uma tese sobre o curso superior de letras, 1858-1911. Ambas as publicações continuam hoje a ser fontes importantes da história do ensino em Portugal. Para além da obra de Wolowski, traduziu também a obra Ásia Portuguesa, de Manuel Faria e Sousa (1590-1649), uma das obras mais importantes sobre história portuguesa publicadas no século XVII. Faria e Sousa era português e terá sido um dos homens mais eruditos do seu século (na opinião de Inocêncio Francisco da Silva), mas escrevia principalmente em castelhano. Busquets de Aguilar seria de ascendência espanhola e traduziu a obra de Faria e Sousa para português. Os seis volumes da tradução portuguesa foram publicados pela Tipografia Domingos Barreira, em 1949. Busquets de Aguilar foi também professor do ensino secundário e publicou vários trabalhos sobre história do Minho, onde chegou a ser presidente da Junta de Turismo da Praia de Moledo do Minho, nos anos 40 do século passado. Em 1930, ainda muito jovem, publicou um ensaio sobre “as ditaduras” onde se reflete muito do ambiente da época: descrença no parlamentarismo, esperança na moderna ditadura, especialmente no modelo italiano de Benito Mussolini. Apenas terá publicado a “primeira parte”. Nunca terá publicado uma prevista continuação. Em anexo junta-se uma nota bibliográfica sobre Busquets de Aguilar. 3. Viajantes ao progresso das periferias

Na parte I discute-se a relevância da narrativa de Wolowski para o conhecimento da história portuguesa em princípios da década de 80 do século XIX, em particular para a história ferroviária do período. Mas Wolowski não foi o único visitante que nessa altura se surpreendeu com o país e que escreveu e publicou em Paris as suas impressões. Quatro anos antes da publicação da narrativa de Wolowski, tinha sido publicado em Paris, em 1879, uma obra em francês, Portugal à vol d’oiseau, onde a autora (Maria Letizia Wyne, depois Maria Ratazzi, por segundo casamento) comentava a sua experiência portuguesa, onde terá estado em 1876 e 1879 11 . É por isso interessante comparar as duas narrativas. Wolowski aparece, sem dúvida, encantado tanto com a “paisagem encantadora” (p. 100) como com a “hospitalidade tão carinhosa e tão cordial” (p. 97) que en11 A obra de Maria Ratazzi (nome que adquiriu depois do seu casamento com Urbano Ratazzi, duas vezes primeiro ministro italiano) voltou a ser publicada mais recentemente, com uma boa introdução e notas de José Justo. Ver Ratazzi (1997). vi


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controu nesta “nação inteligente e valente” (p. 97), de população “bondosa, honesta e acolhedora” (p. 108) para com os estrangeiros. “Os portugueses ... são muito hospitaleiros. É uma das virtudes de que se podem vangloriar” (p. 159). Por sua vez, Maria Ratazzi diz que “o povo é bom e tem o coração sensível” e reconhece a “importância do lar e a poderosa influência do espírito de família” entre os portugueses (p. 145), a quem reconhece também bondade de coração, brandura de costumes, alegria, lealdade, bom humor, docilidade e paciência (p. 145 e 146): “o povo português é muito cortês, muito condescendente, muito hospitaleiro, muito obsequiador e muito impressionável” (p. 146). Wolowski reconhece que o país é “tão desconhecido na Europa como na China”. Nisso não anda longe de Maria Ratazzi, quando esta assinala que pretende “reconhecer os inconcebíveis erros espalhados pela Europa a respeito desta bela região” (p. 74). Ambos visitaram um Portugal fontista, onde as preocupações dos melhoramentos materiais se tinham tornado em motivo de esperança para o futuro através do progresso. Ratazzi diz encontrar o país num “período da regeneração, o novo Portugal” (p. 77), onde “é evidente o progresso há vinte e cinco anos, aos olhos dos que julgam imparcialmente” (p. 79). Por isso, “... tenho fé na parte que Portugal, para o futuro, há-de tomar na Europa ... pressente-se que está reservado vasto lugar à influência de Portugal nos horizontes futuros” (p. 75). Mais: “o seu crédito tem melhorado consideravelmente à medida que se evidenciam as prosperidades do país. ... É uma nação que se levanta, que há-de engrandecer-se e que triunfa corajosamente dos obstáculos inerentes à sua reorganização" (p. 408). Por sua vez, Wolowski reporta que “Portugal tinha entrado num caminho novo, caminho de reorganização e de progresso material e moral” (p. 199). Ainda: “Portugal entrou nesse caminho depois do reinado de D. Pedro, caminho fecundo que já deu frutos no duplo aspeto da atividade industrial e comercial” (p. 196) e “o rei D. Luis ... encoraja este caminhar para a frente na rota do progresso e da liberdade” (p. 196). Maria Ratazzi reconhece que a “falta de estradas e de comunicações praticáveis tem sempre paralisado o tráfico entre os dois reinos” (de Portugal e Espanha) (p. 80). Wolowski deslumbra-se perante a nova ferrovia do progresso: “Haverá ... alguma coisa de maior na nossa civilização moderna do que a abertura de uma nova via de comunicação que suprime as distâncias, aproxima os povos outrora mais afastados?” (p.101). Mas há mais pontos comuns. Wolowski manifesta surpresa com a “cerimónia do beija mão, incontornável em Portugal” (p. 117) e faz repetidas referências à sua ocorrência durante os festejos da inauguração da linha da Beira Alta. Ratazzi, por sua vez, refere que o “beija mão”, “esse costume ou instituição existe ainda na corte e pratica-se em certos dias designados” (p. 124). vii


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Wolowski viu o país a partir da linha da Beira Alta, um olhar ferroviário sobre a província. Ratazzi viu o país essencialmente a partir de Lisboa. No antepenúltimo dos vinte e cinco capítulos da sua obra fala da “província”, mas para ela a província era o Porto, onde chegou já de comboio, pela linha do Norte, e se maravilhou com a “Sé e Vitória, bordadas pelas duas margens do Douro, ligadas por uma ponte magnífica de um comprimento e altura incríveis” (p. 411). Para além do Porto, faz referências curtas a Évora e Setúbal (a sul do Tejo) e a Caldas da Rainha, Coimbra, Batalhe e Alfeite, no penúltimo dos capítulos. A experiência ferroviária, por si, não lhe despertou grande curiosidade, ao contrário de Wolowski. Talvez por isso não encontramos aí termos de comparação para a observação de Wolowski: “Eu esperava encontrar os camponeses em trajes festivos. Nada disso. A população tem um aspeto macilento e pobre. Ninguém aqui adquiriu ainda as necessidades que a vida ativa cria nos países munidos de comunicações fáceis” (p 144). E “organizavam acampamentos nos locais públicos” (p. 152) para dormirem durante os dias dos festejos. Mas sobre as dificuldades de encontrar hospedagem, ambos estão de acordo. Wolowski fala longamente das suas desventuras em Mangualde e Viseu. Ratazzi diz que “a chaga de Portugal é a falta de hospedarias”, a propósito das Caldas (da Rainha) não ter uma única hospedaria, “ou por outra possui uma ... que deveria servir de alojamento ao diabo quando ele viajasse”. Aí ignora-se totalmente “a existência de caldo e dos mais elementares produtos da arte culinária” (p. 441). Não conhecemos reações portuguesas contemporâneas à publicação do livro de Wolowski. O livro pouco ou nada terá sido conhecido entre nós, nessa altura. Mas o livro de Ratazzi fez furor. Muitos intelectuais pelejaram argumentos sobre ele. Como seria de esperar, Camilo Castelo Branco foi dos mais arrojados e arrogantes (e chauvinista). No prefácio à edição portuguesa, publicada em 1881, a autora chama-lhe o “irascível de Seide” (p.34). Essas reações falam muito, por si, do clima intelectual português nos finais do século XIX, perante o progresso e o fontismo, assim como sobre o caráter mais ou menos aberto ou fechado da posição portuguesa sobre o mundo, Europa em especial. 4. As inaugurações

Wolowski fala, logo no início da sua narrativa, da sua satisfação por se encontrar em Portugal “por ocasião das grandes festas. Há datas que marcam a vida de uma nação...grandes solenidades nacionais, que fazem mover as massas e permitem sentir o pulso de um povo” (p. 100). A festa a que Wolowski se refere são os festejos da inauguração da linha da Beira Alta, momento alto do fontismo e da política de viii


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melhoramentos materiais como motor do progresso e do desenvolvimento, depois de um período de acesa discussão pública sobre o seu projeto (como se discute na parte I). A ferrovia e os comboios terão sido uma das novas tecnologias mais intrusivas do século XIX. O lançamento das linhas abriu e dividiu territórios, alterou paisagens, criou novas centralidades e descentralidades. A passagem dos monstros de ferro aterrorizou umas populações, mas entusiasmou outras. Facilitava a vida das populações (mobilidade das pessoas e das cargas), mas também trazia o progresso (o bom e o mau progresso), facilitava a emigração, perturbava equilíbrios seculares nas periferias. O caminho de ferro encarnou simultaneamente a esperança civilizacional e os perigos da futura distopia tecnológica12. Wolowski transcreve os versos de um autor anónimo, “de aldeia”, distribuídos aquando da passagem da caravana inaugural em Carregal do Sal, depois de “uma senhora ter subido ao salão real para oferecer à Rainha um ramo de flores” (p. 146). A retórica dos versos ilustra bem o significado da tecnologia naquelas circunstâncias: “facho intenso do progresso”, que “dissipa ... a ignorância” e que acaba com as “pequenas povoações” (como o Carregal, que passam a ter acesso ao mundo e à civilização através da ferrovia e passam a pertencer assim ao “nobre solo” da Europa). As pequenas povoações “transformam-se em cidades as aldeias” e “todo o povo se torna cidadão”. O poder democrático da tecnologia evidencia-se pela abertura das povoações (da província) à civilização, cada um com os seus “brazões”, “primores”, “méritos, florões”, “indústria própria”, “pomos deliciosos / vinhos ótimos / mil dons da agricultura”. Mas também o lado tenebroso da tecnologia: a máquina a vapor “tem do alado hypogripho a arrogância” que “une as terras” mas “confunde os horizontes”. Wolowski descreve com detalhe os atos do programa inaugural da linha da Beira Alta, com a presença da comitiva real em terras da província. Cinco anos depois, em 1887, a comitiva real foi inaugurar a linha de Foz Tua a Mirandela. Desta vez o rei era D. Luís, a quem o progresso proporcionou uma viagem quase impensável: ir do Porto a Mirandela, almoçar aí um “lauto almoço” e regressar ao Porto em menos de vinte e quatro horas, apesar das inúmeras paragens ao longo do percurso e da demora com o jantar na Régua13. Os paralelismos entre os eventos de 1887 e os eventos descritos por Wolowski em 1882 são óbvios. Três anos depois, a 24 de novembro de 1890, Viseu seria finalmente palco de uma inauguração ferroviária: a abertura da linha do Dão, presidida pelo ministro das obras públicas, Tomás Ribeiro (1831-1901), um beirão (de Parada de Gonta, con12 Sobre uma visão distópica do impacto da tecnologia ferroviária nos EUA, ver a obra recente de White (2012). 13 Para uma recensão das notícias da imprensa nacional sobre a inauguração da linha do Tua a Mirandela, ver Fernandes et al (2013). Ver também Pereira e Cordeiro (2013) e ainda Cordeiro e Pereira (2015) ix


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celho de Tondela), também conhecido poeta ultra romântico. Viseu celebrou então a chegada do comboio à cidade. Cumpriam-se as promessas que Wolowski refere: em Viseu, o rei recebeu uma delegação de comerciantes “que lhe pediu um ramal de caminho de ferro para Viseu” e o rei “prometeu tomar em consideração o pedido e disse que sabia bem da importância da cidade de Viseu e as vantagens que toda a região colheria de tal obra” (p. 177). Wolowski acrescenta ainda: “nessa mesma tarde, os jornais de Viseu publicaram um suplemento anunciando que o snr. Fontes, presidente do conselho de ministros, tomava o compromisso, em nome do governo, de apresentar uma proposta de lei para a construção de um ramal ligando Viseu à linha da Beira Alta”. Como se assinala na parte I (nota 217), Fontes cumpriu a promessa poucos meses depois, a 19 de janeiro de 1883, quando propôs ao parlamento a construção da linha do Dão, assim como a linha do Tua e a linha da Beira Baixa. Wolowski refere-se também a estes desenvolvimentos (p. 201). A imprensa da época descreve essas cerimónias da inauguração, em muito semelhantes às presenciadas por Wolowski aquando da permanência do rei em Viseu durante a inauguração da linha da Beira Alta: jantar de gala (“jantar magnífico à antiga portuguesa”, segundo o correspondente de um jornal da capital), “soirée dançante”, iluminações brilhantes, bandas de música, fogo de artifício, grande marcha “aux flambeaux”, ornamentações, grande animação, bodo aos pobres, cerimónia religiosa, vivas à família real e “as senhoras a saudarem das janelas”. A chamada linha de Bragança, entre Mirandela e Bragança, segunda parte da linha do Tua, foi inaugurada em 1906, tendo as cerimónias começado a 30 de novembro, na cidade de Bragança, sem a presença do rei (para grande desgosto dos transmontanos). Uma vez mais o padrão das comemorações foi semelhante14. 5. A festa e o significado

As inaugurações dos melhoramentos materiais, linhas de caminhos-de-ferro em particular, merece alguma reflexão adicional. A tecnologia é uma questão mais social do que técnica. Ultrapassando a velha questão da definição de tecnologia como um processo ou um produto15, convém reconhecer que uma tecnologia implica um artefato artificial (material ou imaterial), não préexistente na natureza, que encontra um conjunto de utilizadores que descobrem, no seu uso, um significado em que acreditam - um valor acrescentado para 14 Ver Pereira (2015). Sobre notícias na imprensa regional e a linha do Tua, ver Beira (2013b) e Beira (2104b) 15 Para uma discussão clássica deste tema, ver Mitcham (1994), p. 151-154. Para uma análise mais recente, ver Arthur (2009). Ver também Hargadon (2003). x


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as suas vidas quotidianas, mas não só ou necessariamente. Uma tecnologia implica portanto quem acredite (tenha convicções) na bondade do seu uso - uma comunidade que partilha esse significado da coisa tecnológica (e que por isso a usa e está disposto a pagar pelo seu uso). A literatura tem-se preocupado muito com a estrutura da tecnologia, mas pouco com o seu significado, que tem ficado mais para as áreas da filosofia (da tecnologia) 16. Ora é o significado partilhado entre a comunidade social de utilizadores que permite que um artefato técnico se transforme numa tecnologia. Claro que o significado está associado à função, mas convém aqui reforçar a ideia de uma comunidade de crenças associada ao uso de uma tecnologia - uma fé comum, não no sentido propriamente religioso, mas no sentido de uma crença comum. Recordemos que conhecer é compreender, e que se compreende algo quando este faz sentido e acreditamos nisso. Conhecer implica convicções e valores17. As cerimónias de inauguração das grandes obras de tecnologia ou engenharia são rituais de iniciação que proclamam uma convicção sobre o progresso como instrumento civilizacional. São cerimónias em que um significado da tecnologia é oficializado e partilhado de forma pública pela comunidade. Nesse sentido é um ato de culto, uma cerimónia de batismo, que transforma os artefatos técnicos num bem social - a tecnologia, com toda a carga de significado e ritual que encerram as cerimónias desse tipo. A tecnologia transforma-se assim numa espécie de objeto mágico, que não faz parte da natureza, mas que existe, funciona e tem um significado profundo. Recorda-se que a essência da magia é exactamente acreditar em algo que pode não fazer sentido como parte do natural, mas em que se acredita porque tem coerências próprias que criam significados “transnaturais”, coerências que exigem esforços de integração mental associados a esforços de imaginação. Um significado transnatural faz-se por uma integração imaginativa de incompatíveis, de que resulta um significado pessoal e coerente18. Nada melhor do que o momento de “carregar no botão” para ilustrar a magia da tecnologia. No caso das grandes obras de tecnologia, não é só essa obra que começa oficialmente a funcionar - é também uma nova era civilizacional que avança. Em muitos casos, é a magia do impossível que (finalmente) se tornou possível - situação claramente apropriada para as celebrações inaugurais das linhas que temos referido. Nessa magia está implícito habitualmente o poder racional da tecnologia e o poder do trabalho na construção da obra tecnológica - mas também o poder da política que proporcionou a magia. 16 Ver Feenberg (2015), em especial o capítulo 7: "Função e significado: o duplo aspeto da tecnologia" 17 Será fácil reconhecer aqui algumas das ideias da epistemologia do conhecimento pessoal pelo filósofo Michael Polanyi. Ver Polanyi (2014) e Polanyi (2013). 18 Ver Polanyi e Prosch (2015), a última obra de Polanyi, Significar, onde procura estender a sua filosofia do conhecimento pessoal para além do domínio do natural, incluindo a arte, a religião, os símbolos e os rituais. xi


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Tal como na arte, a comunidade encontra na tecnologia significados partilhados em artefatos artificiais - a tecnologia é uma arte social de partilha de objectos técnicos. Por si os objetos técnicos não constituem uma tecnologia - precisam de convocar e convencer uma comunidade que acredita no seu significado e no seu valor. As cerimónias de inauguração de grandes sistemas tecnológicos (novas pontes, novas linhas ferroviárias, novas refinarias, novas autoestradas, ...) são ainda oportunidades para reafirmar a modernidade, associando o poder da racionalidade e o poder do conhecimento. As inaugurações das ferrovias em Portugal foram oportunidades muito marcadas por este tipo de afirmação: não só “também somos capazes” (uma afirmação especialmente relevante nas linhas do Tua e do Dão, obras de engenharia portuguesa) como “a monarquia também é capaz de proporcionar políticas de progresso”. As obras tecnolṍgicas aparecem assim como testemunhos da modernidade, consubstanciados nas novas velocidades e grandes potências das tecnologias ferroviárias. 6. Atualidade

Viseu voltaria a ter uma inauguração ferroviária quando a linha do Vouga chegou à cidade, em 1914, já em clima de guerra mundial. Mas o serviço desta linha encerrou em 1990, depois da linha do Dão ter sido encerrada já em setembro de 1988. Hoje em dia, cento e trinta e cinco anos depois do rei D. Luís ter prometido o caminho-de-ferro à cidade, tal como Wolowski descreveu, Viseu volta a não ter ligação ferroviária e volta à sua posição excêntrica relativamente à rede nacional de caminhos-de-ferro. A linha da Beira Alta foi, e continua a ser, objeto de modernizações. Neste contexto a questão do isolamento ferroviário da cidade de Viseu voltou à ordem do dia. A expectativa de uma nova ligação direta, em alta velocidade, entre Aveiro e Vilar Formoso, passando por Viseu, ou uma alteração na linha da Beira Alta com passagem por Viseu, faziam parte do menu de opções em discussão em 2015 19. Em 2016 foi aprovado um financiamento comunitário de 376 milhões de euros para a nova ligação ferroviária entre Aveiro e Vilar Formoso, parte do pacote de investimentos ao abrigo do chamado Plano Juncker. Esperam-se pois oportunidades para novas cerimónias de inauguração nos próximos anos (ou décadas?). O futuro dirá se motivarão estrangeiros a escrever sobre elas. Duvidamos - o mundo mudou muito desde os tempos de Wolowski. Eduardo Beira

19

IN+ Center for Innovation, Technology and Public Policy, IST (Lisboa) Programa MIT Portugal, coordenador da iniciativaTUA e do projeto FOZTUA.   Ver http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=24&did=192090   xii


Hugo Silveira Pereira

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Arthur, W. B., The nature of technology. What it is and how it evolves. Free Press, 2009 Azevedo, A. e Salgueiro, A., “A linha de Viseu a Foz Tua. História de projeto inacabado”. Working Paper FOZTUA, série Ensaios e Estudos, WP E.15/2014 Beira, E., "Vale do Tua: memória e património", in J. Lourenço e A. Cardoso (Edit.), Património AgroIndustrial. Tradição versus Inovação, Régua: Museu do Douro, 2013. Beira, E., “Caminhos de ferro na imprensa regional transmontana (1884-1910): I. O Nordeste”. Working Paper FOZTUA, série Documentos, WP D.9/2013b Beira, E., “ Companhia Nacional dos Caminhos de Ferro: uma síntese dos relatórios anuais da empresa (1886-1946)”. Working Paper FOZTUA, série Ensaios e Estudos, WP E.8/2014a Beira, E.,” Caminhos de ferro na imprensa regional transmontana (1884-1910): II A Gazeta de Bragança”, Working Paper FOZTUA, série Documentos, WP D.15/2014b Cordeiro, J. e H. Pereira, “A inauguração”, in Pereira, H. (ed.), A linha do Tua (1851-2008), Inovatec (Portugal), 2015, p. 151-166 Feenberg, A., Tecnologia, modernidade e democracia, Organização e tradução: Eduardo Beira, Inovatec (Portugal), 2015 xiii


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Fernandes, M., A. Alcântara e E. Beira, “Inauguração da linha do Tua (1887, Foz Tua a Mirandela): notícias na imprensa nacional”, Working Paper FOZTUA, série Documentos, WP D.4/2013 Hargadon, A., How breakthroughs happen. The surprising truth about how companies innovate. Harvard Business School Press, 2003. Mitcham, C., Thinking through technology. The path between engineering and technology. The University of Chicago Press, 1994. Pereira, H. e Cordeiro, J., “The opening of Tua railoroad: the king and royal court went to Mirandela (1887)”, in McCants, A., E. Beira, J. Cordeiro e P. Lourenço (eds), Railroads in historical context: construction, costs and consequences - volume III, Inovatec (Portugal), 2013, p. 181-198 Pereira, H., “A inauguração e o epílogo da história de Abílio Beça e João ;Lopes da Cruz”, in Pereira, H. (ed.), A linha do Tua (1851-2008), Inovatec (Portugal), 2015, p. 290-305 Polanyi, M., Conhecimento pessoal. Por uma filosofia pós critica. Trad. Eduardo Beira. Inovatec (Portugal), 2013 Polanyi, M., Ciência, fé e sociedade. Tradução: Eduardo Beira. Inovatec (Portugal), 2014 Polanyi, M. e H. Prosch, Significar, Tradução: Eduardo Beira. Inovatec (Portugal), 2015 Ratazzi, M., Portugal de relance, atualização do texto, introdução e notas de José M. Justo, Lisboa: Edições Antígona, 1997 Santos, L., Tristão Guedes de Queirós Correia Castelo Branco, 1º Marquês da Foz: um capitalista português nos finais do século XIX, Inovatec (Portugal), 2014a Santos, L., “A concorrência entre o caminho de ferro e o automóvel na primeira metade do século XX”, Working Paper FOZTUA, série Ensaios e Estudos, WP E.20/2014b Viseu, Albano, Desenvolvimento da periferia transmontana: a Linha do Tua e a Casa Menéres, Inovatec (Portugal), 2013

xiv


Hugo Silveira Pereira

Viseu, Albano, “Clemente Menéres e a campanha pela construção da linha do Tua a Mirandela”, Working Paper FOZTUA, série Documentos, WP D.11/2014a Viseu, A., “Correspondência entre Clemente Menéres e o feitor Francisco Seixas”, Working Paper FOZTUA, série Documentos, WP D.19/2014b White, E., Railroaded. The transcontinentals and the making of New América, W. W. Norton and Company, 2012

xv



Anexo BIBLIOGRAFIA de MANUEL BUSQUETS DE AGUILAR

Ensaios:

● A crise política do Estado. Primeira parte: as ditaduras, Lisboa, 1930 ● O Real Colégio dos Nobres: 1761 - 1837 (dissertação para licenciatura em ciências históricas, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), 1935, 218 p. ● O curso superior de letras: 1858-1911 (tese de doutoramento na secção de Ciências Históricas, Faculdade de Letras de Lisboa), 1939, 425p. ● Moledo do Minho, Lisboa, 1941 ● Cristêlo, Lisboa, 1944 ● A capela de Santo Antão do concelho de Caminha, Lisboa, 1941

Traduções:

● Manuel de Faria e Sousa, Ásia Portuguesa, trad. Manuel Busquets de Aguilar, 6 vols, Tip. Domingos Barreira, 1949 ● “Inauguração do caminho de ferro da Beira Alta. Notas e recordações de viagem, por B. Wolowski”. Tradução, prefácio e anotações do dr. Manuel Busquets de Aguilar. In Gazeta dos Caminhos de Ferro: ● 1958: p. 49, 176, 193, 345, 365, 380, 451, 469 xvii


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

● 1959: p. 75, 139, 158, 176, 189, 205, 236, 319, 397, 414, 430 ● 1960: p. 561, 580, 591 Artigos publicados na Gazeta dos Caminhos de Ferro :

1945: ● Os caminhos de ferro na obra de Eça de Queiroz ● Os caminhos de ferro na literatura ● Direito ferroviário ● O palácio e a quinta do Ramalhão 1946 ● Plano geral da rede ferroviária do continente ● Castro Laboreiro. Recordações de viagem 1949 ● A evolução histórica dos transportes terrestres em Portugal 1957: ● A história dos caminhos de ferro em Portugal e as mais importantes personalidades ferroviárias portuguesas 1961: ● A linha férrea de Cascais 1968: ● A construção de novas linhas férreas no continente

xviii




ÍNDICE i

PREFÁCIO

001

PARTE I - A INAUGURAÇÃO EM CONTEXTO HISTÓRICO

003

1. INTRODUÇÃO

005

2. BREVE HISTÓRIA DA LINHA DA BEIRA ALTA

005 2.1. Os caminhos-de-ferro em Portugal 006 2.2. A origem da questão da Beira Alta 010 2.3. Preferência pela linha do Leste 014 2.4. Novamente a linha da Beira, novamente preterida 017 2.5. Qual das Beiras? 026 2.6. A linha e a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses da Beira Alta 035

3. A INAUGURAÇÃO SEGUNDO WOLOWSKI

035 036 043 069

3.1. O dia da inauguração 3.2. O relato e o seu autor 3.3. A viagem, segundo as crónicas da época 3.4. Notas finais

075

FONTES


075 075 078 078

Fontes manuscritas Fontes impressas Periódicos Compilações

079

BIBLIOGRAFIA

079 080 080

Enciclopédias, dicionários e afins Periódicos Monografias e artigos

091

PARTE II - A NARRATIVA DE VIAGEM

093

AS FESTAS EM PORTUGAL. INAUGURAÇÃO DO CAMINHO-DE-FERRO DA BEIRA ALTA. VIAGEM DA FAMÍLIA REAL, NOTAS E RECORDAÇOES DA VIAGEM POR B. WOLOWSKI

097 099 102 108 108 114 119 122 131 133 133 135 139 139 140 143 147 150 150 151 155

Prólogo A viagem da Família Real (Notas – recordações) Antes das Festas Inauguração do caminho-de-ferro

Partida de Lisboa Coimbra Pampilhosa –Figueira da Foz Brinde do Rei Visita ao Luso Visita ao Engenheiro-chefe

Linha da Pampilhosa à Figueira da Foz Linha da Pampilhosa a Mangualde De Mangualde a Vilar Formoso A secção do Sr. Dauderni Na fronteira Da Figueira a Mangualde Mangualde

Os aposentos do Rei e da Rainha O parque Hospitalidade portuguesa

De Mangualde à fronteira espanhola


156 161 161 163 165 166 169 177 178 179 184 184 187 189 191 194 195 197 198 199 202 203 204 206 208 217

Guarda A Família Real em Viseu

Regresso da inauguração Uma casa singular em Viseu Receção em Viseu O baile no Grémio de Viseu A Sé de Viseu O fim do dia Partida do Rei para o Porto Chegada ao Porto

A cavalgada de honra Os cinco dias no Porto A revista às tropas e o banquete Póvoa e Famalicão Visita à fundição de Massarelos

Na estação de Lisboa A audiência junto do Rei Sua majestade a Rainha A audiência de despedida Os caminhos-de-ferro e o progresso Construção do caminho-de-ferro da Beira Alta

As recompensas

Sintra Audiência junto do Rei D. Fernando Palácio da Pena (Sintra) A Associação dos Jornalistas e dos Escritores Portugueses



PARTE I A INAUGURAÇÃO EM CONTEXTO HISTÓRICO



1. INTRODUÇÃO

No dia 3.8.1882 procedeu-se em Portugal à inauguração da linha da Beira Alta entre a Figueira da Foz, a Pampilhosa do Botão, a Guarda e a fronteira em Vilar Formoso. Só o mero facto de se tratar de uma nova ferrovia já daria motivos para uma celebração emotiva, no entanto, esta tinha ainda o interesse adicional de ser considerada a verdadeira linha internacional, que colocaria o porto de Lisboa mais próximo do centro da Europa e do seu movimento e tráfico. A festa foi protagonizada pelo Rei e sua Família, que aproveitou a oportunidade para visitar os seus súbditos do Norte de Portugal num périplo que se estendeu da Beira Alta ao Porto, ao Minho e ao Douro. Contudo, no séquito real seguia também um improvabilíssimo convidado. Tratava-se de um cidadão estrangeiro, que se dizia chamar B. Wolowski, provavelmente oriundo do Leste da Europa, que se encontrava em Portugal na altura da inauguração e que não desperdiçou a oportunidade de apreciar a forma como os portugueses festejavam os seus avanços tecnológicos. Wolowski seguiu a par e passo a festa da inauguração, acompanhou a Família Real, conviveu com membros do governo e jornalistas nacionais e apreciou de perto os modos, viveres, representações, desejos, crenças e ideologias dos portugueses que conheceu durante a viagem. Mais importante, para nós, historiadores, e não só, registou por escrito toda a sua experiência durante os dias que durou a visita do Rei à linha da Beira Alta e províncias nortenhas do Reino. Mais tarde publicou essas notas de viagem num livro, o qual intitulou Les Fêtes en Portugal. Inauguration du chemin de fer de la Beira-Alta. Voyage de la famille royale. Notes et souvenirs de voyage.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Neste trabalho que agora publicamos, resolvemos reeditar a tradução do livro e das memórias de Wolowski, pela prolixidade do seu relato, pelas deliciosas descrições que faz dos portugueses e das portuguesas, pelo interesse da fonte e pelo seu enorme valor como testemunho ímpar de uma época – em particular de um decénio, o de 1880 – em que Portugal acreditou no progresso. A década de 1880 foi a década de ouro do caminho-de-ferro em Portugal, com abertura de várias linhas e de centenas de quilómetros de vias-férreas no território continental e também no Ultramar. Foi o tempo da linha do Minho (1882), da linha do Douro (1887), da linha do Tua (1887), da linha de Lourenço Marques ao Transvaal (1887), da linha de Mormugão em Goa (1888), de parte da linha de Luanda a Ambaca (1888) e, claro, da linha da Beira Alta (1882). A descoberta – se assim se poderá chamar – deste livro aconteceu, como amiúde acontece em investigação e ciência, por acaso. No início de 2012, analisávamos na Biblioteca Pública Municipal do Porto, no âmbito do nosso projeto de doutoramento, a Gazeta dos Caminhos de Ferro, quando deparámos com a tradução de Busquets de Aguilar, um assíduo colaborador deste periódico, de um longo relato da inauguração da linha da Beira Alta. Depois de um breve contacto com a mesma, a sua leitura tornou-se incontornável e viciante, apesar de os prazos para a entrega da dissertação de doutoramento estarem a apertar – como, aliás, também amiúde acontece em ciência e investigação. Felizmente a Biblioteca do Porto tinha também um exemplar da obra original, que nos permitiu ler e comparar as duas versões. A obra de Wolowski foi redigida originalmente em francês. Agora, faremos uma reedição da versão portuguesa para recriar a experiência por que passamos quando contactamos pela primeira vez com esta narrativa de viagem. Antes, faremos uma breve contextualização da obra, da linha e do autor. Para terminar, esperamos com este trabalho estimular o interesse dos investigadores pela análise da relação entre literatura e tecnologia em perspetiva histórica e, quem sabe, estimular o leitor a visitar os locais por onde Wolowski, o Rei, a Família Real, membros do governo, jornalistas e ilustres representantes da sociedade portuguesa da época passaram naqueles dias de Agosto de 1882 – de preferência de comboio pela linha da Beira Alta...


2. BREVE HISTÓRIA DA LINHA DA BEIRA ALTA (1845­1882)

2.1. Os caminhos­de­ferro em Portugal

Na primeira metade de Oitocentos, a vida política portuguesa foi marcada por uma enorme instabilidade com governos fracos, maiorias parlamentares efémeras, desacordos entre fações partidárias e dois conflitos internos1 . Assim, se “ as principais reformas institucionais foram implementadas em meados da década de 1830, as obras públicas tiveram de esperar quase uma década pelas primeiras realizações práticas” 2. Só com a subida de Costa Cabral ao poder se consegue a estabilidade necessária para assinar o primeiro contrato para a construção de uma linha-férrea em Portugal. Apesar de não ter sido cumprido, pela queda do governo, e Portugal ter continuado sem estradas de ferro, é com o cabralismo que se entra no campo do fomento e que se entende que “ não basta que o espirito da mais sevéra economia presida aos actos do Governo (...). Não é menos essencialmente preciso que estes recursos procedam do mais pleno desenvolvimento das faculdades productivas” 3. O golpe de 1.5.1851 (protagonizado pelo duque de Saldanha, que contava nas suas fileiras com um jovem tenente de Engenharia, chamado Fontes Pereira de Melo) deu início ao período da Regeneração, que se prolongou até à crise da década de 1890, marcado não só por um espírito conciliador entre as diversas correntes políticas, mas também pela colocação do progresso material como “ a meta que todos pretendiam atingir” 4. É com a Regeneração que se cria o ministério das Obras Públicas 001 002 003 004

MARQUES, 2002: 552-621. MATA & VALÉRIO, 1993: 142. SANTOS, 1884, n.º 174: 1. SOUSA & MARQUES, 2004: 467. PINHEIRO, 1983: 53. Ver também BONIFÁCIO, 1992: 96-98.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

(decreto de 30.8.1852), o órgão onde eram apreciados os projetos de melhoramento material do Reino e que se tornou o grande responsável pela construção da rede5. O grande objetivo dos governos a partir desta altura era aproximar Portugal da Europa desenvolvida, quer em termos de distância e tempo (diminuídos pelos caminhos-de-ferro), quer em termos económicos. Em meados da década de 1850, o comércio mundial conhecia um grande desenvolvimento. Em países como Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica ou Estados Unidos da América esse crescimento comercial e económico era acompanhado de um grande crescimento da rede ferroviária e, para países periféricos, era muito tentador ligar diretamente ambos os fenómenos, muito embora outras condições estruturantes explicassem o desenvolvimento daquelas nações6. Ao mesmo tempo que o caminho-de-ferro aproximaria Portugal de um “ estrangeiro cada vez mais estrangeiro” 7, teria também o condão de unificar uma nação caracterizada por meios de transporte e comunicação arcaicos e onde 30 a 40% do território continental não tinha acesso a vias fluviais navegáveis8. Neste aspeto em particular, um caminho-de-ferro pela Beira assumia uma dupla função: não só dotaria de um grande melhoramento uma das províncias mais desfavorecidas e desprovidas de infraestruturas de transporte9 como ofereceria ao País, designadamente ao porto de Lisboa, a ligação mais direta e curta com a fronteira franco-espanhola. Porém, realizar este projeto não era tão fácil quanto idealizá-lo e, de facto, só em 1882, trinta anos depois do início da Regeneração, a linha da Beira Alta seria finalmente inaugurada. Nas páginas seguintes, abordaremos esta questão e procuraremos explicar que dificuldades se levantaram à execução desta ideia, recorrendo para tal aos debates mantidos no Parlamento português, aos relatórios da Engenharia nacional e alguns pareceres militares.

2.2. A origem da questão da Beira Alta10

Como vimos, quando Portugal pensou em construir caminhos-de-ferro, o principal objetivo passava por ligar Lisboa e o seu porto à Europa da forma mais rápida e direta possível. Assim procedera já na década de 1840 Costa Cabral e Du Pré, 005 006 007 008 009 010

PORTUGAL, 1952. PORTUGAL, 19775 BAIROCH, 1976: 33-36. CIPOLLA, 1976: 789-790. PEREIRA, 2010a: 5. SERRÃO, 1962: 271. GUILLEMOIS, 1995. JUSTINO, 1988-1989: 189-190. ALEGRIA, 1990: 161 e 335. Texto baseado em PEREIRA, 2011c.


Hugo Silveira Pereira

FIGURA 1

Costa Cabral em 1843 Biblioteca Nacional Digital (BND) (purl.pt/4445)

engenheiro belga contactado por aquele estadista11 ; assim procedeu Fontes Pereira de Melo, que, enquanto ministro das Obras Públicas, deu preferência por duas vezes a uma ligação a Espanha (encarregando os engenheiros Thomas Rumball e F. Watier dos respetivos estudos) 12. Quanto ao modo como essa ligação se faria, as dúvidas eram imensas, em virtude da falta de conhecimento estatístico e orográfico do País por parte dos governantes nacionais (o primeiro mapa moderno de Portugal elaborado com bases científicas data de meados da década de 1860 e os dados estatísticos eram considerados deficientes ainda no século XX) 13. Se era óbvio que a via-férrea se deveria dirigir à fronteira leste da Beira ou do Alto Alentejo, já a determinação do ponto preciso da raia a atravessar e a diretriz em Portugal eram questões mais complexas. Em ambas as ocasiões previamente indicadas (Cabral na década de 1840, Fontes no decénio seguinte) a escolha recaiu sobre Badajoz e sobre uma diretriz pelo vale do Tejo até às proximidades da foz do Zêzere, infletindo depois para o Alentejo em direção a Elvas (a chamada linha do Leste). No entanto, também se ponderaram alternativas que atravessassem a Beira ou seguindo sempre o vale do Tejo ou mais pelo norte da província, segundo propostas de Bacon, Pereira de Sousa, Albino de Figueiredo, Sousa Brandão, Gromicho Couceiro e Nunes de Aguiar14. 011 012 013 014

DU PRÉ, 1905. PEREIRA, 2008: 75-86 e 92-102. BRANCO, 2003. DIAS, 1999: 51. REIS, 1986: 903. SOUSA, 1995. Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas (AHMOP). Conselho Superior de Obras Públicas (CSOP). Livro 1 (1852): 291-301. ASSOCIAÇÃO DOS ENGENHEIROS CIVIS PORTUGUESES (AECP), 1873. ALMEIDA, 1851: 21-23.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 2

Proposta do general Bacon para a ligação internacional (1845) AHMOP. Mapas e desenhos, D­3­6­A


Hugo Silveira Pereira

FIGURA 3

Sugestões de Du Pré para a ligação internacional (1845) ALEGRIA, 1990: 243 (adaptado)

FIGURA 4

Sugestões de Thomas Rumball para a ligação a Espanha (1855) ALEGRIA, 1990: 246 (adaptado)


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 5

Projeto de Watier para a linha de Lisboa a Badajoz (1856) ALEGRIA, 1990: 251 (adaptado)

2.3. Preferência pela linha do Leste

As previstas dificuldades e custos de construção nas montanhas da Beira (tinha-se uma vaga perceção de que o Norte tinha um relevo mais acidentado que o Sul), a menor extensão da linha de Badajoz e sua ligação a Madrid (não permitida por uma linha pela Beira Alta), a imaginada maior riqueza da zona atravessada e a falta de vontade técnica e política de Espanha (que preferia a ligação a Badajoz) em continuar a via levaram à escolha da diretriz indicada nos mapas. Mas após o fracasso das tentativas da Companhia Central Peninsular e dos irmãos Pereire na abertura da via até Badajoz e na iminência de um outro empresário – o britânico Samuel Morton Peto – falhar também o compromisso de assentar uma linha entre Lisboa e Porto (contrato de 1857), equacionou-se a possibilidade de se construir uma linha pela Beira Interior, tendo-se ordenado alguns estudos entre 1858 e 186115. O primeiro, da autoria de José Carlos Conrado de Chelmicki, previa uma linha entre Coimbra e Almeida, que passaria em Espanha por Salamanca e Valladolid. Na opinião daquele engenheiro, seria um caminho-de-ferro que, não só ligava Lisboa mais rapidamente a França, como permitiria o prolongamento até à Figueira. Porém, este estudo não terá sido muito minucioso, já que o técnico acreditava que poucas obras de arte seriam necessárias, quando, na verdade, a linha da Beira Alta seria uma das vias-férreas nacionais com mais pontes, viadutos e túneis16. 015 PEREIRA, 2008: 131, 133 e 158. PEREIRA, 2011b. 016 CHELMICKI, 1860.


Hugo Silveira Pereira

Um pouco mais a sul, Joaquim Nunes de Aguiar previa ligações pelas duas margens do Tejo (Beira Baixa e Alto Alentejo), preferindo, todavia, a margem esquerda, com ligação a Badajoz, por permitir a construção de uma ferrovia em melhores condições de tração (em termos de raios das curvas e de declives das rampas), embora esta solução colocasse Madrid mais longe de Lisboa do que de Cádiz (condição contrária ao desejo nacional de fazer aportar à capital portuguesa todo o movimento vindo da Europa), exceto se se alterasse a diretriz dos caminhos-de-ferro em Espanha17. O terceiro, de Francisco Maria de Sousa Brandão, era mais consistente e anunciava a linha da Beira como a base de todos os caminhos-de-ferro nacionais (seguia com a linha do Norte até Miranda do Corvo, divergindo depois por Lousã, Arganil, Seia, Celorico, Almeida e Valladolid) e a forma mais rápida para Lisboa se ligar ao resto do País e à Europa. Internamente atravessava zonas com tais interesses económicos que só por si a justificavam – afirmava. A alternativa pela margem direita do Mondego por Pampilhosa, Santa Comba Dão, Mangualde e Celorico da Beira era descartada por ser demasiado difícil e não possibilitar condições de tração favoráveis, na opinião daquele engenheiro 18. Por fim, José Anselmo Gromicho Couceiro fixava uma diretriz desde a Mealhada, por Mortágua, Mangualde, Trancoso e Marialva até Vilar Formoso. Segundo julgava, seria uma linha de extrema dificuldade, devido ao acidentado do terreno, que obrigaria a grandes despesas na construção e na exploração 19.

FIGURA 6

FIGURA 7

Francisco Maria de Sousa Brandão

O visconde da Luz

Site geneall.pt

Site geneall.pt

017 AGUIAR, 1859. 018 BRANDÃO, 1860. VIEIRA, 1875. 019 COUCEIRO, 1860.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 8

FIGURA 9

Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, visconde de Sá da Bandeira

D. José de Salamanca y Mayol, marquês de Salamanca

Site geneall.pt

Site da Universidade Complutense de Madrid

Na câmara dos Pares (câmara alta do Parlamento português, que na altura era bicameral), surgiam também alguns alvitres favoráveis ao caminho-de-ferro pela Beira. Para Joaquim António Velez Barreiros, visconde de Nossa Senhora da Luz (diretor-geral de Obras Públicas), a linha da Beira não invalidava uma outra por Badajoz, mas aquela serviria preferencialmente o tráfego de passageiros e esta o de mercadorias. Para o visconde de Sá da Bandeira, uma via-férrea atravessando a Beira era a solução mais curta em termos de traçado entre as duas capitais ibéricas20. Apesar de a ferrovia da Beira contar com algum apoio entre engenheiros e parlamentares, seria a linha do Leste a escolhida, pelo facto de ter sido a que mereceu a atenção da iniciativa privada. Na altura, entendia-se que a construção direta pelo Estado era uma solução que só deveria ser assumida em casos excecionais, pelo que a aparição de José de Salamanca, empresário espanhol do setor e ex-ministro da Coroa espanhola, facilitou a decisão. Por outro lado, em Espanha, a vontade política em continuar uma linha que atravessasse a fronteira entre o Tejo e o Douro era praticamente nula, pois Madrid nada lucrava em beneficiar o porto de Lisboa em prejuízo dos seus próprios ancoradouros21 . 020 Diario do Governo. Sessão da câmara dos Pares de 26.3.1859: 564-565. 021 Boletim do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria (BMOP). 1862, n.º 1: 43-45. ABRAGÃO, 1956a. VIEIRA, 1983: 269.


Hugo Silveira Pereira

FIGURA 10

Sugestões de Sá da Bandeira para a ligação a Espanha (1859) Arquivo Histórico Militar (AHM). Arquivo particular de Sá da Bandeira (APSB). Vias ferreas projetadas entre Lisboa e Valladolid, e Lisboa e Madrid, e de Valladolid à fronteira de França. Div 3/18/9/16/16


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Com o dinamismo e empreendedorismo de Salamanca (que levaria a linha-férrea à fronteira em menos de quatro anos), a grande questão que dominara o panorama ferroviário nacional – ligação internacional – estava finalmente resolvida em benefício de um projeto que se viria a mostrar nocivo aos interesses nacionais e alvo de várias correções ao longo do tempo.

2.4. Novamente a linha da Beira, novamente preterida

Ainda a linha do Leste estava em construção e já o engenheiro e deputado da oposição Belchior Garcês lamentava a sua escolha em prejuízo do caminho-de-ferro da Beira por parte do governo22. No entanto, este não tivera escolha, já que em Espanha apenas os responsáveis pelos estudos das linhas de Salamanca a Portugal (António Ferrero e A. C. Gerard) se mostravam interessados na ligação. Em 1862, estes questionam o governo sobre a sua disponibilidade para continuar a linha que de Espanha seguia até Aldea del Obispo, enquanto Carré des Trois Villes se propõe para a realização de estudos, sendo a sua proposta rejeitada pelo Conselho Geral de Obras Públicas (CGOP) em virtude dos contornos do pagamento23. A recusa não significava que o CGOP fosse contrário ao projeto. Pelo contrário, era-lhe muito favorável, vendo-o como uma forma de evitar a estagnação da província (que nada retiraria das linhas do Norte e Leste então em construção), de ligar o País pelo percurso mais curto a França e de servir de base a outros caminhos-de-ferro em direção a Trás-os-Montes24. Porém, o esforço financeiro que então se fazia com as linhas do Norte, Leste, Sul e Sueste (subvencionadas pelo Estado) impedia a construção de quaisquer outras grandes vias. O próprio CGOP alvitrava que o governo se concentrasse na conclusão das obras em curso e investisse em estradas25. À medida que estas empreitadas se aproximavam do seu término, tornava-se ainda mais clara a necessidade de uma alternativa que, evitando Madrid, ligasse Lisboa mais rapidamente a França. Em 28.3.1864, Rocca e Piombino & Companhia propõem-se estudar um caminho-de-ferro entre Lisboa e Almeida passando por Sintra, Mafra, Leiria e Coimbra26. No Parlamento, rapidamente se estabeleceram movimentações para colocar a linha da Beira na lista de prioridades governamentais. Ainda em 1864, os beirões Tomás Ribeiro, Coelho do Amaral, Abílio Costa, Gouveia Osório e Francisco Barroso procuraram, em várias intervenções, conven022 023 024 025 026

Diario de Lisboa (DL). Sessão da câmara dos deputados de 7-6-1862, 1565. AHMOP. CSOP. Livro 19 (1864): 533-535. BMOP. 1862, n.º 1: 43-45. BMOP. 1865, n.º 9: 287-296. AHMOP. CSOP. Livro 19 (1864): 361-364.


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cer o executivo da necessidade dessa via-férrea, argumentando que a Beira era a província mais povoada de Portugal e possuía riquezas bloqueadas pela falta de comunicações e que uma estrada de ferro atravessando-a seria a verdadeira via internacional. Numa ocasião, Tomás Ribeiro reuniu apoios no hemiciclo (não só entre os seus correligionários regeneradores ou concidadãos beirões, mas também com os de outros quadrantes políticos e regiões, que viam na linha o primeiro passo para servir de vias-férreas as suas zonas de naturalidade ou eleição) e apresentou em 12.4.1864 um projeto de lei que dava ao caminho-de-ferro da Beira Alta preferência sobre qualquer outro. Os deputados invocavam a abundância de gado e matas, os vinhos, as fábricas de fiação da serra e a população que emigrava para África e Brasil por falta de trabalho 27. O governo parecia acompanhar os desejos dos deputados ao incumbir Sousa Brandão da tarefa de concluir os estudos sobre a ferrovia de Coimbra a Almeida (portaria de 30.8.1864). Confiantes nas intenções governamentais, os parlamentares iniciam discussões sobre a diretriz da sua linha. Tomás Ribeiro adiantava uma rota pela vertente ocidental da serra da Estrela e Sá da Bandeira definia-a desde a Figueira passando por Coimbra28. Em 1865, todavia, um rude golpe seria vibrado por Espanha e pelo CGOP nas aspirações destes políticos. O plano de rede espanhol não incluía o prolongamento da linha da Beira Alta. A preferência castelhana dividia-se entre caminhos-de-ferro por Cáceres ou pelo vale do Tejo desde Malpartida. Este último era, para a Junta de Estadística, de fácil construção, mais curta que a via de Cáceres, só ligeiramente mais extensa que a da Beira Alta (que por seu lado seria de difícil assentamento em Portugal e não tinha tanto interesse como, por exemplo, a do Douro) e sobretudo tinha a enorme qualidade de também passar por Madrid na viagem entre Lisboa e Paris29. Em Portugal, o CGOP, em consulta de 31.8.1865 sobre o relatório da comissão luso-espanhola que definira as conexões férreas internacionais, não considerava a linha da Beira Alta de primeira importância, preferindo a ligação pela Beira Baixa, numa inflexão que se ficava a dever a novos estudos que superavam os obstáculos levantados aos olhos de Nunes de Aguiar e dos técnicos espanhóis na década de 185030. Animado pelo apoio técnico, o influente local albicastrense Vaz Preto iniciava nos Pares a sua cruzada pela linha da Beira Baixa, muito embora Sousa Brandão continuasse a preferir a alternativa pela Beira Alta, passando por Tomar. Por esta altura, um outro engenheiro, o francês radicado em Lisboa Pezerat alvitrava que o início da linha 027 DL. Sessões da câmara dos deputados de 23.3.1864: 891; 29.3.1864: 939-940; 12.4.1864: 1118; 25.4.1864: 1294; 65-1864: 1438-1439; 7-5-1864: 1450-1451; e 9-5-1864: 1475. 028 DL. Sessão da câmara dos Pares de 23.12.1865: 3004-3005; sessão da câmara dos deputados de 1.2.1865: 305. 029 ESPANHA, 1865: 103-109 e 113-118. PAGE ALBAREDA, 1877: 427 e ss. 030 AHMOP. CSOP. Livro 22 (1865): 18-29v. PAGE ALBAREDA, 1877: 427 e ss.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 11

Planos ferroviários de Espanha (1865­1870) AHMOP. Mapas e desenhos, C­0224­8­C, C 0224­7 C e C 0224­2 C. ESPANHA, 1865. MATEO DEL PERAL, 1978: 117.

se devia fixar em Coimbra, enquanto Saldanha usava a linha da Beira Alta como argumento para convencer o governo a aceitar a concessão do seu monocarril larmanjat31 . De qualquer modo, as duas empresas ferroviárias que operavam em Portugal – a Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses (CRCFP) e a South Eastern of Portugal Railway Company – passavam por grandes dificuldades financeiras, de cuja resolução dependia o acesso nacional aos mercados financeiros de Paris e Londres32. Tudo se conjugava para tornar improvável o aparecimento de novos investidores. 031 AHM. APSB. [Carta de Saldanha a Sá da Bandeira sobre o Larmanjat e a Linha da Beira Alta]. Div 3/18/1/3/182. DL. Sessão da câmara dos deputados de 7.5.1867: 1426-1428. PEZERAT, 1867. 032 SAMODÃES, 1873. PEREIRA, 2012b.


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O governo ainda tentou incluir a linha da Beira como contrapartida num acordo para auxiliar a CRCFP, debalde33. A solução do executivo passaria por decretar a construção pelo Estado das linhas do Minho e Douro (lei de 2.7.1867) 34. Ao se assumir como construtor, o governo não podia tomar a seu cargo uma linha de grande exigência técnica, pois acreditava-se que só a iniciativa privada o podia fazer, escolhendo-se assim linhas cuja construção seria menos exigente e mais económica . Porém, nos anos seguintes o investimento tornou-se manifestamente impossível. A necessidade de auxiliar e indemnizar as duas companhias ferroviárias, a crise de finais da década de 1860 e a subida ao poder de governos obcecados pelas economias e pela austeridade traduziu-se numa paralisação da construção que desde 1860 vinha animando o Reino 35.

FIGURA 12

Busto de Manuel Vaz Preto Geraldes em Castelo Branco Site da Direção Regional de Cultura do Centro.

2.5. Qual das Beiras?

Na década de 1870, voltaram a reunir-se condições políticas e económicas para a retoma da construção. O governo inicialmente dava preferência à conclusão da linha do Norte (secção entre Gaia e Porto, que incluía a ponte sobre o Douro) e à realização da lei de 2.7.1867, deixando o caminho-de-ferro da Beira à iniciativa parlamentar. 033 DINIS, 1915-1919, vol. 4: 132-139. 034 Collecção Oficial da Legislação Portugueza (COLP), 1867: 441-442. 035 PEREIRA, 2011a. SOUSA & MARQUES, 2004.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Em 9.1.1873, um grupo de deputados da região, chefiados por Luís de Campos, apresenta um projeto de lei para o assentamento da ferrovia entre a linha do Norte e Almeida, com ramal para Gouveia, argumentando que seria um trunfo para a Alemanha, que, com uma via rápida para Lisboa, podia competir com Inglaterra. Semanas depois, outro grande agregado (55 tribunos) apresenta (14.3.1873) projeto semelhante propondo duas vias pela Beira Alta e pela Beira Baixa, sendo esta considerada a verdadeira linha internacional, que agradava também aos interesses castelhanos e que tinha a vantagem de servir a Covilhã. Era um diploma assinado na sua maioria por deputados fiéis ao governo, mas que contou também com o apoio de outros partidos e que, pelo número de signatários, reunia o interesse nacional36. A comissão de Obras Públicas, numa decisão salomónica, não decreta nenhuma delas nem define diretrizes, considerando-as de alto valor e incluindo-as num imaginado plano de rede que deveria ser fixado por lei (parecer de 31.3.1873) 37. É possível que esta proposta pretendesse apenas calar a insatisfação dos deputados da Beira, relegados que ficaram dos planos ferroviários do governo. Os eleitos da maioria lançam a ideia, agregam o interesse de alguns dos seus colegas da oposição e espevitam-lhes a esperança de verem a sua região cruzada de estradas de ferro. O facto de apenas a comissão de Obras Públicas do Parlamento (e não a de Fazenda) ter sido ouvida corrobora esta hipótese. Além disto, ainda estavam por estabelecer as diretrizes de ambos os caminhos e só alguns dias depois, portarias de 18.3.1873 incumbem Sousa Brandão e Joaquim José de Almeida do estudo de duas linhas desde Vila Nova da Barquinha até Almeida e de Abrantes a Monfortinho38. A CRCFP não ficou indiferente a estes diplomas, pois qualquer um daqueles caminhos-de-ferro entroncava nas suas linhas e em parte do seu traçado eram paralelos, o que, segundo uma interpretação muito lata do seu contrato de 14.9.1859 (aprovado por lei de 5.5.1860), lhe poderia dar direito de preferência ou exclusividade39. No entanto, a companhia só se interessou pela linha da Beira Alta, incumbindo o engenheiro Félix Combelles do seu estudo (em 30.6.1873) 40, uma vez que a da Beira Baixa concorreria com a ferrovia até Badajoz. Combelles apresenta os seus estudos em Agosto do mesmo ano, colocando o início da via-férrea em Mogofores (Anadia). Até Celorico da Beira, seguia a diretriz previamente estudada, mas a partir dali inovava, indo por Trancoso, Vila Franca das Naves, Guarda e Almeida41. Por seu lado, Sousa Brandão voltara-se para um traçado iniciado na Pampilhosa. Assim, às soluções 036 037 038 039 040 041

Diario da Camara dos Deputados (DCD), 9.1.873: 42-46; 14.3.1873: 693-704. SANTOS, 1884, [Parecer da comissão de Obras Públicas sobre as linhas da Beira Alta e da Beira Baixa]. DINIS, 1915-1919, vol. 5: 246 e ss. FERNANDES, et al., 1993: 12. FINO, 1883-1903, vol. 1: 82-97 e 98-100. DINIS, 1915-1919, vol. 5: 271-272 e 282-283. AHMOP. JCOPM. Livro 34-A (1873); 81v-84v; livro 35 (1874): 208-218.


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Coimbra (de Chelmicki e Pezerat) e Mealhada (de Couceiro), juntavam-se agora as alternativas Pampilhosa e Mogofores. A linha da Beira Baixa parecia relegada para segundo plano, malgrado ser a preferida da AECP no caso de os espanhóis também a desejarem. Porém, do lado de lá da fronteira aquela preferência não era correspondida, daí que o caminho-de-ferro da Beira Alta tornou-se a única solução possível, restando definir o seu ponto de partida, a margem do Mondego pela qual se espraiaria e a forma como se ligaria a Espanha para lá de Vila Franca das Naves (servindo a Guarda ou procurando diretamente a fronteira) 42. Apesar da qualidade do projeto de Combelles, a Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas (JCOPM, que substituíra o CGOP em 186843) chamava a atenção para a necessidade de mais exames, mas o governo optaria por aprovar os estudos de Combelles (portaria de 23.9.1873) 44 e no ano seguinte propunha (a 21.2.1874) a construção do caminho-de-ferro da Beira Alta juntamente com as linhas da Beira Baixa e do Algarve, prolongamentos de Sueste e ramais de Viseu e Covilhã (numa altura em também se noticiava uma outra proposta de Ribeira de Saraiva, representante de um negociante de vinhos na Bairrada, na companhia de Youle, Beer, Rumball, Whitakers e Knowles45). Os pontos iniciais das vias-férreas da Beira ficavam dependentes de estudos a realizar46. É nesse sentido que Boaventura José Vieira e Sousa Brandão são incumbidos da elaboração de anteprojetos. Do primeiro (datado de Novembro de 1874) resultou o regresso da estação inicial a Coimbra. A linha contornava depois a cidade por Coselhas, Santo António dos Olivais e Chão do Bispo antes de chegar a Torres do Mondego, onde entrava na margem direita deste rio, indo até à foz do Dão. Seguia então pela margem esquerda deste afluente até Vimieiro e depois por aquela que parecia ser a única diretriz admissível até Celorico e Almeida, embora o engenheiro discordasse da necessidade de levar o caminho-de-ferro a esta localidade (a não ser que a intenção fosse unicamente de índole militar). Era uma solução mais barata do que a de Mogofores (cujo túnel de 2 km de extensão rebentava com o orçamento) e melhor em termos técnicos que a da Pampilhosa (com rampas inferiores a 15 mm/m), embora fosse um traçado que exigisse muitos pequenos túneis47. Do segundo (de Março de 1874 e Fevereiro de 1875) surgiu uma linha iniciada no Rossio de Abrantes, que seguia até às Portas do Ródão, onde atravessava o Tejo, antes de se dirigir por Castelo Branco à fronteira em Monfortinho. Os declives não excedentes a 10 mm/m e os raios de curva superiores a 500 m ofereciam 042 043 044 045 046 047

AECP, 1873. PORTUGAL, 1952. PORTUGAL, 1977. TEIXEIRA, 1938. PINHEIRO, 1986: 447. DCD, 21.2.1874: 482-485. VIEIRA, 1875.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 13

Boaventura José Vieira Site geneall.pt

excelentes condições de tração e permitiriam velocidades mais elevadas aos comboios (o que numa linha internacional era fator fulcral). Sousa Brandão estudaria ainda um ramal até à Covilhã por Castelo Branco ou Idanha-a-Nova. O carácter de ramal era reforçado pelas condições muito modestas em que estava proposto (declives a excederem os 20 mm/m, raios de curva a descerem aos 200 m, quase ausência de patamares) e por se encarar a possibilidade de se construir em bitola (distância entre faces internas dos carris) reduzida48. O carácter megalómano da proposta de 21.2.1874, aliado ao facto de prever que o pagamento só se faria no final e não ao longo da construção (nenhum investidor aceitaria esta condição), indicava alguma demagogia na tentativa de contentar os descontentes (além dos beirões, os algarvios que desde meados da década de 60 viam prometida uma linha até Faro49). Além disto, a sessão legislativa encerraria antes de ser iniciada a discussão, apesar de ser possível ao governo pedir ao Rei o seu prolongamento, o que normalmente era concedido. Era uma forma de avisar os opositores (sobretudo os membros do Partido Reformista de Viseu na câmara baixa e Vaz Preto entre os Pares) para que não perdessem tempo com oposição a outros projetos. Finalmente, só em meados de 1875 o governo encetaria conversações com Espanha para a fixação dos pontos de ligação na fronteira50. 048 AHMOP. JCOPM. Caixa 18 (1875), pareceres n.º 6514 (6.4.1875) e 6519 (8.4.1875). 049 PEREIRA, 2011f. 050 Arquivo Histórico-Diplomático (AHD). Caminhos de ferro de Portugal e Hespanha. Caixa 28 (1055), maço 23.


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Em 9.3.1875, esta proposta é renovada e efetivamente discutida, se bem que sem os prolongamentos de Sueste e com os inícios das linhas fixados em Coimbra e Abrantes51 . Da proposta resulta a nomeação de Almeida de Eça e Sousa Brandão para a elaboração dos projetos definitivos (portaria de 9.4.1875), ambos acompanhados dos militares Alincourt Braga e Bandeira Coelho52, mas não a publicação de uma lei, pois a discussão nos Pares foi interrompida pelo encerramento da sessão, o que mostra mais uma vez a pouca vontade do governo em fazer promulgar o diploma. Por esta altura, a JCOPM faz uma apreciação global à questão. O início da linha da Beira Alta em Coimbra era elogiado, mas a opção Pampilhosa seria aceitável se melhorada, pois traduzir-se-ia numa construção menos dispendiosa. Uma eventual via paralela à fronteira entre os caminhos-de-ferro do Leste e Beira Alta serviria a Covilhã e possibilitaria o seguimento pelo vale do Massueime e do Sabor até ao coração de Trás-os-Montes e Zamora. Já a linha da Beira Baixa poderia ser a correção da do Leste no que à ligação a Madrid dizia respeito. Mais importante, oferecia o percurso com maior encurtamento para França, caso em Espanha se construísseem os troços de Sória a Castejón e a Pamplona ou caso a velocidade média permitida fosse superior à da linha da Beira Alta em 4 km/h. Tudo dependia das condições de tração. Ora no projeto de Sousa Brandão, os declives máximos não ultrapassavam os 10 mm/m e os raios das curvas não desciam dos 500 m. Já na linha da Beira Alta aqueles subiam aos 15 mm/m e estes desciam aos 300 m53. No próprio Parlamento, o engenheiro Lourenço António de Carvalho, futuro ministro das Obras Públicas, fazia eco das considerações da JCOPM, reafirmando que a única linha da Beira que poderia ser internacional era a da Beira Baixa54. Apesar da autoridade destas opiniões, os deputados da Beira Alta (no caso, Luís de Campos) continuavam a defender os seus campanários, aconselhando jocosamente os colegas: “ não sei se os illustres deputados, que estão presentes, conhecem bem o tracto de terreno que medeia entre Abrantes e as portas de Rodam; se não conhecem, peço-lhes que fujam de lá. (...) é arido e triste e pobre como eu não conheço outro tracto de terreno. Abundam, para escurecer o quadro, abutres, que se criam n’aquellas penedias, e no topo do valle está uma povoação, Villa Velha de Rodam, onde (...) as casas ainda não têem vidros! ” 55. Na melhor das hipóteses a linha da Beira Baixa seria exclusivamente nacional, apenas aproveitando um dos ramais de Sousa Brandão56. A decisão portuguesa continuava dependente da vontade espanhola, que por lei de 20.9.1870 e pelo próprio plano proposto em 1865 tinha já decretado a linha de Mal051 052 053 054 055 056

DCD, 9-3-1875: 762-764. AHD. Caminhos de ferro…, cit. DINIS, 1915-1919, vol. 5: 460-461. AHMOP. JCOPM. Caixa 18 (1875), parecer 6418 (7.1.1875). VIEIRA, 1875. DCD, 16-3-1875: 815-825. DCD, 13-3-1875: 1067. DCD, 15-3-1875: 1081-1086.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 14

Proposta de vias­férreas na Beira Interior

Revista de Obras Públicas e Minas (ROPM), t. 6 (1875), est. 1.


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partida de Plasencia a Portugal57. Todavia, das negociações e de novos estudos fronteiriços iniciados em 1875 pelo engenheiro espanhol Eusébio Page Albareda, resultou uma nova diretriz para a linha da Beira Baixa cruzando a fronteira em Montalvão, enquanto do lado português se mantinha a preferência por Monfortinho58. Na lei de 26.1.1876, que finalmente ordenava a construção das linhas da Beira, nada se definiu em relação a este ponto, já que o término da linha da Beira Baixa era o ponto da fronteira de Espanha onde se ligasse ao caminho-de-ferro que viria de Malpartida59. Três dias depois, Sousa Brandão apresentava o seu projeto definitivo. A linha podia começar no Alentejo, seguindo depois a direção de Cáceres por Montalvão (como pretendiam os responsáveis espanhóis), no entanto esta seria meramente uma via de segunda grandeza. A preferência do engenheiro ia para o caminho-de-ferro que partia do Rossio de Abrantes, cruzava para a margem direita do Tejo em Ródão e daqui seguia por Idanha-a-Nova até Monfortinho, servindo Castelo Branco e a Covilhã com ramais60. Em Abril de 1876, a JCOPM volta a elogiar as excelentes condições de tração da via-férrea que permitiam aos comboios circular a velocidades entre os 40 e os 45 km/h61 . Uma semana depois de Sousa Brandão, Almeida de Eça apresenta também o seu parecer para a linha da Beira Alta com início na Pampilhosa. Era, para este engenheiro, a diretriz mais curta, mais barata, que ficava a meio caminho entre Porto e Lisboa, que se prestava mais bem a ser continuada até à Figueira da Foz e que atravessava uma área órfã de comunicações em razoáveis condições de tração. A ligação de Celorico à fronteira não seria feita de forma direta, mas passaria pela Guarda e pelo vale do Noémi. O ponto final da linha era também alterado para Vilar Formoso, o que fez entrar em pânico alguns militares, pelo afastamento da praça de Almeida (esta escolha ter-se-á ficado a dever à influência do cacique e autarca local Manuel Fernandes Monteiro, nascido em Vilar Formoso e aqui detentor de interesses pessoais) 62. Para Eça, esta era a verdadeira linha internacional e não a da Beira Baixa devido ao alquebrado terreno que atravessava em Espanha63. Em Março, a JCOPM concordava com Almeida de Eça, embora reconhecesse que o início na Pampilhosa poderia levantar algumas questões do ponto de vista legal, pois a lei estipulava que a linha devia começar em Coimbra. Uma forma de contornar o juridicamente estipulado seria colocar via dupla até àquela estação, o que, por seu lado, poderia colocar a CRCFP em vantagem no concurso. 057 058 059 060 061 062 063

PAGE ALBAREDA, 1877: 425-427. AHD. Caminhos de ferro…, cit. FINO, 1883-1903, vol. 1: 266-268. BRANDÃO, 1877a. BRANDÃO, 1877b. AHMOP. JCPOM. Livro 37 (1876): s/p (parecer de 27.4.1876). MACHADO, 1879. GONÇALVES, 2007: 90. EÇA, 1876.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

A JCOPM acabaria por aprovar o traçado de Almeida de Eça somente para lá de Santa Comba Dão e o de Boaventura Vieira para cá daquela localidade, apesar de admitir que a velocidade média das composições na linha não ultrapassaria os 30 km/h (a JCOPM apreciava única e exclusivamente aquilo que lhe era solicitado – neste caso a linha da Beira Alta – coibindo-se de fazer considerações mais abrangentes ou numa perspetiva nacional). Isto era aceitável para aquele órgão, que lembrava que no caminho-de-ferro do Norte de Espanha os comboios não iam além dos 33 km/h, o que à partida condenava a vocação internacional de qualquer estrada de ferro 64. Comparativamente, em Inglaterra, a velocidade média era de 60 km/h e tendia a aumentar65. Demais, do lado de Espanha, o engenheiro Page tinha concluído em Abril de 1876 que a ligação a Portugal poderia vir diretamente de Malpartida a Coria e entrar em Portugal ao norte do Tejo 66. É verdade que faltava o mais importante – a ratificação desta possibilidade pela Coroa espanhola – mas de qualquer modo o governo português não se mostraria interessado numa linha que prometia ligar Lisboa mais rapidamente a França, ideia que aliás seria confirmada depois de inaugurado o caminho-de-ferro da Beira Alta: em finais da década de 1880, o engenheiro Almeida Pinheiro, no seu estudo sobre a via-férrea da Beira Baixa (entre Praia do Ribatejo e a Guarda), afirmaria que um comboio vindo de Lisboa chegaria mais rapidamente à fronteira servindo-se desta via do que indo até à Pampilhosa apanhar a linha da Beira Alta67. De facto, esta possibilidade constituiu um grande obstáculo à ligação das linhas da Beira Alta e da Beira Baixa, pois a CRCFP pretendia um entroncamento duplo (na Guarda e em Vila Fernando) para facilitar o imaginado tráfego internacional ao passo que a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses da Beira Alta (CCFBA) fez tudo para que isso não acontecesse68. Na AECP, onde desde 1876 se discutia acesamente o plano geral da rede férrea nacional, a maioria dos engenheiros portugueses era favorável a ambos os corredores férreos, embora houvesse quem só preferisse a linha da Beira Alta e quem apenas elegesse a sua congénere sulista69. Fosse como fosse, a decisão final cabia ao governo (a JCOPM tinha apenas competências consultivas), que apenas abriria concurso para o caminho-de-ferro da Beira Alta, com início em Coimbra (decreto de 20.5.1876). O concurso, todavia, 064 065 066 067 068

AHMOP. JCOPM. Livro 37 (1876): s/p (parecer de 4-3-1876). ROPM, t. 13 (1882), n.º 155: 637. PAGE ALBAREDA, 1877: 425-427. PINHEIRO, 1884: 88 e ss. AHMOP. JCOPM. Caixa. 38 (1892), parecer 21692 (23.5.1892); cx. 39 (1892-1893), pareceres 22284 (14.11.1892), 22611 (16.3.1893) e 22647 (27.3.1893); cx. 41 (1894), parecer 23987 (11.6.1894). FINO, 1883-1903, vol. 3: 144145. Gazeta dos Caminhos de Ferro (GCF), a. 4, n.º 74 (16-1-1891): 21-23. 069 PEREIRA, 2011b.


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ficaria deserto pelo facto de nenhum interessado aceitar ser pago pela sua tarefa somente no fim das obras. O governo oferece então o pagamento de uma anuidade durante 56 anos, mas a proposta apresentada ao concurso reaberto a 11.9.1876 não era aceitável70. Face à impossibilidade de contratar uma companhia, o governo propõe a construção da linha por administração direta do Estado (como havia feito no Minho, Douro e Sueste) desde a Pampilhosa, incluindo ainda um ramal da estação de Coimbra ao centro da cidade, como compensação pelo facto de aquela não se tornar ponto inicial do caminho-de-ferro da Beira Alta71 . No entanto, nada disto se realizaria no imediato em virtude da queda do governo do Partido Regenerador. Apesar de autorizado pelo Parlamento (pela lei de 26.1.1876), de contar com o parecer positivo dos corpos técnicos e de a linha da Beira Alta ter sido por duas vezes rejeitada no mercado, o governo continuava a preterir o caminho-de-ferro da Beira Baixa. Duas razões explicam este comportamento. Em primeiro lugar, a ferrovia da Beira Alta tinha uma maior extensão em Portugal, critério adotado desde 1867 pelo então ministro das Obras Públicas Andrade Corvo 72. Ao construir-se

FIGURA 15

João de Andrade Corvo em 1860 BND (purl.pt/13306)

uma via internacional com o máximo de extensão em Portugal, lançavam-se também os benefícios da chamada viação acelerada sobre um maior trato de território luso. Em segundo lugar, e talvez mais importante, a CRCFP. Esta companhia en070 FINO, 1883-1903, vol. 1: 268-282. 071 DCD, 8.1.1877: 490-491. 072 DL, sessão da câmara dos deputados de 25.1.1867: 233-234.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

contrava-se ainda em recuperação da crise do segundo lustro da década de 60 (só a partir de 1878 distribuiria dividendo73) e esforçava-se por terminar a ponte de D. Maria Pia sobre o Douro, pelo que não tinha capacidade financeira para construir uma via internacional que, ainda para mais, sangraria a sua linha do Leste de movimento. A adjudicação da obra a uma outra empresa era, também por este mesmo motivo, impensável. Na administração da CRCFP, pontificavam alguns ministros e parlamentares, mas, mais do que beneficiar a companhia, estes homens estariam mais preocupados em não a prejudicar, pois todos se lembravam dos apuros por que passara o Estado à conta dos problemas financeiros da CRCFP na segunda metade da década de 1860.

2.6. A linha e a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses da Beira Alta

O novo governo (liderado pelo marquês de Ávila, defensor de uma maior contenção da despesa pública), que sucede ao do Partido Regenerador, fixou o ponto inicial da linha da Beira Alta na Pampilhosa, após parecer nesse sentido da comissão parlamentar de Obras Públicas. Contudo, a construção propriamente dita do caminho-de-ferro seria adiada para depois da conclusão das linhas do Minho e Douro74. A escolha da Pampilhosa fora motivada por fatores financeiros, mas também de oportunidade, pois uns meses antes a JCOPM tinha dado parecer positivo (na condição de se fazerem algumas alterações ao projeto) a uma linha entre a Figueira e Coimbra concessionada a Camille Mangeon e Evaristo Pinto em 1875 (decreto de 22.9.1875 )75. Confiante que este projeto seria exequível, o governo optou pela Pampilhosa para poupar algum dinheiro sem deixar de ligar Coimbra à Figueira. No que respeita à linha da Beira Baixa, o executivo não só a esqueceu como lhe colocou um obstáculo ao atribuir o ramal de Cáceres à CRCFP (decreto de 19.4.1877) 76, mas em tão más condições de tração que “ quando se diga que o caminho de ferro de Lisboa a Madrid tem o celebre ramal de Caceres, e que este caminho é internacional, escusamos de encarecer a sabedoria que tem presidido aos estudos e ás concessões das nossas linhas ferreas”, ironizava António Augusto de Aguiar no Parlamento77. Na ânsia de dotar um caminho-de-ferro sem encargos para o Tesouro Público (desta feita, a CRCFP nenhum subsídio recebia do Estado), o governo de Ávila concede uma via em más condições e fácil de assentar (de modo 073 074 075 076 077

SALGUEIRO, 2008: 47-55. TORRES, 1985: 77. DCD, 23.3.1877: 758-759; 16.1.1878: 107-108. AHMOP. JCOPM. Livro 37-A (1876): s/p (parecer de 26.12.1876). FINO, 1883-1903, vol. 1: 265-266. COLP, 1877: 108-110. Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino (DCDPR), 8.7.1882: 1124.


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FIGURA 16

António José de Ávila, marquês de Ávila, em 1870 BND (purl.pt/369/1/ficha­obra­avila.html)

que a CRCFP a pudesse construir), que era um perigo do ponto de vista militar por abrir o Alentejo a uma invasão78 e que parecia tornar obsoleta a linha da Beira Baixa (o relatório final da AECP sobre a rede geral dos caminhos-de-ferro portugueses de 4.8.1877 nem sequer incluía esta via). Ironicamente, em Espanha, o novo plano de 23.11.1877 incluía prolongamento da linha da Beira Baixa. Contudo, o governo avilista cairia antes de fazer aprovar no Parlamento a proposta de lei para construção do caminho-de-ferro da Beira Alta e, em sua substituição, o Partido Regenerador predispõe-se a torná-la uma realidade, recuperando o seu próprio diploma, que culmina na lei de 23.3.1878, que previa a adjudicação da empreitada (incluindo o ramal de Coimbra) ou a sua execução por administração direta do Estado, na ausência de interessados. Do concurso, aberto por decreto de 24.5.1878, foi selecionada a Société Financière de Paris (SFP) (que receberia um subsídio de 23 contos por cada quilómetro assente), que funda, não sem dificuldades, uma companhia subsidiária – a CCFBA – a quem trespassa a concessão (escritura de 8.1.1879) 79. A construção, a cargo dos empreiteiros Dauderni & Duparchy, iniciou-se em Outubro de 1878, ao passo que a linha da Beira Baixa seria adiada, catalisando, entre os Pares, a ira de Vaz Preto, para quem aquele caminho-de-ferro “ não se tem feito, porque alem dos quatro poderes do estado marcados pela carta, ha ainda um quinto poder, e esse quinto poder é a companhia dos caminhos de ferro 078 AHM. António Ribeiro e Eduardo Marrecas Ferreira – Caminhos de Ferro. Reconhecimento da linha do Norte de Lisboa ao Porto. Campanha de 1886. Div 3/20/35/1, 8v e ss. 079 FINO, 1883-1903, vol. 1: 306-308, 310-322 e 361-374. PINHEIRO, 1986: 480-481. PINHEIRO, 2004: 9.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 17

Proposta final de rede da AECP (1877) ROPM, t. 9 (1878), est. 1


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FIGURA 18 Plano ferroviário espanhol de 1877 MATEO DEL PERAL, 1978: 117 (adaptado)

do norte e leste” 80. De facto, a linha da Beira Baixa continuava a ser uma ameaça às vias transfronteiriças da CRCFP, sobretudo ao seu novíssimo ramal de Cáceres. Pela lei e pelo contrato, a linha da Beira Alta começava na Pampilhosa, pelo que depressa se começou a pensar em lhe conceder uma saída marítima, prolongando-a até à Figueira da Foz, “ uma das praias mais frequentadas para uso dos banhos de mar” 81 , segundo Lourenço António de Carvalho, então ministro das Obras Públicas. De facto, a Figueira só como porto turístico valia, pois como porto comercial em 1846 estava impraticável, entre 1864 e 1881 apenas admitia navios de pequeno 080 DCDPR, 27.3.1878: 204. 081 DCD, 20.2.1878: 596. Ver também MÓNICA, 2005-2006, vol. 1: 658-660.


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FIGURA 19

Lourenço António de Carvalho em 1878 O Occidente, revista illustrada de Portugal e do estrangeiro (Occid.), n.º 4 (15.2.1878): 28

calado e “ por muito, porém, que possa esperar-se das obras projectadas e de outras sómente lembradas, não deve nunca alimentar-se a vaidosa esperança de que o porto e a barra da Figueira possam tornar-se de primeira ordem ” 82, segundo afirmava Adolfo Loureiro. Aquela ligação fora já proposta em várias ocasiões pelo deputado figueirense Luís de Lencastre83, mas não seria concretizada pelos seus correligionários do Partido Regenerador. Sê-lo-ia sim pelo Partido Progressista, que, uma vez no governo e a pedido da CCFBA, outorgou em 1879 a esta sociedade, sem qualquer auxílio financeiro por parte do Estado, a via-férrea da Pampilhosa à Figueira da Foz. Ao assim proceder, o governo dos progressistas conseguia uma nova linha sem encargos para o Tesouro e ao mesmo tempo mostrava algum distanciamento em relação à CRCFP, sobretudo quando esta empresa protestou contra a concessão, alegando que o caminho-de-ferro em questão se tratava de um ramal da sua linha do Norte. Consultada, a JCOPM em 21.8.1879 negou razão à CRCFP, que invocou então o paralelismo da linha em relação ao troço do caminho-de-ferro do Norte entre Alfarelos e Coimbra. Uma vez mais, a JCOPM (em parecer de 28.8.1879) discordou da CRCFP, mas o governo optou por abrir concurso entre as duas interessadas, do qual saiu vencedora a CCFBA ao declarar que assumiria a tarefa sem qualquer tipo de subsídio estatal84. O governo nomeou então Almeida de Eça para definir a diretriz que mais bem satisfizesse os interesses nacionais e dos concelhos circundantes. Equacionou-se 082 LOUREIRO, 1904-1909, vol. 2: 107, 116, 151, 164, 195, 234. LOUREIRO, 1874-1875. 083 DCD, 19.3.1875: 876-877; 20.2.1878: 418; e 13.5.1879: 1689-1690. 084 FINO, 1883-1903, vol. 1: 401-404.


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novamente a hipótese de levar a linha da Pampilhosa a Coimbra e daqui à Figueira o que obrigava ao pagamento de uma indemnização à CCFBA, à abolição do projeto direto da Pampilhosa (que era totalmente gratuito) e à escolha de uma solução nefasta em termos de exploração, financeiros e de conveniência para ambas as empresas85. A linha direta seria aprovada pela JCOPM, apesar de os declives e os raios de curva serem menos favoráveis à tração que no resto da linha da Beira Alta86. O acordo de 3.9.1879 seria aprovado por lei de 31.3.1880, mas nem por isso a CRCFP desistiu da sua pretensão, levando o caso a juízo arbitral, que em 7.8.1880 dá razão à CCFBA encerrando definitivamente a questão87. No final, o governo progressista mantinha-se fiel aos seus princípios de não aumentar a despesa, afrontava a todo-poderosa CRCFP (que na altura era encarada como um morgado dos regeneradores88), dava uma saída marítima própria à linha da Beira Alta e agradava aos deputados da oposição que tinham sido enjeitados pelo seu próprio partido nesta questão. Em contrapartida, conseguia-se uma linha que no futuro traria novos problemas do foro jurídico89. Em Outubro de 1880, iniciou-se a construção nesta secção do caminho-de-ferro que foi marcada por alguns diferendos entre a CCFBA, os operários da linha, o governo e a CRCFP 90. Pouco menos de dois anos depois, a totalidade da linha era aberta à exploração (portaria de 30.6.1882) 91 , embora a inauguração oficial tivesse de esperar pelo dia 3.8.1882. Em Portugal, a via chegava a Vilar Formoso, prolongando-se depois em território espanhol até Salamanca. Todavia, este troço só seria aberto em Maio de 1886, quatro anos após a conclusão das obras em Portugal, e só nessa altura a linha da Beira Alta se tornaria verdadeiramente internacional92. Apesar de todas as expetativas e de todas as esperanças de ver Lisboa transformada no cais da Europa por ação da linha da Beira Alta, o grande movimento provindo da Europa tardou em aparecer. Os tráfegos gerados nunca foram volumosos, de modo que os rendimentos suplantavam as despesas operacionais, mas nunca cobriram as despesas de capital (sobretudo o capital obrigacionista que em 1882 era três vezes superior ao capital acionista). Logo em 1883, a CCFBA é obrigada a contrair um empréstimo para pagar o juro das suas obrigações. O dividendo deixou de ser distribuído e os obrigacionistas tiveram de se contentar com o excesso de receita, que não cobria o juro acordado. Chegou-se a ponderar uma fusão com a 085 086 087 088 089 090 091 092

AHMOP. JCOPM. Caixa 23 (1880), parecer 8605. AHMOP. JCOPM. Caixa 23 (1880), parecer 8886. DINIS, 1915-1919, vol 6: 242-251, 255-259 e 295-304. FINO, 1883-1903, vol. 1: 405-408 e 412-418. DCD, 26.3.1873: 895. PAÇÔ-VIEIRA, 1905: 289-290. EÇA, 1888. RODRIGUES, 2006: 35. FINO, 1883-1903, vol. 1: 431. TORRES, 1936.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

CRCFP, que porém nunca se veio a concretizar. No início do século XX, a CCFBA faliu, vivendo a partir daí em concordata com os seus credores93. Ao procurar servir ao máximo a zona portuguesa que atravessava, a linha adquire contornos de serviço interno, entrando em conflito em termos de velocidade com a sua aptidão internacional. Do lado de Espanha, o serviço oferecido deixava também muito a desejar no que respeitava à velocidade das composições (a orografia ibérica obrigava a caminhos-de-ferro ondulantes tanto em planta como em perfil – muitas curvas, subidas e descidas – o que se repercutia negativamente sobre a velocidade). Por outro lado, Madrid nunca teve por objetivo obter ligações rápidas à Europa, mas sim servir o mais bem possível as suas regiões, pelo que as suas linhas serpenteavam pelo seu território em vez de buscar o percurso mais direto. Além disso, Espanha tinha também os seus próprios portos, os quais queria alimentar com tráfego. Finalmente, os engenheiros espanhóis nas décadas de 1840 e 1850 haviam aconselhado aos seus governos o uso da bitola de 1,67 m, diferente da usada em França, que era de 1,44 m (ao contrário do que se possa pensar, esta escolha não se ficou a dever a motivações de ordem militar, mas sim do foro técnico 94). Isto obrigava a uma baldeação de mercadorias e passageiros na fronteira, constituindo um enorme obstáculo à fluida circulação ferroviária entre nações. Se a isto juntarmos as peias alfandegárias impostas nas raias e a falta de condições dos portos nacionais (que só foram alvos de obras de remodelação em finais da década de 1880), facilmente percebemos que não era atrativo enviar bens desde o centro da Europa até Lisboa, até porque existiam já tradições e rotas comerciais seculares em direção a outros portos europeus95. Tudo isto demonstra que a linha da Beira Alta como grande ligação internacional estava condenada à partida. Independentemente das suas características técnicas, à fronteira luso-espanhola dificilmente aportaria uma enorme torrente de tráfego. Mesmo em termos puramente nacionais, este caminho-de-ferro não tinha um futuro brilhante, pois atravessava uma zona pobre e sobretudo com uma falta crónica de estradas de acesso às estações (que por sua vez estavam muito afastadas dos centros que deveriam servir), problema que afetou todo o sector um pouco por todo o País96. Mesmo assim, se a análise das estatísticas e dos rendimentos da CCFBA demonstra algo, é que esta linha era usada em cada ano por milhares de pessoas 093 GCF, a. 18, n.º 429 (1.11.1905): 327; a. 45, n.º 1073 (1.9.1932): 402. EÇA, 1888. GOMES, 1998: 14. PINHEIRO, 1986: 483. PINHEIRO, 1997: 152-153. PINHEIRO, 2008: 133. PISSARRA, 2011: 123-125. REIS, 1940. REIS, 1941. SOUSA, 1909. TORRES, 1985: 70-71. VIEIRA, 1983: 298-299. 094 MORENO FERNANDEZ, 1996. 095 PEREIRA, 2011b. PEREIRA, 2011e. 096 ALEGRIA, 1990: 161. PINHEIRO, 1986. PISSARRA, 2011: 127-128.


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para se fazerem transportar a si ou às suas milhares de toneladas de mercadorias, acabando a linha da Beira Alta por quebrar parcialmente o isolamento em que se encontrava parte desta zona do interior do País. Basta referir que, em 1856, Alexandre Herculano gastara perto de um dia para percorrer os 16 km em linha reta que separam Celorico da Beira da Guarda; em 1893, Oliveira Martins demorara apenas meio dia para ir de Lisboa à Guarda97. Além disto, foi (e é) por esta linha que circulou (e circula) o Sud-Express, que permitia a ligação mais veloz e cómoda entre Portugal e a Europa98. Este comboio foi inclusivamente capaz de quebrar a rigidez burocrática dos funcionários das alfândegas ao conseguir que as vistorias das bagagens fossem feitas a bordo do comboio, evitando assim perdas de tempo na fronteira99. Além disso, permitiu ainda aos intelectuais portugueses terem rápido acesso às notícias e novidades culturais do centro da Europa, perdendo “ Coimbra aquele aspecto de um mundo isolado em que o estudante se absorvia como em um sonho da vida, mas achou-se subitamente penetrado da luz da civilização europeia que aí vinha a reverberar” 100…

097 098 099 100

PISSARRA, 2011: 121, 125, 132-134 e 138. LEVY, 1983. Boletim da CP, a. 4, n.º 31 (1-1932): 2. M., 1912. GAIO, 1957: 20-21.



3. A INAUGURAÇÃO SEGUNDO WOLOWSKI

3.1. O dia da inauguração

Estávamos em pleno Verão de 1882. Portugal preparava-se para inaugurar oficialmente uma obra que prometia alterar a sua face: a linha da Beira Alta, o verdadeiro caminho-de-ferro internacional! Apesar de a sua ligação à rede espanhola estar ainda por concretizar – e portanto não passar ainda de um via exclusivamente nacional – o evento merece a presença da Família Real, de membros do governo e de algumas individualidades da sociedade portuguesa da época. Tratava-se, afinal, do mais curto e rápido percurso entre Lisboa e a fronteira francesa, do qual se esperava uma enorme torrente de tráfego de mercadorias e passageiros provinda do centro da Europa e da América, passando pela capital portuguesa. A ocasião é ainda aproveitada pelo Rei para visitar os seus súbditos do Norte. Além da inauguração, D. Luís e sua família planeavam conhecer a Beira Alta, visitar o Porto, subir ao Minho e embrenhar-se no Douro, reforçando a imagem da monarquia e também do governo, cujos membros os acompanhavam. No séquito real segue ainda um personagem improvável: um estrangeiro, de nome B. Wolowski, que, durante a viagem, recolhe notas sobre aquilo que testemunha, reunindo-as depois em livro com o longo título Les Fêtes en Portugal. Inauguration du chemin de fer de la Beira-Alta. Voyage de la famille royale. Notes et souvenirs de voyage. Trata-se de um pouco frequente e muito detalhado testemunho da inauguração de um caminho-de-ferro em Portugal, ainda para mais escrito por um não-português, que não se limitou aos aspetos ligados à ferrovia e ao evento, explanando também a sua opinião sobre os portugueses e suas idiossincrasias.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Nas linhas seguintes, continuar-se-á a análise a esta obra no contexto em que foi elaborada. Já acompanhamos brevemente os acontecimentos que marcaram a história da linha da Beira Alta e agora procuraremos saber quem era B. Wolowski e em que condições produziu o seu texto. Compará-lo-emos, por fim, com o noticiário que ia sendo publicado nos jornais da época, de âmbito local e nacional e conotados com diversos quadrantes políticos.

3.2. O relato e o seu autor

É sobre a inauguração de uma obra há muito aguardada que trata o livro de Wolowski. O relato foi escrito em francês, dedicado a Madame Marie L. e editado em 1883 pela casa E. Dentu de Paris, com 216 páginas (e quatro de prólogo) e ainda com quatro gravuras de Lisboa e Sintra (vista da capital, Palácios da Ajuda e da Pena e estátua de Camões). Entre 1958 e 1960, foi traduzido e publicado em vários números da Gazeta dos Caminhos de Ferro por Busquets de Aguilar. Segundo se depreende da sua leitura, este testemunho escrito nasceu de um caso de oportunidade. Wolowski encontrava-se em Portugal desde Abril de 1882. Sabendo que a festa da abertura da linha da Beira Alta estava próxima, adiou o seu regresso para assistir ao evento, pois entendia que nada havia de mais adequado para se avaliar o carácter de um povo do que as festas. E, no século XIX, não havia maior celebração do que a inauguração de um caminho-de-ferro, sobretudo de um no qual tantas esperanças se depositavam (partilhadas inclusivamente pelo autor) e que merecia até a presença de Suas Majestades. Ao longo da jornada, Wolowski foi tomando notas daquilo que vivia e experienciava, as quais enviava para um jornal francês. Porém, as recordações que levou de Portugal foram tão agradáveis, que optou por as publicar em livro. Mas quem era B. Wolowski? À partida para este trabalho, nada se sabia. Era apenas mais um autor com um nome pouco habitual como tantos outros que os investigadores encontram nas suas pesquisas. A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira também pouco ajuda, indicando apenas que se tratava de um “ escritor do séc. XIX cuja nacionalidade e outras circunstâncias pessoais se ignoram ” 101 . Algumas bibliotecas nacionais (Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), Biblioteca Pública Municipal do Porto, Biblioteca Municipal da Figueira da Foz Pedro Fernandes Tomás, Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca do Centro de Estudos Olisiponenses) possuem exemplares autografados pelo autor, mas não encontramos nenhuns registos biográficos seus. 101 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 36: 915-916.


Hugo Silveira Pereira

FIGURA 20

Autógrafos de Wolowski retirados de diversas edições do seu livro


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

O seu apelido é tipicamente do Leste da Europa, possivelmente da Polónia. Naturalmente, não sabia falar português, mas dominava o francês e escrevia para um jornal deste país, de que podia também ser nacional. No entanto, falar francês era algo usual entre as elites das nações europeias, pelo que desse facto não se pode depreender nada com segurança. O seu tradutor Busquets de Aguilar assevera que ele pertencia a uma família polaca que emigrara para França, onde obtivera a respetiva nacionalidade. Aparenta B. Wolowski de Louis Wolowski, um polaco exilado em Paris, que adquiriu a cidadania gaulesa, escreveu vários tratados económicos (L’or et l’argent, La question des banques, Principes d’économie politique, etc. ) e chegou mesmo ao cargo de Senador. De acordo com Aguilar, Louis terá enviado o seu parente a Portugal para aferir as possibilidades de retorno de investimentos em território luso.

FIGURA 21

Louis Wolowski Site do Senado francês (www.senat.fr)

É uma hipótese interessante e tão válida como outra qualquer, mas que não é suportada por qualquer tipo de fonte. Existia, de facto, uma família Wolowski na Polónia, de origem judaica (originalmente Schor) e convertida ao cristianismo (passando então a denominar-se Wolowski). Era uma linhagem com algum estatuto naquele país (nobres, políticos, professores universitários), à qual pertencia efetivamente Louis Wolowski102. Todavia, e apesar de este apelido não ser comum na Polónia, nada confirma que B. Wolowski fosse aparentado deste particular agregado. 102 Jewish Encyclopedia, disponível em www.jewishencyclopedia.com/articles/15003-wolowski (consulta em 15.2.2012). Encyclopaedia Judaica, vol. 16: 622.


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A teoria da nacionalidade polaca de Wolowski saiu reforçada a partir do seguinte momento. Ao perseguir a hipótese de Wolowski ser francês ou pelo menos ter ligações a França, consultou-se o catálogo da Bibliothèque Nationale de France procurando um exemplar do livro sobre a inauguração do caminho-de-ferro da Beira Alta. Desta pesquisa resultaria, ao invés, a certeza de se tratar de um cidadão polaco. Não só não encontramos nenhum exemplar de Les fêtes en Portugal, como nos deparámos com uma outra obra do mesmo autor que dissipa todas as dúvidas. Em Dombrowski et Versailles, de 1871, o nosso autor defende a memória de Jaroslaw Dombrowski (um miliciano nos eventos da Comuna de Paris) e dos seus compatriotas polacos que soçobraram nas barricadas parisienses e que foram considerados por alguma imprensa francesa como assassinos incendiários.

FIGURA 22

FIGURA 23

A obra de Wolowski, 'Dombrowski et Versailles'

Jaroslaw Dombrowski

Northwestern University Digital Library (digital.library.northwestern.edu)

Northwestern University Digital Library (digital.library.northwestern.edu)

No prefácio à obra, os editores indicam que o original fora escrito em polaco por Wolowski, um patriota, que no texto usa a primeira pessoa do plural quando se refere aos nacionais da Polónia, Além disto, encontramos também na advertência ao leitor um outro dado biográfico sobre o nosso autor. Nesse texto introdutório, Wolowski assina, desdobrando o B. em Bronislas103. Se incertezas ainda restassem, um terceiro documento do mesmo autor elimina-as definitivamente. Era também um 103 WOLOWSKI, 1871: 5-8 e 11.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

texto de desagravo, escrito desde o hotel lisboeta Bragança em 21.5.1884, desta feita contra Bismarck, que acusava Wolowski de ter mantido ligações com Léon Gambetta, primeiro-ministro francês, e com o escritor polaco Kraszewski (“ notre grand écrivain nationa l” nas palavras do nosso homem) que estava então a contas com o tribunal de Leipzig, acusado de espionagem a favor de Paris104.

FIGURA 24

Józef Ignacy Kraszewski Site Culture.pl do Adam Mickiewicz Institute (www.culture.pl)

Nesta carta, ficamos também a saber que Wolowski se tinha exilado em França, fugido da Polónia, provavelmente em consequência das insurreições em favor da independência perdida para o império russo em 1863 105. Uma publicação polaca mais recente classifica-o mesmo como um ativista político com participações em manifestações patrióticas e religiosas na Polónia na década de 1860. Terá sido em 1865 que se iniciou o exílio em França, onde Wolowski terá escrito Z Pamietnika Tulacza (qualquer coisa como Diário de um Exilado) 106. Em França, e como agradecimento ao bom acolhimento prestado pelos franceses, Wolowski lutou contra os prussianos 104 WOLOWSKI, 1884. Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (ELBC), vol. 11: 1195. 105 A Polónia era apenas uma parte da vasta Rússia desde a década de 1830. Na altura, o czar Nicolau I tomou medidas repressivas para suprimir o que restava da nacionalidade polaca, mas não foi bem sucedido. Após a sua morte em 1855, o seu sucessor, Alexandre II, encetou uma política mais tolerante, mas as suas concessões apenas animaram os polacos a reagir contra a presença estrangeira. Desde 1860 até 1864, registaram-se várias manifestações e motins, que culminaram na grande revolta de 1863-1864, após a qual a Rússia retoma a política repressiva de Nicolau I. As elites polacas, onde se incluía Wolowski, são oprimidas e muitos dos seus elementos acabam no exílio. ELBC, vol. 15: 467. NORONHA, 1915: 181-187. 106 Encyklopedja Powszechna z ilustracjami i mapami, vol. 15: 488. CZAJKA et al., 1995: 812-813.


Hugo Silveira Pereira

FIGURA 25

Aspeto da guerra franco­prussiana. A pintura 'Friedrich III and Field Marshall Helmut von Moltke' de Anton von Werner Wikipedia

FIGURA 26

Aspeto da Comuna de Paris (1871) Site Encyclopedia.com


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

no conflito de 1870-1871, tendo contribuído para a formação de uma legião franco-polaca. Mais tarde, esteve presente nos acontecimentos da Comuna de Paris, como vimos. Na sequência deste serviço, os polacos podiam ter obtido nacionalidade francesa (se houvessem combatido sob a bandeira gaulesa durante mais de cinco meses), mas Wolowski e muitos dos seus camaradas preferiram manter-se 100% polacos107. Por fim, citemos ainda um outro facto com que nos cruzamos no decurso desta investigação. Fora de Portugal, apenas encontramos um exemplar da obra de Wolowski num catálogo de uma biblioteca da Polónia, a Biblioteka Jagiellonska, o que não deixa de ser sintomático108. Além disso, também este acervo confirma o desdobramento do seu primeiro nome em Bronislaw. De acordo com Anna Grzeda, da referida instituição polaca, cruzando autógrafos de diferentes personagens ligadas a Wolowski com a informação sobre a sua atividade política em França e jornalística em Viena, a letra B. do seu nome foi identificada como Bronislaw. Quanto à sua atividade profissional, a primeira hipótese que se colocou ao iniciar a leitura do seu texto, foi a de se tratar de um diplomata. O próprio autor apresenta-se como um velho viajante que visitara já diversos países da Europa. A páginas tantas, refere também que foi convidado para a inauguração e que num jantar na Figueira ficou defronte de Fontes Pereira de Melo, presidente do Conselho de Ministros. Tudo isto parece indicar que nos encontrávamos na presença de um homem com alguma importância protocolar. No entanto, páginas depois, Wolowski refere como em Mangualde foi forçado a dormir ao relento por falta de camas para todos os visitantes. Se realmente se tratasse de um diplomata, isto decerto nunca aconteceria. Numa segunda hipótese Wolowski seria um jornalista, correspondente ou escritor, uma vez que os seus textos foram publicados num periódico. Alguns trechos ao longo do livro apontam também neste sentido. O próprio autor se refere a si próprio como o único jornalista estrangeiro a assistir ao evento. Há a possibilidade de o termo jornalista ter um sentido lato e não significar necessariamente um homem ligado à atividade noticiosa. Outros factos, porém, foram confirmando esta hipótese, desde logo a forma como o autor trava conhecimento e se dirige a determinadas personagens (o encontro com Duparchy, empreiteiro da linha, toma todos os contornos de uma entrevista) ou a maneira como descreve os aposentos ou vestuário dos monarcas. O facto de ter sido convidado para o evento não invalida esta teoria, pois igual honra mereceram correspondentes de jornais nacionais. Fora da obra, encontram-se igualmente outras indicações que apontam no mesmo sentido. Num artigo de 1966 publicado no Boletim da C. P., é mencionada a presença no dia da inauguração do correspondente do jornal francês Temps de Paris. Uma vez mais não se refere a fonte, que terá sido o jornal A Revolução de Setembro 107 WOLOWSKI, 1884. 108 Catálogo disponível online em www.bj.uj.edu.pl/uj/katalog?lng=en.


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(RS). Poder-se-ia tratar de Wolowski já que ele era o único jornalista estrangeiro a assistir ao evento109. As dúvidas desvanecem-se na leitura de duas cartas que o próprio escreveu a Oliveira Martins (em 1882 e 1883), nas quais refere que era, na altura, diretor do Echo de France e do Messager de Vienne, os jornais onde publicara originalmente os relatos da viagem pela Beira Alta110. Ainda na BNP, existe um outro exemplar de Les fêtes en Portugal que confirma a profissão de jornalista de Wolowski num novo avant-propos que não consta de qualquer outro exemplar (ao qual só acedemos na fase final desta investigação). Também os jornais da época confirmam a profissão do polaco, bem como a já citada carta aberta a Bismarck111 . Duas publicações polacas mais recentes, consultadas, uma vez mais, graças à gentileza de Anna Grzeda, confirmam a profissão de jornalista e participações nos jornais Messager de Vienne (desta cidade) e La Fédération (de Genebra) e ainda a autoria de uma revista que acompanhou a Exposição Universal de Paris de 1878112. Em suma, estas foram as poucas informações que se conseguiram recolher acerca do autor da obra. Wolowski era assim um jornalista polaco radicado em França que, por razões desconhecidas, aportara a Portugal em 1882 e assistira à cerimónia oficial de inauguração da linha da Beira Alta. Quanto a relações familiares, sabemos que era sobrinho de um tal Jana Kantego e tinha um irmão, André Ladislas Wolowski, que o acompanhou nos eventos de França e depois se tornou jornalista e dramaturgo113. Nada mais se sabe. Idade, cidade de origem, formação, casamentos, descendência são aspetos biográficos que ficam por apurar.

3.3. A viagem, segundo as crónicas da época

Como seria expetável, um acontecimento da importância da inauguração de uma linha-férrea transnacional não mereceu apenas a atenção de um jornalista estrangeiro que por acaso se encontrava em Portugal. Também os periódicos nacionais se debruçaram sobre o evento, tendo alguns deles enviado representantes para cobrir a inauguração. Nesta altura, muitos jornais estavam fortemente comprometidos politicamente, pelo que relatavam a celebração de forma diferente, conforme se conotassem com o Partido Regenerador (no governo), Histórico ou Republicano. Esta realidade estaria na origem de situações caricatas, como veremos, com o mesmo acontecimento ser descrito de 109 110 111 112 113

CALIXTO, 1966: 11-12. RS, n.º 11997: 1. BNP. Espólio Oliveira Martins, E20/2809-2810. RS, 11999: 1-2 (citando o Diário de Notícias (DN)). O Tribuno Popular (TP), 2767: 3. WOLOWSKI, 1884. Encyklopedja Powszechna z ilustracjami i mapami, vol. 15: 488. CZAJKA et al., 1995: 812-813. WOLOWSKI, 1884. Encyklopedja Powszechna z ilustracjami i mapami, vol. 15: 488.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

forma completa díspar por dois jornais. Neste aspeto, o relato de Wolowski assume uma especial importância. Não se podendo suspeitar de facciosismo político-partidário do polaco, o seu testemunho assume-se como um fiel para a avaliação das crónicas dos periódicos nacionais. É o que veremos nas linhas seguintes. A real jornada iniciou-se na manhã do dia 2.8.1882 em Santa Apolónia, estação central de Lisboa. Construída pelo empreiteiro Opperman entre 1862 e 1865, era a estação principal das linhas do Norte e Leste da CRCFP e a mais movimentada da rede114. Logo à partida, Wolowski teve oportunidade de testemunhar uma cerimónia que muito o impressionou: o Rei D. Luís despedia-se do seu pai D. Fernando com um beijo na mão, numa demonstração de amor filial que ficou marcada na memória do visitante. Acompanhando o Rei, seguiam altas figuras do governo e do Partido Regenerador: António de Serpa (ministro dos Negócios Estrangeiros e simultaneamente diretor da CCFBA), Tomás Ribeiro (Reino) e Hintze Ribeiro (Obras Públicas) 115. Fontes, presidente do Conselho de Ministros, indisposto, permanecia em Lisboa, dando motivos aos jornais da oposição para lhe lançarem farpas acintosas. Fechavam o grupo algumas figuras próximas da Família Real, membros das elites sociais lisboetas, representantes da CRCFP e alguns militares. O comboio partiu por volta das 10 h, sendo precedido por uma locomotiva que confirmava a segurança da linha116. Parou no Carregado e em Santarém antes de se deter para almoço no Entroncamento cerca de vinte minutos depois da 1 h da tarde. Naquelas paragens – e mesmo nas estações onde o comboio não se deteve – a alegria e entusiasmo populares pela passagem do Rei eram constantes. Depois do repasto, a composição prosseguiu a marcha, tendo chegado a Coimbra, onde a comitiva deveria pernoitar, por volta das 5 h da tarde. Aqui começaram as tribulações de Wolowski. Assoberbado pela multidão em festa que aguardava o comboio, perdeu-se dos seus companheiros de viagem que sabiam falar francês. Valendo-se da simpatia e vontade de ajudar dos portugueses, bastou-lhe mostrar que era estrangeiro para que fosse ajudado e conduzido para fora da multidão. O polaco voltaria a experimentar a simpatia lusa. Ao longo da viagem confessa que encontrou nos portugueses uma tal boa vontade e desejo de informar que ele viu muito facilitada a sua pesquisa, o que contrastava com a experiência do correspondente d’ O Comércio do Porto (CPo), que lamentava a “ impossibilidade em que muitas vezes me achei de encontrar quem me prestasse os esclarecimentos convenientes sobre as pessoas e cousas que eu via ” 117… Coimbra deixou uma excelente impressão no autor, sobretudo todo o cerimonial de um doutoramento a que teve oportunidade de assistir. À noite, depois de um Te Deum e 114 115 116 117

ABRAGÃO, 1965. MÓNICA, 2005-2006, vol. 2: 157-161; vol. 3: 271-274 e 448-452. O Primeiro de Janeiro (PJ), n.º 184: 2. CPo, n.º 192: 1.


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de uma cerimónia de beija-mão (repetidos várias vezes ao longo da viagem, inclusive pelo próprio autor), o Rei foi acolhido nos Paços da Universidade enquanto o resto dos convidados se hospedou em hotéis. A evolução da construção ferroviária tinha feito de Coimbra uma mera localidade de passagem de uma linha-férrea em vez de um entroncamento de vias. Uma opção que se lamentou anos depois, pois “ se na escolha da directriz das linhas do Norte e da Beira Alta tivessem prevalecido os mais avisados alvitres, teria a primeira seguido do Entroncamento por Thomar, Miranda do Corvo e Coimbra, e a segunda bifurcaria em Miranda, para ir por Arganil, Ceia e proximidades de Gouveia, á beira serra, em demanda da fronteira. A linha do Oeste viria, por Leiria, Pombal e Ancião, entroncar na do Norte, e um ramal de Coimbra á Figueira ligaria esta cidade com o systema das linhas ferreas. Ficaria assim mais bem servida a zona central, evitando-se a duplicação das linhas da Pampilhosa e de Coimbra á Figueira e as de Leiria á Amieira e Pombal a Alfarelos, tornando-se Coimbra centro de irradiação de linhas férreas” 118. No dia seguinte, far-se-ia a inauguração da linha propriamente dita. Ansioso, Wolowski partiu mais cedo e às 3 h da manhã dirigiu-se de comboio à Pampilhosa onde aguardou, juntamente com membros da CCFBA a chegada do Rei, que ocorreu entre as 7 h e as 8 h da manhã, já acompanhado por Fontes (que recuperara da indisposição do dia anterior). O grupo não se deteve na Pampilhosa muito tempo, pois às 10 h já estava na Figueira da Foz, cidade onde o bispo de Coimbra daria início à cerimónia de inauguração, benzendo as sete máquinas que deveriam servir nesta via-férrea (o autor fala em mais de 20 porque a sua numeração ia até ao 27, embora elas fossem apenas sete) 119. Wolowski achou a Figueira uma vila pitoresca, lindamente colocada na foz do Mondego e repleta de gente simpática e bonita. Depois do almoço, regado com muito champanhe Théophile Roederer, o Rei brindou ao progresso trazido pela nova via e foi brindado com um poema redigido por um dos diretores da companhia. Como seria de esperar, a inauguração foi aproveitada politicamente pelas duas maiores fações políticas da altura: o Partido Regenerador, que governava o País, e o Partido Progressista, que militava na oposição. De fora e em oposição ao regime monárquico, espreitavam também os republicanos e a sua imprensa. Nesta altura, o republicanismo medrava. Em 1878, o Porto havia eleito pela primeira vez um deputado daquela fação política – Rodrigues de Freitas – para o Parlamento da monarquia, muito embora para este resultado muito tenha contribuído o Partido Progressista ao não apresentar nenhum candidato na Invicta. No início da década de 1880, porém, a ameaça era mais forte. Aproveitando as polémicas com o tratado luso-britânico de Lourenço Marques ratificado pelos progressistas e os contratos de obras públicas 118 PAÇÔ-VIEIRA, 1905: 289-290. 119 PJ, n.º 187: 1.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 27a

Arquivo Histórico da CP

Estação da Pampilhosa (1882)


FIGURA 27b

Estação da Pampilhosa (1882) Occid., n.º 140: 252

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A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 28

Aspetos da viagem do Rei 'Zilu'. O sarcasmo de Bordalo Pinheiro AM, n.º 167: 255


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assinados entre os regeneradores e sindicatos financeiros, financiados através do crédito e dos aumentos de impostos, o Partido Republicano consolidava-se e sua imprensa tornava-se mais acutilante. Em resposta, a monarquia revia a sua política de tolerância e tomava medidas repressivas contra os hereges e a revolução120. A inauguração da linha da Beira Alta serviu assim de instrumento de propaganda à Coroa contra as ideias republicanas. Sempre crítico em relação a toda a situação política, Rafael Bordalo Pinheiro caricaturava os eventos no seu periódico, O António Maria (AM). Os atritos políticos entre governo e oposição eram uma constante, mas por esta altura tinham-se exacerbado com a questão do sindicato de Salamanca, um consórcio de bancos portuenses, liderado pelo capitalista Henri Burnay, que deveria construir duas ferrovias em Espanha (ligando as linhas do Douro e da Beira Alta àquela cidade castelhana), recebendo para tal um subsídio do governo português. No Parlamento, o debate deste projeto de lei iniciou-se em Maio, mas só em meados de Julho se concluiria (muito para lá do prazo normal para encerramento das sessões, que foram sucessivamente prolongados por anuência real), numa das mais longas e acesas discussões dos anais parlamentares121 . Assim, para os jornais afetos aos progressistas “ esta viagem é uma provocação audaciosa ao paiz” 122. Criticavam “ as festas ecommendadas”, as “ loucas despezas (…) com a passeata real” 123, o próprio Rei e a manipulação de que era alvo por parte dos regeneradores, o exagero na dimensão da força policial que acompanhava o monarca (que se destinava, na sua opinião, a proteger os ministros), e procuravam diminuir a excitação que a visita causava entre os populares e descolar os regeneradores desse entusiasmo. Os republicanos d’ O Século (Séc.) censuravam igualmente os “ festejos preparados pelo syndicato-Burnay para agradecer ao sr. de Bragança o disvello com que s. m. concedeu tantas prorogações das camaras para que a salamancada fosse aprovada ” e a excessiva segurança, “ á similhança do que se faz no imperio dos czares” 124, mas estavam mais preocupados em convencer os leitores da frieza glacial com que o Rei era recebido pelo povo que não estava a soldo do governo e dos sindicateiros. O testemunho de Wolowski não confirma o aparato militar censurado por progressistas nem frieza ou agressividade na receção descrita pelos republicanos. Os portugueses eram, para ele, um dos povos mais ordeiros que conhecera, a presença policial nas gares era diminuta e o entusiasmo sincero. Era possível que houvesse alguma animosidade contra os membros do poder local do Partido Regenerador, mas não contra o Rei. O Dicionário Histórico, Chorographico, etc. na sua entrada sobre 120 121 122 123 124

MATTOSO, 1993-1994, vol. 5: 137-141. SOUSA, 1978. O Progresso (Prog.), n.º 1655: 1. TP, n.º 2763: 1-2. Séc., n.º 478: 1; n.º 479: 1.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 29

Caricatura ao negócio do Sindicato Portuense. Um membro do governo (talvez António Maria Barreiros Arrobas, conhecido antirrepublicano) pede a Henri Burnay, mentor do sindicato, um emprego para uma lavadeira AM, n.º 168: 262

o Rei D. Luís indica que, em Viseu, o discurso do visconde do Serrado (Francisco de Melo de Lemos e Alvelos), governador civil nomeado pelos regeneradores, praticamente não foi ouvido pela população, tamanha era a algazarra e a contestação. Porém, quando o Rei tomou a palavra, “ a sua voz sonora e simpática logo impressionou o público (…). A manifestação hostil transformou-se numa ovação delirante” 125. Fosse como fosse, as folhas regeneradoras confirmavam que “ a segurança da família real é a segurança da patria”. Perguntavam-se ainda “ que é o que sobressalta a opposição? Receia ella que a família roal (sic) seja apedrejada ou insultada? Foram essas as instrucções que deu (…) ?”; e asseguravam acintosamente que o Rei não se esconderia porque “ o desvairamento de um partido tresloucado imaginou pôr-lhe na passagem uns garotos de barrete phrygio [ícone da república]” 126. Perante a partilha de censuras entre progressistas e republicanos, a 125 PEREIRA & RODRIGUES, 1904-1915, vol. 5: 569-573. Ver também ZUQUETE, 1989, vol. 3: 381. 126 RS, n.º 11995: 1; n.º 11996: 1.


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imprensa regeneradora acusava os primeiros de se associarem aos inimigos da monarquia com intuitos mesquinhos de âmbito meramente político-partidário. O Partido Regenerador assumia-se como o verdadeiro defensor da coroa… Como estas acusações fossem infundadas – na Figueira a celebração foi um sucesso (as duas agremiações dividiram as honras, realizando uma o almoço e outra

FIGURA 30

Caricatura de Bordalo Pinheiro, representando os guardas da comitiva real, segundo a imprensa da oposição AM, n.º 167: 253


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 31

Caricatura de Bordalo Pinheiro, representando os guardas da comitiva real, segundo a imprensa da oposição AM, n.º 167: 260

uma ação de caridade127) e no resto do País não houve atentados contra a Coroa –, os periódicos progressistas censuravam as injúrias vindas dos seus rivais e afirmavam que se a república ganhava adeptos, isso se devia ao mau governo dos regeneradores. Neste contexto, o testemunho de Wolowski ganha uma nova importância, pois dificilmente se poderá duvidar da sua isenção. Na carta que dirigiu a Oliveira Martins 127 Comércio da Figueira (CF), n.º 353: 1; n.º 355: 1.


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em 1883, lamentava que o conteúdo do livro pudesse não lhe agradar, por ele ter preferido contar a viagem tal como a viu e sem qualquer tipo de interpretação além dos factos128. Contudo, é possível que, não conhecendo a língua, não conseguisse distinguir gritos de apoio de gritos de censura ao governo e ao Rei, que muito provavelmente existiram, quanto mais não fosse por parte dos oposicionistas locais aos regeneradores.

FIGURA 32

António de Rodrigues Sampaio, membro do Partido Regenerador, caricaturado como a locomotiva que havia de espantar a 'hidra republicana' AM, n.º 166: 247

À 1 h da tarde o comboio arrancou da Figueira da Foz. O troço até à Pampilhosa, à exceção da vista daquela vila portuária, não entusiasmou Wolowski – que havia percorrido toda a linha desde a Figueira até Espanha uns dias antes por especial favor do diretor da companhia – por atravessar um terreno pouco acidentado, sem grandes obras de arte e com poucos atrativos129. Já depois da Pampilhosa a paisagem tornava-se acidentada e atraente, cruzada pela linha em grandes obras de arte, como a ponte de Trezói. A passagem sobre o Dão foi classificada pelo estrangeiro como a mais bonita de todo o trajeto. A partir de Santa Comba Dão, o cenário voltaria a não o encantar tanto, exceção feita à ponte sobre o Côa e alguns túneis. A paisagem era árida e monótona praticamente sem se lobrigar quaisquer povoações durante o percurso, dada a distância que as separava da via-férrea130. No dia da festa, a jornada tinha o atrativo humano, da turba que acorria à linha e às estações festejando com entusiasmo, bandeiras, vivas, foguetes e filarmónicas tanto a passagem dos monarcas como a inauguração da nova estrada de ferro. Uma 128 BNP. Espólio Oliveira Martins, E20/2810: 1. 129 AHMOP. JCOPM. Caixa 23 (1879), parecer 8886 (descrição técnica da linha). 130 EÇA, 1876-1877.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 33a

Estação da Figueira da Foz (1882) Arquivo Histórico da CP


FIGURA 33b

Estação da Figueira da Foz (1882) Occid., n.º 142: 265

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A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 34 AM, n.º 167: 256­257

A jornada régia vista pelo governo e pela oposição (caricatura de Bordalo Pinheiro)


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FIGURA 35

A viagem do Rei segundo a visão do governo e da oposição (caricatura de Bordalo Pinheiro) AM, n.º 168: 261


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

descrição que contrasta claramente com a fornecida pelos jornais da oposição ao governo para quem “ o cortejo parecia um enterro” 131 . Neste sentido o Luso constituiu, para o autor, uma divisória, pois a partir desta localidade as populações pareceram-lhe mais pobres e primitivas – algo que atribuía à falta de comunicações com o exterior – e não escondiam a sua estupefação e reverência à passagem do comboio e da Família Real, “ mau grado dos herejes do direito patrio que não se tem cançado de investir contra quem a constituição do estado collocou acima de todas as allusões” 132.

FIGURAS 36 e 37

Estação e ponte do Luso (à esquerda) e viaduto das Várzeas (à direita) em 1882 Arquivo Histórico da CP

FIGURAS 38 e 39

Túnel do Monte dos Lobos (à esquerda) e estação de Mortágua (à direita) em 1882 Arquivo Histórico da CP

131 TP, n.º 2764: 2. 132 Correspondência da Figueira, n.º 621: 1.


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FIGURA 40

Entre o idílio e a pândega. Sátira à viagem real AM, n.º 167: 254


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Voltando à viagem, em Carregal do Sal uma jovem entregou um ramo de flores à Rainha e um outro poema de um autor local foi declamado. O comboio chegou à estação de Mangualde pouco depois das 7 h da tarde. O Rei deveria pernoitar na casa da condessa de Anadia.

FIGURA 41

Estação de Mangualde em 1882 Arquivo Histórico da CP

A estadia em Mangualde é um dos aspetos mais caricatos do relato de Wolowski. Para não destoar, a decoração da vila, a receção e o local da cerimónia – o Palácio Anadia, que o autor descreve detalhadamente – eram muito pitorescos aos seus olhos. Já a sua experiência nesta vila não foi a melhor. Perdido, para não variar, na multidão que se acotovelava na estação, não conseguiu encontrar um veículo que o levasse ao centro, tendo que caminhar os 2 km que o separam da gare. Maior problema o esperava na vila. Havia claramente mais visitantes que hospedarias e Wolowski só arranjou teto para a sua mala, tendo de se alojar no Grande Hotel da Estrela , nome que Fontes Ganhado (sobrinho de Fontes) teria dado jocosamente a dormir ao relento. A alimentação foi outro problema, pela incapacidade e falta de qualidade da oferta. Wolowski só conseguiu saciar a fome perto da meia-noite e com algo que ele, até aqui tão simpático, considerou intragável. Depois da fraca refeição,


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juntou-se à animação, que durou até às 2 h da manhã, e aos seus companheiros portugueses de profissão e de infortúnio133. No dia seguinte (4.8.1882), Fontes e Tomás Ribeiro ficaram a saber as suas aventuras e de imediato o admoestaram por não os ter alertado, arranjando-lhe de pronto estadia na casa do administrador do concelho. Se dúvidas se levantaram no espírito de Wolowski quanto à hospitalidade portuguesa, essas de imediato se desvaneceram. Na madrugada de 5.8.1882, a excursão foi retomada assim que se confirmou que o mal-estar da Rainha, que justificou a estadia de mais um dia em Mangualde, era mero cansaço134. Os jornais progressistas tinham outra explicação: a fraqueza da Rainha fora um pretexto para o governo enviar os seus sicários à Guarda acalmar a contestação que se prometia. Este episódio esteve ainda na origem de um desenvolvimento caricato, pois alguns jornais regeneradores, não sabendo da pausa na jornada, anteciparam efusivamente a chegada da realeza à Guarda, quando aquela ainda estava em Mangualde135... Nas estações de Gouveia, Celorico da Beira e Guarda, o clima de festa contrastava com a monotonia do percurso. Na Guarda, onde o comboio chegou perto das 8 h da manhã, Wolowski abandonou a comitiva e foi visitar a cidade, pois já conhecera o resto da linha até à fronteira (na viagem que fizera anteriormente) e o Rei voltaria no próprio dia. Excetuando o facto de se encontrar separada do caminho-de-ferro por uma estrada muito íngreme, a Guarda estava muito bem situada, na sua opinião. Dentro da cidade, Wolowski destacava a Sé, o castelo, a Torre dos Ferreiros, o Hospital da Misericórdia e o palácio do bispo como as maiores atrações. Cerca das 2 h da tarde, assistiu à chegada do Rei, a partir de uma varanda, acompanhado de muitas senhoras. Nenhuma delas falava francês, pelo que tiveram de se socorrer de gestos – língua que Wolowski foi obrigado a utilizar várias vezes – insistindo que ele ficasse com o melhor lugar para assistir à régia chegada. Esta foi marcada pela atuação de fanfarras das aldeias vizinhas, cuja existência espantou o visitante. Ainda nessa tarde, o Rei partiu, mas não seguiria o caminho inverso até Lisboa, tendo aproveitado a ocasião para visitar os seus súbditos do Norte do País. Depois de mais uma noite em Mangualde, a Família Real desviar-se-ia por estrada para Viseu. Querendo antecipar-se novamente ao Rei, Wolowski partiu durante a noite tendo chegado à cidade ao romper do sol. O seu anfitrião, indicado por Tomás Ribeiro, fez todos os possíveis para que se sentisse bem acomodado, reforçando a opinião de Wolowski sobre a simpatia dos portugueses. Ainda a meio dessa manhã 133 PJ, n.º 188: 1. 134 PJ, n.º 186: 1. 135 Prog., n.º 1658: 1; n.º 1659: 1.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 42

Estação de Gouveia (1882) Arquivo Histórico da CP

FIGURA 43

Estação da Guarda (1882) Arquivo Histórico da CP


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FIGURA 44

Ponte sobre o Côa (1882) Arquivo Histórico da CP

FIGURA 45

Estação de Vilar Formoso (1882) Arquivo Histórico da CP


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

chegaram também os Reis, depois de uma jornada de três horas, mais uma vez recebidos, sobretudo a Rainha (o Anjo da Caridade, como ficou conhecida), com todo o carinho pela população. No dia seguinte, Wolowski seguiu a comitiva numa visita à cidade, deixando um conselho aos que visitassem Portugal: conhecer Viseu e ver os quadros de Grão Vasco. Nesta altura, um grupo de negociantes viseenses pediu ao Rei um ramal férreo para Viseu e de imediato Fontes se prontificou a apresentar uma proposta de

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D. Maria Pia, o Anjo da Caridade BND (purl.pt/11550)


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lei ao Parlamento com tal propósito, o que realmente fez no ano seguinte. Na proposta de lei de 19.1.1883 apresentada à câmara dos deputados, o governo pedia autorização ao Parlamento para adjudicar em concurso público as linhas da Beira Baixa, Tua e Viseu, estas últimas em bitola (distância entre as faces internas dos carris) estreita de 1 m, e conceder às companhias concessionárias uma garantia de juro. A proposta seria discutida, aprovada e transformada em lei de 26.4.1883, remodelada por lei de 26.5.1884136. O ramal de Viseu seria adjudicado à Companhia Nacional de Caminhos de Ferro e inaugurado em finais de 1890. Durante muitos anos ainda se pensou em prolongar este caminho-de-ferro até Foz-Tua onde se ligaria à linha do Tua, concessionada à mesma empresa, mas este projeto nunca se concretizaria137. No dia 8, pelas 8 h da manhã, a comitiva regressava a Mangualde, de onde partia, cerca das 10 h 30 m, o comboio em direção à Pampilhosa. Às 2 h da tarde, o Rei começava a sua viagem em direção ao Porto. Até à Invicta o percurso foi acompanhado pelos vizinhos da linha do Norte com o mesmo entusiasmo que se de-

FIGURA 47

A passagem do Rei pelas províncias. Caricatura de Bordalo Pinheiro AM, n.º 166: 250

monstrara na Beira Alta. A chegada à capital do Norte ocorreu por volta das 5 h 30 m, após a travessia, sob salvas desde o forte da serra do Pilar, da ponte homónima da Rainha. A ponte de D. Maria Pia havia sido inaugurada alguns anos antes, em Novembro de 1877, treze anos depois da abertura da linha do Norte entre Lisboa e 136 DCD, 19.1.1883: 87-91. COLP, 1883: 97-98; 1884: 190-210. 137 PJ, n.º 187: 1; n.º 188: 2. PORTUGAL, 1899. TORRES, 1936.


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Vila Nova de Gaia138. A dificuldade da travessia do Douro e as complicações financeiras da companhia concessionária foram responsáveis por esse atraso, mas em 1877, graças ao génio de Eiffel, a ponte estava completa e a ligação férrea entre as duas principais cidades do Reino passava a fazer-se de forma direta139. À chegada da composição real, o Porto estava em festa. O poder local, judicial e comercial e as elites sociais e académicas receberam condignamente a realeza. Muito povo aproveitou as facilidades de transporte proporcionadas pelas direções das linhas do Minho, Douro e Porto à Póvoa e Famalicão para acorrer à cidade140. Mais uma vez, Wolowski perdeu-se no mar de gente em Campanhã, a estação da cidade, que se queria central e acabou excêntrica para servir da melhor maneira a ligação entre as linhas do Minho e Douro e o caminho-de-ferro até Lisboa141 . Para percorrer os 3 km que separam a gare do centro da cidade, Wolowski socorreu-se novamente da amabilidade dos portugueses, desta feita de Lopo Vaz de Sampaio e Melo, antigo ministro da Fazenda, que lhe ofereceu boleia na sua carruagem. Este episódio pode parecer improvável, mas, na verdade, neste dia, estava um autêntico mar de sumidades no Porto, pelo que a probabilidade de Wolowski receber boleia de uma delas não era reduzida. A estadia do Rei prolongou-se até dia 14, e durante essa semana realizaram-se vários eventos, desde peças teatrais a lançamento de fogo-de-artifício, concertos, circo, jantares, entrevistas com veteranos de guerra e uma visita à praia da Foz, ao Hospital do Conde Ferreira, a instituições de ensino e à fundição de Massarelos142. A meio da visita (dia 11), os Reis viajaram pela linha de bitola reduzida do Porto à Póvoa e Famalicão, por convite da companhia que a explorava143. Adjudicada em 1873 ao barão Frederick Kessler e ao engenheiro H. Temple Ellicot, que trespassaram a concessão aos portugueses J. Pereira Duarte, Miguel Dantas e Gonçalves Pereira, que por sua vez formaram a companhia exploradora, ligava o Porto a Famalicão desde Junho de 1881. Um dos diretores da companhia era Joaquim Pedro de Oliveira Martins, ilustre figura do século XIX português, com quem Wolowski travou conhecimento. A redução da bitola nesta linha (em relação ao 1,67 m que era empregado na altura em todas as vias-férreas nacionais) foi uma forma de diminuir os custos do primeiro estabelecimento e tornar o investimento rentável144. 138 139 140 141 142 143 144

PJ, n.º 189: 2. ABRAGÃO, 1933. PEREIRA, 2012c. PJ, n.º 187: 2. MARTINS, 1970. PEREIRA, 2012c. CPo, n.ºs 193 a 198. RS, n.º 12004: 2 (citando o DN). ASSENTIZ, 1910. PEREIRA, 2011a. PINHEIRO, 1986: 430. SILVA, 2004.


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FIGURA 48

Fado satírico às festas no Porto AM, n.º 166: 246


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FIGURA 49

Aspetos satíricos da visita ao Porto: o Zé Povinho tripeiro sem antebraços não faz gestos de contestação, enquanto a Torre dos Clérigos se assemelha a uma torre chinesa… AM, n.º 168: 262

O comboio partiu da estação da Boavista às 2 h da tarde, tendo chegado, mais de duas horas depois, a Famalicão, onde o Rei mudou de comboio e regressou ao Porto pela linha do Minho (construída e operada pelo Estado, como vimos), passando por aquela que Wolowski considerava a mais bela e pitoresca zona de Portugal. A chegada à Invicta deu-se às 6 h da tarde. No dia 15, ao meio-dia, o Rei deixava o Porto em direção à Régua (pela linha do Douro, também do Estado) e Lamego, onde chegou às 3 h 30 m e 5 h 30 m da tarde, respetivamente. É provável que Wolowski não tenha acompanhado o Rei nesta viagem, pois nada refere no seu relato. Considerando que se trata da linha do Douro, que atravessa uma das mais impressionantes paisagens em Portugal, embora em grande parte dizimada pela filoxera nesta altura, muito teria a dizer se por lá tivesse circulado. Além disso, num convívio de jornalistas não é referida a sua presença. Na madrugada de 16, todos regressavam à capital (depois de uma visita ao Santuário


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dos Remédios e de uma ação de caridade no sítio da Meia Laranja em Lamego), de volta pela estrada até à Régua, pela linha do Douro e depois pelo caminho-de-ferro do Norte145. O comboio real partia do Porto pouco passava das 9 h da manhã e chegava as 6 h 30 m da tarde a Lisboa, onde o esperava D. Fernando, representantes do poder político, religioso e militar e naturalmente muitos populares. Wolowski acompanhou o cortejo até ao Palácio da Ajuda onde terminou a sua viagem em audiências com os Reis.

3.4. Notas Finais

No início da sua estadia, Portugal era para Wolowski um país tão desconhecido como a China. Quando partiu (em Outubro já escrevia a Oliveira Martins desde Paris), o seu desconhecimento já não era assim tão grande. O polaco ficou com uma excelente impressão do nosso País, do clima (ameno no Inverno, quente no Verão, sobretudo no interior, mas nada sufocante como Madrid), da paisagem (no jardim que eram as províncias do Norte, a vegetação casava na perfeição com a orografia), das gentes (honestas, ordeiras e acolhedoras como em nenhum outro lado) e… das nossas mulheres, que eram de uma beleza quente mas efémera (devido ao calor), com traços encantadores e olhos expressivos onde qualquer homem se perdia… Quando a esmola é demais, o pobre desconfia – sói dizer-se – e de facto todos estes encómios levantam algumas suspeitas. Wolowski foi excessivamente benévolo nas suas apreciações. Ao longo do relato, poucas são as vezes que o autor censura os portugueses. Esta bondade terá nascido de alguma condescendência no seu espírito. Ele vivia no centro da Europa, era assíduo em Paris e em Viena, estaria decerto habituado aos luxos da civilização e em Portugal visitou umas das mais pobres e isoladas regiões do Reino. Naturalmente, não viu a Beira Alta com os mesmos olhos com que via Paris ou Viena. Isto não invalida, porém, a asserção que Wolowski desfrutou verdadeiramente da sua estadia em Portugal. Na carta de 1883 dirigida a Oliveira Martins não esconde a sua afeição: “ j’aime le Portugal” – diz, sem pejos. Assim, as recomendações para que os seus leitores visitem o nosso País são genuinamente sentidas. Na realidade, na correspondência com Oliveira Martins, ele prontifica-se a promover a visita a Portugal (sobretudo no Verão, pois de Inverno apenas os ricos podem viajar, refere), pedindo-lhe inclusive informações sobre os itinerários e tarifas das vias-férreas nacionais. Nesta altura, entre turismo e ferrovias estabelecia-se uma relação que tra145 RS, n.º 12004: 1 (citando o DN).


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ria proveitos a ambos146 e este auxílio de Wolowski seria decerto muito bem-vindo. Além disso, o autor revela, nos seus escritos, a intenção de regressar e de fazer um estudo mais aprofundado sobre a Península Ibérica. Não se conhece nenhuma outra obra sua neste sentido, mas é um facto que ele voltou a Portugal. As dedicatórias dos seus livros ou as cartas que foram referidas neste texto mostram-no no Luso e no Buçaco em Novembro de 1883, em Lisboa em Dezembro desse ano e em Fevereiro, Abril e Maio do ano seguinte e provavelmente no Porto em Janeiro de 1884. Nestes períodos, Wolowski pôde decerto confirmar o que já percebera na viagem à Beira Alta e que era entendido na época: “ o povo portuguez é profundamente monarchico, como é profundamente religioso” 147. Os próprios Reis fomentaram esse sentimento com inúmeras ações de caridade ao longo do percurso. O republicanismo, como vimos, ganhava adeptos mas ainda não tinha força suficiente para pôr em causa o regime. No seu relato, Wolowski notou, além do gáudio popular, o culto que os portugueses prestavam à monarquia e como em certas localidades, algumas pessoas encaravam o monarca quase como um ente sobrenatural, ajoelhando-se e descobrindo a cabeça à sua passagem. Alguns, porém, preferiam aproveitar a visita régia para se mostrar (as elites locais marcavam naturalmente presença nestas cerimónias); outros pediam obras públicas, apoios, benesses e menos impostos à realeza e ao governo, aos quais este respondia com promessas; progressistas e republicanos criticavam tudo, mas na verdade teriam ainda de penar muitos anos na oposição, pois o governo de Fontes só seria substituído em 1887, num raro caso de longevidade governativa, e a monarquia só cairia em 1910. No entanto, no rescaldo da viagem, parecia que todos haviam ganho: os regeneradores, que diziam ter experimentado o apoio do povo ao governo e ao Rei; os progressistas, que jubilavam com os apupos que o governo alegadamente ouvira; os republicanos, pela frieza que sentiram nos cidadãos face à presença do Rei. Porém, os membros do governo, pelas promessas que haviam feito, trouxeram para Lisboa uma árdua tarefa… Quanto à linha da Beira Alta e a bem dizer a toda a viagem real, o que mais salta à vista é a baixa velocidade que se atingia nos trajetos. Ao longo do texto, decerto se notou o longo tempo que se gastava entre localidades relativamente próximas (fora da via-férrea essa lentidão é gritante). É certo que se tratava de um comboio comemorativo e que naturalmente circularia mais devagar e faria mais paragens, mas na verdade a velocidade comercial das composições ordinárias não ultrapassava nesta época os 35 km/h, como vimos. Para um país como Portugal, onde até há uns anos antes, uma viagem entre o Porto e Lisboa durava dias, tal velocidade era de facto extraordinária. Quem não se recorda do personagem queirosiano Vilaça, que, 146 RIBEIRO, 2006. 147 CPo, n.º 192: 1.


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FIGURAS 50 e 51 As promessas depois da viagem (caricaturas de Bordalo Pinheiro) AM, n.ยบ 168: 262 e 266


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questionado sobre a sua experiência na linha de Lisboa ao Carregado na década de 1850, respondera: “ faz arrepiar um bocado”? Já Wolowski não terá ficado impressionado, habituado que estava aos caminhos-de-ferro do centro da Europa, mais velozes. A este propósito, encontramos outros testemunhos que temos forçosamente de citar. Na década de 1870, enquanto Lady Jackson, esposa do embaixador inglês em Portugal, habituada à maior velocidade dos comboios britânicos, entendia que no nosso País “ o comboio viaja devagar, mas sem perigo, pelo menos”, para Alberto Pimentel, que escrevia em 1874, “ hoje a locomoção é outra: rápida, certa, vertiginosa . O caminho de ferro devora as distâncias e os episódios” 148… Em todo o caso, o polaco mostrava-se favorável ao caminho percorrido por Portugal na senda do progresso, elogiando o esforço que o País fizera para se dotar dos caminhos-de-ferro que à altura possuía. É curioso notar aqui que Wolowski não era o único polaco cuja história se cruzava com a Beira Alta e com a sua linha-férrea. Vimos como um dos engenheiros que precocemente a estudou fora José Carlos Conrado Chelmicki. Pois bem, este homem tinha ascendência polaca. Era natural de Varsóvia, onde nasceu em 1814 da união de Tomaz Felicis de Chelmicki e Elisabeth Bárbara de Grossman Zaposka. Com apenas 16 anos combatera, em vão, como vimos, os russos. Os seus pais comungavam de ideias fortemente nacionalistas e, para não ficarem sob o jugo do czar, emigraram para Paris após a capitulação, onde o seu filho estudou Engenharia até 1833. Neste ano, acompanhou o general italiano Gerolamo Ramorino a Portugal para se integrar na luta do exército liberal contra as forças absolutistas na guerra civil portuguesa de 1828-1834. Findo o conflito, Chelmicki não mais abandonaria o Reino, que encarava como sua pátria adotiva, tendo mesmo tomado como esposa, em segundas núpcias, uma portuguesa, Carlota de Melo Pereira de Vasconcelos149. Além de Chelmicki, um outro natural daquele país debruçou o seu olhar sobre a Beira Alta, mais precisamente sobre Viseu e a obra de Grão Vasco. Tratava-se do conde Athanasius Raczynski, que, na qualidade de ministro do Rei da Prússia em Portugal (a Polónia era uma província prussiana, na altura), permaneceu no nosso País entre 1842 e 1848150. Depois da viagem inaugural, o nosso protagonista permaneceu por mais uns dias em Portugal, disso dando conta na parte final da sua obra. Este período foi por ele aproveitado para conversar com D. Luís, com D. Fernando e com D. Maria Pia. A audiência com D. Fernando foi-lhe particularmente grata, em virtude do cenário em que teve lugar: Sintra, uma localidade que agradou especialmente ao jornalista, de tal modo que adicionou ao seu livro umas linhas escritas por Mendes Leal, político e diplomata português, sobre o Palácio da Pena. 148 Apud. ABRAGÃO, 1956b: 18, 43-44 e 67. AGUILAR, 1945b: 553. 149 COSTA, 2005: 109-110. 150 RODRIGUES, 2011: 264-265 e 271-274.


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FIGURA 52

O conde Raczynski RODRIGUES, 2011: 264

FIGURA 53

José Carlos Conrado de Chelmicki Geneall.pt

Tudo isto reforça a ideia da sinceridade com que Wolowski preencheu as páginas de Les Fêtes en Portugal. Muito embora se possa notar alguma condescendência no seu discurso, é indiscutível que o polaco apreciou a sua estadia em Portugal e as características locais que ainda hoje atraem tantos turistas estrangeiros.!



FONTES

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PARTE II A NARRATIVA DE VIAGEM





AS FESTAS EM PORTUGAL

INAUGURAÇÃO DO

CAMINHO­DE­FERRO DA BEIRA ALTA VIAGEM DA FAMÍLIA REAL

NOTAS E RECORDAÇÕES DA VIAGEM POR

B. WOLOWSKI151

151 Para a tradução, seguiu-se o trabalho de Aguilar. No entanto, foram introduzidas algumas alterações ao seu texto (n. do ed.).



PRÓLOGO

Há um ano visitámos Portugal e, durante a estadia de alguns meses que aí fizemos, foi-nos possível assistir à inauguração do caminho-de-ferro da Beira Alta, que se realizou a 3 de Agosto de 1882. A descrição que publicamos hoje viria muito tarde se se propusesse dar conta de factos já muito afastados. Mas há apenas um objetivo: querer ser simplesmente a expressão de uma saudade agradecida. É a este título – e a este título unicamente – que julgamos devê-la publicar. Somos um velho viajante. Desde há muitos anos temos percorrido a França, a Itália, a Áustria, a Hungria, a Polónia, a Roménia, a Sérvia, a Grécia, a Turquia da Europa e da Ásia, o Egito. Mas raramente encontrámos uma hospitalidade tão carinhosa e também tão cordial como aquela que nos acolheu em Portugal. Num futuro próximo, esperamo-lo, as notas que recolhemos servir-nos-ão para apresentar um estudo aprofundado da situação política e económica de Portugal: podemos afirmá-lo, com provas, o futuro que nos parece reservado a esta nação inteligente e valente. Por ora só podemos oferecer aos nossos amigos deste país, doravante tão queridos para nós, estas rápidas páginas, ainda quase cobertas da poeira da viagem. Esta poeira, não a queremos sacudir; não queremos fazer neste momento nem uma obra literária nem uma obra erudita. Desejamos unicamente reunir numa brochura as nossas impressões, tal como foram publicadas a seu tempo num jornal, sem qualquer alteração, para que conservem o seu carácter de sinceridade e de espontaneidade. A esse Portugal que abandonámos com a aspiração de uma visita próxima, dizemos apenas: obrigado! E até breve! Bagnoles de l’Orne, 10 de Agosto de 1883. B. WOLOWSKI



A Madame Marie L. A VIAGEM DA FAMÍLIA REAL (NOTAS – RECORDAÇÕES)

Prometi-vos escolher, entre os episódios da minha viagem a Portugal, um facto que pudesse dar-vos uma ideia, por pouco que exata, da nação portuguesa. É um país tão desconhecido na Europa como a China. E que inconveniente há que assim seja? É, portanto, com o mais sincero prazer que cumpro a minha promessa. Compreenda-se bem: renovo aqui as minhas reservas de que não me incumbo de vos apresentar um quadro de conjunto, nem mesmo um estudo aprofundado, mas simplesmente um esboço que possa dar-vos uma ideia do país, do carácter e dos costumes dos seus habitantes. Lord Byron, quando da sua viagem a Portugal, dizia, a propósito de Sintra, arrebatador lugar de veraneio dos portugueses, situado nas montanhas a duas horas de carruagem de Lisboa: “Eis que aparece Sintra, novo Éden, com as diversas maravilhas dos seus montes e dos seus vales. Ah! Que mão poderia guiar o pincel ou a pena para seguir o olhar encantado através dos lugares mais deslumbrantes à vista mortal, que as maravilhas descritas pelo poeta que ousou abrir ao mundo surpreendido as portas do Eliseu. Os rochedos medonhos coroados por um convento com o remate inclinado; os sobreiros antigos sombreiam com os seus ramos um precipício orlado de silvas; o musgo das montanhas escurecido por um sol ardente, o vale profundo cujos arbustos choram a ausência do sol, os pomos de ouro suspensos das verdes folhas das laran-


Hugo Silveira Pereira

jeiras; as torrentes que saltam do alto dos rochedos; a vinha nas colinas; o salgueiro que se balouça à sua beira, tudo contribui para embelezar e diversificar esta paisagem encantadora”. Estou tentado a dizer pela minha parte que Portugal inteiro é um país verdadeiramente abençoado pelo céu. A população é bondosa, honesta e acolhedora para os estrangeiros como em nenhum outro país. As províncias do Norte e da Beira Alta, as únicas que percorri mais detalhadamente, formam, dir-se-ia, um jardim, onde a mais variada vegetação se une com os acidentes do terreno, desenrolando diante do viajante as mais maravilhosas paisagens. Desde as plantas dos trópicos, os cedros do Líbano, as camélias de uma grandeza sem par aos pinheiros solitários do Norte da Europa, tudo se encontra, cresce e floresce neste solo fértil entre todos. O belo céu de Itália e da Grécia reflete-se e mira-se nas águas do seu oceano, donde sopram brisas frescas e saudáveis. Devo dizer, desde já, para não esquecer, que Portugal é uma estância de Verão das mais encantadoras que conheço. A doçura do seu clima de Inverno é incomparável. Afirmar, todavia, que se pode passar um Verão agradável em Portugal sem suportar calor excessivo é expor-se a ser tratado de narrador inexato, para empregar apenas a expressão mais educada. Não posso, contudo, deixar de aconselhar a todos aqueles a quem as suas ocupações não permitem viajar no Inverno e que têm tempo disponível desde o mês de Abril até ao mês de Agosto, inclusive, de ir visitar este país privilegiado. Ficar-me-ão gratos. As manhãs e as noites são frescas e mesmo durante o dia, das 11 às 5 h., quando o sol é mais ardente, a brisa do mar envia ao viajante a sua benfazeja frescura. Não é como em Madrid onde se sufoca o dia todo, onde, quando vem a noite, não se podem fechar os olhos, tão asfixiante é a atmosfera. Em Lisboa, nada de semelhante, à parte alguns dias do mês de Setembro, durante os quais sopra o vento de sul, única época verdadeiramente desagradável. O interior do país, afastado do mar, é indiscutivelmente muito quente, mas o viajante que se cingir a visitar somente as províncias vizinhas do oceano, voltaria da sua viagem encantado, com o desejo de voltar o mais cedo possível a este país tão belo e tão hospitaleiro. Tive a satisfação de me encontrar em Portugal na ocasião das grandes festas. Há datas que marcam a vida de uma nação e o estrangeiro que pode encontrar-se nesses lugares na ocasião de uma das grandes solenidades nacionais, que fazem mover as massas e permitem sentir o pulso de um povo, deve considerar-se muito feliz. É certamente no meio de uma festa que reúne milhares de pessoas dos dois sexos que um observador discerne debaixo da solenidade, sob os trajes domingueiros,


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

esses olhares, que, como uma aberta depois da tempestade, permitem descer ao fundo da verdade e talvez mesmo reconhecer a justa medida das coisas no país que visita. Haverá, na verdade, alguma coisa de maior na nossa civilização moderna que a abertura de uma nova via de comunicação que suprime as distâncias, aproxima os povos outrora os mais afastados? Ia-se proceder em Portugal à inauguração da nova linha de caminho-de-ferro, de um comprimento de 252 km, que vai até à fronteira de Espanha e que será dentro de dois anos a ligação mais direta entre Paris e Lisboa. Quando o troço espanhol, cerca de 128 km, que está ainda em construção, for acabado, poder-se-á ir a Portugal em 48 horas152!

FIGURA 54

Cartaz de propaganda turística à linha da Beira Alta dos anos 1930 BNP

O tempo da minha estadia nesse país era limitado. Mas não hesitei em o prolongar por mais sete semanas, para não faltar à ocasião – que não se repetirá talvez em 25 anos – de assistir a festas semelhantes. Não conhecendo a língua portuguesa, devem ter-me escapado muitos detalhes característicos, atraentes; mas, apesar disto, creio ter visto bastante e apreciado bastante para poder pegar na pena e emitir uma opinião. 152 Atualmente esta viagem dura cerca de vinte horas (n. do ed.)


Hugo Silveira Pereira

Encontrei entre os portugueses uma tal boa vontade, uma tal gentileza em me informarem, que as minhas pesquisas foram das mais fáceis. Tendo intitulado esta narrativa As Festas em Portugal, devo dizer em que consistem, a que propósito foram feitas e quais as circunstâncias que as precederem.

ANTES DAS FESTAS

A linha do caminho do ferro, que se devia inaugurar solenemente na presença do Rei, da Rainha, do Príncipe Real e do Infante D. Afonso, tem o nome da importante província que percorre: caminho-de-ferro da Beira Alta. Para explicar a sua importância internacional, basta-nos dizer que hoje, para vir de Paris a Lisboa, são necessárias 64 horas, passando por Bordéus, Baiona, Irún, Madrid, Arroio de Malpartida ou, dizendo de outra forma, pela linha de Madrid a Cáceres 153. Pela nova via, ir-se-á igualmente por Bordéus, Baiona, Irún, mas em Medina abandonar-se-á a importante linha que conduz a Madrid, para se dirigir por Salamanca à fronteira portuguesa em Vilar Formoso, Pampilhosa, que está situada perto da célebre cidade universitária de Coimbra, e seguir pelo Entroncamento até Lisboa. Numa palavra, o trajeto efetuar-se-á em 48 horas ao contrário de 64. São dezasseis horas a menos! E, mesmo mais tarde, este trajeto de 48 horas poderá ainda ser reduzido em algumas horas, quando o tráfego se desenvolver e se possam organizar comboios rápidos. Adivinha-se facilmente quanto esta nova linha devia interessar aos Portugueses, fazendo nascer neles a legítima esperança que ela contribuirá sem demora para desenvolver as riquezas do País. Para que esta linha possa, entretanto, prestar um serviço efetivo, é necessário que ela esteja ligada com as vias-férreas de Espanha. Trata-se portanto de construir um troço desde a fronteira, passando por Vilar Formoso, até Salamanca. Esta última cidade tem já a sua ligação com Medina, estação da linha principal do Norte de Espanha. A linha de Vilar Formoso a Salamanca, importante se for ligada com os caminhos-de-ferro portugueses, por um lado, e com os espanhóis por outro, 153 Continuada em Portugal pelo ramal de Cáceres (adjudicado à CRCFP em 1877 e aberto à exploração em 1881) que por sua vez entroncava na linha do Leste, concedida à mesma companhia em 1859 e por ela explorada desde 1863. ABRAGÃO, 1956. CP, 1981 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

não poderá dar, parece-me, rendimento suficiente aos capitalistas que a construírem. A cidade do Porto pede para ser ligada também com Salamanca, prolongando a atual linha do Douro. Era difícil, a fim de satisfazer as reclamações de duas importantes províncias muito povoadas, encontrar um sindicato financeiro que desejasse arriscar capitais para construir as duas ligações com Lisboa e com o Porto. Os financeiros queriam construir uma só154. O governo português encontrava-se assim entre a espada e a parede. A linha da Beira Alta, tão importante no aspeto internacional se tivesse o seu prolongamento, ficava quase malograda sem esta ligação155. O governo apresentou então uma lei concedendo ao sindicato que construísse as duas ligações pedidas pelas duas maiores províncias do País, uma garantia do Estado. Um sindicato, composto pelos grandes bancos do Porto, pediu essa garantia e obteve a concessão do governo espanhol156. A questão do caminho-de-ferro, que deveria em qualquer país reunir todas as opiniões, dividiu as pessoas em Portugal e foi a causa de uma grande luta no Parlamento. Eis o pretexto, além do desejo bem compreensível de uma oposição que pretende sempre derrubar o governo para o substituir ela própria no poder. O subsídio concedido pelo governo português devia servir para subvencionar uma linha construída em território espanhol! “Que vergonha! – começou a gritar-se – Vós sacrificais as economias do País em proveito do estrangeiro. Tornai-vos tributários de Espanha, cujo domínio ainda não foi esquecido, etc., etc.”. Tais eram as acusações que se abatiam sobre o governo e que mais apaixonaram o País, pois um ódio vivaz existe entre Portugal e a Espanha157. 154 Os financeiros eram os membros da SFP (adjudicatária da linha da Beira Alta), que também detinham em Espanha direitos sobre a concessão das vias-férreas de Salamanca a Vilar Formoso e Barca de Alva, mas obviamente só tinham verdadeiro interesse na construção da primeira (n. do ed.). 155 O problema não era tanto a ligação de Vilar Formoso a Salamanca, mas sim a necessidade de se prolongar também a linha do Douro até esta cidade, o que não contava, como vimos, com o apoio da SFP (n. do ed.). 156 Por esta altura, já Portugal tinha obtido de Espanha a alteração aos projetos de ligação de Salamanca a Portugal. No entanto, mantinha-se o receio de que a SFP só teria interesse em construir a linha até Vilar Formoso. Para evitar esta situação, formou-se no Porto o sindicato portuense, sob a chefia de Henri Burnay, um dos homens mais ricos e poderosos do País, que agregava os principais bancos da cidade. Este consórcio propôs ao governo submeter uma candidatura ao concurso aberto em Espanha para a construção das duas vias-férreas, na condição de o governo português lhe conceder uma garantia de rendimento de 135 contos por ano. Esta proposta foi veementemente combatida pela oposição no Parlamento e fora dele (nos chamados meetings), mas acabaria por ser aprovada. Seria, assim, neste quadro que se construiriam os caminhos-de-ferro de Salamanca a Vilar Formoso e Barca de Alva a cargo de um conglomerado de bancos… Para tudo isto, consultar SOUSA, 1978 (n. do ed.). 157 As relações entre Portugal e Espanha tornaram-se mais hostis no século XIX com a questão ibérica e a proliferação de ideias iberistas (que defendiam a fusão dos dois países num só). Na imprensa periódica portuguesa, eram publicadas peças de grande agressividade e ódio, que mascaravam enormes temores e receios de invasão. A impressão de Wolowski, não deixando de ser um estereótipo, não deixava também de corresponder a um lado da realidade. PEREIRA, 2010b (n. do ed.).


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FIGURA 55

O Sindicato de Salamanca. Burnay e Hintze Ribeiro, ministro das Obras Públicas, cosem as linhas e cozem o negócio, enquanto o Algarve ainda esperava pelo caminho­de­ferro AM, n.º 158: 167


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 56

Hintze, Fontes, presidente do conselho, e Burnay protegem­se da chuva de 'meetings' com o guarda­chuva da maioria AM, n.º 162: 213


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FIGURA 57

Burnay, o titereiro do Parlamento AM, n.ยบ 163: 228


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 58

Fontes, sempre representado com a coroa régia na cabeça, Hintze e Burnay adulam o Zé Povinho, revestindo­o de roupas monárquicas… AM, n.º 164: 229


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No Parlamento, a oposição prolongava a discussão. O próprio governo tomou a resolução de deixar tudo dizer sem procurar provocar o encerramento dos debates, de modo que a sessão das duas câmaras era prorrogada por decretos reais de oito em oito dias. A inauguração do caminho-de-ferro da Beira Alta, que anunciaram à minha chegada dever fazer-se entre 24 e 30 de Junho, somente se realizou a 3 de Agosto!… 158 Esperei, como vedes, muito tempo para poder assistir, mas a paciência e a perseverança tudo alcançam: venci. A subvenção para as duas linhas foi votada pela câmara dos Pares e sancionada pelo Rei. Contei os factos históricos tais como se passaram, não querendo em coisa alguma intrometer-me nos assuntos internos do país, nem fazer-me apologista de qualquer partido. Todavia, aprovo o governo por ter feito sacrifícios para a ligação das suas linhas interiores, pois todo o caminho-de-ferro é uma fonte nova de riqueza para uma nação e o melhor fomentador da civilização moderna. Disse mais acima que o Rei e a Família Real deviam inaugurar solenemente esta linha, completamente entregue à circulação até à fronteira espanhola. Esta deslocação da Família Real deu ao monarca a ideia de visitar na mesma ocasião as cidades mais importantes da Beira Alta e do Douro. As festas podem pois dividir-se em duas partes: a inauguração do caminho-de-ferro e a visita às províncias.

INAUGURAÇÃO DO CAMINHO­DE­FERRO

Partida de lisboa

A partida da Família Real fora anunciada oficialmente para o dia 2 de Agosto. Cerca das 10 h as tropas concentraram-se nas proximidades da estação a fim de constituir o cortejo de honra. Fez-se uma centena de convites para o comboio real. Eu tive a honra de ser incluído entre os convidados. 158 De acordo com Alice Rodrigues, este seria já o segundo adiamento. A inauguração da linha estava prevista para o primeiro de Janeiro de 1882, mas um motim dos operários da construção motivado por falta de pagamento dos salários atrasou a obra e a estreia da linha. Nada teve que ver com o negócio de Salamanca. RODRIGUES, 2006: 35 (n. do ed.).


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FIGURA 59

Vista geral de Lisboa WOLOWSKI, 1883: I­II

O Rei D. Fernando, pai do rei reinante, tinha vindo de Sintra para assistir à partida da sua família. Os convidados do comboio real tinham autorização para envergar o traje de viagem; a verdadeira cerimónia, durante o trajeto, só começava no dia seguinte com a inauguração. Desde a entrada da estação até ao salão reservado aos soberanos, uma fila, composta de senhoras e de pessoas que desejavam saudar o Rei e a Rainha, encontrava-se formada à sua passagem. Cada uma beijava a mão de suas majestades. À chegada ao salão reservado, o monarca reinante beijou a mão do Rei D. Fernando, seu pai. Este testemunho de respeito filial agradou-me muito. Pertenço a uma nação onde esse respeito pelos pais é uma tradição e um culto. Os ministros, srs. de Serpa, Negócios Estrangeiros; Tomás Ribeiro, Reino, e Hintze Ribeiro, Obras Públicas, acompanhavam o Rei. O sr. Fontes, presidente do Conselho, indisposto, só no dia seguinte pôde juntar-se-lhes.


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FIGURAS 60 e 61

D. Luís e D. Fernando BND (purl.pt/5764/1/ e purl.pt/5292/1)

FIGURAS 62, 63 e 64

Gravuras de António de Serpa Pimentel, ministro dos Negócios Estrangeiros, Tomás Ribeiro, ministro do Reino, e Hintze Ribeiro, ministro das Obras Públicas Occid., n.º 4: 28; RAMOS, 2007, figura 28 (pormenor)


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

A Rainha era acompanhada por D. Gabriela de Sousa Coutinho e pela condessa Ana de Linhares, damas de honor, bem como pelo seu camarista, o visconde de Lançada159. O conde de Linhares, camarista, acompanhava o Rei.

FIGURAS 65 e 66

Os condes de Linhares Geneall.pt

Os srs. Carlos Ferreira dos Santos Silva e António Pereira de Carvalho, juntamente com o diretor da companhia, sr. Afonso de Espregueira, prestaram as honras em nome da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses160.

FIGURA 67

Manuel Afonso de Espregueira Site da fundação Mário Soares

159 Trata-se provavelmente de Gabriela Isabel de Sousa Coutinho, segunda marquesa do Funchal e filha de Vitório Maria Francisco de Sousa Coutinho, segundo conde de Linhares. A condessa Ana de Linhares era Ana Carlota de Mendoça Rolim de Moura Barreto, nora do anterior, esposa de Rodrigo de Sousa Coutinho Teixeira de Andrada Barbosa, terceiro conde de Linhares e filha de Nuno José Severo de Mendoça Rolim de Moura Barreto, primeiro duque de Loulé, influente político português de meados do século XIX. Por fim, o visconde de Lançada era Inácio Júlio de Sampaio de Pina Freire, segundo titular daquele viscondado. MÓNICA, 2005-2006, vol. 1: 304. ZUQUETE, 1989, vol. 2: 629, 673 e 691 (n. do ed.). 160 Manuel Afonso de Espregueira, engenheiro de Viana do Castelo, formado na Escola das Pontes e Calçadas, era um influente membro do Partido Progressista. Foi o primeiro diretor português da CRCFP. MÓNICA, 2005-2006, vol. 2: 66-68 (n. do ed.).


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Por fim, os convidados colocaram-se no comboio especial e, às 10 h 10 m, a máquina pôs-se em marcha e partimos. Na estação de Lisboa notei, entre outras grandes personalidades que na minha qualidade de estrangeiro, que visitava pela primeira vez Portugal, não podia conhecer, o marquês de Ficalho, o conde das Alcáçovas, sr. de Tovar, o major Serpa Pinto, célebre explorador de África, o visconde de Seisal, ajudante-de-campo do Rei, etc., etc., muitos generais e soldados de todas as patentes161 .

FIGURAS 68 e 69

Marquês de Ficalho e Serpa Pinto geneall.pt; Site do Instituto de Investigação Científica e Tropical

A direção da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses teve a amável atenção de distribuir aos convidados um itinerário do percurso do comboio real com todas as paragens do caminho. A primeira paragem era na estação do Carregado, onde o Rei desceu para falar ao chefe da estação. Na estação seguinte, chamada Azambuja, um público bastante numeroso esperava a passagem do comboio real, ainda que este não fizesse paragem. A banda entoava o hino 161 António de Melo Breyner Teles da Silva, marquês de Ficalho, era um rico proprietário rural muito próximo da corte. Ficou ligado à história ferroviária nacional por ter sido o co-autor da proposta original para a construção da linha entre o Barreiro e Vendas Novas. O terceiro conde de Alcáçovas era Luís Henriques de Faria Pereira de Saldanha e Lancastre. Alexandre Alberto da Rocha de Serpa Pinto era um oficial do exército português, natural de Cinfães, que ficou célebre pela sua exploração em África no final da década de 1870. O conde (e não visconde) de Seisal era Pedro Maurício Correia Henriques, engenheiro e Par do Reino. CANEDO, 1993, vol. 1: 387. MÓNICA, 20052006, vol. 3: 314-317 e 655-656. PEREIRA, 2011f (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

real, lançaram-se foguetes à passagem do comboio que avançava a toda a velocidade. Uma receção solene estava preparada na estação de Santarém, onde o comboio parou precisamente durante um quarto de hora. Uma deputação, liderada pelo governador civil (o governador civil é o prefeito) e os membros da Câmara Municipal, esperava, acompanhada de uma multidão muito numerosa. Em Portugal, nas receções, o antigo costume do beija-mão foi conservado. Toda a gente, os mais altos funcionários do Estado, os generais, oficiais, magistrados, beijou a mão do Rei, da Rainha e dos Príncipes. Os membros da Câmara Municipal usam trajes, que são o meio-termo entre a batina do padre e a toga do advogado francês. Têm na mão, como atributo da sua dignidade, um bastão comprido, chamado em português de vara, no cimo do qual se encontram pintadas as armas de Portugal ou da cidade. Todas estas deputações eram apresentadas a suas majestades pelo governador civil. O Rei e a Rainha conservavam-se na plataforma do salão real. Não lhes referirei os discursos de boas-vindas. Eles assemelham-se em todos os países. A orquestra tocava, davam-se vivas, alguns dos que eram apresentados aos soberanos ajoelhavam-se. No Entroncamento, que é uma estação de bifurcação entre as linhas do Norte e do Leste, pertencente à mesma companhia162, o comboio, chegado à 1 h 18 m, parou muito tempo. Aí estava preparado o bufete. O Rei desceu com os príncipes. Muitos camponeses das proximidades tinham-se juntado na estação. A população do campo é por toda a parte neste país muito dedicada à realeza. A população portuguesa é muito pacífica, nenhuma desordem. Toda a gente quis ver os soberanos. Apertavam-se, empurravam-se um pouco, mas é tudo. Quase não havia polícia nas estações. De boa vontade, as pessoas mantinham a ordem. No Entroncamento, o Rei aproximou-se do autor destas linhas para lhe dirigir algumas palavras amáveis, estendendo-lhe a mão. Não tenho nada em particular a indicar nas estações seguintes. Em Caxarias, Pombal e Formoselha, fizeram-se paragens para dar à máquina tempo de tomar água. Era em Coimbra, cidade antiga e célebre pela sua Universidade, onde o comboio chegou às 4 h 58 m da tarde, que a Família Real devia passar a primeira noite. A inauguração oficial começava no dia seguinte, 3 de Agosto. A partida do comboio real estava fixada para as 7 h da manhã. Mas não nos antecipemos. 162 A CRCFP (n. do ed.).


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Coimbra

Aqui começaram as minhas atribulações. Eu era o único jornalista estrangeiro neste momento em Portugal e admitido no comboio real. Queria ver tudo. Mas como fazer quando toda a gente se acotovelava diante do cortejo real e quando os oficiais, que tinham algum direito de dar ordens durante a viagem, estavam sobretudo ocupados em manter a ordem? Fizeram tudo o que lhes era possível, mesmo o impossível, para me ajudar. Mas quando o comboio real chegava a uma estação, esta já estava cheia de gente. Abrindo-se passagem por entre a multidão, estava-se separado do seu companheiro de viagem e eis que todas as precauções tomadas não serviam para coisa alguma. Aquele que tinha a incumbência de me conduzir era levado para o lado oposto pela vaga popular. Qual a forma para me desenvencilhar de semelhante balbúrdia? Foi nestas ocasiões que tive possibilidade de apreciar mais bem a gentileza portuguesa em todas as classes da sociedade, desde o mais humilde até ao grande dignitário de Estado ou ao fidalgo ilustre. O número de pessoas que falam francês, diga-se de passagem, é considerável. Bastava-me apresentar a minha qualidade de estrangeiro para que imediatamente muitas pessoas se colocassem à minha disposição, sem qualquer apresentação, sem

FIGURA 70

Vista de Coimbra em 1871 Panorama Fotográfico de Portugal, v. 1, nº 10 (1871): 120­21


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se fazer conhecer. Abriam passagem, dizendo às pessoas, que também tinham acudido, entretanto, para elas próprias verem: “Deixem passar! É um estrangeiro!” E toda a gente se afastava sem tumulto nem burburinho, com solicitude. Na estação de Coimbra, e diante desta, estavam milhares de pessoas. As deputações eram muito numerosas e com os mais variados trajes. Perante as fisionomias, sentíamo-nos numa cidade inteligente. Os professores da Universidade usam túnicas negras e mantilhas cujas cores variam conforme a faculdade. A cabeça está coberta com um barrete de professor de forma especial e da mesma cor da mantilha. Far-vos-ei a descrição destes trajes universitários numa outra carta, quando vos falar da própria cidade de Coimbra e de uma solenidade singular da qual não há nenhuma ideia no resto da Europa, quero dizer, da cerimónia de um doutoramento. São solenidades legadas à Universidade pela Idade Média e extremamente curiosas. Tive verdadeiramente sorte de chegar a Coimbra no dia em que a faculdade se enriqueceu com mais um doutor163. Voltemos à viagem real. As carruagens do Rei, enviadas de Lisboa, esperavam em Coimbra. O vasto pátio da estação estava cheio. Era um oceano de cabeças. À entrada do comboio na estação, as mesmas cerimónias que em Santarém. Inútil repetir. Na estação de Coimbra, o sr. Costa Pinto, deputado, um dos meus amáveis companheiros de viagem, apresentou-me ao barão de Fornelos, que me ofereceu a sua magnífica carruagem. Subimos com dois dos seus amigos, srs. João N. de Lacerda, capitão de Artilharia, e João Maria de Alenchote, capitão do Estado-Maior164. Mas o nosso veículo não pôde mais do que seguir a fila. Faltei assim à receção da Família Real em Coimbra, ouvindo apenas os vagos ecos dos vivas, os gritos lançados em honra do Rei, da Rainha, dos Príncipes e da Casa de Bragança. Pude ver nas varandas, ornamentadas à moda italiana com tapeçarias e cortinados de todas as cores, muitas lindas senhoras. Diz-se geralmente que as portuguesas não são bonitas. É incontestável que nos países quentes a beleza da mulher desaparece mais depressa. É impossível livrar-se desta lei inexorável da natureza. Notei, entretanto, em Coimbra e nas províncias do Mondego e do Minho, que não faltam mulheres bonitas. A cada passo, encontrava mesmo camponesas de uma beleza atraente e com traços encantadores. O cortejo real passou no meio de uma sucessão de olhos expressivos e belos, 163 Como bem refere Busquets de Aguilar, esta promessa não foi cumprida. WOLOWSKI, 1958-1960 (n. do ed.). 164 Mais à frente, Wolowski identifica-o efetivamente como Jaime Artur da Costa Pinto, um deputado regenerador de Lisboa e um abastado comerciante. O barão de Fornelos era Fernando Maria Pereira dos Santos. MÓNICA, 20052006, vol. 3: 335-337. ZUQUETE, 1989, vol. 2: 615 (n. do ed.).


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desses olhos que são o mais belo ornamento da portuguesa. A mulher portuguesa, não sendo bela, tem olhos que nos fazem perder. O seu brilho é vivo, profundo e faz esquecer certas imperfeições. A carruagem real era literalmente bombardeada com flores, lançadas das varandas.

FIGURAS 71, 72 e 73

Ceifeira do Minho, lavadeira dos arrabaldes do Porto e mulher de capa de Coimbra PALHARES, 1850, n.ºs 6, 13 e 42

O Rei, a Rainha e os príncipes tinham os seus aposentos preparados nos paços da Universidade, no lugar mais alto da cidade, expandida, tal como Lisboa, em anfiteatro.

FIGURA 74

A Universidade de Coimbra SOUSA & MARQUES, 2004


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Os estudantes de Coimbra usam compridas túnicas pretas semelhantes às dos padres. Andam de cabeça descoberta, não querendo usar o chapéu regulamentar, que é deselegante. Fica surpreendido, quem vem pela primeira vez a Coimbra, por encontrar a cada passo ou no passeio público um tão grande número de jovens descobertos.

FIGURA 75

Estudantes da Universidade de Coimbra PALHARES, 1850, n.º 35

Na Universidade, a Família Real dirigiu-se à capela onde se cantou um Te Deum . Depois, o Rei e a Rainha foram conduzidos debaixo de um pálio aos aposentos que estavam destinados a suas majestades. Os convidados do comboio real e os membros de todas as faculdades, com reitor e decanos à frente, dirigiram-se a um salão do primeiro andar onde se realizou a receção. A cerimónia do beija-mão, incontornável em Portugal, recomeçou. Cada um de nós devia ir instalar-se na cidade, nos hotéis, com a recomendação de estar no dia seguinte, às 6 h 30 m da manhã, na estação. A cerimónia da inauguração realizava-se, como disse mais acima, a 3 de Agosto. O Rei vestiu o traje de almirante, os ministros envergavam os seus uniformes. O governador civil de Coimbra, o visconde de Almeidinha, um homem encantador que fez as honras da cidade com uma elegância requintada, seguia os soberanos na sua viagem de inauguração165. 165 João Carlos do Amaral Osório e Sousa, natural de Aveiro. Era afilhado de batismo de D. João VI, fidalgo da casa real, Par do Reino desde 1853 e governador civil de Coimbra, nomeado pelo governo do Partido Regenerador. MÓNICA, 2005-2006, vol. 3: 820-821 (n. do ed.).


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Os outros convidados estavam de casaca e de gravata branca. Foi então que, em vez de esperar a partida do comboio real, tomei um comboio que passava em Coimbra às 3 h da manhã e me permitiu antecipar a toda a gente na Pampilhosa, onde o pessoal superior da companhia esperava o Rei, tendo à frente os srs. Edmond Bartissol, diretor, e o conde de Gouveia166, Par do Reino, subdiretor do caminho-de-ferro. O sr. Alexis Duparchy, empreiteiro-geral que construiu 132 dos 252 km que se deviam inaugurar, encontrava-se também na Pampilhosa. No comboio da noite chegaram a Coimbra, para se juntarem no dia seguinte ao comboio real, o sr. Fontes, presidente do conselho de ministros, e o sr. Mendes Leal, ilustre poeta português de quem o Messager de Vienne e o Echo de France publicam presentemente um encantador romance, e que é, como se sabe, desde há oito anos, o muito estimado representante167 de Portugal em Paris.

FIGURA 76

O visconde de Almeidinha Geneall.pt

FIGURA 77

Fontes Pereira de Melo, presidente do conselho de ministros, em 1878 Occid., n.º 4: 28

166 Engenheiro Afonso de Serpa Leitão Freire Pimentel. MÓNICA, 2005-2006, vol. 3: 267-268 (n. do ed.). 167 Como diz Busquets de Aguilar, na altura, a designação oficial não era ainda de embaixador. WOLOWSKI, 19581960 (n. do ed.).


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Pampilhosa ­ Figueira da Foz

As festas oficiais começavam verdadeiramente na Pampilhosa. A carruagem real foi receber suas majestades a Coimbra. A bênção das máquinas deveria efetuar-se na Figueira. Na Pampilhosa, o comboio parou aproximadamente meia hora e ali foram apresentados ao Rei todos os empregados superiores da Companhia. Aí esperavam também os membros do conselho de administração com o empreiteiro-geral, sr. Duparchy, que referi mais acima. Eis os seus nomes: sr. conde de Ficalho, sr. Barjona de Freitas, antigo ministro da justiça, sr. Eugénio de Mendia e sr. João Joaquim de Matos168, fiscal do governo junto do caminho-de-ferro, vogal da Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas169. O sr. Serpa Pimentel, que faz parte da Junta, acompanhava o Rei desde Lisboa na sua qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros.

FIGURA 78

FIGURA 79

Conde de Ficalho

Augusto César Barjona de Freitas

geneall.pt

geneall.pt

168 Francisco Manuel de Melo Breyner, conde de Ficalho, filho do titular do marquesado com o mesmo nome, foi um notável botânico português. Augusto César Barjona de Freitas foi um influente político da segunda metade do século XIX, ligado ao Partido Regenerador. João Joaquim de Matos era um engenheiro natural de Elvas, onde nasceu em 1826, com uma vasta experiência na construção e fiscalização das linhas nacionais. AHMOP. Processos individuais. MÓNICA, 2005-2006, vol. 1: 462-463; vol. 2: 242-234 (n. do ed.). 169 Wolowski refere literalmente Conselho de Pontes e Calçadas, mas Junta Consultiva era a designação oficial. PEREIRA, 2011d (n. do ed.).


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Estava muito calor. As tropas dispunham-se na plataforma. Os camponeses dos arredores chegavam sem cessar. A estação estava embandeirada e ornamentada com escudos com as iniciais B. A. Às 7 h da manhã, o comboio real entrou na estação ao som de música. Depois do pessoal superior da companhia ter sido apresentado ao Rei – convém aqui acrescentar aos nomes supracitados, os do sr. Labadie, engenheiro-chefe da via, e do sr. Pradal, chefe da exploração – o comboio partiu em direção à Figueira, onde chegou às 9 h 30 m da manhã. O bispo de Coimbra, um homem distinto de tamanho gigantesco, trajava os paramentos sacerdotais e, depois dos cumprimentos do costume na plataforma da estação, o Rei e a Rainha, seguidos pelos príncipes e pelos convidados, subiram para um estrado previamente preparado. O presidente da Câmara Municipal fez um discurso ao qual o Rei respondeu; depois, o bispo falou durante muito tempo, muitíssimo tempo. Após a sua arenga, o bispo desceu os degraus do palanque e dirigiu-se a um altar preparado para a bênção. De seguida começou o desfile das máquinas, todas ornamentadas com bandeiras, flores e plantas. As bandeiras que adornavam as máquinas pertenciam a três nações: portuguesa, italiana e francesa. Italiana, em honra da Rainha, que é filha do Rei Victor Emanuel e irmã do Rei Humberto. Francesa, da companhia, que explora a linha, construída por franceses e com capitais franceses, sendo assim francesa. As máquinas, desde a n.º 1 até à n.º 20, inclusive, foram construídas em Creusot; a n.º 21 e seguintes, em Viena de Áustria. A tribuna real, coberta por um dossel de seda vermelha e ornamentada com as cores de Portugal, tinha na sua frente duas tribunas cheias de senhoras com vestidos elegantes, e, na verdade, havia algumas bonitas, mesmo muito bonitas. As tribunas estavam construídas de forma a não intercetar totalmente a vista ao público que se aglomerara em frente à estação. Que entusiasmo! A vista era feérica. Estavam 20 mil pessoas. As carruagens reais, enviadas de Lisboa, como em Coimbra, esperavam e o percurso, numa distância de mais de 1 km, fez-se no meio de aclamações que me demonstraram quanto o Rei e a Rainha são populares e estimados na província. A cidade da Figueira encontra-se admiravelmente situada à beira do Mondego, que é majestoso na foz. As ruas largas, asseadas, pavimentadas, um enxame de lindas mulheres, com magníficos vestidos, a variedade das indumentárias, as pessoas do povo correndo misturadas com pessoas de categoria e competindo em velocidade com os cavalos que conduziam a carruagem real, tudo isto constituía um espetáculo de um pitoresco encantador.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Dirigiam-se à Catedral para um Te Deum e dali ao centro do Partido Progressista, onde a Câmara Municipal da Figueira da Foz ofereceu um almoço em honra da visita de suas majestades. Havia 100 pratos. O centro progressista está muito bem instalado. É uma casa espaçosa, uma moradia rodeada por um grande pátio, protegido por um gradeamento em ferro. Os salões estavam esplendidamente decorados. Na sala de jantar pôs-se a mesa real ao fundo e ao meio, onde tomaram lugar as pessoas do séquito do Rei e os indivíduos designados pelo soberano. De ambos os lados foram postas duas outras mesas. Tive o prazer de ficar colocado em frente do presidente do conselho de ministros, sr. Fontes, que tinha à sua direita o sr. Mendes Leal e um pouco mais afastado o sr. Serpa, ministro dos Negócios Estrangeiros. Pude, graças à sua gentileza, obter a tradução do brinde que o Rei proferiu em resposta ao discurso de boas-vindas do presidente da Câmara Municipal.

FIGURA 80

José da Silva Mendes Leal em 1883 BND (purl.pt/4547)


Hugo Silveira Pereira

Eis o discurso, que foi coberto de calorosos aplausos e seguido de vivas em honra do Rei.

Brinde do Rei Não é a primeira vez no meu reinado que foi proporcionado ao meu coração de Rei alegrar-se com a abertura de uma nova via. É um grande progresso para a civilização. Mas é a primeira vez que venho ao seio desta laboriosa população da Figueira, à qual este caminho-de-ferro abre uma saída industrial e comercial. Mercê do concurso dedicado dos engenheiros do Estado e dos engenheiros da Companhia, podemos atravessar a fronteira, que é uma fronteira de paz. Sinto-me feliz de unir num mesmo brinde o progresso e a prosperidade futura da Figueira e da província da Beira Alta.

Pediram, em seguida, autorização a sua majestade, para ler uma poesia dedicada por Henri de Bornier ao Rei D. Luís. Os nossos leitores lê-la-ão com o maior prazer: Inauguração do caminho-de-ferro da Beira Alta 3 de Agosto de 1882 Homenagem ao Rei D. Luís I I Tandis que l’obus et la bombe, Les vaisseaux cuirassés de fer, D’une ville font une tombe Et d’un paradis un enfer ; Tandis que l’homme crie à l’homme : »C’est trop de sang être économe, »Le jour du massacre est venu!« Lorsque la ville d’Alexandre Se demande s’il va descendre Quelque Bonaparte inconnu;

I Enquanto os escudos e bombas, Navios de ferro blindado, Transformam uma cidade num túmulo E o paraíso, no Inferno; Enquanto o Homem grita ao Homem: «É demasiado sangue ser parcimonioso, Veio o dia do massacre!» Enquanto a cidade de Alexandre Pergunta a si próprio se vai descer Um qualquer Bonaparte desconhecido;


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

II Tandis que l’œuvre de la France, Le canal du désert Lybien (sic), L’œuvre de paix et d’espérance Devant qui Dieu disait: »C’est bien !« Peut en un jour être abolie, Si quelque souffle de folie Passait sur le front d’un fellah Ou si quelque noir janissaire Croyait ce crime nécessaire Pour honorer l’ombre d’Allah; III Quand là-bas l’Orient tressaille Au choc des bataillons épais, Un peuple heureux ici travaille Dans la justice et dans la paix C’est l’antique Lusitanie Qui dans sa force rajeunie Marche au progrès d’un noble élan Mère féconde et triomphante Qui pour l’honneur du monde enfante Et Camoëns et Magellan! IV Camoëns!... Hélas! sur ta tête De ta gloire payant le prix, Jadis tombèrent la tempête, La faim, l’exil et le mépris ; Aujourd’hui ton peuple est plus sage: Quand un poète aux bords du Tage Chante des vers dignes de toi. Du peuple l’orgueil légitime, Au lieu d’en faire une victime, En fait l’envoyé de son roi!

II Enquanto a obra de França, O canal do deserto da Líbia, A obra de paz e de esperança Diante da qual Deus dizia «Está bem!» Pode acabar num só dia Se um qualquer sopro de loucura Passasse sobre a fronte de um fellah Ou se um qualquer negro guarda Julgasse que este crime era necessário Para honrar o deus Allah; III Quando lá longe o Oriente estremece Ao som dos fortes batalhões, Um povo feliz trabalha aqui Para a justiça e para a paz É a antiga Lusitânia Que rejuvenescida na sua força Marcha sobre o ímpeto do progresso Mãe fecunda e triunfante De quem nasceram Camões e Magalhães Que honram o mundo! IV Camões!... infelizmente! Pagaste o preço da tua glória Com a tempestade, A fome, o exílio e o desprezo; Hoje o teu povo é mais sábio: Quando um poeta, nas margens do Tejo, Canta versos dignos de ti. Em vez de transformar em vítima O orgulho legítimo do povo, Faz disso enviado do seu Rei!


Hugo Silveira Pereira

V Magellan!... Au siècle où nous sommes, Dompteur des mers, tu n’irais pas, Comme jadis, à d’autres hommes, Offrir ton génie et ton bras; Tes labeurs, ta mâle industrie. Tu les gardes à ta patrie, Au Portugal libre et joyeux, Et tes victoires pacifiques Tracent des routes magnifiques Au flanc des monts voisins des cieux! VI Où vont ce roi que l’on acclame Et cette reine au front charmant? Quel espoir portent-ils dans l’âme? Quel est leur rêve en ce moment? Vont-ils conquérir un royaume? Ont-ils entrevu le fantôme Par qui d’autres sont fourvoyés? Ce peuple qui les accompagne Prend-il le chemin de l’Espagne ? – Oui, de l’Espagne… mais voyez ! VII De Figueira à Villar Formose, Sur les vallons dans l’ombre ouverts, Où la vigne et le laurier rose S’enlacent aux caroubiers verts, Par les forêts de chêne-liège, Entre les cascades de neige Qui ruissellent de la sierra, Pareil à l’antique Encelade, Le géant de fer escalade Les sommets de l’Alta Beira.

V Magalhães!... no século em que estamos, Domador dos mares! Tu não irias, Como outrora, oferecer a outros homens O teu génio e o teu trabalho de homem possante; Guarda-los para a tua pátria, Para um Portugal livre e feliz E as tuas vitórias pacíficas Projetam estradas magníficas No flanco dos montes vizinhos dos céus! VI Onde vão este Rei que aclamam E esta Rainha encantadora? Que esperança levam dentro de si? Qual é o sonho deles neste momento? Vão conquistar um Reino? Vislumbram eles o fantasma Pelo qual outros se deixaram enganar? Este povo que os acompanha Toma o caminho de Espanha? - Sim, de Espanha... mas vejam! VII Da Figueira a Vilar Formoso Sobre os vales abertos da sombra Onde a vinha e o oleandro rosa Abraçam as alfarrobeiras verdes Através das florestas de sobreiros, Entre córregos Que correm da serra Tal como o antigo Encélado, O gigante de ferro a escalar Os picos da montanha da Alta Beira


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

VIII

VIII

Encélado é vencedor! Ele sobe, Corre, desce, com passo sempre seguro Mergulhando nos abismos que enfrenta E reaparecendo no azul! - Rei D. Luís, eis aqui a Espanha... Mas o povo que te acompanha Não vem de ferro de mão; É um povo amigável que espera E é o hino da concórdia Que em conjunto cantarão amanhã!

Encelade est vainqueur! Il monte, Court, descend, d’un pas toujours sûr, Plongeant aux gouffres qu’il affronte Et reparaissant dans l’azur! – Roi Dom Luiz, voici l’Espagne… Mais le peuple qui t’accompagne Ne vient pas le fer à la main; C’est un peuple ami qu’il aborde, Et c’est l’hymne de la concorde Qu’ensemble ils chanteront demain! Henri de Bornier

Henri de Bornier*

Os jornais da Figueira publicaram o poema seguinte do simpático secretário da direção do caminho-de-ferro da Beira Alta, um francês, o sr. Martin. Merece ser reproduzida aqui: A l’occasion de l’inauguration royale

No momento da inauguração real

On dit qu’aux quatre coins des cieux Il va souffler un vent de guerre, Et qu’un tourbillon de poussière Passera bientôt sous nos yeux.

Diz-se que nos quatro cantos dos céus Vai soprar um vento de guerra, E que um turbilhão de poeira Passará em breve sob os nossos olhos

On dit qu’au sein des Assemblées Des hommes en parlent tout bas; Que l’on entend des bruits de pas Comme ceux de troupes armées.

Diz-se que no meio das Assembleias Fala-se disso entre os homens Ouvem-se barulhos de passos Semelhantes aos das tropas do exército.

On dit que chacun est admis A peupler les casernes sombres ; Et que l’on voit glisser des ombres Sur les navires endormis.

Diz-se que cada um é chamado A ir para os escuros quartéis E que se veem escorregar sombras Sobre os navios adormecidos.

* Tradução de Maria Leonor Fernandes.


Hugo Silveira Pereira

On dit qu’au fond de la chaumière, Dans le silence de la nuit, A la clarté du feu qui luit Le soldat voit pleurer sa mère!

Diz-se que na mais humilde casa, No silêncio da noite, Sob a claridade do fogo que arde O soldado vê chorar a sua mãe!

Que sous le glaive du croissant Des chrétiens ont rendu leur âme; Que pour venger cet acte infâme Il faut verser beaucoup de sang.

Que por honra da espada Muitos cristos entregaram a sua alma E que para vingar este ato infame É preciso verter muito sangue.

On dit qu’une ville riante, Autre fois maîtresse des mers, N’est déjà que débris amers Où règne en vainqueur l’épouvante.

Diz-se que numa cidade feliz Outrora governante dos mares Está agora cheia de amargura E o terror reina dentro dela.

On dit. – Mais que dit-on aussi? – On dit aussi que l’hirondelle A fait son nid sous la tonnelle Où chaque an elle vient ainsi;

Diz-se. - Mas o que se diz mais também? Diz-se também que a andorinha Faz o seu ninho sob o caramanchão Para onde costuma vir todos os anos

Qu’au fond des bois le ruisseau chante Sa mélancolique chanson, Que le charmant petit pinson Boit de son eau vivifiante.

E que no fundo dos bosques canta o riacho A sua melancólica canção, E que o encantador tentilhão Bebe a sua ágiua vivificante

On dit que la nature en fleurs Rit constamment de nos alarmes, Qu’elle seule garde ses charmes Sans nul souci de nos erreurs.

Diz-se também que a natureza em flor Se ri constantemente dos nossos medos Que somente ela guarda os seus encantos Sem qualquer preocupação com os nossos erros.

On dit qu’il n’est pas gros le chêne Qui résiste aux souffles du Nord, Et que les hommes ont bien tort De s’agiter quant bien les mène!

Diz-se que não é forte o carvalho Que resiste aos ventos do Norte E que os homens estão errados Quando se agitam por causa dele.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

On dit. – Mais que dit-on enfin? On dit qu’au bout d’une province, Dom Luiz, reine Maria et prince Sont arrivés un beau matin.

Diz-se. - Mas o que é que se diz enfim? Diz-se que ao extremo de uma província D. Luís, a Rainha D. Maria e o Príncipe Chegaram numa bela manhã

Pendant que la foule empressée Songe aux doutes du lendemain, Ils sont venus tendre la main Aux travailleurs de la pensée.

Enquanto a multidão apressada Sonha duvidando do amanhã, Eles vieram estender a mão Aos trabalhadores desse sonho

Ils sont venus: qu’ils soient bénis Jamais une fête plus belle N’attira sous leur tutelle Plus grands et plus nobles esprits.

Vieram. Que sejam abençoados Nunca numa festa tão bela Atraíu sob a tutela deles Maiores e mais nobres espíritos

Retrempez donc votre courage Aux fracas des combats sanglants Peuples, laissez à vos enfants Votre folie en héritage.

Retemperai pois a vossa coragem Perante os fracassos dos combates sangrentos Povos, deixai aos vossos filhos A vossa alegria como herança

Troublez la terre, et puis la mer Des honneurs poursuivez le faîte. Jamais une guerre bien faite Ne valut un chemin de fer!

Perturbai a terra e depois o mar Com honras atingi o topo Nunca uma guerra bem feita Valeu um caminho-de-ferro!

L. Martin.

Lisbonne, le 22 juillet 1881.

L. Martin Lisboa 22 de Julho de 1881*

Digamos agora uma palavra sobre a ementa. O restaurante da Pampilhosa é dirigido por um francês que foi chefe de cozinha do primeiro e melhor hotel de Lisboa, o hotel Bragança, verdadeiramente um hotel de primeira categoria170! Foi o explorador do restaurante da Pampilhosa o escolhido pela cidade da Figueira para preparar o almoço real e ele desempenhou a sua tarefa com o pleno reconhecimento dos nossos estômagos famintos. * Tradução de Maria Leonor Fernandes. 170 De acordo com Alice Rodrigues, o responsável pelo restaurante da estação não era francês, mas sim um pasteleiro suíço de seu nome Paul Bergamin. RODRIGUES, 2006: 29 (n. do ed.).


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FIGURA 81

Restaurante da estação da Pampilhosa em finais do século XIX RODRIGUES, 2006: 28

Reproduzo aqui a ementa, que foi impressa em língua francesa, e junto, pela curiosidade do facto e como amostra da língua portuguesa, o convite que me foi enviado pela Câmara Municipal desta encantadora cidade da Figueira da Foz, à qual desejo que o novo caminho-de-ferro abra a era de todas as prosperidades. Municipalidade da Figueira da Foz A camara municipal tem a honra de convidar o Exmo. Sr. Wolowski para o lunch que offerece a Suas Magestades, no dia 3 do corrente mez d’Agosto, as 11 horas da manhã, na casa denominada do Paço. O Presidente, FRANCCO. L. GUIMES.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Almoço oferecido a suas majestades pela Câmara Municipal da Figueira da Foz por ocasião da inauguração do caminho-de-ferro da Beira Alta 3 de Agosto de 1882 Ementa Entradas Sardinhas. Salsichão de Lyon. Melão Rissóis à Piemontesa Filetes de linguado à Colbert Fatias de lombo de vaca à Talleyrand Galantina de peru trufado Presunto de York com geleia Salada à italiana Peru assado com agriões Champanhe gelado Bolo genovês Pequenos bolos recheados Compota de frutas Vinhos Johanisberg, Château-Iquem, Château-Margaux, Sauterne, St. Julien, St. Estéphe, Porto e Madeira Café e licores Servido por Paul Bergamin


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FIGURA 82

Rótulo do champanhe Théophile Roederer Site Amazon.com

Depois da refeição, vigorosa e alegremente regada com champanhe – Théophile Rœderer, se faz favor – o Rei foi fazer uma visita a um segundo centro que a Figueira possui171 , e, perto da 1 h da tarde, o comboio real pôs-se em andamento para parar em todas as estações do novo caminho-de-ferro. O tempo estava soberbo, se bem que um pouco quente. Pode-se classificar esta viagem de triunfal. Numerosos episódios comovedores mostram sob os aspetos mais simpáticos e mais favoráveis o carácter português. A Família Real devia hospedar-se em Mangualde com uma família portuguesa no magnífico palácio da condessa de Anadia172. Mas antes de vos contar os diversos episódios da viagem, tenho a dizer algumas palavras acerca da própria linha do caminho-de-ferro, construída desde a Figueira até Mangualde sob a direção do engenheiro-chefe sr. Alexis Duparchy, assistido pelos seus dois colaboradores, os engenheiros srs. Pierre Vimont e Louis Delpech. 171 Do Partido Regenerador. CF, n.º 353: 1 (n. do ed.). 172 Ana Maria Juliana de Morais Sarmento, como esposa do conde de Anadia, José Maria de Sá Pereira e Menezes Pais do Amaral de Almeida e Vasconcelos Quífel Barbarino. PINTO, 1991, t. 1: 91-97. ZUQUETE, 1989, vol. 2: 279; vol. 3: 444 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

VISITA AO LUSO

Vou contar-vos em que condições travei conhecimento com o sr. Duparchy, pois foi graças à sua amabilidade que me foi permitido, alguns dias antes da viagem real, percorrer a linha que o Rei inaugurou e isto em condições excecionalmente agradáveis. É no Luso que vive o sr. Duparchy. Chegando a esta vila, hospedei-me no Hotel Novo Lusitano, cujo proprietário fala um pouco francês. Notei, vindo no caminho-de-ferro da Pampilhosa ao Luso, distância de dezoito minutos, um magnífico chalé quase tocando a estação. Um senhor português, que estava no mesmo compartimento que eu e com o qual travei conversa durante a viagem, disse-me que essa casa de campo pertencia ao francês que tinha construído precisamente a linha da Beira Alta que ia visitar. – Há dois anos – continuou – o lugar que você vê tão bem cultivado não era mais do que uma árida montanha coberta de pedras. Ele transformou-a numa esplêndida propriedade. A vegetação em Portugal – disse-me o meu amável companheiro de viagem, que soube mais tarde ser o sr. José Rosas do Porto – cresce tão depressa que todas as árvores que eu via tinham nascido em dois anos. A propriedade deste francês merece ser visitada; em primeiro lugar, porque é realmente bela; e depois, porque constitui uma prova convincente da fertilidade do solo português. Tive desejo de a ver. Como fazer? Não possuía nenhuma carta de apresentação para o seu proprietário. – Oh, – pensei eu – os franceses são hospitaleiros. Irei audaciosamente junto do proprietário pedir-lhe autorização para visitar a sua quinta. Não tive que lamentar a minha decisão. No hotel do Luso, a minha estrelinha da sorte tinha-me feito encontrar o sr. Júlio Carlos Mardel de Arriaga, secretário de uma comissão nomeada pelo governo para a conservação dos monumentos nacionais, que fala admiravelmente bem francês e que se tinha oferecido para me guiar no Buçaco, onde conhece todos os arbustos173. Aceitei com reconhecimento, mas retorqui-lhe que a minha intenção era, antes de me meter na montanha, fazer uma visita ao sr. Duparchy. O sr. Mardel de Arriaga hesitava, pois, como eu, não o conhecia. Tomei sobre mim a incumbência de o apresentar. Enfim, escarranchamo-nos nos burros que acabávamos de alugar e partimos para a vila Duparchy. Era meio-dia. 173 Júlio Carlos Mardel de Arriaga Velho Cabral da Cunha. Começou a sua carreira profissional como amanuense na junta do crédito público, mas o seu interesse pela arte e arqueologia levou-o a ingressar na Real Associação dos Arquitetos Civis e Arqueólogos Portugueses, o que, aliado a sua intimidade pessoal com o governo da altura, o conduziu à comissão dos monumentos nacionais em 1881. Permaneceu ligado a este serviço até à sua morte em 1928. CUSTÓDIO, 2011: 78-80 (n. do ed.).


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Esta propriedade está situada a 1,5 km da vila do Luso. É muito grande e completamente rodeada por um muro. O caminho é comprido, desde a porta principal de entrada à casa, situada numa elevação. À porta, quiseram-nos parar. É proibido entrar no cercado montados em burros. Mas violámos um pouco a instrução, porque estava bastante calor e a casa, como acabo de dizer, fora construída numa elevação considerável. O guarda, diante da minha decisão, tomou-nos por amigos do seu patrão e, ainda que eu não soubesse exprimir-me em português, deixou-nos avançar. Diante da porta, uma criada francesa recebeu-nos. Perguntámos pelo sr. Duparchy. – Dêem-me os vossos cartões, meus senhores. O sr. Arriaga não tinha. Dei o meu, acrescentando o seu nome a lápis. O dono da casa almoçava. Apesar disso, veio receber-nos. Expus-lhe o meu pedido de me dar alguns esclarecimentos acerca da construção da linha. O sr. Duparchy respondeu amavelmente: – Vinde esta tarde às 7 h jantar o que houver; mostrar-vos-ei tudo o que quiserdes ver e depois conversaremos. O sr. Mardel de Arriaga e eu aceitámos este convite feito num tom de tão grande franqueza e cordialidade que esquecemos que alguns minutos antes éramos desconhecidos uns dos outros. Deixámo-lo voltar para o seu almoço e partimos para a nossa excursão no Buçaco. Às 7 h em ponto, regressámos à casa nas mesmas vestimentas. O sr. Duparchy conduziu-nos ao jardim acompanhado do seu cão e de um corvo que domesticou e que o segue como um amigo fiel. Visitámos toda a propriedade, que é muito grande. Há de tudo nesta ditosa residência criada em dois anos como por encanto. Jardim, arvoredo, roseiras, camélias, as mais singulares plantas, horta, casa do seu amigo e companheiro de trabalho, o engenheiro sr. Vimont; os edifícios para os escritórios da empreitada, as estrebarias para os cavalos e as vacas, a capoeira, enfim, tudo o que o gosto mais requintado e o conforto podem fazer desejar está lá, bem arranjado, bem disposto, bem colocado. O sr. Duparchy disse-me meio a sério, meio a rir: – Encontrará aqui coisas sérias, coisas superficiais e mesmo coisas confortáveis. O homem definia-se completamente neste dito espirituoso. Depois, o nosso anfitrião apresentou-nos a sra. Duparchy. A seguir, contou-me a sua vida diligente. Esteve no canal do Suez, construiu outros caminhos-de-ferro. Quando o deixei, deu-me uma carta de apresentação para o engenheiro-chefe de via e obras, também um francês, o sr. Labadie. Levei desta visita uma das melhores recordações da minha viagem.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

VISITA AO ENGENHEIRO CHEFE

O sr. Labadie tem os seus escritórios na Figueira. Recebeu-me de braços abertos em sua casa, passeando neste encantador porto de mar e ao mesmo tempo estação balnear. Fez-me mesmo a proposta de me acompanhar até à fronteira de Espanha. Dessa maneira, disse-me: – Verá a linha inteira antes de toda a gente. Tinha necessidade de ir a Coimbra para levantar o meu correio. – Não se preocupe. Vou mandar um telegrama a um dos meus amigos, o sr. Loureiro, engenheiro-chefe da barra do Mondego e da Figueira174. Ele receberá as suas cartas e levar-lhas-á de tarde ao hotel onde se hospedou em Coimbra. Poderá assim, no dia seguinte, encontrar-se comigo na Pampilhosa e depois visitaremos minuciosamente a linha. Uma boa fada parecia seguir-me por toda a parte. O sr. Loureiro, um dos engenheiros mais distintos de Portugal, dirigiu-se ao correio e pude obter a minha correspondência, que chegou pelo comboio da tarde. É possível haver prova de maior benevolência? No dia seguinte o sr. Labadie estava no seu posto de trabalho. A carruagem-salão da direção estava ali. O sr. Labadie convidou-me a subir. Não era uma viagem de estudo. Era uma viagem de lazer. O salão estava colocado na cauda do comboio com a varanda voltada para a linha. Instalámo-nos nas cadeiras e, munido de uns excelentes binóculos, pude ver bem tudo e tomar notas segundo as indicações daquele que fora um dos engenheiros da construção e que é agora engenheiro-chefe da via, da qual conhece cada curva, cada pedra, cada árvore. Pude, graças a ele, descrever este caminho-de-ferro com uma exatidão que permitirá àqueles que lerem esta descrição conhecê-lo com muita perfeição.

Linha da Pampilhosa à Figueira da Foz

O caminho-de-ferro da Beira Alta é cortado na Pampilhosa pela linha do Norte dos caminhos-de-ferro portugueses175. 174 Adolfo Ferreira Loureiro, engenheiro nascido em Coimbra e que contava à data 46 anos foi um dos maiores especialistas em portos em Portugal. Escreveu a enorme obra Os portos marítimos de Portugal e ilhas adjacentes. AHMOP. Processos individuais (nota do ed.). 175 Mais precisamente, da CRCFP (n. do ed.).


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Um troço dirige-se para o lado do oceano e alcança a cidade da Figueira da Foz, que é ao mesmo tempo um porto de mar e uma praia para os banhistas portugueses. O outro troço vai do entroncamento da Pampilhosa à estação fronteiriça que se chama Vilar Formoso. A extensão da linha da Pampilhosa à Figueira da Foz é de 50 km e da Pampilhosa a Vilar Formoso de 202 km. O terreno desde a Pampilhosa até à Figueira, numa extensão de 40 km em direção ao mar, é pouco acidentado. Não terei muito que contar acerca desta parte da linha. Ao sair da estação da Pampilhosa, a linha atravessa em nível o caminho-de-ferro do Norte e inflete para oeste. Os aterros são pouco importantes e as obras de arte não têm coisa alguma que mereça uma atenção séria. Eis os nomes das pequenas estações que se seguem: Murtede, Cantanhede, o apeadeiro de Limede e a estação de Arazede. Ao quilómetro 32 da via, abre-se o vale de Liceia que se atravessa em aterro numa extensão de 400 m s e numa altura média de 7 m. No lugar mais baixo foram construídas duas pontes conjugadas. Este vale precede em 1 km o de Azenha Nova, igualmente atravessado em aterro com um pontão duplo de 2 m e um pouco curvado. A linha entra de seguida na grande floresta de Foja, pertencente ao governo, e depois chega-se à estação de Montemor. Seguidamente, vem a estação de Alhadas, a partir da qual podemos ver os trabalhos mais importantes, entre os quais devo citar a grande trincheira de Alhadas, precedida de um túnel que tem uma extensão de 518 m. À saída de Alhadas, encontra-se o apeadeiro do mesmo nome e a linha desce numa pendente contínua até à própria estação da Figueira. Nestes últimos 6 km, o terreno é muito variado e a chegada à Figueira da Foz é das mais pitorescas. A estação da Figueira é de primeira classe. Está construída sobre estacaria, tendo um cubo de mais de 500 m. Além dos edifícios para os passageiros e do cais de mercadorias, a estação inclui uma recolha para máquinas, uma recolha para carruagens, oficinas de reparações e cais especiais para a descarga direta dos navios. No lugar onde se erguem atualmente todos os edifícios que constituem esta importante estação, não havia outrora mais do que profundas escavações cheias de água estagnada. Também as despesas para executar estes trabalhos atingiram cerca de um milhão de francos. Segundo as indicações que bem me quis dar o amável diretor deste caminho-de-ferro, o sr. Edmond Bartissol, um francês, foi a 3 de Setembro de 1879 que o contrato provisório para a concessão da Pampilhosa à Figueira foi assinado entre a companhia e o governo português. Iniciaram-se sem demora os estudos e a 31 de Dezembro do mesmo ano, último


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

dia do prazo, o projeto era enviado à direção de fiscalização. Depois da decisão das câmaras legislativas, foi necessário esperar a de um tribunal arbitral para obter a concessão definitiva e a inauguração dos trabalhos só pôde realizar-se no dia 10 de Agosto de 1880. A maioria dos aterros estava terminada a 31 de Dezembro último. Dezasseis meses foram assim suficientes para remover 1.000.000 m3 e construir a maior parte das obras correntes, obras que são muito numerosas. Foi o sr. Duparchy que construiu esta linha. Linha da Pampilhosa a Mangualde

Esqueci-me de dizer que a Pampilhosa está situada a 230 km de Lisboa na linha do Norte que conduz ao Porto. O edifício principal desta estação de entroncamento forma um extenso retângulo de 40 m de comprimento e 10 de largura. Nas quatro faces os cais são abrigados por uma cobertura com suportes metálicos e é um benefício num país em que os raios de sol são tão ardentes. A estação da Pampilhosa é, na minha opinião, demasiado pequena. Os comboios entre a fronteira de Espanha, Figueira, Lisboa e Porto derramarão ali forçosamente um contingente considerável de passageiros. Ora, as salas de espera, pouco espaçosas, deixam a desejar. O dono do restaurante também não recebeu para a sua instalação o espaço suficiente, de modo que toda a gente se acotovela na exígua sala que lhe foi destinada. Os srs. administradores serão forçados a aumentar esta estação insuficiente; mais valia fazê-lo desde o início. As vias apresentam na Pampilhosa uma disposição muito semelhante às do Entroncamento, ponto de separação das linhas do Norte e do Leste da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses. Os passageiros conduzidos a esta estação terão apenas que atravessar o edifício para se juntarem aos comboios destinados à linha da Beira Alta ou à linha da Figueira. Ao sair da última agulha, a via deixa à esquerda o caminho-de-ferro do Norte e curva-se para este. A uma distância de 8 km, encontram-se apenas duas pequenas pontes construídas com tabuleiro metálico; a primeira sobre o Canedo, a segunda sobre o Pego e, logo a seguir, entra-se num túnel aberto por baixo da estrada real de Viseu. Este túnel está construído em curva e não ultrapassa 57 m de comprimento. A natureza do terreno atravessado, os numerosos desmoronamentos que se produziram desde o começo tornaram muito difíceis – afirmaram-me – os trabalhos desta primeira obra.


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A estação do Luso, célebre pela vizinhança do Buçaco, segue-se imediatamente ao túnel. A 50 m desta estação estende-se o viaduto das Várzeas, a maior das pontes metálicas da Beira Alta. Tem 328 m e a altura do carril por cima do ponto mais baixo do vale atinge 41 m. O tabuleiro, sustentado por vigas de 4,5 m, está dividido em sete vãos por pilares igualmente metálicos, solidamente construídos sobre uma base de alvenaria. Todos os viadutos metálicos, com exceção de um só, o do Dão, são do mesmo modelo.

FIGURAS 83 e 84

Placas comemorativas da visita do diretor e administrador­delegado da CCFBA (Bartissol e Durangel) aos trabalhos da linha em 1880 Câmara municipal de Nelas

Das Várzeas à estação de Sta. Comba Dão, encontram-se obras de toda a espécie: túneis, pontes de alvenaria sucedem-se quase sem interrupção e fazem desta parte da linha uma das mais acidentadas da península. O túnel do grande Salgueiral, o quarto, creio, é o mais importante da linha: o seu comprimento total em linha reta não é inferior a 1.095 m. A sua construção começou no mês de Fevereiro de 1879 e terminou a 15 de Março do mesmo ano. A ponte de Trezói, que está situada a uma distância de 10 km, é a mais pitoresca da linha inteira. Prepondera passando a aldeia de Trezói. Mais ou menos a meio do viaduto do mesmo nome, a linha, quase sempre em rampa desde a Pampilhosa, entra em declive quase contínuo até à estação de Mortágua. Depois seguem-se quatro ou cinco túneis.


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FIGURA 85

Aspetos da linha da Beira Alta. 1. Viaduto de Trezói; 2. Ponte de Mortágua; 3. Viaduto de Cruz; 4. Viaduto de Milijoso Occid., n.º 134: 204


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Os terrenos até aqui atravessados eram compostos quase unicamente de xistos decomponíveis ao ar livre, que tornaram a construção extremamente penosa. Tiveram que se estabelecer robustos madeiramentos. Ao sair da estação de Mortágua, a via está de novo colocada em rampa. Atravessa o rio Mortágua e sobe até à grande trincheira de Valongo, que por si só apresenta um enorme cubo de 130.224 m e não custou menos de 338.582 francos. Depois de ter passado o viaduto do Dão, avista-se uma torrente num leito obs-

FIGURAS 86 E 87

Vistas do viaduto sobre o Dão Occid., n.º 132: 188­189

FIGURA 88

Ponte sobre o Noémi Occid., n.º 139: 244


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

truído com enormes blocos de granito. O Dão corre entre duas profundas fraturas cobertas de heras e trepadeiras: é indiscutivelmente a mais bela parte da linha. A partir da estação de Sta. Comba Dão, entra-se em terrenos menos acidentados e, por conseguinte, privados das grandes obras de arte que preenchem a parte da linha que acabo de descrever. Passam-se em seguida as estações de Carregal, Oliveirinha, Canas, Nelas e chega-se a Mangualde, onde termina a secção do sr. Duparchy. A construção dos 122 km restantes foi confiada ao sr. Dauderni, que não assistiu à inauguração do caminho-de-ferro.

DE MANGUALDE A VILAR FORMOSO

A secção do Sr. Dauderni

Depois de ter deixado Mangualde, entra-se, a cerca de 3 km de distância, num túnel chamado Mourilhe, onde começa a secção do segundo empreiteiro, sr. Dauderni. Os trabalhos de Mangualde à fronteira de Espanha, 122 km aproximadamente, sem proporcionarem o mesmo interesse que a primeira secção, como túneis, fazem também muita honra ao sr. Dauderni, sobretudo pelas suas magníficas trincheiras em granito. A estação de Gouveia é precedida de um túnel que tem o nome de Abrunhosa. Vê-se de seguida o viaduto da Canharda, as estações de Fornos, Celorico, Vila Franca e Guarda. Seguem-se ainda as estações de Vila Fernando, Cerdeira e enfim um magnífico viaduto de 235 m lançado sobre o rio Côa, que tem uma altura de 58 m acima do leito do rio. Do viaduto do Côa à fronteira, não há mais a notar que a estação da Freineda, confinante com Vilar Formoso, que é o ponto término da linha. Foi a 3 de Agosto de 1878 que se assinou o contrato entre o governo português e a companhia para a construção do caminho-de-ferro da Beira Alta. A partir de 25 do mesmo mês uma brigada de estudos instalou-se no Luso. Alguns meses mais tarde, a 7 de Fevereiro de 1879, um numeroso pessoal trabalhava nas três primeiras secções e no fim de Abril a linha inteira estava ocupada por um número consi-derável de operários. Ora, em Dezembro de 1881, os aterros estavam acabados entre a Pampilhosa e


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Vilar Formoso; quatro meses mais tarde ocupavam-se dos acabamentos. Assim, menos de três anos tinham sido suficientes para executar 7.000.000 m3 de terraplenagens, das quais uma boa parte em rocha dura, 3.291 m de túneis, doze grandes pontes de ferro ou de alvenaria, somando 1.813 m de comprimento total e um grande número de obras de arte de menor importância. Os viadutos, de um estilo elegante, com tabuleiros metálicos muito bem executados em todo o percurso, foram construídos pela casa Eiffel de Paris. Na fronteira

A linha da Beira Alta está dividida em cinco secções, tendo cada uma um chefe. O sr. Labadie tinha-os prevenido pelo telégrafo da sua passagem. O sr. Inácio Pereira de Lacerda veio connosco desde o Luso até Sta. Comba Dão, onde o seu colega, o sr. A. Barbosa, o substituiu. Desde a Guarda até Vilar Formoso, estação fronteiriça, a secção pertence ao sr. Manuel Emídio da Silva176. Entreguemos a César o que é de César. O sr. Labadie tinha guarnecido a carruagem-salão da companhia com provisões de viagem, ou seja, para me explicar mais claramente, tinha despojado o restaurante da Pampilhosa para alegrar a viagem. Nada faltou: nem o vinho tinto generoso de França de excelente qualidade, nem o Alto-Sauterne, etc., etc. Almoçámos alegremente e durante o intervalo tomei as minhas notas. Os três engenheiros da secção, que acabo de indicar, são portugueses, falam admiravelmente bem francês e são pessoas encantadoras, como aliás a maior parte dos seus compatriotas. A primeira secção da Figueira à Pampilhosa e a quarta de Fornos à Guarda têm por chefes dois franceses, o sr. Monniot e o sr. Feret. Convém mencionar aqui o nome do antigo engenheiro da construção, o sr. Priam Panizzi, que é atualmente chefe de repartição do serviço central da via. O sr. Engenheiro Panizzi é cunhado do sr. Labadie e sobrinho do grande patriota italiano António Panizzi, que muito contribuiu para o ressurgimento italiano. As cartas de Mérimée a António Panizzi tiveram grande repercussão, conforme se lembram, e foram publicadas em Paris pelo editor o sr. Calman-Lévy. Lembro estes pormenores, pois as cartas de Mérimée a Panizzi são para o Se176 Inácio Pereira de Lacerda foi condutor de Obras Públicas no ministério respetivo entre 1866 e 1879, tendo trabalhado nos estudos da então designada linha do Algarve (Beja a Faro) e na direção de fiscalização da construção da linha da Beira Alta e do ramal de Coimbra. Em Setembro de 1879, em virtude de lhe de ser negado um aumento salarial, passou a trabalhar para Duparchy como chefe de secção na construção da linha da Beira Alta. Tendo casa no Luso, era provavelmente um conhecedor da região. AHMOP. Processos individuais (n. do ed.).


FIGURA 89

Occid., n.º 139: 245

Aspetos da linha da Beira Alta: 1. Estação de Mortágua; 2. Túnel Grande Salgueiral; 3. Estação de Vilar Formoso; 4. Estação de Gouveia; 5. Ponte de Coval; 6. Ponte do Noémi; 7. Ponte da Canhada.

A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski


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gundo Império o que as memórias da sra. de Rémusat foram para o Primeiro. Mérimée viveu na corte de Napoleão III numa intimidade especial e conta, por consequência, muitas coisas inéditas: faz ver em muitas circunstâncias o reverso da medalha. Em Vilar Formoso, nada há de notável. É uma estação fronteiriça no meio de um planalto bastante árido. A aldeia não se encontra muito afastada, mas não merece nenhuma menção particular. O restaurante desta estação é dirigido por franceses, marido e mulher. É a mulher, creio, que, pela sua energia, é o homem. Jantámos muito bem. Depois do jantar, o sr. Labadie propôs ao sr. Emídio da Silva e a mim visitar os trabalhos começados numa extensão de 3 km em território espanhol para o prolongamento desta linha até Salamanca. A noite estava esplêndida. Vimos à volta um fogo-de-artifício de um novo género. Os operários da via lançavam fogo a diversas minas. As girândolas iam direitas ao céu, despejando em redor uma saraivada de pedras com assobios agudos, penetrantes. Um ramo de flores de fogo. Colocámo-nos a uma distância respeitável. É um espetáculo muito interessante: essas centenas de operários amontoando as suas ferramentas, espalhando-se em todas as direções, para regressar ao descanso da noite; e as pedras que danificaram, como se quisessem vingar-se das agressões, apressam-se em se lhes juntar e caem impotentes na sua fúria sem lhes fazer mal... É que o chefe da mina calcula bem o comprimento do pavio e pega-lhe fogo no momento em que os operários acabaram o seu dia. Um ruído medonho corta o ar, depois tudo regressa ao silêncio majestoso da natureza… Regressámos um pouco sonhadores à estação. Quando se entra numa carruagem para percorrer distâncias em tão poucas horas, raramente se pensa nos tormentos extraordinários que custaram a milhares de operários estes aterros e terraplanagens de todos os obstáculos que o talento moderno soube remover. O tempo estava soberbo. Instalámo-nos na plataforma da estação. A dona do restaurante arranjou-nos uma mesa e conversámos assim até às 11 h da noite. Era necessário regressar no dia seguinte pela manhã às 7 h 30 m. Esta viagem encantadora, organizada pelo desvelo e amabilidade do sr. Labadie, acabava ali. Voltámos a ver uma vez mais, na volta, as belezas da paisagem, das quais esta linha se encontra semeada, e, no Luso, deixei continuar o seu caminho até à Figueira o estimado engenheiro-chefe, para voltar às suas ocupações que iam ser aumentadas, visto que a inauguração real devia efetuar-se alguns dias depois e ele tinha que se ocupar dos preparativos.


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Parei de propósito no Luso para ir agradecer aos senhores da localidade a excursão que acabava de fazer, graças à influência do sr. Duparchy, Tive o prazer de me encontrar de novo nessa casa hospitaleira, cujas honras eram feitas pela sra. Duparchy de uma forma tão encantadora, tão francesa e onde, depois de algumas horas de conversa, sentia-me à vontade como em casa de amigos de longa data.

DA FIGUEIRA A MANGUALDE

Agora que conhecemos a linha da Beira Alta em toda a sua extensão, podemos retomar a descrição da viagem real de inauguração e mencionar os episódios mais importantes da visita da Família Real a esta rica província da qual o novo caminho-de-ferro toma o nome. O comboio real, a partir da Figueira da Foz, parava em todas as estações. A companhia esmerou-se. Era ademais secundada nos preparativos da receção pelas municipalidades locais do percurso. Da Figueira à Pampilhosa não há a assinalar outra coisa que a solicitude das populações dos arredores, acudindo a todas as estações ornamentadas com bandeiras e escudos. Quase em toda a parte as tribunas estavam cheias de senhoras, gritos de alegria, vivas e fanfarras. Na Pampilhosa o comboio real parou de novo por muito tempo. Aqui, despediram-se de suas majestades algumas altas figuras, cujos afazeres reclamavam a sua presença em Lisboa. Citaremos entre elas o sr. Mendes Leal, representante de Portugal em Paris, que voltava para Sintra na companhia do sr. Carlos dos Santos Silva, um dos administradores da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses. Passando no Luso, vimos a casa toda ornamentada do sr. Duparchy, o empreiteiro-geral. Fogos-de-artifício eram lançados à passagem do comboio real de todos os lados desta imensa propriedade. Era original e encantador. Deixando o Luso, o comboio percorre regiões muito ricas e férteis, mas cujas populações não tiveram ainda tempo de se desfazer da sua simplicidade primitiva. Os honrados camponeses da província da Beira Alta não conseguiam esconder o seu espanto, vendo pela primeira vez a locomotiva atravessando o espaço… Acerca disto, um dos empreiteiros da linha, Sr. Emídio da Silva177, contou-me que um dos camponeses dos arredores da Guarda lhe dissera: 177 Wolowski identifica-o como engenheiro, mas, de acordo com Busquets de Aguilar, Manuel Emídio da Silva nunca foi engenheiro, mas tão-somente um empreiteiro. WOLOWSKI, 1958-1960 (nota do ed.).


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– Querem-nos fazer acreditar que é muito extraordinário? Ora adeus! Geralmente, atrelam-se os cavalos à frente de uma carruagem; vós, senhores, colocastes os cavalos no interior da carruagem e pronto. Esta honrada gente tinha vindo de muitas léguas em redor para ver o monstro fumegante. A princípio, não queriam subir para as carruagens, mas, apesar de tudo, depressa se familiarizaram com o caminho-de-ferro e vão algumas vezes “ver o país”. Eu esperava encontrar os camponeses em trajos festivos. Nada disso. A população tem um aspeto macilento e pobre. Ninguém aqui adquiriu ainda as necessidades que a vida ativa cria nos países munidos de comunicações fáceis. As mulheres, as crianças, os velhos, os homens válidos corriam atrás do comboio real para ver a família dos soberanos. A Rainha, com a expressão da sua fisionomia melancólica e afável, produzia nestas gentes uma impressão de admiração simpática muito visível.

FIGURAS 90 e 91

Tipos da Beira PALHARES, 1850, n.º 24; SOUSA & MARQUES, 2004, figura 16

O Príncipe Real D. Carlos e o Infante D. Afonso, que são dois belos jovens louros, pareciam interessar muito os camponeses. Em cada estação, eu descia da minha carruagem e aproximava-me o mais perto possível do salão real, estudar as fisionomias e as impressões. Estas almas simples e honestas conservam no fundo do seu coração o culto da realeza e consideram o monarca como um ser quase sobrenatural.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 92

D. Maria Pia com o Príncipe Real D. Carlos e o Infante D. Afonso SILVEIRA & FERNANDES, 2009, figura 12

Era por isso que muitos camponeses se punham de joelhos ao avistá-lo. Eu observava-os durante muito tempo com o pescoço estendido na direção do comboio caminhando a toda a velocidade, as mãos juntas sobre o peito, seguindo, enternecidos, essa visão fugitiva. Têm para poder contar durante muitos anos aos seus netos a visita d’el-Rei. Santa Comba Dão está esplendidamente situada. Aqui a receção foi, como aliás em toda a parte, muito cordial, mas, sendo a estação uma das mais importantes, tinha muita gente. Em Carregal do Sal, uma senhora subiu ao salão-real para oferecer à Rainha um ramo de flores. Distribuiu-se também aos convidados uma poesia de um autor anónimo. Se esses versos são de um poeta de aldeia, então são ainda mais curiosos. Ei-los:


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Saudação O Carregal No dia da inauguração solemne de Linha Ferrea da Beira Alta. (Ao digno representante da Companhia.) Perante o facho intenso do progresso, Que em seus jorros de luz sobre as nações, Dissipa da ignorância o véo espesso, Não existem pequenas provoaçoes. O Carregal é, n’este via immensa, Que n’a Europa vae de polo a polo, Um jardim de Paris, ou de Florença, Pois pertence da Europa ao nobre solo. E a machina a vapor, galgando os montes, Tem do alado hypogripho a arrogancia; Une as terras, confunde os horisontes, E elimina o vocabulo – distancia. Transformam-se em cidades as aldeias, Todo o povo se torna cidadão. Da grande capital, que à luz das ideias Novas, se abriu – a civilisação. Salve vapor que nos visitas. Diz Por nós de povoação, em povoação, Que lhe abre os braços, e as sauda feliz O Carregal, o seu modesto irmão.


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E que em teu seio tépido, nas salas Communs que nos offereces, elle irá, De um dia a outro vêl-as e abraçal-as, E pedir-lhes que venham tambem cá. Cada terra lusindo os seus brasões Permutará os seus primores, seus dons, Cada qual tem seus meritos, florões Da industria propria, uteis, bons. Nos brindamos-lhes pomos deliciosos, Vinhos optimos, mil dons da agricultura, Lindos rios, jardins, bosques umbrosos, De um clima puro a copia, e a fartura.

Tendo já feito a descrição da linha, não quero repetir-me citando os nomes de todas as estações deste caminho-de-ferro e limitar-me-ei a dizer que em toda a parte a receção foi entusiástica. Às 7 h 20 m da tarde, o comboio chegou à estação de Mangualde, situada a cerca de 2,5 km da pequena cidade deste nome, onde se encontra o palácio da condessa de Anadia, que recebeu os soberanos durante três dias.

MANGUALDE

A receção em Mangualde revestiu-se de um estilo muito especial. Uma nobre família portuguesa devia receber suas majestades debaixo do seu teto. Aqui, verdadeiramente, apresentava-se a ocasião para estudar os costumes dos habitantes de todas as classes da sociedade. O Palácio de Mangualde foi construído no século XVII por Simão Pais, tio da família, comendador de Malta.


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O proprietário atual é o conde Manuel Pais, sob a tutela de sua mãe, a condessa viúva, filha do visconde de Torre de Moncorvo178, antigo representante de Portugal em Londres, falecido no seu posto em 1851. A condessa desposou em segundas núpcias o sr. Joaquim Ponces de Leão de Carvalho, deputado, filho mais velho de uma antiga família da província da Beira Alta, cujas propriedades não estão muito afastadas de Mangualde179. O palácio chama-se em português Casa dos Pais de Mangualde180. A condessa de Anadia teve três filhos do seu primeiro casamento. O mais velho, o conde Manuel de Sá Pais do Amaral, foi nomeado por sua majestade moço fidalgo da casa real; ao segundo filho, D. José, foi-lhe dado o título de visconde de Alverca181 ; quanto ao terceiro filho, D. Carlos182, quando foi apresentado a suas majestades, o Rei quis também conferir-lhe um título, mas a condessa sua mãe pediu ao Rei – que bem o queria –, em virtude da sua pouca idade, para diferir o favor real, não desejando aliás abusar da bondade do soberano, que honrava já bastante toda a família, aceitando a hospitalidade em sua casa. A vila de Mangualde tinha sido magnificamente embandeirada e iluminada com muito gosto. Na entrada do palácio, o dono e a dona da casa esperavam os soberanos. A condessa estava de chapéu, o que significava que, desde esse momento, o Rei e a Rainha se tornavam os únicos senhores do palácio. Os convites para o jantar eram feitos em nome do Rei. O Palácio de Mangualde, tornado histórico em Portugal pela estadia da Família Real, merece uma descrição especial. É um palácio com quatro fachadas diferentes em pedra dura admiravelmente cinzelada e cuja construção data do fim do século passado. 178 Tratava-se de Manuel Pais de Sá do Amaral Pereira e Meneses Quífel Barbarino, quinto conde de Anadia. A condessa viúva era, como vimos, Ana Maria Juliana de Morais Sarmento. O visconde de Torre de Moncorvo, pai da anterior, era Cristóvão Pedro de Morais Sarmento. CORRÊA, 1985, vol. 3, t. 1: 805. ZUQUETE, 1989, vol. 2: 279; vol. 3: 444 (n. do ed.). 179 Na verdade, Joaquim Augusto Ponces de Carvalho, conde de Vilar Seco. ZUQUETE, 1989, vol. 3: 530 (n. do ed.). 180 Atualmente, e já ao tempo da tradução de Busquetes de Aguilar, Palácio Anadia. WOLOWSKI, 1958-1960 (n. do ed.). 181 Tratava-se de José de Sá Pais do Amaral Pereira e Menezes de Almeida e Vasconcelos Quífel de Barbarino. Era o terceiro titular do viscondado de Alverca, depois da sua avó Maria Luísa de Sá Pereira de Menezes de Melo Sotomaior e do seu bisavô José António de Sá Pereira e Meneses, que por sua vez havia desposado a segunda condessa de Anadia, Maria Joana de Sá e Meneses. CORRÊA, 1985, t. 1: 628-629. PINTO, 1991, t. 1: 91-97. ZUQUETE, 1989, vol. 2: 265-266 e 278 (n. do ed.). 182 Carlos de Sá Pais do Amaral Pereira e Menezes. Tornar-se-ia, mais tarde, o primeiro conde de Alferrarede. Por curiosidade o segundo titular do condado de Alferrarede (e também herdeiro do condado de Anadia) seria Miguel Pais do Amaral, conhecido empresário dos media. CORRÊA, 1985, t. 1: 193 e 223. ZUQUETE, 1989, vol. 2: 226227 (n. do ed.).


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A entrada possui largas escadarias de granito, talvez as mais belas de Portugal, e as paredes estão ornamentadas com quadros de faiança (em português, azulejos), representando caçadas antigas, e alguns grandes quadros a óleo. O primeiro andar é composto de seis salões, um dos quais é notável pelas pinturas no teto. As paredes são pintadas a fresco por artistas italianos. O mobiliário é de um velho jacarandá estofado em veludo. A biblioteca, uma sala de jantar com belos estuques, uma enorme cozinha, e onze quartos. Num dos quartos, abrindo-se um armário, aparece uma pequena escada oculta que conduz a uma casa de banho. O segundo andar divide-se em seis enormes salões, uma sala de jantar e treze quartos. O primeiro hall de entrada, que é ao mesmo tempo uma sala de bilhar, é notável pelos seus azulejos, representando temas mitológicos de tamanho natural; o mobiliário é antigo, o dos outros salões, moderno. A sala de visitas tem bons azulejos, que representam o globo terrestre de cabeça para baixo. Ainda aqui o mobiliário é antigo. As mesas e os espelhos são de um trabalho em madeira verdadeiramente refinado e vêem-se também magníficas porcelanas das Índias. Nesta mesma sala, há alguns excelentes quadros da família de Anadia, por Pellegrini. Há ainda esplêndidas salas nas águas-furtadas. Vastos e grandes pátios, onde se encontram as cavalariças e as cocheiras, rodeiam o palácio, que tem um aspeto senhorial de uma grande esplendor.

FIGURA 93

O Palácio Anadia PEREIRA, 2012a: 38


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Os aposentos do Rei e da Rainha

O quarto da Rainha é de damasco amarelo (cor de ouro) e o toucador forrado de azul celeste com ramos de rosas. Notam-se bonitas cómodas italianas, antigas, com grandes placas de cobre e incrustações de prata. Nas paredes estão pendurados quadros de grandes mestres: Rafael, Bassan, Velásquez e de pintores portugueses, Vieira, etc., etc. O quarto do Rei tem bonitos móveis antigos; nas paredes estão pendurados os retratos dos antigos reis de Portugal. O parque

O parque tem 3 km de circunferência e possui grandes renques de árvores, tanques, lagos, estufas de ananases e de outros frutos. Em celeiros bem construídos, depositam-se, todos os anos, 18 mil medidas de milho e de trigo, provenientes das diferentes propriedades que são contíguas à casa. Compara-se o parque de Mangualde com o do Buçaco. Contém uma grande variedade de árvores. O convento dos frades (monges), situado no parque, é uma construção com celas, um refeitório e uma capela, onde monges de madeira de tamanho natural, movidos por molas, andam, falam, respondem a algumas perguntas e fazem de vez em quando alguns movimentos.

FIGURA 94

Real Mosteiro de Santa Maria de Maceira Dão Site da Câmara Municipal de Mangualde


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Em 1795, batizaram os renques de árvores e as azinhagas do parque com diferentes nomes. Há 35 e este número indica quão espaçoso é o parque. A casa tem cinco varandas, das quais a maior, que abre para a sala de visitas, possui um teto pintado a fresco de uma beleza notável. As fachadas têm 120 janelas. O Palácio de Mangualde possui também uma capela bastante grande, com duas tribunas com uma porta que dá para a rua. Reza-se missa aos domingos e dias festivos. A capela está consagrada a S. Bernardo. A fachada principal do Palácio de Mangualde está virada para a rua principal da cidade, de maneira que o edifício se encontra no centro da urbe.

Hospitalidade portuguesa

Os portugueses – já o disse – são muito hospitaleiros. É uma das virtudes de que se podem vangloriar. Quando o comboio real entrou na estação de Mangualde, produziu-se um tal movimento de curiosos que me perdi de novo dos meus companheiros. Fiquei sozinho na gare. Toda a gente se precipitava sobre as carruagens para seguir o cortejo real e poder repousar, depois de um dia que fora de um calor de tal forma excessivo, que todos estavam abatidos. A Rainha deve ter-se ressentido, pois a partida, que estava fixada para o dia seguinte, foi adiada para daí a dois dias. Tinha-se, portanto, que passar um dia inteiro nesta modesta vila. Numa tão pequena localidade, as carruagens não podiam ser numerosas. Muitas pessoas tiveram de caminhar a pé até à vila, situada, como tive ocasião dizer mais atrás, a uma distância de pelo menos 2,5 km. Tive, depois de ter encontrado com dificuldade um homem para carregar a minha bagagem, de fazer este fatigante trajeto a pé. Chegado a Mangualde era necessário encontrar uma pousada. Contam-se dois ou três hotéis, e que hotéis, meu Deus! Quartos em parte alguma! Um estalajadeiro aceitou guardar a minha bagagem por condescendência e foi preciso resignar-me a alojar-me no grande hotel da Estrela, como espirituosamente batizou, no dia seguinte, o ajudante-de-campo do ministro da guerra e presidente do conselho, tenente de Engenharia, sr. António Maria de Fontes Pereira de Melo Ganhado, deputado, quando soube que eu me tinha passeado toda a noite nas ruas da cidade.


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Este jovem oficial é um homem muito inteligente e sagaz. Devo-lhe o ter conhecido muitas coisas relativas a Portugal183. A obrigação de não dormir não constitui razão suficiente para igualmente deixar de jantar. Ora, as mesas estavam sitiadas. Esperei até à meia-noite e meia antes que me pudessem servir alguma coisa. Vou poupar-vos ao menu. Estava esfomeado, atrozmente esfomeado e, apesar disso, achei a minha refeição intragável. O estalajadeiro e o pessoal de serviço não podiam contentar toda a gente. Depois de ter obtido, com muitas dificuldades, alguns ovos, queijo e vinho, fui-me deitar… na rua. Ao acontecimento não faltava pitoresco. As ruas estiveram muito animadas até às 2 h da manhã e a multidão permanecia em torno de onde se alojava a Família Real. E depois, esses honrados camponeses vindos das proximidades, não podendo resistir mais à fadiga, organizavam acampamentos nos locais públicos. Era muito pitoresco. O luar ajudava a noite a afigurar-se relativamente amena. Cada grupo tomava posse de um canto da praça. Estas gentes estendiam-se ao comprido a ressonar e davam-me o desejo de as imitar. Por volta das 2 h da manhã, encontrei os srs. João Baptista Borges, redator do Diário de Notícias de Lisboa; Branco Rodrigues, delegado da Associação dos Homens de Letras e Jornalistas de Lisboa; Eduardo de Abreu Gonçalves, do Primeiro de Janeiro do Porto; e João de Macedo Santos, da Tribuna Popular de Coimbra, jornalistas portugueses que se queixavam do mesmo mal que eu. Era já alguma coisa passear juntos, conversando. Enfim, amanheceu. Nós estávamos extenuados de fadiga. Quando fomos ao hotel, vimos um grande número de pessoas deitadas no chão e nos bancos da sala de jantar. Precipitámo-nos sobre as cadeiras e esperámos assim o pequeno-almoço. Às 2 h da tarde, devia realizar-se uma receção no palácio e a Rainha, que não estava nada indisposta, mas necessitava somente de repouso, devia assistir. Mangualde pertence ao distrito de Viseu. O governador civil, o sr. visconde de Guedes Teixeira, é o homem mais ativo e mais enérgico que encontrei em todo o Portugal. Foi o visconde de Guedes Teixeira, com quem contraí uma verdadeira dívida de reconhecimento pela afabilidade com que me fez as honras do seu distrito, quem apresentou as autoridades e os habitantes da região a suas majestades184. À hora anunciada, os vastos salões do palácio encheram-se de gente. 183 Era o sobrinho de Fontes de Pereira de Melo. Ao contrário do que refere Wolowski, Fontes de Pereira de Melo Ganhado era um homem que não devia muito ao talento, tendo subido na carreira à custa da confiança do seu poderoso tio. MÓNICA, 2005-2006, vol. 2: 291 (n. do ed.). 184 José Augusto Guedes Teixeira, visconde de Guedes Teixeira, era um advogado natural de Lamego e filiado no Partido Regenerador. MÓNICA, 2005-2006, vol. 3: 896-897 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 95

José Augusto Guedes Teixeira, visconde de Guedes Teixeira Site geneall.pt

Tive a honra de ser apresentado pelo sr. Serpa, ministro dos Negócios Estrangeiros, à dona da casa, sra. condessa de Anadia, que me deu, muito cortesmente, autorização para visitar o palácio depois da partida da Família Real. A receção começou para os locais pelo beija-mão e, por volta das 3 h 30 m, o Rei veio à sala de visitas falar particularmente com as pessoas que conhecia. Sua majestade conversou longamente com os diferentes administradores do caminho-de-ferro da Beira Alta. A ausência do diretor da companhia, o sr. Bartissol, e do empreiteiro-geral, o sr. Alex Duparchy, foi notada. Estes dois senhores – cada um na sua área prestou tantos serviços à nova via de comunicação aberta em Portugal – furtaram-se, por um excesso de modéstia, aos agradecimentos que o monarca não teria deixado de lhes exprimir, pois a linha desde a Figueira da Foz até Mangualde, que é a secção do sr. Duparchy, contém as obras de arte mais numerosas e mais difíceis e está admiravelmente bem construída. Todas as pessoas o verificaram e seria um conjunto de elogios para os srs. Bartissol e Duparchy e para os engenheiros que os secundaram nas suas funções. Na receção, encontrei os meus companheiros de viagem – o deputado sr. Ângelo Sárrea Prado, o sr. Jaime Artur da Costa Pinto, um outro deputado, e o sr. Adriano Cavalheiro185, médico-cirurgião na Universidade – que me perguntaram onde me tinha alojado. Quando souberam a aventura que vivi, foram, sem meu conhecimento, avisar o presidente do Conselho, o sr. Fontes, e o seu colega, o sr. Tomás Ribeiro, ministro do Reino. Cito todos estes nomes de propósito, para melhor mostrar que, desde o homem 185 Ângelo Sárrea de Sousa Prado, deputado, notabilizou-se na história ferroviária de Portugal por ter sido um dos projetistas da linha de Luanda a Ambaca em Angola. Adriano Emílio de Sousa Cavalheiro era também deputado, além de médico, não na Universidade, como refere Wolowski, mas na zona de Lisboa, tendo ficado célebre como pediatra. MÓNICA, 2005-2006, vol. 1: 774-775; vol. 3: 376-379 (n. do ed.).


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mais ilustre ao mais humilde, em Portugal, todos são muito diligentes para com os estrangeiros. Era um concerto de censuras: – Porque – disse-me o presidente do conselho – não veio acordar-me? Tê-lo-ia alojado imediatamente. Num piscar de olhos, fui rodeado e apresentaram-me ao administrador do concelho de Mangualde, o sr. Francisco de Albuquerque Couto, que me conduziu à sua bela casa e me instalou num quarto muito confortável. Soube mais tarde que o sr. Albuquerque Couto, que alojava em sua casa o governador e outras personalidades, não tinha hesitado em me ceder o seu próprio quarto186. O sr. visconde de Torre de Moncorvo, irmão da condessa de Anadia187, que tinha

FIGURA 96

FIGURA 97

Francisco de Albuquerque Couto

A casa de Francisco de Albuqerque Couto, onde se terá alojado Wolowski

ALVES, 1993

ALVES, 1993

como hóspedes o sr. Serpa Pimentel, ministro dos Negócios Estrangeiros, e o general Castelo Branco188, comandante da divisão de Viseu, com o seu chefe de Estado-Maior, o tenente-coronel sr. Eduardo Ildefonso Azevedo, convidou-me para a sua mesa, durante toda a duração da minha estadia em Mangualde. 186 Francisco de Albuquerque Couto era um filho de Mangualde, onde nasceu em 1814. Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra e regressou a Mangualde, onde estabeleceu uma banca de advocacia. Mais tarde, desempenhou o cargo de administrador do concelho, tendo contribuído grandemente para o desenvolvimento da sua vila natal. ALVES, 1993 (n. do ed.). 187 O segundo visconde de Torre de Moncorvo era Alexandre Tomás de Morais Sarmento, filho do já citado Cristóvão Pedro de Morais Sarmento, primeiro titular daquele viscondado, que falecera em 1851. Era apenas meio-irmão da condessa de Anadia, uma vez que não partilhavam a mesma mãe. No entanto, a hospitalidade que ele poderia oferecer aos seus convidados era péssima, pois, em 1882, o visconde da Torre de Moncorvo estava morto há mais de dez anos. Wolowski provavelmente referir-se-ia ao segundo barão de Torre de Moncorvo, João Pedro de Morais Sarmento, também ele filho do primeiro visconde de Torre de Moncorvo, meio-irmão da condessa de Anadia e – mais importante – bem vivo em 1882 (faleceria em 1903). ZUQUETE, 1989, vol. 2: 278; vol. 3: 444 (n. do ed.). 188 Provavelmente, Joaquim José da Silva Castelo Branco. COSTA, 2005: 130-131 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Devo ao infeliz acaso que me proporcionou toda uma noite de insónia, o prazer de ter podido apreciar o ardor da hospitalidade portuguesa. A sua solicitude para comigo rapidamente me fez esquecer as minhas horas de vigília e de fadiga. Não posso recordar-me senão da benevolência que manifestaram a um estrangeiro. Sim, Portugal é verdadeiramente um país amável, povoado por pessoas ainda mais amáveis. Depois de quatro meses de estadia, tenho apenas um lamento: o de ter saído deste canto da Europa, cujo clima e afabilidade dos seus habitantes me fizeram amar como uma outra pátria.

DE MANGUALDE À FRONTEIRA ESPANHOLA

Um dia de descanso em Mangualde bastou para fazer desaparecer a fadiga da Rainha e, no dia seguinte, retomou-se o caminho para visitar a segunda secção da cons-trução, do sr. Dauderni, estendendo-se até à fronteira com Espanha. Esta parte de Portugal tem estado, até hoje, de alguma forma separada do resto do mundo. À medida que se afasta do oceano e que se aproxima de Espanha, o país é menos cultivado, o solo torna-se pedregoso, árido. De vez em quando, a vista encanta-se com algum vale arrebatador. Estes espetáculos são raros e, da Guarda a Vilar Formoso, o aspeto da região não possui nada de atraente. As pequenas povoações ou centros habitacionais mais importantes encontram-se a uma distância de 4, 5 e algumas vezes de 15 km do traçado do caminho-de-ferro. A viagem é ainda mais monótona. A estação de Gouveia distinguiu-se verdadeiramente. A massa popular estava acampada sobre os rochedos muito altos que ladeiam a linha. Uma latada humana em anfiteatro! O panorama valia a pena e o pincel de um pintor de talento teria obtido curiosos efeitos. Celorico, como todas as outras estações, estava em festa. Imensa multidão por toda a parte. Camponeses e camponesas. O comboio vindo da fronteira que cruzámos nesta estação estava embandeirado. A Câmara Municipal de Pinhel apresentou-se com uma soberba bandeira branca magnificamente bordada com as armas da cidade. Uma tribuna estava cheia de senhoras, a maior parte delas muito bonitas. Às 7 h 41 m da manhã, o comboio real entrava na estação da Guarda, situada a 5 km da cidade com o mesmo nome, capital de distrito.


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O Rei devia, no regresso da fronteira, onde a companhia ofereceu um almoço à Família Real e aos convidados, vir visitar a cidade da Guarda. Deixei o comboio real nesta estação. Não posso assim descrever visualmente a chegada à fronteira em Vilar Formoso. Contaram-me que a receção foi extraordinariamente calorosa. Além dos camponeses vindos de muitas léguas em redor, os espanhóis atravessaram a fronteira em grande número e notavam-se bastantes oficiais do exército espanhol fardados. A estação estava muito bem decorada e uma recolha de máquinas foi transformada em sala de jantar, enfeitada com muito gosto. O sr. Bartissol, diretor da companhia, merece as nossas mais sinceras felicitações pelos cuidados que tomou em viagem por todos os convidados do Rei e da Companhia. De Mangualde à Guarda e da Guarda a Vilar Formoso, 122 km, a linha foi construída, já o disse mais acima, por um segundo empreiteiro, o sr. Dauderni. O sr. coronel Eça, diretor da fiscalização da linha, conquistou igualmente as simpatias junto do pessoal do caminho-de-ferro189. Cometi uma injustiça omitindo o seu nome. Aqueles que desempenharam uma qualquer parte relevante no estabelecimento em Portugal deste caminho-de-ferro de utilidade internacional são todos referidos neste relato.

GUARDA

Deixando os meus companheiros do comboio real prosseguir a sua viagem até à fronteira, empreguei o tempo que me restava para visitar a interessante cidade da Guarda. O sr. Tomás Ribeiro, ministro do Reino, que o mundo das letras tem o direito de reivindicar, porque é um escritor e um poeta de grande talento, teve a gentileza de me confiar aos corteses cuidados do governador civil da Guarda, o sr. José Joaquim de Sousa Cavalheiro190. 189 Bento Fortunato de Moura Coutinho de Almeida de Eça, engenheiro de Esgueira (Aveiro), nascido em 1827. Desempenhou um importante papel no estudo e na fiscalização da linha da Beira Alta, tendo também trabalhado no ramal de Viseu, na via-férrea de Barca de Alva a Salamanca, na linha da Beira Baixa e ainda nos projetos de ligação entre os caminhos-de-ferro do Douro e da Beira Alta e dos ramais da Covilhã e Gouveia. AHMOP. Processos individuais (n. do ed.). 190 Natural de Vila Nova de Foz Côa, era formado em Direito. Depois uma passagem pela vara de Lisboa, tornou-se governador civil da Guarda, nomeado pelo governo do partido que apoiava, o partido regenerador. Paulatinamente, tornou-se chefe desta agremiação partidária na Guarda. MÓNICA, 2005-2006, vol. 1: 775-776. RIBEIRO, 1901 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 98

Estação da Guarda PEREIRA, 2012a: 39

FIGURA 99

José Joaquim de Sousa Cavalheiro, governador civil da Guarda RIBEIRO, 1901

Este distinto funcionário, sendo obrigado pelos deveres do seu cargo a acompanhar suas majestades, procurou na estação alguém que conseguisse falar um pouco francês e fez sinal a um senhor que se colocou à minha disposição, com o obséquio habitual dos portugueses. Era o sr. João Manuel Martins Manso, professor de Legislação no liceu da Guarda191. A cidade da Guarda está admiravelmente situada no cimo de uma montanha. Uma magnífica estrada contorna essa montanha. Mas a carruagem era amiúde obrigada a ir a passo, de tal forma o declive é acentuado. O meu amável cicerone compreendia bastante bem francês, mas falava menos 191 Existiu de facto um João Manuel Martins Manso, licenciado em Direito, que ensinou no liceu da Guarda, não Legislação, mas sim Filosofia e Literatura. Era natural de Mogadouro, onde nasceu em 1841, mas radicou-se na Guarda, onde fora bispo o seu tio D. Manuel Martins Manso. Pertencia também ao Partido Regenerador e, segundo o site da Câmara Municipal da Guarda, sucedeu em 1890 a José Joaquim de Sousa Cavalheiro como governador civil deste distrito. FONTE, 1998-2003, vol. 1: 336 (n. do ed.).


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bem, daí os esforços inauditos para se fazer compreender e manter a conversação. Chegámos enfim ao cimo da montanha, onde um arco de triunfo feito com plantas se nos apresentou antes de tudo. Era ali que a Câmara Municipal devia esperar a chegada dos soberanos. A estrada encontrava-se repleta de flores e de verdura. O sr. Martins Manso conduziu-me em primeiro lugar ao hotel. Não havia quarto disponível. O hotel na Guarda não é mau e a comida é suportável. A cidade é aparentemente muito limpa. As ruas principais estavam todas enfeitadas e no percurso erguiam-se quatro arcos de triunfo. O primeiro, na entrada da cidade, feito de plantas, os outros construídos pela Associação Comercial, pela Câmara Municipal e pela Junta Geral (que representa o distrito). Uma destas portas triunfais era dominada por uma estátua no seu topo, representando a indústria. A praça Camões é um magnífico terreiro bastante espaçoso, no qual está situada a Sé. Fomos visitá-la. A Sé foi acabada no reinado de D. João III192. Na entrada da Catedral, encontrámos o sr. Lúcio Augusto de Andrade, secretário do administrador, que se juntou a nós para nos fazer as honras da cidade. A Sé da Guarda está dividida em três naves. O altar-mor encontra-se guarnecido de imagens douradas, entre outras, a de Jesus Cristo conduzindo a cruz. As cadeiras dos cónegos são de madeira preta com dourados. Uma escada enfeitada com azulejos conduz ao coro, cujas cadeiras são em madeira trabalhada. As paredes do coro estão cobertas de uma espessa cor verde, sinal evidente de antiguidade. O exterior da igreja é velho193. No cimo, existem pequenas torres de pedra em estilo piramidal. Ao longe, estas numerosas torres dão à igreja a ilusão do estilo gótico. Quando o céu está límpido, a vista estende-se até Espanha, sobretudo se nos colocarmos no topo do telhado do lado da praça Camões. A porta principal tem duas colunas em espiral, de um estilo muito antigo, esculpidas em pedra e de um efeito muito gracioso. Está colocada entre duas torres com janelas góticas. A porta lateral, do mesmo estilo, não tem colunas. Duas pequenas torres mais estreitas que as que orlam a porta principal, flanqueiam-na dos dois lados. O Castelo da cidade é uma torre próximo da Sé, num outeiro sem vegetação. A Torre dos Ferreiros, uma atalaia com duas portas que se abrem para duas ruas, conta-se entre as curiosidades da cidade. 192 Mais precisamente em 1540. BORGES & CONCEIÇÃO, 1990: 8 (n. do ed.). 193 Por esta altura, a Catedral apresentava realmente um aspeto desolador, próximo da ruína. Só em 1899 se iniciaram obras de restauro. Wolowski foi simpático. BORGES & CONCEIÇÃO, 1990: 9 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURAS 100, 101 e 102

Sé da Guarda, porta principal e nave central antes de 1899 BORGES & CONCEIÇÃO, 1990: 26, 29 e 36

FIGURA 103

FIGURAS 104 e 105

Cadeiral do coro antes de 1899

Torre dos Ferreiros e Castelo da Guarda

BORGES & CONCEIÇÃO, 1990: 37

Site da Câmara Municipal da Guarda

A Igreja da Misericórdia, com as suas duas torres, não tem nada de especial. Ao lado, encontra-se o hospital civil, fundado pela cidade, no qual existem 60 camas. O número de doentes atinge por ano cerca de quatro mil. Está muito bem conservado. O palácio do bispo, construído com um andar e janelas antigas, é contíguo ao Seminário. A cidade termina no campo de S. Francisco com um quartel de Infantaria. O palácio do governador civil não tem nada de especial. Os aposentos não são grandes, de modo que a merenda oferecida a suas Majestades e aos convidados não pôde efetuar-se na mesma sala. O salão, onde estava colocada a mesa real, não podia comportar mais que 24 pessoas. A outra sala de jantar tinha 36 lugares. Muitos convidados não conseguiram assim arranjar lugar e muitos, como eu, tiveram de deixar a Guarda sem jantar.


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FIGURA 106

Igreja da misericórdia Site da Câmara Municipal da Guarda

As ruas onde devia passar o cortejo estavam enfeitadas com relva e ornamentadas com lampiões e flores penduradas em postes. Depois do nosso passeio pela cidade, o meu amável cicerone conduziu-me à praça Camões, a casa do sr. Manuel Lopes de Sousa, habitada pela sra. Teresa Augusta Gomes, onde pude ver da varanda a chegada do cortejo real e o esplêndido espetáculo da animação na praça. Havia na residência da minha anfitriã uma numerosa companhia: muitas senhoras, das quais nenhuma sabia falar francês. Falámos por gestos. Estas amáveis pessoas, tendo sabido que eu era um jornalista estrangeiro, não quiseram de maneira nenhuma permitir que eu ficasse colocado atrás delas. Como eu insistisse e elas ameaçassem abalar, fui obrigado a ceder e a tomar o melhor lugar da varanda. À 1 h 40 m da tarde, os sinos badalaram a chegada do Rei. A turba abria alas e soltava vivas. Nunca vi, em parte alguma, maior entusiasmo. Estava verdadeiramente surpreendido de encontrar na Guarda várias fanfarras das aldeias do distrito. São associações que se formam como em França para cultivar a arte da música. Assim, em Teixoso, onde há cerca de três mil habitantes e 750 casas, os populares formaram uma orquestra muito bem constituída, cujos membros usam um uniforme pitoresco: casaco preto com peito azul e enfeites amarelos e barrete azul. Uma verdadeira banda militar.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

A mencionar ainda a banda de Manteigas e a de Castanheira, pequenas localidades bastante afastadas da Guarda. Quem podia pensar que os portugueses fossem artistas tão talentosos194?

A FAMÍLIA REAL EM VISEU

Regresso da inauguração

A partida da Guarda efetuou-se à hora prevista. A distância de 5 km, que separam esta cidade da sua estação, impediu uma grande parte da população de se encontrar no cais no momento da partida do comboio real. O cortejo passou na Guarda, tanto na ida como na volta, no meio de aclamações incessantes da multidão disposta por todo o percurso. Retomei o meu lugar no comboio real que tinha deixado, como se lembram, na Guarda, sem ir a Vilar Formoso, à fronteira. A viagem de inauguração atingia assim o seu fim e o Rei ia iniciar uma visita a Viseu, Porto, Régua e Lamego. Por volta das 8 h da noite, o comboio real chegou a Mangualde, onde uma multidão numerosa aguardava. Não tive, desta vez, de fazer o trajeto a pé até à vila. O general de divisão, o sr. Castelo Branco, ofereceu-me cordialmente um lugar na sua carruagem. Mangualde estava iluminada e enfeitada. Era a terceira noite que os soberanos de Portugal deviam passar no palácio da sra. condessa de Anadia e de seu marido, um homem sincero, o sr. Leão de Carvalho, que fazia as honras da sua casa com um zelo infatigável. No dia seguinte, às 8 h da manhã, deixaríamos o caminho-de-ferro para fazer de carruagem o trajeto que nos separava de Viseu. Viseu, sede do governo civil, é célebre sobretudo pelos quadros de Grão Vasco, antigo pintor português, cujas obras contam mais de 300 anos. Todos os veículos disponíveis em muitas léguas em redor estavam tomados. Era difícil antecipar-me a toda a gente em Viseu. Uma grande quantidade de pessoas simpáticas ofereceram-me um lugar na sua carruagem, mas ninguém queria deixar Mangualde antes da partida do Rei. 194 Para outros detalhes sobre a festa da chegada do comboio e da Família Real à Guarda, ver PISSARRA, 2011: 117119 (n. do ed.).


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Ora, eu desejava a todo o custo chegar a Viseu com bastante tempo para me informar do programa das festas e estar pronto para testemunhar qualquer acontecimento interessante. Tive novamente de importunar as autoridades. Tivemos uma reunião com o sr. Tomás Ribeiro, ministro do Reino, e o visconde de Guedes Teixeira, governador civil, para resolver este problema bicudo: encontrar um veículo. O sr. visconde de Guedes Teixeira teve então uma ideia brilhante: – Partirá – disse-me –, mas é homem para sacrificar o seu sono e expor os seus ossos aos solavancos de um veículo primitivo e pouco cómodo? À minha resposta afirmativa, pediu-me para o seguir. Dirigimo-nos a casa do nosso anfitrião, o sr. Albuquerque Couto, presidente da Câmara de Mangualde, e aí o sr. governador civil informou-o que eu partiria nessa mesma noite e quis amavelmente servir-me de intérprete para exprimir ao meu anfitrião a minha gratidão pela generosa hospitalidade com que me tinha prendado, cedendo-me – quero repeti-lo uma vez mais – a sua própria cama. Quanto ao que me restava fazer, o governador civil disse-me: – Prepare as suas bagagens para a 1 h da noite. O comissário de polícia virá buscá-lo e conduzi-lo-á numa das carruagens que transportará a força de polícia a Viseu… – Preso, então? – Colocá-lo-emos em liberdade assim que chegue a Viseu. Era, percebia-o bem, o único meio de transporte que havia à nossa disposição. Quanto ao infatigável governador civil, pôs-se a escrever. Enfim, o comissário de polícia apareceu. Não sabia francês. O governador civil deu-lhe as suas instruções e entregou-me uma carta. – É uma apresentação – disse-me – para um cidadão de Viseu que, espero, terá talvez ainda uma cama para lhe oferecer. Todos os convidados receberam cartões de alojamento. É, portanto, difícil encontrar um poiso. Desculpe-o se não ficar bem alojado. Que inútil precaução, a partir do momento em que falamos da hospitalidade em casa de um português? Partimos. O comissário de polícia apontou-me com o dedo os polícias, que segui obedientemente. Era noite. Caminhei assim por algumas ruas, no meio de polícias fardados, e os transeuntes retardatários que me encontravam podiam tomar-me por algum malfeitor fugido da prisão. Um pouco fora da povoação, na estrada real de Viseu, a força parou e fizeram-me sinal para aguardar. Era ali, na estrada real, que se deviam juntar todos. Foi preciso, enquanto se esperava, passear em pleno campo. Por fim, por volta das 3 h da noite, as carruagens destinadas a transportar o esquadrão chegaram. Fizeram-me sinal para subir. E o pesado carro caminhou durante três longas horas pela estrada que conduz a Viseu.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Os meus pobres companheiros de acaso estavam extenuados. A cada momento recebia nos meus braços um deles, que o sono entorpecia e que escorregava do seu banco… Eu estava quase tão fatigado como eles. Chegámos, enfim. Era já dia. 6 h 15 m da manhã soavam no grande relógio. O chefe da força fez-me descer numa grande praça e chamou um carregador, a quem deu a minha bagagem. Toda a nossa conversação se fazia por gestos. Um dos polícias recebeu ordem de me acompanhar até casa do meu anfitrião. Soube então, olhando para a carta de apresentação, que me dirigia para casa do sr. Joaquim Pereira da Silva, proprietário de Viseu. Uma casa singular em Viseu

Alguns minutos depois, batia à porta do meu anfitrião. O guia tinha desaparecido. Uma criada abriu a porta. Não podendo explicar-me, entreguei-lhe a carta. O dono da casa apareceu depressa, a cabeça embrulhada num lenço. Estava doente e envolvia-se em ligaduras. Que bom e digno homem, este sr. Joaquim Pereira da Silva! Nem uma palavra de francês. Mas, como era um homem expressivo, como se agitava com muitos gestos, pronunciando palavras, cujo sentido eu mal compreendia. Num instante, desembaraçou-me da minha manta, enquanto as criadas levavam a minha bagagem, e introduziu-me no salão. Apresentei-lhe, por minha parte, tanto quanto me era possível, mil desculpas pelo transtorno (dérangement) que lhe causava. – Não dérangement, não! – e tomando-me pela mão, levou-me a um outro compartimento. Era o quarto de dormir que me fora destinado. Depois, puxando pelo seu relógio, indicou-me que às 8 h viria acordar-me para tomar o pequeno-almoço e levar-me a ver a entrada do Rei. A porta voltou a fechar-se. Eu tinha sido levado pelas festas da inauguração a tomar partido da hospitalidade de uma família portuguesa, numa cidade bastante importante, mas que não estava habituada a ver muitos estrangeiros. Os que vinham visitar a cidade e os quadros de Grão Vasco instalavam-se nos hotéis e não se punham em contacto com os habitantes, como acontece vulgarmente nas grandes cidades ligadas por caminho-de-ferro. Esta manifestação sincera de hospitalidade foi para mim uma experiência completamente nova. Às 8 h, o dono da casa veio acordar-me de um sono profundo. Vesti-me à pressa e fui para a sala de jantar.


Hugo Silveira Pereira

O sr. Joaquim Pereira da Silva apresentou-me a sua esposa e às suas duas filhas, duas jovens e encantadoras meninas. Mas ninguém, infelizmente, falava francês. Conversámos por gestos. Serviram-me à mesa com a melhor boa vontade, procurando ler nos meus olhos se todos aqueles pratos portugueses me agradavam. Era verdadeiramente uma preocupação para esta família saber se eu estava satisfeito. O sr. Joaquim Pereira da Silva tinha ainda em sua casa um segundo hóspede, o sr. José de Sales Mendonça e Silva, que escreveu ele próprio o seu nome, como recordação, no meu caderno: Escrivão da Administracão do Concelho de Vizeu. Depois do almoço, saímos os três juntos. A carruagem pertencente ao meu anfitrião estava já atrelada em frente à porta. Partimos a grande trote. Já a população começava a aglomerar-se nas ruas embandeiradas do percurso por onde devia seguir o cortejo real. Um grande número de carruagens fez como nós e fizeram 4 ou 5 km pela estrada ao encontro do Rei. Uma interminável fila de diversos veículos seguia assim pela estrada. De repente, a guarda avançada da escolta apareceu. As carruagens deram a volta num piscar de olhos e dispuseram-se na estrada – as pessoas puseram-se de pé nos carros e a Família Real foi saudada com entusiásticos vivas. Os peões esperavam nas proximidades da cidade e faziam fila dos dois lados da estrada. Não descreverei esta receção. Limitar-me-ei a dizer que foi tão brilhante e tão calorosa como nas cidades anteriores. Dizia-se que o partido hostil ao governo do sr. Fontes faria algumas manifestações contra si, mas teve o bom gosto de se abster de tal. Tudo se passou pois de uma forma irrepreensível, como se deve fazer sempre que se recebe um convidado. A Família Real hospedou-se no palácio do sr. António de Albuquerque, um partidário de D. Miguel. O sr. Albuquerque ofereceu a sua moradia ao Rei, mas, para não renegar as suas convicções, deixou Viseu durante a estadia dos soberanos em sua casa. Foi o seu sobrinho quem fez as honras195. 195 D. Miguel era filho do Rei D. João VI e irmão mais novo de D. Pedro IV de Portugal (I do Brasil). Quando D. João VI morreu em 1826, deveria suceder-lhe D. Pedro, como filho varão mais velho. No entanto, este já se tinha tornado imperador do Brasil, pelo que não poderia assumir o trono luso. O imperador abdicou assim do seu direito à coroa portuguesa em favor da sua filha Maria da Glória (futura D. Maria II), com quem se casou D. Miguel, seu tio, que se tornou assim regente do Reino até que sua esposa e sobrinha atingisse a maioridade. D. Miguel jurou ainda a carta constitucional de 1826, que identificava Portugal como uma monarquia parlamentar. Contudo, o regente não era partidário das ideias liberais e em cortes fez-se proclamar rei absoluto de Portugal. Esta usurpação desencadeou uma guerra civil entre apoiantes do liberalismo e de D. Pedro e partidários do absolutismo e de D. Miguel. Em 1834, o conflito terminava com a vitória dos liberais. Foi então assinada a convenção de Evoramonte, que, entre


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Receção em Viseu

O programa do primeiro dia da estadia em Viseu era muito fatigante. Receção no palácio às pessoas mais importantes da cidade, autoridades e portugueses vindos dos arrabaldes ao encontro de suas majestades. Nesta receção, tive a honra de ser apresentado em audiência particular ao Príncipe Real D. Carlos, pelo sr. Fontes, presidente do Conselho de Ministros. Tenho a assinalar nesse dia duas homenagens feitas à Rainha. As homenagens realizadas por mulheres têm o dom de impressionar sempre mais. Quando a Família Real se dirigiu à Sé, muitas mulheres do povo rodearam a carruagem real e seguiram-na dando vivas ao “ anjo da caridade” e à “ mãe dos pobres”, pois tais são os nomes que se dão geralmente à Rainha de Portugal. Muitas destas boas mulheres choravam de alegria e era um espetáculo impressionante ver a expressão deste entusiasmo cheio de ingénua sinceridade. Nunca vi nas nossas insensíveis sociedades um espetáculo semelhante a este. A Rainha não se continha de alegria. A esta manifestação sucedeu uma outra em honra da soberana. Os artífices de Viseu enviaram uma deputação a D. Maria Pia, composta de dezassete pessoas para lhe oferecer uma medalha de ouro, colocada num guarda-jóias de uma lavra e de um gosto primorosos. Os portugueses sempre se excederam na arte da joalharia. Este guarda-jóias possui um duplo valor: o artístico e o sentimental, que motivou esta recordação. A medalha tem a seguinte inscrição: “Ao Anjo da Caridade”

A deputação dos artífices era precedida pela filarmónica municipal, na qual um dos membros carregava, em forma de estandarte, a bandeira azul e branca. Creio que este dia foi um dos mais agradáveis para a Rainha, que, como todos confessam, é muito amada em todo o Portugal pelo seu carácter e pela sua bondade. outras coisas, tornava Portugal definitivamente uma monarquia constitucional (com D. Maria no trono) e determinava a perda do direito à sucessão por parte de D. Miguel e seus descendentes (o casamento com D. Maria seria também anulado). Os seus apoiantes, todavia, eram autorizados a ficar em Portugal, caso o entendessem. Muitos assim o fizeram, nunca renegando a sua fidelidade a D. Miguel. Alguns deles chegaram mesmo a formar um partido – o Partido Legitimista – que defendia o direito do usurpador ao trono e chegou inclusive a eleger deputados ao Parlamento. António de Albuquerque, que no relato de Wolowski recusou pernoitar com um dos descendentes de D. Pedro, era um destes miguelistas, que perduravam, apesar de o seu mentor ter já falecido em 1866. MARQUES, 2002. SOUSA & MARQUES, 2004 (n. do ed.).


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FIGURA 107

Outra representação de D. Maria Pia como o anjo da caridade BND (purl.pt/13757)

O baile no Grémio de Viseu

Na mesma noite realizou-se o baile dado em honra do Rei por subscrição. Puderam apenas convidar 400 pessoas; nenhum sítio em Viseu poderia conter mais gente. Eis o modelo desses convites:


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

A sub-comissão eleita para dirigir os festejos a Suas Majestades, por ocasião da sua visita a Vizeu, convida a V. Exa. para uma soirée na casa do Grémio, em noite que opportunamente será annunciada. Il.mo e Ex.mo Snr. B. WOLOWSKI Sala das sessões em 7 de Junho de 1882. Visconde do Serrado José Maria de Sousa Macedo José Vitorino de Sousa e Albuquerque Frederico Augusto da Silva Pires José António de Oliveira Miguel Augusto de Sousa Figueiredo Salomão Augusto Cardoso do Amaral196. Este bilhete deve ser apresentado à entrada e não são admitidas creanças. A soirée começa às 9 horas.

A Família Real chegou ao baile às 11 h. As salas do Grémio estavam enfeitadas com muito gosto. A Rainha tinha um magnífico vestido de cetim azul claro, bordado com flores matizadas de ouro, com a fronte guarnecida de rendas brancas. Diadema e colar de estrelas de brilhantes e outros diamantes de grande valor. O Rei e a Rainha não fizeram uma roda, como se pratica noutras cortes. Depois do hino real, a Família Real foi colocar-se no trono preparado ao fundo do grande salão, onde se dançariam as quadrilhas de honra. 196 São assinaturas que provavelmente representavam a elite de Viseu. Já vimos como o visconde do Serrado era então o governador civil de Viseu. José Vitorino de Sousa e Albuquerque era médico do exército. Seria, mais tarde, várias vezes governador civil de Viseu e deputado da nação, defendendo no Parlamento os interesses da sua região. Frederico Augusto da Silva Pires era um antigo oficial dos caçadores de Lamego, nos tempos da patuleia. MÓNICA, 2005-2006, vol. 1: 98-100. PINA et al., 2006: 239 (n. do ed.).


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Os camaristas de suas majestades designaram em seguida por ordem do Rei as pessoas que estavam convidadas a fazer parte da primeira quadrilha de honra. Eis os seus nomes: O Rei dançou esta primeira quadrilha com a condessa de Prime197, a mulher do presidente da Câmara de Viseu; a Rainha com o visconde do Serrado; o Príncipe Real D. Carlos com a viscondessa de Guedes Teixeira198, mulher do governador civil de Viseu. O sr. Fontes, presidente do conselho de ministros, com a condessa de Anadia, anfitriã do Rei e da Rainha em Mangualde. O presidente da Câmara de Viseu, conde de Prime199, tinha como par D. Gabriela de Sousa Coutinho, dama de companhia da Rainha; o conde de Anadia, a condessa de Linhares, uma outra dama de companhia. O sr. Tomás Rosa, ajudante-de-campo do Rei, dançou com a viscondessa do Serrado; o visconde de Almeidinha, governador civil de Coimbra, com D. Camila de Faria; o sr. Fernando Lapa com a viscondessa da Torre de Moncorvo200. D. Gabriela de Sousa Coutinho tinha um vestido Pompadour; a condessa de Linhares um vestido de cetim e gaze amarelo claro, muitos diamantes no cabelo e um colar muito bonito. Entre os trajes que causaram sensação, citemos o da sra. condessa de Anadia, vestido branco e azul, uma grande palma em brilhantes na cabeça e um colar muito brilhante. D. Eugénia Viseu, uma mulher das letras, muito espirituosa, com quem o Rei dançou uma das quadrilhas seguintes, tinha um vestido branco azulado, guarnecido de rendas pretas com um esplêndido cinto e presilhas em diamantes201 . A condessa de Prime, vestido branco salpicado de flores e brilhantes. O Infante D. Afonso não dançava. No intervalo das quadrilhas, os convidados lançavam-se com entusiasmo ao turbilhão das danças de roda. As portuguesas e os portugueses gostam muito de dançar e dançam bem. Na segunda quadrilha, o Rei dançou com a sra. viscondessa de Guedes Teixeira e a Rainha com o conde de Prime; o Príncipe Real com a viscondessa do Serrado. 197 Maria da Glória Teixeira de Carvalho Sampaio Rocha Velho ou Rita dos Santos Nossa. ZUQUETE, 1989, vol. 3: 179-180 (n. do ed.). 198 Leopoldina de Queirós Guedes. ZUQUETE, 1989, vol. 2: 649 (n. do ed.). 199 José Porfírio de Campos Rebelo ou José Frederico Teixeira de Carvalho. ZUQUETE, 1989, vol. 3: 179-180 (n. do ed.). 200 Tratava-se de Tomás de Sousa Rosa, ao tempo do relato, capitão de cavalaria e futuro conde de Sousa Rosa. Era viscondessa do Serrado Cassilda Cândida da Costa de Castelo Branco. COSTA, 2005: 524. MÓNICA, 2005-2006, vol. 3: 502-503. ZUQUETE, vol. 3: 381 e 406 (n. do ed.). 201 Eugénia Nunes de Viseu, mais tarde viscondessa de S. Caetano, possuía, além de uma grande fortuna, uma primorosa educação, adquirida em grande parte no estrangeiro. ZUQUETE, vol. 3: 315-316 (n. do ed.)


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Na terceira, o Rei dançou com a viscondessa do Serrado; a Rainha com o visconde de Guedes; o Príncipe Real com a sra. condessa de Anadia. Na quarta, o Rei dançou com D. Emília Pinto Leite; a Rainha com o sr. António Homem; e o Príncipe Real com a irmã do visconde de Guedes Teixeira. À 1 h serviu-se a ceia. O Rei tinha à sua direita o Infante e à esquerda o conde de Prime; a Rainha tinha à sua direita o Príncipe Real e à sua esquerda o visconde de Guedes. Na mesma mesa, encontravam-se também D. Emília Pinto Leite, as duas damas de companhia da Rainha, o visconde e a viscondessa do Serrado, a viscondessa de Guedes e o sr. António Homem. Às 2 h, a Família Real deixou o baile, que continuou ainda por muito tempo. Toda a cidade estava essa noite brilhantemente iluminada. O passeio D. Fernando, que se encontra em frente do Grémio (círculo), onde se realizava o baile, a rua D. Maria Pia202 e a rua Direita apresentavam um aspeto feérico.

FIGURA 108

Vista do passeio D. Fernando e dos paços do Conselho Arquivo Distrital de Viseu

A Sé de Viseu

No dia seguinte, o Rei, a Rainha e os Príncipes deviam ir à Sé para ver os quadros antigos de Grão Vasco. O sr. Fernando Mouzinho de Albuquerque, capitão de Engenharia que fala muito bem francês, foi muitas vezes a minha providência durante a viagem de inau202 Atual rua Formosa em Viseu. Boletim Informativo do Arquivo Distrital de Viseu, n.º 42 (2010): 1 (n. do ed.).


Hugo Silveira Pereira

guração203. Que receba aqui os meus mais sinceros agradecimentos. Foi ele quem tão cordialmente me pôs em contacto com o sr. João Muñoz, ajudante-de-campo do general Castelo Branco, comandante da divisão militar de Viseu. O amável ajudante-de-campo, que é um conhecedor de pintura, ofereceu-se para me acompanhar à Sé e visitar os quadros do mestre português. A Catedral está situada numa praça quadrada bastante grande, em frente da igreja da misericórdia. À esquerda, à entrada, encontra-se o liceu204; à direita, o adarve do século XII, que comunica com o antigo paço do bispo e está transformado hoje em prisão. É uma parede bastante alta, tendo por cima uma galeria com dez colunatas205.

FIGURA 109

FIGURA 110

Adro da Sé de Viseu na década de 1930

Igreja da misericórdia de Viseu

Site da Câmara Municipal de Viseu

Site da Câmara Municipal de Viseu

Em todos os monumentos do tempo de D. Manuel, tomou-se para estilo na construção de edifícios religiosos os nós de corda. É uma homenagem à navegação, essa grande força dos portugueses de outrora. A porta de entrada da Sé é de estilo românico, os arcos são góticos – manuelinos –, a entrada é baixa, românica e quanto aos adornos, esses foram acrescentados depois206. 203 Tratava-se talvez de Fernando Luís Mouzinho de Albuquerque, engenheiro do ministério das Obras Públicas, que trabalhou na fiscalização da linha da Beira Alta e que viria a trabalhar futuramente no caminho-de-ferro de Mormugão em Goa (Índia). AHMOP. Processos individuais. KERR & PEREIRA, 2012 (n. do ed.). 204 Tinha também sido Seminário Diocesano desde 1587. Em 1849 o liceu transferir-se-ia para este edifício, que hoje é a sede do museu de Grão Vasco, nome por que ficou conhecido o pintor Vasco Fernandes. ALVES, 1995: 139-148 (n. do ed.). 205 Presumivelmente, Wolowski refere-se à varanda ou passeio dos cónegos (que, de facto, tem dez colunatas, se excluirmos as incluídas nas paredes), obra empreendida entre 1720 e 1741 pelo cabido. Este passadiço comunica com um edifício que, na realidade, serviu de prisão eclesiástica desde finais do século XIV. ALVES, 1995: 135-139 (n. do ed.). 206 O alçado principal da Sé foi de facto alvo de remodelações em meados do século XVII. Cf. ALVES, 1995: 27-30 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

A Sé tem duas torres. A nave principal está dominada por uma cruz e à entrada vê-se um crucifixo colocado sobre uma coluna antiga. Num pátio interior do paço do bispo, com colunas dóricas, encontra-se um pedestal formado por três túmulos, onde foram recolhidos os restos mortais dos últimos mártires da liberdade, que foram fuzilados pelas tropas do usurpador D. Miguel em 1831-1833 207; esta torre é quadrada. Mas, o meu muito amável cicerone de boa vontade me conduziu à sacristia, que possui muitos quadros de Grão Vasco. O primeiro quadro que salta à vista quando se penetra neste lugar, é o de S. Pedro com a chave do céu208. S. Pedro, envergando as vestes pontifícias, está sentado numa cadeira com a sua mão esquerda apoiada num livro e segurando a chave do céu. O quadro, apesar de contar três séculos, conservou todo o brilho do colorido e as nuances das sombras e das luzes sobressaem como no primeiro dia. À direita, um apóstolo encontra Jesus Cristo e pergunta-lhe onde vai. Este responde: – Volto aqui para ser crucificado uma segunda vez – tal é o sentido que em Viseu a tradição liga a este painel.

FIGURA 111

FIGURA 112

S. Pedro, de Grão Vasco

S. Sebastião, de Grão Vasco

RODRIGUES, 2011: 272

Instituto dos Museus e da Conservação

207 Segundo Alexandre Alves, este sarcófago continha os restos mortais de portugueses e espanhóis fuzilados em Viseu pelas forças absolutistas de D. Miguel e fora erigido em 1836. No entanto tinha sido removido discretamente para o cemitério municipal por se tratar de um monumento que evocava feridas recentes. ALVES, 1995: 123 (n. do ed.). 208 O título oficial é simplesmente S. Pedro (n. do ed.).


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À esquerda, vê-se uma pesca miraculosa, cuja perspetiva é perfeitamente compreensível. As orlas do manto de S. Pedro estão magnificamente definidas. Um inglês ofereceu 60 mil francos por esta obra. Recusaram-lha. Um outro quadro, O Martírio de S. Sebastião, é de um colorido esplêndido; a expressão das fisionomias dos carrascos, a conceção, o cambiante das cores são verdadeiramente desta época. Embora atribuído a Grão Vasco, este quadro não é autêntico. A dúvida existe a este respeito209. Numa capela da Sé, que tem o nome de Porta do Sol, nota-se uma tela representando O Calvário210.

FIGURA 113

A Porta do Sol em finais do século XIX ALVES, 1995: 124

Cristo está suspenso na cruz entre dois malfeitores. Este quadro está sobrecarregado de personagens. Um guarda a cavalo, um guerreiro com um rosto quase natural e, à esquerda, um grupo de mulheres apavoradas pela visão do suplício. As figuras dos carrascos que estendem a mão por debaixo da árvore do supliciado parecem falar. Todas estas fisionomias apresentam-se com um realismo e um colorido que garantem a Grão Vasco um lugar entre os grandes mestres. Na sala da colegiada dos cónegos, situada no primeiro andar, vi catorze pequenos quadros representando as diferentes cenas da Paixão. Não têm grande valor. Sobre a mesa de reunião dos cónegos, nota-se um ritual muito bem esculpido em relevo. 209 O título da obra é apenas S. Sebastião e é de facto da autoria de Grão Vasco. MARTINS, 2002: 31 (n. do ed.). 210 Trata-se da capela de D. João Vicente (antigo bispo do século XV), também conhecida como capela de Jesus ou capela do calvário, em virtude da tela de Vasco Fernandes. A porta do sol, que, partindo do eirado da Sé, servia as populações vizinhas, foi mais tarde tapada. ALVES, 1995: 68 e 80-85 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 114

Calvário, de Grão Vasco RODRIGUES, 2011: 273

A armação do teto desta sala é em carvalho esculpido pintado de vermelho, branco e preto; esta mistura resulta num magnífico efeito. Eis ainda mais uma tela: A Descida do Espírito Santo sobre os discípulos, por Pinto Costes. Há lá uma vintena de personagens, que revelam no artista um grande talento211 .

FIGURA 115

Pentecostes, de Grão Vasco

Instituto dos Museus e da Conservação

211 No museu de Grão Vasco, existe, de facto, uma tela que representa a cena bíblica mencionada por Wolowski, pintada pelo próprio Vasco Fernandes e não por Pinto Costes. O mais provável é Wolowski ter entendido mal o seu cicerone, que lhe indicou o nome do quadro – Pentecostes – e não o seu autor (n. do ed.).


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Duas pequenas colunas de mármore destacam-se do fundo do quadro com um realismo impressionante. A disposição da luz, descendo de cima para baixo e iluminando a igreja, foi difícil de tratar, mas foi bem conseguida. Há à esquerda do quadro um grupo de pessoas que têm qualquer coisa de místico. Assinalemos, ainda, as cabeças de S. Brás, de Sta. Luzia e de S. Jerónimo.

FIGURAS 116, 117 e 118

S. Brás, Sta. Luzia e S. Jerónimo, predelas de Grão Vasco Instituto dos Museus e da Conservação

O batismo de Cristo por S. João deixa, talvez, algo a desejar. A cabeça de Cristo parece mais a de um tratante do que a do salvador.

FIGURA 119

Batismo de Cristo, de Grão Vasco Instituto dos Museus e da Conservação

O leitor, que tem a amabilidade de nos acompanhar, sabe pois que tem de visitar a Sé de Viseu. Se uma boa sorte o levar a fazer uma viagem a Portugal, é necessário que ele vá até Viseu ver os quadros de Grão Vasco212. 212 Aqueles dos nossos leitores que queiram ter indicação exata dos quadros de Grão Vasco poderão encontrá-la no Panorama, revista literária , Lisboa 1841, gr. in 8.º, página 193.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Mal tínhamos acabado esta visita e já o barulho da rua nos anunciava a chegada do Rei, da Rainha e do seu acompanhamento. O capitão Muñoz e eu dirigimo-nos à entrada da Catedral para assistir à chegada de suas majestades. Continuámos a falar em francês. De repente, uma velha mulher do povo aproximou-se de nós e, dirigindo-se ao capitão, disse: – É verdade que o Rei fala a mesma língua que os senhores? Eis uma boa mulher que julgava que o monarca, ser sobrenatural, falava uma outra língua que os portugueses. Valia a pena ver a sua figura beata, quando o capitão lhe respondeu que o Rei falava a mesma língua que o seu povo. O sr. Ferdinand Denis, conservador da biblioteca de Sta. Genoveva em Paris, autor tão celebrizado pelos seus sábios estudos sobre Portugal e o Brasil, dá a descrição seguinte da Sé de Viseu num estudo sobre os livros e manuscritos portugueses que existem nas diferentes bibliotecas de Paris e Portugal213. A tradução para português foi feita pelo sr. Mendes Leal, o muito estimado representante de Portugal em Paris. Os dois textos foram publicados pelos srs. Macia & Companhia, editores em Paris, rua de Hauteville, 19. Uma reprodução do fac-simile foi feita por cromolitografia do missal de Estêvão Gonçalves Neto. Eis a citação:

FIGURA 120

Ferdinand Denis BND (purl.pt/4768/1)

213 Jean Ferdinand Denis, escritor francês nascido em Paris em 1798, esteve entre 1816 e 1821 na América do Sul. No regresso, percorreu Portugal e Espanha, estudando a literatura de ambos os países. Em 1838, tornou-se bibliotecário em Paris e, em 1841, conservador do museu de Sta. Genoveva. Soube transmitir os valores étnicos e culturais dos povos ibéricos e sul-americanos, tendo-se interessado sobretudo por temas relativos a Portugal e Brasil. ELBC, vol. 6: 1000 (n. do ed.).


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A cidade de Viseu, da qual já indicámos a distinta antiguidade e que contém tantas riquezas artísticas de primeira categoria, era já cidade episcopal no fim do século VI. O P. Argote encontrou durante as suas pesquisas documentos manuscritos relativos ao concílio de Lugo e que provam que assim era em 590. Viseu era então apenas sufragânea de Braga, diocese metropolitana. Este bispado continha, há uns 30 anos, 203 paróquias. A antiga Sé não se elevava, contudo, no lugar ocupado pela vasta igreja que tantos viajantes vão visitar: ficava, afirma a tradição, no lugar onde se vê hoje a igreja de S. Miguel do Fetal214. A tradição pretende ainda que D. Henrique e sua esposa D. Teresa sejam os verdadeiros fundadores da Sé atual. Segundo uma informação digna de toda a confiança, foi no século XIV (1341) que o bispo D. João começou a construir o claustro oeste. O coro e a abóbada, de que se celebra em Portugal a magnificência, foram mandados construir pelo bispo D. Ortiz e só foram terminados no ano de 1513215. Foi somente em 1534 que um outro prelado, D. Miguel da Silva, mandou construir o claustro ao gosto do renascimento. Consta que a sala do capítulo só foi começada em 1721, por conta dos rendimentos do bispado, então em sede vacante; foi em 1738 que se assentou, graças a uma decisão semelhante, o magnífico passeio que tem o nome de Ameia216. É nesta catedral, muito pouco conhecida, que se encontram os quadros já célebres no mundo dos artistas. Graças ao sr. visconde de Juromenha teve-se pela primeira vez um conhecimento minucioso destas telas notáveis, cujo exame inteligente conduz a uma espécie de reação contra o velho mito que se ligava há séculos às obras de Grão Vasco. É com efeito a um exame mais sério, a um sentimento mais verdadeiro da arqueologia da arte, que é devido o movimento do qual constatámos o progresso.

214 Alexandre Alves confirma que havia uma basílica em Viseu anterior à atual, que se situava perto desta. Foi destruída pelos árabes no século VIII. ALVES, 1995: 10 (n. do ed.). 215 Segundo Alexandre Alves, a edificação da Catedral de Viseu resulta do esforço do bispo D. Egas em finais do século XIII. O mesmo autor confirma que a construção do claustro se iniciou em 1341 por ordem do bispo D. João. Corrobora também que a data para a conclusão da abóbada foi 1513, embora o resto da construção só tenha sido terminada três anos depois. ALVES, 1995: 15-17 e 30-33 (n. do ed.). 216 Confirma-se que D. Miguel da Silva mandou fazer este claustro. No entanto, 1534 será a data da conclusão da obra, que começou em 1528. É também verdade que o cabido fez inúmeras remodelações ao vetusto templo. ALVES, 1995: 19-21 e 93 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 121

Claustro da Sé de Viseu ALVES, 1990: 94

O fim do dia

Depois da visita da Família Real à Sé, o cortejo dirigiu-se ao Seminário e daí à inauguração do asilo dos pobres e das crianças abandonadas. O Rei recebeu também uma deputação de comerciantes, presidida pelo sr. Melo Borges, que lhe pediu um ramal de caminho-de-ferro para Viseu. O Rei prometeu tomar em consideração o pedido e disse que sabia bem da importância da cidade de Viseu e as vantagens que toda a região colheria de tal obra. Nessa mesma tarde, os jornais de Viseu publicaram um suplemento anunciando que o sr. Fontes, presidente do conselho de ministros, tomava o compromisso, em nome do governo, de apresentar uma proposta de lei217 para a construção de um ramal ligando Viseu à linha da Beira Alta. Indiquemos de passagem que o ourives, o sr. Manuel de Figueiredo, que gravou a medalha oferecida à Rainha pelos artistas, recebeu do Rei a Cruz de Santiago (S. Jaime) com dispensa do pagamento de direitos218. As iluminações do segundo dia foram ainda mais brilhantes. A casa do meu anfitrião encontrava-se na estrada que conduz à caverna de Viriato, que o Rei devia visitar. 217 Literalmente, projeto de lei, mas, segundo as praxes regulamentares, os projetos de lei eram apresentados pelas comissões parlamentares ou pelos deputados, ao passo que o governo apresentava propostas de lei. Recorde-se ainda que Fontes cumpriu esta promessa tendo sugerido ao Parlamento em 19.1.1883 a construção do ramal de Viseu, juntamente com as linhas do Tua e da Beira Baixa. DCD, 19.1.1883: 87-91 (n. do ed.). 218 Os nomes Tiago e Jaime derivam do latim Iacobus, daí que Santiago seja conhecido em França como S. Jaime ou St. Jacques (n. do ed.).


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O sr. Pereira da Silva tinha feito as coisas à larga; construíra por sua conta uma grande tribuna que a minha anfitriã, auxiliada pelas suas duas amáveis filhas, tinha enfeitado com muito gosto. Quando as carruagens reais passaram, as delicadas mãos das lindas visienses começaram a cobrir o Rei e a Rainha com flores. No regresso, o mesmo entusiástico acolhimento. Gritei, da tribuna, em francês: – Viva o Rei, viva a Rainha! O Rei, admirado de ouvir uma aclamação em francês, voltou a cabeça para o lado donde tinha partido, mas eu escondi-me e ele não me viu. Consagrámos uma parte do serão a percorrer a cidade. Uma grande animação reinava nas ruas, todas embandeiradas e brilhantemente iluminadas. A partida fora fixada para o dia seguinte às 8 h da manhã. Os meus anfitriões convenceram muitos dos seus amigos a passar a noite em sua casa. A tribuna estava cheia de grinaldas de lanternas venezianas. Até á meia-noite foi um desfile constante deste lugar à casa do meu anfitrião. Ria-se, dançava-se, tocava-se música e confesso que, apesar de não compreender português, sentia um grande prazer por ver a franca alegria destas pessoas e os testemunhos de simpatia que prodigalizavam “ao único jornalista estrangeiro” que assistia à viagem real. Conservei, igualmente, deste serão a mais agradável das memórias. Devo, antes de deixar Viseu, dirigir aqui os meus agradecimentos mais sinceros ao meu anfitrião, o sr. Joaquim Pereira da Silva, pela bonomia e sincera cordialidade com que me acolheu. Sinto profundamente que não saiba francês, pois estas linhas, se alguma vez passassem pelos seus olhos, ter-lhe-iam indicado que o tempo não diminuiu a recordação do nosso curto convívio. Mas conto que o seu amigo, o sr. visconde de Guedes Teixeira, governador civil de Viseu, fará o obséquio, com a sua habitual amabilidade, de as traduzir. O nome desta cidade ficará ainda mais profundamente gravado na minha memória, porque tive a distinta honra de ser recebido uma segunda vez em audiência particular por sua majestade a Rainha.

Partida do Rei para o Porto

A partida de Viseu efetuou-se a 8 de Agosto, às 8 h 10 m da manhã. Uma imensa multidão havia-se aglomerado ao longo de todo o percurso do cortejo real, as mesmas aclamações à partida como à chegada. Os jornalistas portugueses alugaram uma carruagem que os devia transportar à estação do caminho-de-ferro e convidaram-me a ir com eles, declarando-me que eu


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

era seu hóspede durante o trajeto e que, por conseguinte, a minha quota-parte no aluguer do veículo seria recusada por unanimidade. Foi-me necessário, quer quisesse quer não, aceitar esta imposição de boa camaradagem. Um grande número de habitantes de Viseu seguiu o Rei e a Rainha até Mangualde. Toda a gente estava reunida na estação do caminho-de-ferro às 10 h 30 m da manhã. Aí, a sra. condessa de Anadia, a viscondessa de Torre de Moncorvo e muitas outras senhoras despediram-se de suas majestades e o comboio pôs-se em andamento para seguir pela linha da Beira Alta até à Pampilhosa e daí ao Porto. Em todas as estações, a multidão, vinda dos arredores, cercava as gares. Em Santa Comba Dão, o diretor da companhia, o sr. Bartissol, propôs ao Rei descer do salão real e colocar-se na cauda do comboio no salão da direção, de onde se avista de cima do varandim a via-férrea e as belezas maravilhosas da paisagem. O Rei concordou e fez assim o trajeto até ao Luso, a penúltima estação antes da Pampilhosa. Os nossos leitores conhecem já esta encantadora povoação pela descrição que fizemos no decurso desta narração, quando falámos da casa do sr. Duparchy, empreiteiro-geral da linha. Na Pampilhosa, um almoço oferecido pela companhia esperava a Família Real e os convidados no restaurante da estação. Nesta estação, o Rei felicitou o sr. Bartissol e o alto pessoal da direção da Companhia da Beira Alta e subiu às 2 h da tarde para a carruagem-salão da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, que tem como diretor um homem muito distinto, o sr. Espregueira. O trajeto da Pampilhosa ao Porto efetuou-se em três horas e três quartos. Assinalemos a receção feita em Aveiro, onde o comboio passou às 3 h e alguns minutos. Na estação de Ovar, oito encantadoras meninas subiram ao salão real e uma delas leu uma saudação à Rainha. O Rei e a Rainha beijaram-nas efusivamente. Na Granja, reputada estação balnear, os banhistas vieram em grande número saudar a Família Real na sua passagem Por fim, às 5 h 45 m da tarde, o comboio entrou na estação do Porto, que é a segunda cidade de Portugal e o centro de um importante comércio com o estrangeiro.

CHEGADA AO PORTO

Estamos numa grande cidade. Isso vê-se imediatamente. A Família Real era esperada na estação pela municipalidade, os conselheiros da junta de distrito, o corpo consular, o cardeal arcebispo, o bispo, os professores da


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FIGURA 122

Estação de Campanhã (reprodução de um original de Emílio Biel) Centro Português de Fotografia. Fotografia Alvão. Caminhos de ferro Douro e Minho, 025542

Academia, os da Escola de Medicina, os professores do liceu central, os administradores e os membros da Associação Comercial – muito importante no Porto – os magistrados, etc., etc. Mal suas majestades desceram da carruagem, uma deputação de senhoras do Porto dirigiu-se junto da Rainha para lhe apresentar as suas saudações. Em seguida, os soberanos receberam as autoridades no salão da estação. Depois, o cortejo pôs-se em andamento com a seguinte ordem: A Câmara Municipal, as carruagens dos ministros, as dos ajudantes-de-campo do Rei, das damas de companhia, etc., etc.. A seguir, vinha a carruagem real, rodeada de uma brilhante e elegante escolta de honra de 40 damas e cavalheiros a cavalo, seguidas de perto por um esquadrão de cavalaria. Depois, 170 carruagens conduzindo as pessoas de título que tinham esperado a Família Real na estação. No largo da estação, a guarda de honra era feita por três regimentos da guarnição, de grande uniforme. O Rei vestia o uniforme de generalíssimo, a Rainha tinha um vestido azul celeste. O Príncipe Real D. Carlos envergava a farda de lanceiros e o Infante D. Afonso a de Artilharia. Na estação do Porto vi-me de novo separado bruscamente dos meus companheiros. Cada um queria ver e procurava colocar-se no melhor lugar possível. Eis-me portanto perdido no meio da barafunda com o meu traje de gala, obrigado a confiar a minha bagagem aos cuidados do proprietário do restaurante da estação, que é francês e possui um excelente hotel no Porto, o hotel de Paris. Serei ainda obrigado a fazer o trajeto a pé, como em Mangualde, e a abrir passagem no meio desta multidão entusiasmada? Estava quase resignado, quando tive


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FIGURA 123

Pormenor do quadro 'O Rei D. Luís e a Rainha D. Maria Pia visitando o Porto' de Leonel Marques Pereira (Palácio Nacional da Ajuda) Repare­se no pormenor da chaminé da locomotiva deitando fumo219 MATTOSO, 1993­1994, vol. 6: 95

uma ideia feliz e audaciosa ao mesmo tempo. Lembrando-me da afabilidade dos portugueses para com os estrangeiros, planeei pedir hospitalidade à primeira carruagem onde houvesse um canto onde me instalar. Mas todas as carruagens estavam a abarrotar e eu começava a amaldiçoar a minha sorte quando avistei uma esplêndida carruagem puxada por magníficos cavalos atrelados. Estava ocupada por uma só pessoa, um funcionário público de Portugal, cujo uniforme coberto de enfeites me dizia o suficiente para saber que possuía um lugar muito elevado na hierarquia administrativa. O veículo ia a passo. Aproximei-me, cumprimentei e expliquei o meu embaraço, dizendo que era um jornalista estrangeiro que queria ver a festa. Qual não foi a minha satisfação, quando vi o meu interlocutor convidar-me com o gesto mais gracioso a sentar-me ao seu lado e a abrir ele próprio a porta. Não procedi mal, portanto, em contar com a cortesia portuguesa. Mal tinha ocupado o meu lugar, quando o amável proprietário da carruagem me indica o seu nome e título. Era o sr. Lopo Vaz, antigo ministro da Fazenda. Era para mim uma felicidade ter um tal encontro, pois o sr. Lopo Vaz conhecia toda a gente no Porto; pude assim informar-me junto dele de um grande número de coisas muito interessantes, que, sem ele, teria ignorado. Uma enorme multidão tinha vindo ao encontro do cortejo e obstruía as ruas por onde devia passar. O trajeto da estação ao palácio real era ainda de alguns quilómetros. Assim, demorou-se muito tempo a efetuá-lo. Das varandas, das janelas, milhares de mãos se erguiam e lançavam uma chuva 219 Este quadro não representa a viagem feita pelo Rei nesta ocasião, mas sim aquela feita alguns anos depois (n. do ed.).


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de flores sobre a carruagem real, enquanto calorosos vivas saíam de todos os peitos. As proximidades da Igreja de Sta. Catarina, sobretudo, eram curiosas de ver. Cachos humanos, escalonados nos degraus da escada, ondulavam por cima da multidão que se empurrava para ver melhor. É-me impossível dar uma ideia exata do magnífico panorama que apresentavam as ruas decoradas com um gosto requintado. Todas as casas estavam enfeitadas com

FIGURA 124

Lopo Vaz de Sampaio e Melo Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Empresa Pública do Jornal O Século.

FIGURA 125

Praça D. Pedro e vista da rua e torre dos Clérigos RAMOS, 1994: 501

bandeiras de esplêndidas cores, tapeçarias, damascos. Viam-se abrir em todas as janelas rostos sorridentes e magníficos vestidos das graciosas e lindas senhoras do Porto. A rua de Sto. António, que conduz à praça de D. Pedro IV220, estava cheia de flores; a rua liga-se a esta praça por um declive suave, do alto do qual um espetáculo verdadeiramente feérico se ofereceu aos meus olhos. Depois de ter percorrido esta rua, o cortejo passou perto da igreja dos Clérigos, cuja alta torre de 75 m data de 1732; é considerada a mais elevada de Portugal. Chegados ao palácio221 , o Rei e a Rainha entraram nos seus aposentos. Não houve receção nesse dia, mas a multidão permaneceu diante do palácio uma parte da noite. Nesse sítio despedi-me do sr. Lopo Vaz, demonstrando-lhe todo o meu reconhecimento pela honra que me quis fazer, servindo de meu cicerone. 220 Atual praça da Liberdade (n. do ed.). 221 O Palácio dos Carrancas, atual Museu Nacional de Soares dos Reis. Trata(va)-se de um edifício construído no início do século XIX por uma família de cristãos-novos (que enriquecera à conta do seu empreendedorismo industrial e comercial) apelidados de Carrancas por terem habitado uma zona do Porto com esse nome (ao Carregal, perto do antigo hospital de Sto. António). Durante as invasões francesas, o palácio foi habitação do general francês Soult e dos generais ingleses Wellesley e Beresford e, durante a guerra civil, foi D. Pedro IV o seu ilustre hóspede. Na década de 1860, os Carrancas viram-se em dificuldades financeiras e acabaram por vender o seu palácio em 1862 a D. Luís I, que o transforma em residência oficial da Família Real na Invicta. VIANA, 1984 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 126

Torre dos Clérigos em 1890 BND (purl.pt/1055/1)

FIGURA 127

O Paço Real de sua majestade no Porto RAMOS, 1994: 460


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A cavalgada de honra

A brilhante cavalgada, que tinha servido de escolta de honra ao Rei e à Rainha na sua entrada no Porto, compunha-se das senhoras seguintes: D. Camila Malheiro-Ratzenstein, D. Guilhermina Cândida Ferreira Machado de Lima, D. Laura Vilar Cardoso de Castro, D. Maria Augusta Pereira Machado, D. Margarida R. de Pereira Machado, D. Helena Brederode, D. Ana Guedes da Costa, D. Maria Augusta Guedes da Costa, D. Emília Resende, D. Benedita Resende; e os srs. conde de Corvo, Delfim de Lima, J. Martins de Queirós, conde de Pereira Machado, Eduardo de Castro, António de Albuquerque, António B. Ferreira Júnior, Manuel Garrido, João Santiago, Dinis Santiago, António Girão, Francisco Brandão, Cristiano Vanzeller, Luís Woodhouse, António Mamede, Alfredo de Castro, Simão Lopes Ferreira, José Lopes Ferreira, Afonso Henriques Moreira, Alberto Catalão, Ramiro Magalhães, Avelino da Fonseca, Guilherme Sandeman, Luís de Magalhães, José Estêvão de Magalhães, Joaquim Viana, José Novais da Cunha, Duarte Borges Pacheco, João Borges Pacheco, Álvaro Alão, Roberto Lima Barreto da Gama, Joaquim de Araújo, Augusto Ferreira Veloso e muitos outros de que me foi impossível conhecer os nomes. Os cinco dias no Porto

Chegado ao Porto a 8 de Agosto, o Rei permaneceu aí até 14 ao meio-dia. Cada bairro da cidade tinha nomeado uma comissão de festas. Daí uma grande rivalidade. Era ver quem ultrapassava o seu vizinho e dava à festa maior brilho e animação. Tinha também cada bairro a sua banda de música, que tocava nas diferentes praças da cidade. A população entregava-se a danças alegres. Estes divertimentos prolongavam-se até muito tarde. No fim da noite, fogo-de-bengala de diversas cores lançado do cimo da gigantesca torre dos Clérigos projetou sobre a cidade luzes multicolores que não foram a menor atração da noite. No dia 9, de tarde, uma receção muito brilhante realizou-se no palácio real. O desfile das pessoas para cumprimentar o Rei durou muitas horas. À noite, o Teatro Príncipe Real encenou uma representação de gala a que assistiu a Família Real. Quando esta atravessou a rua das Flores, para se dirigir ao teatro, uma encantadora menina, escolhida pela comissão de festas dessa rua, recitou versos à Rainha e ofereceu-lhe um ramo de flores. A multidão aplaudiu e as senhoras agitaram os seus lenços das janelas das casas vizinhas. À chegada da Família Real ao teatro, a orquestra tocou o hino real. Toda a gente estava de pé.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 128

O Teatro Príncipe Real (atual Teatro Sá da Bandeira) RAMOS, 1994: 507

Durante um entreato, um jovem poeta português leu os versos seguintes em honra de sua majestade: Ao rei! Mentira! Não é verdade Essa revolta d’aqui! O Porto, a heroica cidade. Em que eu, orgulho! nasci, – Embora alguns não concordem E outros protestem, direi, Que tem por symbolo a Ordem E tem por brasão a Lei!

Não é verdade que o Porto, Cidade de um sangue azul, Dissesse ao passado: és morto! E a lama de esse paul A arremessasse em despeito, Na passagem triumphal De quem tem jus ao respeito Do verbo mais liberal!

Não é verdade que o povo Honrado, honesto e leal, Semeasse um credo novo, Que não medra em Portugal! – Sempre firme n’uma crença, Esse eterno luctador, Só tem por aurora imensa Da Liberdade o fulgor!

E os boatos que eu desminto. Desmente-os todo o paiz, Sentindo, assim como eu sinto, A consolação feliz De ver levantado e claro, Ainda mais uma vez, O brio sincero e raro Do bom povo portuguez!


Hugo Silveira Pereira

O povo, – Rei que me escutas! O povo respeita as leis, E despreza altivo as luctas Das almas menos fieis: O povo, Senhor, não dorme, Deixa-los assim dizer: – Essa consciencia enorme, Nunca pode adormecer!

Já viste, Senhor, portanto, Do quadro a risonha côr, Jubilo que chega ao pranto. E pranto que diz amor: Eis, pois, a nota sincera D’esta cidade leal, Que ama o throno, – a Primavera Eterna de Portugal.

Neto d’esse Rei-soldado, Que legou o coração A este povo abençoado, Ha uma religião N’aquellas cinzas tão frias, Mas ainda sagrado pó: São as nossas sympathias Ao neto de um tal avô!

Mas apesar d’isso tudo, O teu destino é de fel! Quantas vezes ao veludo Preferirás o borel, Que é difficil e penosa Essa missão de reinar: – Ante uma guerra acintosa Jamais poder protestar!

Não venho vibrar insultos A qualquer partido ou grey: Esses que minam occultos, Nem podem fitar o rei; Mas digo n’este momento, Ousadamente febril, Que não applaudo o talento Enlameado, incivil!...

Sae-me do intimo um brado: Ouvi-o todos – ouvi, Pois deixo assim levantado Este Porto em que eu nasci! Ante um povo assim tão grande, Convictamente erguerei, De minha alma que se espande (sic) N’esta festa, um – Viva ao Rei! Raul Didier.

Porto, 9 de Agosto de 1882.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

A revista às tropas e o banquete

No dia seguinte, 10 de Agosto, efetuou-se a revista às tropas de guarnição no campo da Regeneração222 e o desfile dessas mesmas tropas na praça D. Pedro IV, onde se tinham erguido elegantes tribunas.

FIGURA 129

A praça D. Pedro IV em frente aos antigos paços do concelho, cerca de 1890 RAMOS, 1994: 262

À noite, um grande banquete com mais de 200 convidados foi oferecido ao Rei pelo município. O palácio onde se realizou encontrava-se elegantemente decorado. Notava-se sobretudo a escada enfeitada com grandes espelhos, estátuas de bronze com candelabros e vasos cheios de flores. De cada lado erguiam-se troféus. Depois de se ter atravessado a galeria onde se encontram os retratos dos últimos reis e a espada de D. Pedro IV, chegou-se a uma pequena sala que conduz num grande salão esplendidamente mobilado. As suas paredes almofadadas estão forradas de cetim branco salpicado de estrelas prateadas. Deste grande salão passa-se a um outro compartimento, que conduz ao toucador da Rainha. Este último está forrado a cor-de-rosa com um efeito encantador; o serviço de toucador era de prata. A sala de jantar estava magnificamente adornada e com bom gosto. Tinha três mesas: a do fundo, com catorze pratos, tinha a forma de uma ferradura. Era a mesa destinada à Família Real. A baixela era esplendorosa e toda de ouro e de prata. As mesas para os convidados estavam guarnecidas com candelabros de prata de trabalho artístico de grande mérito. 222 Atual praça da República (n. do ed.).


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No meio do banquete o presidente da Câmara Municipal, o sr. Correia de Barros223, fez um brinde ao Rei, que foi muito aplaudido. Não posso fazer mais que um curto resumo. O sr. Correia de Barros disse que o povo português tem pela dinastia de Bragança a maior veneração, porque a essa dinastia se ligam duas datas memoráveis: a de 1640, quando D. João IV quebrou as grilhetas da nação portuguesa, e a de 1834 quando o duque de Bragança224 instaurou a liberdade. O entusiasmo da população – continuou o sr. Correia de Barros – é justificado quando vê à sua frente um Rei tão liberal como justo e quando ao lado desse Rei está uma princesa na qual o povo encontrou qualidades tão nobres para lhe dedicar o nome de anjo da caridade. O Rei respondeu: – O sr. presidente da Câmara Municipal evocou de uma maneira muito amável alguns feitos dos meus antepassados. É um justo tributo à sua memória. É verdade que meu avô deu a liberdade a Portugal, mas uma grande parte dos seus triunfos não pertencem à cidade heróica que tinha a seu lado? Para mim – disse ainda sua majestade –, a liberdade é um credo e são também um credo os deveres de um rei constitucional; é por isso que os sigo com uma fé devota. Felizes dos monarcas – acrescentou sua majestade – que podem andar sem receio entre as massas populares – fazendo alusão a um passeio a pé de toda a Família Real entre o povo –. O único cetro dos reis é o coração dos povos. É melhor depor o cetro do que governar contra a vontade nacional.

Estas palavras do Rei foram acolhidas por prolongados e frenéticos aplausos. As expressões que emprego aqui não têm absolutamente nada de exagerado; apenas descrevem os factos. O delegado dos veteranos da liberdade, o sr. Manuel Martins, brindou em seguida ao Rei. Depois do banquete, sua majestade abraçou o veterano das guerras da liberdade225, o sr. Manuel Martins. No banquete, a Rainha trajava um esplêndido vestido de cetim branco guarnecido de rendas, um colar de diamantes e esmeraldas e, na cabeça, estrelas com pedras preciosas. Sua majestade envergava a medalha da Sociedade Real Humanitária. 223 José Augusto Correia de Barros era um engenheiro do Porto que enveredou por uma carreira política (nas fileiras do Partido Reformista, mais tarde Progressista), tendo sido deputado, Par do Reino, vereador, vice-presidente e presidente da Câmara do Porto. Como engenheiro, trabalhou nas linhas do Norte, Leste, Sul e Sueste. Em termos políticos, afastou-se momentaneamente do seu partido que em 1882 se opunha ao negócio da ligação da linha do Douro a Salamanca, tendo apoiado os rivais regeneradores. MÓNICA, 2005-2006, vol. 1: 334-336. PEREIRA & RODRIGUES, 1904-1915, vol. 2 (n. do ed.). 224 D. Pedro IV (n. do ed.). 225 Wolowski refere independência, decerto por lapso (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Póvoa e Famalicão

Do Porto à Póvoa e a Famalicão existe um pequeno caminho-de-ferro de via estreita de 57 km. O Rei tinha aceitado fazer no dia 11 de Agosto uma excursão nesta linha, que se liga em Famalicão com o caminho-de-ferro do Minho. A partida efetuou-se na estação da Boavista, às 2 h.

FIGURA 130

A estação da Boavista em 1875, segundo foto de Rochinni Arquivo Fotográfico da CP

Suas majestades eram acompanhadas pelos ministros, os srs. Fontes e Hintze Ribeiro, pelo conselheiro Guilherme Pacheco, pelos srs. conde de Silva Monteiro, barão da Trovisqueira, Correia de Barros, Carneiro de Vasconcelos, visconde de Almeidinha, Sárrea Prado, Jerónimo Pimentel, etc., etc226. 226 O conde de Silva Monteiro (António da Silva Monteiro) era um antigo emigrante no Brasil (um então denominado brasileiro), onde fizera fortuna e aplicara parte dela em obras sociais em Portugal. Investira também na empresa que explorava a linha do Porto à Póvoa e Famalicão e no sindicato que levaria o caminho-de-ferro do Douro até Barca de Alva e Salamanca. José Francisco da Cruz, o barão de Trovisqueira, era também um antigo brasileiro, que regressara, rico, a Portugal e aplicara parte da sua riqueza em ações filantrópicas e outra parte em investimentos no setor dos transportes, designadamente em americanos (caminhos-de-ferro assentes diretamente sobre a estrada, sem necessidade de recorrer a um leito próprio, como os elétricos que ainda hoje circulam em algumas ruas de Lisboa e Porto). Para não destoar, José Guilherme Pacheco era também um brasileiro que regressara a Portugal e se formara em Direito na Universidade de Coimbra. Conquistou um enorme prestígio em Paredes, por onde foi eleito para o Parlamento por quatro vezes nas listas regeneradoras, sendo apelidado pelos seus adversários de rei de Paredes. Estas ações de filantropia eram uma tendência marcante dos brasileiros retornados à pátria. Por fim, Jerónimo da Cunha Pimentel Homem de Vasconcelos Carneiro era um advogado natural de Vila Real que fez carreira política como deputado, Par do Reino e governador civil afeto ao Partido Regenerador. Occid., n.º 220 (1.2.1885): 25-26. ALVES, 1993: 372 e ss. ALVES, 2001. MÓNICA, 2005-2006, vol. 1: 589-590; vol. 3: 147 (n. do ed.).


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FIGURA 131

Conde de Silva Monteiro Occid., n.º 220 (1.2.1885): 25

Pelas sras. condessa de Silva Monteiro, condessa de Resende227, D. Carlota Silva, etc. A Rainha trazia um elegante vestido azul-escuro, um chapéu e um mantelete preto com incrustações de azeviche; o Rei e os Príncipes, assim como o seu séquito estavam de sobrecasaca. Durante a viagem, uma merenda foi servida pela companhia dentro das carruagens. A viagem efetuou-se em duas horas e meia e, em toda esta região, o acolhimento feito à Família Real foi tão cordial e simpático como nas localidades que tinha antes visitado.

FIGURA 132

FIGURA 133

O barão de Trovisqueira

José Guilherme Pacheco, o "rei de Paredes"

Geneall.pt

Site da Câmara Municipal de Paredes

227 Carolina Júlia Ferreira e talvez Maria Balbina Pamplona Carneiro Rangel Veloso Barreto de Figueiredo, respetivamente. CANEDO, 1993, vol. 1: 129. ZUQUETE, 1989, vol. 3: 208 e 387 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Em Famalicão, o Rei e o seu séquito mudaram de comboio. Seguiram pelo caminho-de-ferro do Minho228, que pertence ao Estado, e percorreram a mais bela e mais pitoresca parte de Portugal.

FIGURA 134

Estação de Famalicão PEREIRA, 2012a: 41

Às 6 h., o comboio entrou na estação do Porto229 e o Rei dirigiu-se imediatamente para o seu palácio. De manhã, o visconde de Rio Vez230 entregou ao soberano a quantia de 60.667 francos (10.920$000 réis), produto de uma subscrição feita no Rio de Janeiro para os albergues noturnos.

Visita à fundição de Massarelos

No dia 12, pela manhã, o Rei dirigiu-se à Foz, que tem uma linda praia a poucos quilómetros do Porto e que é o lugar de veraneio da boa sociedade portuguesa231 . 228 O autor refere-se às linhas do Minho e Douro. É verdade que estas duas vias constituíam um só conjunto administrativo (uniam-se e unem-se em Ermesinde) explorado pelo Estado, mas o caminho-de-ferro que passa em Famalicão é o caminho-de-ferro do Minho (n. do ed.). 229 Estação de Campanhã, não a da Boavista (n. do ed.). 230 Boaventura Gonçalves Roque, brasileiro, enriquecera durante a emigração e usara parte da sua fortuna em obras de caridade e filantropia. ZUQUETE, 1989, vol.3: 235 (n. do ed.). 231 E não só. É verdade que a chamada praia dos ingleses – à qual Wolowski provavelmente se refere – era privativa, no entanto, com o desenvolvimento dos meios de transporte no Porto, pessoas de todas as categorias sociais, sobretudo residentes na cidade, passaram a deslocar-se de Verão às praias espalhadas pela Foz do Douro. RAMOS, 1994: 500 (n. do ed.).


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FIGURA 135

Vista de S. João da Foz em meados do século XIX (detalhe) RAMOS, 1994: 484

Na volta, sua majestade parou em Massarelos para visitar a importante fundição232. O Rei, aclamado pelos operários, louvou muito os trabalhos que lhe foram apresentados. Os chefes de oficina, os srs. Joaquim Francisco Praça, Manuel Gonçalves Lugarinho e João Barros, foram recebidos por sua majestade, que, depois de lhes ter dirigido algumas palavras, colocou-lhes no peito a cruz de cavaleiros da Ordem de Cristo.

FIGURA 136

A fundição de Massarelos RAMOS, 1994: 438

232 Fundada em 1852, era propriedade da Companhia Aliança, dirigida por Gaspar da Cunha Lima. Tinha na década de 1860 instalações relativamente pequenas, mas os seus produtos eram de uma notável qualidade. RAMOS, 1994: 439 (n. do ed.).


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Durante o dia, a Família assistiu a uma matiné organizada pela Associação Maria Pia. A Rainha distribuiu prémios aos alunos da escola desta associação e ofereceu um relógio de ouro, como lembrança, a cada uma das três senhoras que tinham participado no concerto. À noite, realizou-se no palácio um grande jantar oferecido pelo Rei. A manhã do dia 13 foi consagrada a visitar o Colégio Pestalozzi e a Escola Froebel, cujo diretor é o sr. Augusto Gustavo de Almeida233. Sua majestade percorreu todas as dependências e jardins e assistiu aos diferentes trabalhos dos alunos. Visitou também o estabelecimento hortícola do sr. José Marques Loureiro e examinou minuciosamente todas as plantas. O sr. Loureiro ofereceu-lhe uma planta muito rara de um grande valor. Às 4 h da tarde, o Rei recebeu no palácio a deputação da Associação Liberal, acompanhada de diversos velhos soldados dos regimentos que, durante a guerra civil, desembarcaram no Mindelo. Existe ainda uma vintena desses velhos bravos. As festas no Porto terminaram com uma sessão solene da Associação Comercial no Palácio da Bolsa, destinada ao sorteio de dez donativos de 400$000 réis (2.223 francos) às viúvas e órfãos indigentes dos membros dessa associação. Toda a Família Real, os ministros, as autoridades, o cardeal arcebispo e grande número de convidados assistiram a essa sessão. A Associação Comercial tinha-se excedido na decoração interior do palácio e da sala de distribuição dos donativos. O seu presidente, o sr. conselheiro Xavier234, dirigiu uma exortação aos soberanos. Procedeu-se em seguida ao sorteio dos donativos e a Rainha entregou os títulos (inscrições235) às esposas dos diretores da Associação, que deverão entregá-los às viúvas e órfãos que a sorte designara. Durante a solenidade, a orquestra tocou o Ave-Maria de Gounod e o sr. deputado João Arroio pronunciou um discurso de circunstância236. Esta comovedora festa terminou com uma bela sinfonia composta pelo maestro, o sr. Alves Rente237, com o título de mãe dos pobres, dedicada pelo autor à Rainha. A 14 de Agosto, ao meio-dia, a Família Real deixou o Porto para se dirigir à Régua e a Lamego, última localidade da viagem. 233 O suíço Pestalozzi e o alemão Froebel eram dois pedagogos que nos séculos XVIII e XIX desenvolveram novos métodos pedagógicos para o ensino de crianças. No Porto, na década de 1880, foram empreendidos esforços para criar estabelecimentos de ensino baseados nas ideias daqueles dois homens. ROCHA, 2006 (n. do ed.). 234 Francisco Inácio Xavier, presidente da Associação entre 1879 e 1883. BASTOS, 1947: 324 (n. do ed.). 235 Títulos de dívida pública interna (nota do ed.). 236 João Marcelino Arroio, advogado natural do Porto ligado ao Partido Regenerador, ficou também conhecido por possuir uma especial apetência para as artes e as letras, tendo chegado a compor algumas óperas. MÓNICA, 20052006, vol. 1: 222-224 (n. do ed.) 237 Francisco Alves Rente (1851-1891), compositor teatral portuense, compôs músicas para revistas e peças teatrais. Foi também diretor dos teatros da Trindade, Variedades e Príncipe Real. BRUNO, 1907-1912, vol. 3: 333. LIBERAL, 2011. (n. do ed.).


Hugo Silveira Pereira

A receção feita a suas majestades nesta localidade não foi menos cordial do que aquelas que lhes foram feitas nas outras cidades. A partida para Lisboa efetuou-se a 16 de Agosto pela manhã. Não tenho necessidade de dizer que em todas as estações do percurso até à capital, uma multidão numerosa aguardava ao longo da via. O comboio real atravessou de novo as estações que já conhecemos: Porto, Granja, Pampilhosa, Coimbra, Entroncamento, Santarém, Azambuja, Carregado e chegou a Lisboa às 6 h da tarde.

NA ESTAÇÃO DE LISBOA

Suas majestades eram esperadas na estação pelo Rei D. Fernando, damas da corte, arcebispo de Mitilene238, sr. Serpa Pimentel, ministro dos Negócios Estrangeiros, os outros ministros, membros do Corpo Diplomático, Câmaras Municipais de Lisboa e de Belém, Pares do Reino, deputados, governador civil, generais, oficiais da Marinha, etc.

FIGURA 137

Estação de Sta. Apolónia Arquivo Pitoresco, vol. 9 (1866): 1

O Rei e o Príncipe Real envergavam a farda da Marinha, o Infante D. Afonso tinha a farda de Artilharia. Sua majestade a Rainha trazia um vestido amarelo guarnecido de rendas com um chapéu de seda ornamentado igualmente com rendas. Uma numerosa multidão tinha-se aglomerado nas proximidades da estação e nas ruas que conduzem ao Palácio da Ajuda, onde os soberanos chegaram às 7 h 45 m da tarde. 238 Título honorífico concedido a um dos vigários do patriarca de Lisboa (n. do ed.).


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A AUDIÊNCIA JUNTO DO REI

Desejava ardentemente durante a minha estadia em Lisboa ser recebido em audiência particular pelo Rei. Tinha travado conhecimento em Paris com o sr. Serpa Pimentel, que aí fora enviado pelo governo português para negociar e assinar o tratado de comércio entre a França e Portugal. Foi durante estas negociações que o sr. Fontes lhe ofereceu a pasta dos Negócios Estrangeiros, que ele aceitou239. O sr. Serpa fez-me o obséquio de solicitar ao Rei uma audiência, que foi imediatamente concedida. Dirigimo-nos juntos ao Palácio da Ajuda.

FIGURA 138

Gravura do Palácio da Ajuda WOLOWSKI, 1883: 161­162

O Rei estava nesse momento ocupado com o sr. Tomás Ribeiro, ministro do Reino. Depois de uma espera de cerca de um quarto de hora, entramos e o sr. Serpa apresentou-me. O Rei envergava o trajo civil. Estendeu-me graciosamente a mão e a conversa iniciou-se imediatamente sobre a minha viagem e sobre Portugal. D. Luís não é apenas um conversador simpático e espirituoso; é um erudito e um escritor de mérito; publicou uma tradução de Hamlet realmente notável pela elegância do estilo e pela fidelidade com que reproduziu os pensamentos e os sentimentos do grande poeta inglês240. 239 Em 1881. Serpa foi ministro dos estrangeiros entre 11.11.1881 e 24.10.1883. MÓNICA, 2005-2006, vol. 3: 272 (n. do ed.). 240 Sobre a personalidade e vida de D. Luís, ver SILVEIRA & FERNANDES, 2009 (n. do ed.)


Hugo Silveira Pereira

Dizem que é um excelente músico. Tem uma verdadeira natureza de artista: ama todas as artes, protege-as e encoraja-as. Descansa dos cuidados da política e do poder, esforçando-se por elevar o nível da cultura intelectual e literária neste país que sempre se contou entre as nações mais esclarecidas da Europa. Depois do estabelecimento do regime constitucional, Portugal deu um grande passo no caminho do renascimento. Assim devia ser. “Chega sempre na vida das nações – disse um escritor – um momento em que é preciso morrer ou renovar-se por instituições novas e, uma vez esse rejuvenescimento começado, pode-se confiar no futuro». Pois bem! Portugal entrou nesse caminho depois do reinado de D. Pedro, caminho fecundo que já deu os seus frutos no duplo aspeto da atividade industrial e comercial. O Rei D. Luís, e esta será a sua glória diante da história, compreendendo as necessidades sociais da sua época, encoraja este caminhar para a frente na rota do progresso e da liberdade e dirige-o. Do alto do seu bom senso político, ele reconhece que aí está o futuro e que Portugal, regenerado pelas reformas, firmará necessariamente no concerto europeu uma posição digna do seu passado. A sua esperança não será desapontada e ele pôde já apreciar os frutos desta política fecunda. Uma surpresa agradável me esperava nesta audiência. O Rei, tendo sabido que eu me dedicava a estudos específicos sobre as raças latinas, ofereceu-me um documento da sua biblioteca privada respeitante ao reinado de D. Sebastião. É uma carta inédita deste soberano que lança forte luz sobre esta época da história de Portugal. Algumas semanas depois, escrevi ao camarista de serviço para lhe pedir que solicitasse ao Rei em meu nome autorização para ir copiar o manuscrito em questão. Mas, em vez da autorização, recebi um convite para ir falar com o Rei. Dirigi-me ao Palácio da Ajuda. Sua majestade mandou trazer a coleção, folheou-a enquanto conversava comigo e permitiu que eu a lesse. Se assinalo esta última particularidade é porque estes documentos nunca estão acessíveis ao público. Fui também recebido neste dia pela Rainha. Foi o sr. visconde de Lançada, camarista de serviço, que me anunciou. As damas de companhia encontravam-se num salão contíguo àquele onde tinha lugar a audiência. D. Maria Pia veio ao meu encontro e, com uma cortesia encantadora, dirigiu-me várias perguntas sobre a minha viagem a Portugal. Falamos também de Itália – sabe-se que a Rainha é irmã do Rei Humberto –, pois ela soube que eu tinha percorrido várias vezes este país. Sentia também uma visível satisfação em falar da sua pátria de origem. Conto, num capítulo especial que se encontrará mais à frente, um traço da vida privada de D. Maria Pia, que honra enormemente a sua bondade e o seu carácter.


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

SUA MAJESTADE A RAINHA

Sua majestade a Rainha Maria Pia é a soberana que convém a um povo livre, inteligente, valente, no qual a subida de categoria não pode ser nobremente respeitada senão em conformidade com a elevação do carácter. Partindo deste princípio, cremos que não existe princesa no mundo que não possa invejar a nobre coroa que D. Maria Pia fez pelo amor e admiração da nação portuguesa. Filha de Vítor Emanuel, Rei de Itália, a Rainha D. Maria Pia possui como uma herança as generosas e heróicas tradições da Casa de Sabóia. Tinha somente quinze anos quando subiu ao trono; mas, mal saída da adolescência, possuía sérias qualidades que justificavam suficientemente a escolha feliz e sagaz que tinha feito o Rei D. Luís, associando à sua vida uma senhora capaz de compreender todos os aspetos sérios do seu carácter. Desde o primeiro dia, a Rainha assumiu uma larga parte do fardo da monarquia, a parte mais consoladora, é verdade, para os outros e para si própria, que consiste em fazer o bem em toda a parte e sempre. O povo chama-a o anjo da caridade e este cognome não é uma fórmula poética banal; a expressão ministro da caridade seria talvez mais verdadeira, se se pudesse esquecer por um instante a elegância da mulher e ver simplesmente o espírito enérgico, administrativo e organizador que D. Maria Pia demonstrou ter no meio de tantas circunstâncias dolorosas em que lhe foi necessário desempenhar a missão consoladora que se impôs. Durante seis ou sete anos, inundações sucessivas devastaram Portugal, deixando numerosas pessoas sem abrigo e sem pão. No dia em que, pela primeira vez, este flagelo se desencadeou, a Rainha tomou a iniciativa de uma subscrição nacional; formou comissões de socorro que foram sempre presididas por ela; e esses auxílios, repetidos sem cessar por todos os que podiam responder numa larga medida ou numa forma mais modesta aos apelos da Rainha, deram-lhe uma legítima popularidade à qual parecia que nenhum prestígio se devia acrescentar. Um dia – a 22 de Outubro de 1873 – D. Maria Pia mostrou à Europa e ao mundo inteiro, num ato de admirável heroísmo, toda a grandeza desse coração que, até então, era, se se pode falar assim, disperso nas boas e modestas obras de cada dia. Nesse dia, a Rainha encontrava-se em Cascais, numa das residências reais à beira-mar. Estava com os seus dois filhos numa rocha chamada boca do inferno, situada ao norte de um amontoado de rochedos fendidos, de um aspeto selvagem. Os dois jovens príncipes brincavam a alguns passos dali. De repente, uma vaga enorme arrastou as duas crianças.


Hugo Silveira Pereira

A Rainha não lançou um grito, não hesitou um instante e precipitou-se nas ondas. Agarrou o Príncipe Real, enquanto um intrépido empregado do farol vizinho, de que lamento não saber o nome241, lançou-se por sua vez e conseguiu agarrar a outra criança. Que uma mãe arrisque a sua vida para salvar a de seu filho, toda a mãe digna desse nome o poderá fazer; mas nem todas as mães saberão, diante de um perigo imprevisto, aterrador, além dos perigos que a mulher pode ser chamada a arrostar, ver precisamente e calcular rapidamente o que é necessário fazer. Este golpe de vista, seguro e resoluto como o de um soldado, a irmã do Rei Humberto de Itália teve-o em Cascais. Dedicação de mulher, decisão de Rainha. Um povo pode ter fé no seu próprio futuro a partir do momento em que crianças de casta real devem a vida duas vezes, pelo nascimento e pela coragem, a uma mãe tal como esta Rainha. Depois do acontecimento de Cascais, o valente empregado do farol, que tinha salvo um dos filhos da Rainha, recebeu a Cruz da Ordem da Torre e Espada de Portugal e a Cruz da Coroa de Itália. O Rei D. Luís é um monarca constitucional; obedece aos desejos do seu povo, quando esses desejos lhe são trazidos pelos seus ministros. Foi assim que teve a alegria e o orgulho de entregar à Rainha a Medalha de Ouro do Mérito de Portugal. A esta distinção juntou-se também a medalha de ouro concedida a D. Maria Pia pela Sociedade Francesa de Incentivo ao Bem, sociedade reconhecida de utilidade pública.

A AUDIÊNCIA DE DESPEDIDA

Antes de deixar Portugal, quis agradecer uma última vez aos soberanos a honra com que me tinham obsequiado, admitindo-me no comboio real para a viagem de inauguração do caminho-de-ferro da Beira Alta. Foi no Porto, a 10 de Agosto, que me foi concedida a audiência de despedida. Tive ocasião de apreciar uma vez mais, em todo o seu alto valor, este Rei que toma tão bem em si mesmo consciência da dignidade de todo o homem, que, qualquer que seja a coisa que oferece, qual seja o favor que aceita ou que lhe pedem a autorização de não aceitar, liga-vos a ele, enchendo-vos de um reconhecimento independente.

241 Segundo Busquetes de Aguilar, tratava-se de António de Almeida Neves e era ajudante do faroleiro da Guia. WOLOWSKI, 1958-1960 (nota do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Os CAMINHOS­DE­FERRO E O PROGRESSO

Disse mais acima que Portugal tinha entrado num caminho novo, caminho fecundo de reorganização e de progresso material e moral. Com efeito, a atividade desenvolvida pelo governo desde há uns anos melhorou não apenas a situação financeira, mas teve como resultado dar um novo impulso à agricultura e ao comércio. Canais foram abertos, estradas nacionais foram construídas em diversas partes do território. Estendem-se hoje numa distância de mais de 3.000 km; os caminhos municipais seguiram o mesmo progresso242. Um grande número de caminhos-de-ferro rasgam hoje o País. Notemos que: Km de Lisboa ao Porto…………………………………………. de Lisboa a Badajoz……………………………………….. de Lisboa a Setúbal………………………………………… de Lisboa a Beja e Serpa…………………………………... de Lisboa a Estremoz243…………..……………………….. do Porto a Valença…………………………………………. ramal de Nine – Braga…….……………………………….. do Porto ao Pinhão, linha do Douro……………………….. do Porto a Famalicão………..……………………………... da Figueira a Vilar Formoso..………………………………

337 282 28 183 168 130 54 126 57 252

As linhas que acabamos de enumerar estão todas em exploração e indicámos a sua distância quilométrica a partir do início da linha, ainda que algumas delas, como a do Leste, por exemplo, tenham tronco comum até ao Entroncamento244. 242 Também aqui Wolowski revela-se um otimista incondicional. A situação financeira nacional tinha de facto melhorado em relação às décadas de 1850 e 1860, mas a dívida pública era um problema sério e o seu descontrolo levaria à bancarrota do Tesouro em 1892. A agricultura e a indústria, salvo algumas exceções, mantinham-se muito arcaicas e o incremento no comércio devia-se mais ao dinamismo das importações do que das exportações (que cresciam menos que as importações). Em termos de transportes, os canais nunca foram uma opção generalizada e as estradas entretanto construídas eram claramente insuficientes para as necessidades nacionais, razão que justificava também o fraco rendimento dos caminhos-de-ferro nacionais. Cf. ALEGRIA, 1990. LAINS & SILVA, 2005 (n. do ed.). 243 Tanto este como os dois caminhos-de-ferro anteriores não começavam em Lisboa, mas sim na margem sul do Tejo, no Barreiro. A ligação ferroviária entre as redes nacionais a norte e sul do Tejo só se faria com a abertura do ramal de Setil (linha de Vendas Novas) em 1904 e mais recentemente (1999) com a circulação de comboios na ponte sobre o Tejo. SILVA & RIBEIRO, 2007-2009, vol. 5: 17 e 234 (n. do ed.) 244 Com a linha do Norte (n. do ed.).


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Todas as pessoas lamentam que Portugal não possua comunicação direta pelo Norte de Espanha com toda a rede europeia. As linhas de Cáceres e de Badajoz fazem um desvio considerável para responder às necessidades. O comércio com a Espanha, por causa dessa falta de comunicações, tem sido exíguo, quando podia ser muito importante. Lisboa está admiravelmente situada para ser a saída natural de todos os produtos espanhóis. O caminho-de-ferro da Beira Alta, dentro de dois anos, quando o troço espanhol estiver acabado, será certamente o ponto de partida de uma nova atividade para Portugal e terá como resultado aumentar a prosperidade e a riqueza deste povo valente e leal245. Quando um português toma um compromisso, pode-se estar certo que ele cumpri-lo-á escrupulosamente. O português é muito vagaroso em tudo quanto faz, mesmo na sua correspondência, mas não é nada por má vontade. É por indolência, derivada do clima. Ele é incapaz de enganar nas transações. O País ganhará portanto com o desenvolvimento das suas comunicações, que terá como consequência o desenvolvimento das relações marítimas e comerciais. As exportações aumentaram em proporções consideráveis. Assim, para citar apenas as exportações para a Grã-Bretanha, consistem sobretudo em vinhos. Elevaram-se em 1867 a 45.884.550 francos; em 1876 eram 55.779.775 francos, ou seja, um aumento de mais de dez milhões e não têm senão aumentado a partir dessa época. Não é somente no ramo do comércio que se verifica aumento. O movimento é geral e estende-se a todos os ramos de atividade. Como consequência lógica deste estado de coisas, criaram-se e desenvolveram-se indústrias de toda a natureza. A cerâmica luta vantajosamente com as melhores fábricas estrangeiras, os barros negros de Molelos246 e as porcelanas da Vista Alegre vêm aumentar a cada dia que passa a seu antiga reputação. Dizemos o mesmo da joalharia; a indústria de fios e tecidos de algodão, se bem que nascida muito recentemente em Portugal, adquiriu já uma relevância considerável. Depois da transformação política deste país, o progresso industrial foi cons245 Esta ilusão era comum a muitos. Como vimos na introdução, muito se esperava desta e das outras ligações férreas internacionais, mas, na verdade, o comércio legal (desconhece-se o valor do contrabando) entre Portugal e Espanha era diminuto e os caminhos-de-ferro não vieram alterar este estado de coisas. Ver também ALEGRIA, 1983a. ALEGRIA, 1983b (n. do ed.). 246 Freguesia do concelho de Tondela no distrito de Viseu, conhecida pela sua cerâmica negra. ABRAÇOS, 1997 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

FIGURA 139

Homem de Molelos vendendo louça preta em Lisboa PALHARES, 1850, n.º 33

tante247. A agricultura, as obras públicas, tudo, numa palavra, recebeu um impulso benéfico. Os recursos e a riqueza pública aumentaram em notáveis proporções. O impulso está dado e temos a certeza de que ele não parará. A cultura ativa do solo, o comércio e a navegação, tais são as bases sobre as quais Portugal restabelecerá a sua fortuna e o seu poderio. Além disso, este país possui recursos admiráveis, basta querer e saber explorá-los. Também o governo foi muito louvado quando apresentou em 24 de Janeiro último a proposta de lei para a construção de novas linhas de caminho-de-ferro, a saber, as da Beira Baixa, do vale do Tua e o ramal de Viseu. Eis, segundo esta proposta de lei, qual será o percurso destas novas vias: 1.º O caminho-de-ferro da Beira Baixa partirá da estação de Abrantes na linha do Leste, seguindo por Castelo Branco, Fundão e proximidades da Covilhã para terminar na Guarda, na linha da Beira Alta. 2.º Um caminho-de-ferro que, partindo da linha do Douro e seguindo o vale do Tua, terminará em Mirandela. 3.º Um ramal que, partindo dos arrabaldes de Sta. Comba Dão, na linha da Beira Alta, chegará à cidade de Viseu. 247 Esta perceção correspondia à propaganda justificadora do regime político nascido do golpe militar de 1.5.1851, o golpe da regeneração. Entendia-se que este movimento tinha posto termo ao regime autocrático cabralista (e também à instabilidade político-partidária que caracterizara as décadas de 1820 e 1830) e lançado o país na senda dos melhoramentos materiais. Não deixava de ter algum fundo de verdade, mas Wolowski aceitou a explicação como um facto indubitável. MARQUES, 2002. SOUSA & MARQUES, 2004 (n. do ed.).


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No Algarve, existem ainda 350 km a construir, sem contar com o caminho-de-ferro de Lisboa a Sintra e Torres Vedras. Em suma, Portugal trabalha e receberá – temos a certeza – a digna recompensa dos seus esforços. Para realizar estes importantes projetos, são necessários capitais. E estes capitais serão facilmente encontrados por Portugal, pois existe um precedente. A Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses foi plenamente bem sucedida e os seus títulos são hoje procurados pelos principais capitalistas europeus e pelo público responsável, porque oferecem as mais indiscutíveis garantias de segurança248.

CONSTRUÇÃO DO CAMINHO­DE­FERRO DA BEIRA ALTA

A maior parte das linhas-férreas de Portugal e, entre outras, a da Beira Alta, foram construídas por franceses. Esta última província tinha sido ocupada por tropas francesas no tempo de Napoleão I e a população tinha conservado deste facto um velho fermento de animosidade cuidadosamente conservado pelos ingleses. Um sentimento desta natureza não é razoável, sendo o resultado da impressão ou de educação paterna, pois o relato dos factos dolorosos do passado deixa necessariamente um traço profundo na alma da infância, que herda assim, quase sem o querer, ódios e rancores paternos. Também os franceses que construíram este caminho-de-ferro tiveram, mais do que uma vez, de lutar contra essas recordações. Mais do que uma vez, puderam constatar nas suas relações com os habitantes do campo e com os operários portugueses, que a sua presença inspirava desconfiança e que neles apenas viam os fi-lhos ou os netos daqueles que invadiram Portugal. Assim, por exemplo, em Freineda, a 500 m da estação, conservaram até este dia intacto o quarto ocupado por Wellington. A cama em que se deitou o generalíssimo inglês é mostrada por uma velha aos estrangeiros. O Estado-Maior inglês ficou nesta localidade durante cerca de um mês. 248 Mais uma vez, Wolowski reproduz o que lhe foi dito sem espírito crítico. A CRCFP foi formada em 1859, mas só em 1877-1878 distribuiu dividendo pela primeira vez, isto depois de ter entrado em suspensão de pagamentos em meados da década de 1860 por não conseguir pagar o juro das suas obrigações. GOMES, 1996. SALGUEIRO, 2008: 47-55 (n. do ed.).


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Os britânicos comprazem-se em espalhar pelo país relatos de pretensas crueldades cometidas pelos franceses sobre os aldeões lusos. Desde o Luso, onde o empreiteiro-geral, o sr. Duparchy, estabeleceu o seu escritório, não se demora mais do que meia hora para fazer a subida ao Buçaco e chegar ao monumento comemorativo da vitória dos ingleses. Entretanto, graças à retidão dos franceses, à sua franqueza, à sua seriedade e à cordialidade das suas relações, o gelo, pouco a pouco, derreteu-se, os receios desapareceram e franceses e portugueses acabaram por – permita-se-nos a expressão – viver em excelente harmonia. A prova disto foi não se ter verificado um único conflito entre franceses e portugueses durante os dois ou três anos que duraram estes importantes trabalhos. Estas boas relações tiveram necessariamente por resultado estreitar os laços de amizade que unem os dois povos e o mérito deve-se principalmente aos empreiteiros, que, pela excelente escolha dos seus engenheiros e do seu pessoal, pela fiscalização exercida sobre os numerosos operários estrangeiros e sobretudo pela lealdade e pontualidade escrupulosas com as quais executaram todos os seus compromissos, contribuíram para popularizar e tornar amado o nome francês nestas regiões.

As recompensas

Consagrando este relato à inauguração do caminho-de-ferro da Beira Alta, que ligará de uma maneira mais direta Portugal ao resto da Europa, julgamos dever registar aqui os nomes das pessoas às quais o Rei concedeu recompensas honoríficas por terem tomado parte nos difíceis trabalhos de construção da linha. Foram nomeados comendadores da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa: Sr. Edmond Bartissol, diretor da Companhia do Caminho de Ferro da Beira Alta; Sr. conde de Gouveia, subdiretor; Sr. Eugénio de Mendia, administrador. Comendadores da Ordem de Cristo de Portugal: Sr. Alexis Duparchy, empreiteiro-geral da construção; Sr. Jean Baptiste Dauderni, empreiteiro-geral da construção; Sr. Jean Marie Labadie, engenheiro-chefe de via; Sr. Paul Wellerstein, engenheiro da Companhia; Sr. Charles Cottard, engenheiro do conselho de administração, comendador da Conceição;


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Sr. Bento Fortunato de Eça, tenente-coronel de Engenharia, diretor da fiscalização, comendador da Ordem Militar de S. Bento de Avis. Cavaleiros da Ordem de Cristo: Srs. Pierre Jules Vimont, engenheiro; Alexandre Adolphe Garnier, engenheiro; Marie Louis Victor Emmanuel Martin, secretário da direção; Priam Panizzi; Edmond Wesolowski; Evariste Gadrad; Charles Bartissol; Paul Marny.

SINTRA

Em Lisboa, só tinha ficado aberto durante a época de Verão um único salão, o da sra. Paul de Laboulaye, esposa do muito simpático representante de França em Portugal249. As quartas-feiras da sra. de Laboulaye reuniam os membros do corpo diplomático, a elite da sociedade da capital, o que era possível em semelhante época do ano, pois, durante o Verão, a vida elegante de Lisboa é, em grande parte, transferida para Sintra. É em Sintra, no passeio Vítor, esplêndida esplanada contígua ao hotel do mesmo nome (que pertence ao proprietário do Hotel Bragança), que se pode, nos meses de Junho, Julho e Agosto, encontrar toda a alta sociedade de Lisboa. Esta esplanada domina a pequena vila de Sintra, no meio da qual se ergue o velho palácio real, que serve de residência de Verão do rei D. Luís. Do alto desta esplanada, um panorama esplêndido estende-se perante os olhares deslumbrados do viajante. A paisagem, de uma beleza maravilhosa, parece mudar de aspeto ao nascer e ao pôr-do-sol e enfeitar-se de milhares de tons cintilantes, semelhantes às penas reluzentes do lofóforo, tão justamente chamado o diamante dos pássaros. O mar, que de um lado limita esta paisagem, não é o menor dos numerosos atrativos para os turistas que visitam esta encantadora região. 249 Paul de Laboulaye, também embaixador em Espanha, era filho de Edouard Laboulaye, o autor intelectual da estátua da liberdade em Nova York. GRAY, 1994: 26 (n. do ed.).


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FIGURA 140

Hotel Vítor (edifício ao centro sobranceiro à vila) em princípios do século XX BND (purl.pt/93/1)

Tive o feliz ensejo de visitar Sintra na companhia do sr. marquês de Oldoíni, representante de Itália em Portugal. Sem ter esquecido nenhum dos sentimentos que o ligam ao seu país natal, o sr. marquês de Oldoíni está entretanto quase naturalizado em Portugal. Ele reencontra a Itália na própria pessoa da Rainha D. Maria Pia, da casa de Sabóia, e está ligado por laços de família a este país de sua residência diplomática. O sr. marquês de Oldoíni casou com uma portuguesa, a filha do antigo representante de Portugal em Londres, sr. visconde de Torre de Moncorvo. A sra. marquesa de Oldoíni é irmã da condessa de Anadia, de Mangualde250. Uma carta de apresentação foi o bastante para me valer junto do marquês de Oldoíni um acolhimento de grande cortesia e de franca cordialidade. Durante três dias, conduziu-me em encantadores passeios em volta de Sintra, as quais se fazem de burro. Não há um lugar que não lhe seja familiar, nem um recanto desta pitoresca região – que ele visita desde há quinze anos – de que não possa ser o mais seguro e o mais amável dos guias. Acrescentarei que o ministro de Itália tem autorização para visitar quando queira o Palácio da Pena, pertencente ao Rei D. Fernando, a encantadora quinta de Monserrate, a quinta do Ramalhão, antiga propriedade real, pertencente hoje ao riquíssimo visconde de Valmor, plenipotenciário junto do imperador da Áustria na qualidade de representante de Portugal251 . 250 A esposa do marquês de Oldoíni era Carlota Amália de Morais Sarmento, viúva de Simão das Chagas de Sá Pereira de Meneses Pais do Amaral. Era, na realidade, meia-irmã, da condessa de Anadia pois eram filhas de mães diferentes. PINTO, 1991, t. 2: 683-684 (n. do ed.). 251 Fausto de Queirós Guedes, segundo conde de Valmor, foi um abastado negociante natural de Lamego. Formou-se em Direito e seguiu a carreira diplomática, tendo representado Portugal no Rio de Janeiro, Roma e Madrid antes de ser enviado para Viena. É o patrono do conhecido Prémio de Arquitetura Valmor. MÓNICA, 2005-2006, vol. 2: 371-373 (n. do ed.).


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FIGURA 141

FIGURA 142

Vista sudoeste de Monserrate

Aspeto da quinta da Penha Verde

BND (purl.pt/12042)

PORTUGAL…, 1830, est. 1

Algum tempo depois, voltei a Sintra para fazer uma visita ao sr. Mendes Leal, o eminente e excelente representante de Portugal em Paris e que acaba de ser enviado na mesma qualidade a Madrid. Foi substituído em Paris por uma das figuras mais ilustres de Portugal, o sr. Andrade Corvo, seu amigo, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, vice-presidente da câmara dos Pares. O sr. Mendes Leal ocupava com seu sobrinho, o sr. Carlos de Almeida, membro da câmara dos Pares, uma casa magnífica, a quinta da Penha Verde. É a ele que devo, bem como ao sr. Serpa, ministro dos Negócios Estrangeiros, e ao sr. marquês de Oldoíni ter conhecido Portugal e ter sido capaz de o apreciar por todos os sentimentos de gratidão que narrei.

AUDIÊNCIA JUNTO DO REI D. FERNANDO

Um dever ainda me chamava a Sintra. Queria apresentar os meus cumprimentos a sua majestade, o Rei D. Fernando, por quem tinha tido a honra de ser recebido já em Paris, durante a exposição universal de 1878. O Rei D. Fernando tinha-me feito saber que me receberia em Sintra, no chalé que ocupava com a sra. condessa de Edla, sua esposa, então doente252. 252 Fernando Augusto António Kohary de Saxónia-Coburgo-Gotha foi o segundo marido de D. Maria II e, após o nascimento de D. Pedro V, Rei consorte (jure uxoris) de Portugal como D. Fernando II. Foi pai de onze filhos, entre os quais os Reis D. Pedro V e D. Luís I. Viúvo desde 1853, voltaria a casar morganaticamente em 1869 com Elisa Hensler, condessa de Edla, uma cantora de ópera austríaca. ELBC, vol. 7: 138; vol. 8: 602-603; vol. 12: 1553-1556 (n. do ed.).


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FIGURA 143

D. Fernando e sua segunda esposa a condessa de Edla REBELO, 2006, capa

A audiência fez-se sem nenhuma etiqueta. Um criado grave avisara o Rei da minha presença. D. Fernando disse-me que se não me oferecia uma visita ao seu Palácio da Pena, era porque já sabia que o sr. marquês de Oldoíni me tinha levado lá. Depois, falou-me da minha viagem a Portugal, mas sobretudo de Paris e das suas recordações da exposição. D. Fernando é um príncipe, que, pela simplicidade das suas maneiras, pela conversação (onde se nota constantemente o homem instruído debaixo de uma informalidade graciosa), parece querer fazer esquecer o Rei; e acontece que deste modo relembra tanto mais a sua qualidade, arrebatando assim o duplo encanto desta palavra sedutora e desta benevolência tanto mais observada quanto menos procura fazer-se notar. Agora, tenho de exprimir ainda um último agradecimento ao sr. Mendes Leal, que fez o obséquio de me autorizar – com toda a benevolência com que não cessa de me honrar desde há tantos anos – a publicação, neste modesto opúsculo, de uma nota histórica sobre o Palácio da Pena, devida ao seu aparo e que se lerá no capítulo seguinte.


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PALÁCIO DA PENA 253 (SINTRA)

A história da antiga capela de Nossa Senhora da Pena, ou melhor, da Penha (montanha, cume, donde retira o seu nome) divide-se em três épocas distintas. É em primeiro lugar uma humilde capela, meia escondida na coroa recortada da montanha, algumas vezes completamente dissimulada por uma espessa cortina de nevoeiro. Mais tarde, esta capela tornou-se num pio mosteiro, erguido na rochosa cumeada, como um posto avançado do céu. Enfim é o nobre santuário de uma corte pomposa, dominando como senhor e dono de toda a região vizinha. Os vestígios do primeiro período são raros. O aparecimento de uma bela imagem da virgem nas grutas da montanha deu lugar à primeira fundação da capela, como acontece quase sempre com os monumentos desta natureza. Apesar da aspereza e do aspeto selvagem do lugar, esta capela não deixou de ser frequentada e tida em grande devoção. Em finais do século XIV, a generosidade real concedia à igreja colegial de S. Pedro um moio de trigo por ano, na condição de celebrar missa todos os sábados na pequena capela da Pena. A fama da antiga ermida cresceu naturalmente pela vizinhança do palácio de Sintra. O cronista Garcia de Resende diz-nos que em 1493 o rei D. João II e a rainha ficaram durante onze dias na ermida da Pena254, enquanto convalesciam de uma doença grave. Aquele príncipe fora lá cumprir um voto de peregrinação, depois de ter feito outros no convento de Sto. António de Castanheira e no mosteiro de Sta. Catarina de Carnota. A capela era nesta época de tal forma exígua que o rei e a rainha foram obrigados a instalar-se em tendas com a sua comitiva. Possuímos numerosas informações no que diz respeito ao segundo período da história de Nossa Senhora da Pena. No reinado de D. Afonso IV, a povoação de Sintra era já a residência de Verão que a corte preferia. D. João I tinha reedificado o palácio, pequena Alhambra dos wallis mouros de Lisboa255; o bom e infeliz D. Duarte habitou-o 253 Esta resenha histórica, escrita em português pelo sr. Mendes Leal, foi traduzida para francês pelo sr. L. de Claranges. 254 Mendes Leal (o tradutor ou Wolowski, na transcrição) escreve 1393. Trata-se de uma gralha, pois neste ano, D. João II não tinha sequer nascido. Por outro lado, Garcia de Resende foi o cronista do príncipe perfeito, o que afasta a possibilidade de se tratar de D. João I (n. do ed.). 255 Os wallis eram os governadores muçulmanos das divisões administrativas em que se encontrava organizado o AlAndaluz no tempo da ocupação árabe. O palácio a que se refere Wolowski é o Palácio da Vila de Sintra (agradeço ao Prof. Dr. Luís Carlos Amaral, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto estas informações).


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FIGURA 144

Vista de Sintra. O Palácio da Pena WOLOWSKI, 1883: 190­191

muitas vezes; D. Afonso V nele nasceu; D. João II aumentou-o; D. Manuel enobreceu-o. Somente D. João III, como que para não entravar esse início da decadência do bom gosto e do bom senso que marcou o seu reinado, parece ter experimentado uma aversão por esta residência, pelo menos durante os primeiros anos do seu governo256. Tal nos dá a entender uma carta dirigida ao próprio rei em 1527 por Martim Alvernaz, magistrado da localidade, carta na qual, com uma liberdade de linguagem que podia parecer insólita para a época, este magistrado censura o rei por ter estado cinco anos sem ir a Sintra, o que ia contra os usos dos seus antecessores, e aconselhava-lhe uma peregrinação a Nossa Senhora da Pena. De todos estes soberanos, D. Manuel era quem, sem a menor dúvida, gostava mais de Sintra. Retirado nesse delicioso lugar, rodeado de uma brilhante plêiade de sábios e de guerreiros, este príncipe repousava das fadigas da governação e intercalava longas meditações no tranquilo mosteiro de Penha Longa com o ruído das festas da corte e com o contínuo movimento das corridas de touros, das caçadas, das justas e dos torneios. O herdeiro de D. João II subia frequentemente a montanha vizinha, de onde o olhar abrangia uma tão vasta extensão deste mar sobre o qual concentrava a maior parte da sua atenção e dos seus desejos. Este cume elevado era, com efeito, o lugar de observação mais bem escolhido e o príncipe não podia resistir à necessidade de subir para interrogar o horizonte e descobrir o re256 Mendes Leal reflete aqui a opinião negativa que a historiografia do século XIX, cristalizada na obra de Alexandre Herculano História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, tinha de D. João III, o introdutor do Tribunal do Santo Ofício no Reino. No entanto, estudos mais ou menos recentes foram reabilitando a figura deste monarca, que, embora tenha trazido a inquisição para Portugal, tomou também algumas medidas importantes para a nação. BUESCU, 2005 (n. do ed).


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gresso das naus partidas para as Índias, necessidade mais imperiosa à medida que os dias passavam e que redobrava a sua incerteza sobre a sorte destas expedições longínquas. Foi provavelmente deste pico, coroado pela pequena ermida, que o monarca, impaciente, avistou o audacioso mensageiro que lhe trazia a nova do glorioso descobrimento. Este facto deve ter-lhe inspirado a ideia de construir neste ermo, como tinha feito no Restelo, um mosteiro comemorativo oferecido à ordem de S. Jerónimo, ordem que estimava mais que todas as outras. Do ponto de vista da tradição, o monumento da Pena não é mais do que o complemento natural do de Belém. Ambos nasceram de um pensamento, ambos estão ligados às mesmas recordações, ambos têm uma origem idêntica e características análogas257.

FIGURA 145

O Palácio da Vila de Sintra no início do século XVI CASTELO BRANCO, 1990

O terceiro período data de 1838, ano em que sua majestade o rei D. Fernando adquiriu – em virtude do decreto de 28 de Maio de 1834, que incorporou os conventos nos bens nacionais258 – a propriedade do mosteiro e do parque, que se encontrava então em completo abandono. Esta última época é a mais brilhante. No lugar da antiga construção, caída já no esquecimento antes mesmo da supressão das ordens religiosas, ergueu-se o esplêndido edifício, renovado em quase todas as suas partes, que é hoje um dos 257 Como decerto o leitor já adivinhou, trata-se do mosteiro dos Jerónimos. É verdade que D. Manuel engrandeceu o antigo mosteiro de frades hieronimitas, mas os pormenores relativos ao avistamento das embarcações que regressavam das suas viagens de descoberta devem-se provavelmente à imaginação e talento literário de Mendes Leal. PATRÍCIO, 2007 (n. do ed.). 258 Decreto assinado pelo então ministro dos negócios eclesiásticos e da justiça, Joaquim António de Aguiar, o que lhe valeu o cognome de mata-frades. COLP, 1834: 134. MÓNICA, 2005-2006, vol. 1: 68-71 (n. do ed.).


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monumentos mais notáveis do Reino e que causa a admiração de todos quantos o vislumbram. II O mosteiro da Pena é mencionado, admirado e mais ou menos descrito pelos cronistas espanhóis da ordem de S. Jerónimo, Siguença e Talavera, por um grande número dos nossos melhores escritores dos três últimos séculos, tais como frei Heitor Pinto, Jorge Cardoso, Fr. Agostinho de Sta. Maria, Luís Mendes de Vasconcelos e Manuel de Faria e Sousa. Encontram-se descrições no manuscrito de António Coelho Gasco, na narração de Francisco de Almeida Jordão, mais recentemente no Panorama259 de 1838, nas Memórias do sr. visconde de Juromenha, publicadas no mesmo ano, e nas obras do abade de Castro em 1841. Como dissemos mais atrás, de acordo com todos os autores, este convento foi fundado pelo rei D. Manuel. Quanto à data desta fundação, não pode existir qualquer dúvida. Fixada em 1509 pelo Panorama de 1838, esta data é, sem dúvida, um erro tipográfico se nos basearmos nos testemunhos mais dignos de fé, que a retrocedem ao ano de 1503. A primeira construção era em madeira. Alguns autores sustentam que era apenas um modelo, devendo servir à segunda e definitiva construção, que foi começada em 1511, oito anos após a primeira, rapidamente arruinada pela humidade, como se devia prever. Para esta construção, arrasou-se em primeiro lugar o pico eriçado e nivelou-se por meio do ferro e do fogo um espaço de 80 pés, estabelecendo-se um plano dos lados. Esta operação prévia é admirada pelos autores antigos como um trabalho maravilhoso. O abade de Castro faz notar que se venceram por esse meio os obstáculos (objeções) que encontrava nesta construção o arquiteto-escultor André Contucci, chamado Sansovino. Em mais nenhum documento encontrámos indício das objeções feitas por este arquiteto; se elas tivessem sido aduzidas, teriam tido eco, dada a importância da empreitada. Parece mesmo provável que nesta época Sansovino não estava já em Portugal, segundo o que se pode concluir da versão mais autêntica a respeito da sua estadia neste país. Efetivamente, Vasari, Angelo, Policiano, Orlandi, engrandecido por Guarienti, Cirilo, Volkmar, Machado, Cicognara, a Nova Biografia Geral e Raczynski concordam neste ponto que Sansovino tinha vindo a Portugal enviado de Florença por 259 No seu n.º 37 de 13.1.1883, p. 9 (n. do ed.).


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FIGURA 146

Convento de Nossa Senhora da Penha (1834) BURNETT, 18­­

Lourenço de Médicis, o magnífico, a pedido de D. João II. Quase todos afirmam igualmente que ele ficou nove anos em Portugal. Ainda que seja impossível designar hoje em que parte de Portugal se encontra a principal obra arquitetónica que lhe foi atribuída – um grande palácio real flanqueado por quatro torres – é incontestável que residiu no país, pois encontraram-se aqui notáveis monumentos de escultura por ele executados in loco. Apesar disso, é igualmente indiscutível que Sansovino estava ausente durante o ano em que foram escavados os primeiros caboucos do mosteiro da Pena. Para o demonstrar, basta comparar as datas. Lourenço de Médicis morreu em Abril de 1492. Ora, o mais tarde que Contucci podia ter vindo a Portugal era nesse mesmo ano de 1492. Por consequência, em 1501, ele tinha-se já retirado. Há mais. O abade de Castro, baseando-se em Cirilo que, por seu turno, citou Vasari, afirma que Contucci tinha chegado a Portugal em 1481, com cerca de vinte anos, o que concorda perfeitamente com a data do nascimento do artista, 1460, mas contraria singularmente a possibilidade de ele se encontrar em Portugal em 1503, pois, admitindo esta versão, é preciso também aceitar que ele se teria ausentado em 1490. É verdade que Cirilo Machado coloca a partida de Contucci em 1500, o que daria dezanove em vez de nove anos de residência em Portugal. Contudo, além de neste ponto se afastar de Vasari, que fixa positivamente esta estadia em nove anos, deixa subsistir a mesma impossibilidade no que se refere ao ano de 1503. Este erro de Cirilo deve-se provavelmente à passagem de Vasari, onde este diz que Sansovino, regressado de Portugal repleto de riquezas, começara em 1500 um S. João Batista em Florença. Todavia, não se infere necessariamente


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do início dessa obra em 1500 que o regresso de Sansovino se efetuasse no mesmo ano. O próprio Vasari afirma claramente que o desejo de rever a sua família levou o artista a deixar o serviço dos soberanos portugueses. Não é assim nada surpreendente que ele tenha passado algum tempo no seio da sua família, descansando de um longo trabalho e desfrutando dos frutos do seu exílio antes de aceitar novos compromissos. O que há de mais provável, visto que concilia os diferentes pormenores e os testemunhos mais entendidos, é que Sansovino veio a Portugal antes dos últimos anos de Lourenço de Médicis, isto é, cerca de 1485, durante o primeiro período do reinado de D. Manuel. Seja como for, não encontramos nada que possa fazer supor a sua presença no momento em que se fundou o mosteiro. III A gravura do número 37 do Panorama (primeira série) e a que está junto das Memórias do abade de Castro dão, quanto possível, uma ideia do que foi o antigo edifício. Na forma geral do convento, vê-se, desde logo, a intenção que teve o fundador de colocar sobre esse alto pico uma miniatura do monumento de Belém. Era o estilo manuelino, com menos exuberância, uma mistura de gótico, de normando e de árabe, aliança original que foi conservada com muito discernimento quando da reedificação e do alargamento atuais. Penetrava-se no convento pelo lado sul. Antes de chegar às grades de ferro da entrada, via-se à direita uma cruz de pedra construída sobre a rocha e em forma de cordão, obra de D. João III. Atravessando a porta, encontrava-se uma esplanada com uma fonte rodeada de cadeiras. Mais afastados, viam-se os currais, as hortas e a praça destinada às corridas de touros. Daí chegava-se a um pátio, chamado das hospedarias, com uma porta ao poente e rodeado de muros ameados. Do lado norte subia-se por uma escada de 26 degraus que conduzia ao adro da igreja. As principais partes da igreja eram o claustro, verdadeira obra-prima, a entrada, o campanário e as abóbadas da sacristia e da igreja e, sobretudo, da sala do capítulo, magnífico modelo do género, inteiramente construída em pedra esculpida. Como em Belém, as esferas e cruz de Cristo dominam a ornamentação. Em grande parte arruinado ou demolido pelo terramoto de 1755, tudo foi cuidadosamente restaurado, conservado ou melhorado, sem contar com as recentes construções de estilo idêntico que completam o novo palácio. O parque, no início, era bastante pequeno. Não se tinha podido criar os jardins e os pomares senão com o auxílio de terra transportada para a serra.


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FIGURA 147

Entrada para o convento da Penha O Panorama, n.º 37: 9

Quanto às moradias – acredita-se – em virtude da pouca profundidade dos alicerces sobre os quais assentava a construção primitiva, eram excessivamente exíguas. A maior parte dos escritores concordam que, na sua origem, o mosteiro não podia alojar mais do que dezoito religiosos. O abade de Castro reduziu este número a quinze frades e um superior; o licenciado Coelho Gasco a 10. Pelo contrário, Murphy eleva-os a 30 e Almeida Jordão a 40. Estes dois últimos números são evidentemente exagerados, ainda que seja de supor que, depois da fundação, se tenham construído algumas novas habitações, sem muito respeitar o estilo arquitetónico, como aconteceu também em Belém. Todavia, se estas alterações foram efetuadas, os vestígios perderam-se nas ruínas e desapareceram totalmente quando se restaurou o edifício e se lhe acrescentaram as novas construções, que o rejuvenesceram e o embelezaram tão completamente. O convento dispunha de um pequeno rendimento. Era mais sustentado pelas esmolas recolhidas nas aldeias dos arredores; pelos peregrinos que o visitavam em grande número em Maio e em Outubro, por ocasião das festas do Espírito Santo, Santiago e da Assunção; e, enfim, pelas promessas dos marinheiros que tinham uma grande fé em Nossa Senhora da Pena e a invocavam contra os perigos do oceano. Os nossos antigos reis de Portugal deram, além disso, esplêndidos presentes ao mosteiro. D. Manuel ofereceu à virgem da Pena uma coroa feita com o primeiro ouro que veio do oriente, coroa que estava ornamentada com uma


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magnífica esmeralda. A rainha D. Maria, sua esposa, consagrou-lhe uma lâmpada de prata. A rainha D. Catarina, esposa de D. João III, deu-lhe um rosário de ouro com uma coroa de rubis. A mais famosa destas ofertas, aquela que foi minuciosamente descrita e que os livros antigos indicam como um prodígio de arte, é o retábulo de jaspe preto e de alabastro transparente, todo adornado com personagens em relevo, que se encontra no altar-mor da pequena igreja. Este retábulo foi uma oferta comemorativa de D. João III, por ocasião do nascimento do infeliz príncipe D. Manuel260. Este trabalho, hoje considerado de pouco valor devido à incorreção do desenho, é de um artista chamado Nicolau261, italiano, se se acreditar no Panorama de 1838, Jorge Cardoso, frei Agostinho de Sta. Maria, e Murphy; francês, segundo o abade António Carvalho, Coelho Gasco, Duarte Nunes de Leão e o abade António Vasconcelos. O abade de Castro afirma que este artista era romano e discípulo de Peruzzi. Finalmente, Almeida Jordão afirma que ele era francês e que D. Manuel o tinha mandado vir de Roma. Seria difícil conhecer a verdade no meio destas contradições, se um documento contemporâneo e autêntico – o recibo assinado pela própria mão do artista – não viesse tirar todas as dúvidas e provar da maneira mais concludente que o autor do retábulo era efetivamente de nacionalidade francesa. O projeto do mosteiro é devido, provavelmente, a Botaca, o primeiro arquiteto de Belém. Os motivos que apresentamos mais atrás fazem-no-lo presumir; a semelhança do estilo confirma-nos ainda esta ideia. Como para Belém, há uma corrente de opinião que atribui esse projeto ao italiano Giovanni Potassi, do qual, apesar de todas as nossas pesquisas, não pudemos encontrar vestígios nas memórias e noutras autoridades. Por uma particularidade fácil de explicar, os autores estrangeiros que se mostram mais desfavoráveis à arte portuguesa e censuram em Portugal a ausência completa de monumentos (tais como Du Châtelet, Demouriez, Link e o autor anónimo da Viagem, de 1796262, para citar apenas os mais modernos e por consequência os menos desculpáveis) não mencionam o convento da Pena ou fazem apenas uma alusão passageira, como se tratasse de um ponto afastado na paisagem. Vê-se claramente que estes autores não o visitaram, da mesma forma que passaram com indiferença perto da torre de Belém, essa admirável jóia de 260 Um dos nove filhos legítimos de D. João III. Deveria ser o seu sucessor, mas, tal como o seu irmão mais velho, Afonso, faleceu ainda criança, dando início a uma sucessão de mortes prematuras entre os varões de D. João III, que culminaria na ascensão direta de D. Sebastião ao trono. BUESCU, 2005: 165-169 (n. do ed.). 261 Nicolau de Chanterenne. BUESCU, 2005: 166. PATRÍCIO, 2007 (n. do ed.). 262 Que sabemos hoje tratar-se de Joseph Barthélemy François Carrère (n. do ed.).


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granito, e diante do mosteiro dos Jerónimos, esse suntuoso monumento de glória. Apenas o Itinéraire descriptif, historique et artistique de l’Espagne et du Portugal do sr. Germond de Lavigne, reproduzindo uma correspondência do sr. de Grouchy, dedica algumas linhas ao palácio reedificado. Resulta deste exame superficial e destas informações pouco escrupulosas que erros prejudiciais ao nosso país podem e devem mesmo espalhar-se. Poderíamos ser acusados de uma vaidade indesculpável e de uma louca jactância se quiséssemos tomar lugar entre os povos mais ricos em valores artísticos; as revoltas da natureza e as da sociedade destruíram muitas coisas entre nós; outras foram-nos roubadas pelas invasões. Todavia, é uma falta de razão, quase uma iniquidade da parte daqueles que não vêem ou não querem ver o que possuímos ainda, apresentar-nos, neste aspeto, numa penúria perto do estado de barbárie. O sábio cardeal D. Francisco de S. Luís e o não menos sábio Luís Duarte Vilela da Silva já protestaram, com uma justa e liberal indignação, contra semelhantes leviandades, sobre as quais souberam fazer justiça. Ainda hoje seria bom que estes protestos, que estão largamente apoiados em evidências, fossem colocados diante dos olhos de alguns dos nossos compatriotas que, conhecendo os autores estrangeiros e ignorando os autores nacionais e não tendo nunca pensado em examinar as coisas com os seus próprios olhos, são levados a desprestigiar o seu país, tal como fizeram esses mesmos autores de que se mostram admiradores. IV As obras do edifício atual foram empreendidas em 1841 e terminaram pouco depois. À medida que se efetuavam os restauros ou que se erguiam as novas construções, os admiradores seguiam a empreitada com o devido interesse, registando através da imprensa, da gravura e da litografia, os avanços sucessivos da suntuosa obra. O exemplo foi dado pelo abade de Castro na terceira parte das suas memórias onde menciona os primeiros trabalhos. O abade de Castro foi imitado, mas com um muito maior desenvolvimento, pelo Universo Pitoresco; por fim, o Arquivo Pito-resco continuou a série das informações. Desta maneira, aqueles que desejarem ter descrições detalhadas do monumento encontrá-las-ão devidamente compiladas. O plano geral foi traçado pelo sábio barão de Eschwege, que dirigiu a sua exe-cução até à sua morte com a cooperação e sob a alta inspeção do soberano,


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cujos gostos e conhecimentos artísticos são tão universalmente conhecidos. Depois da morte do barão Eschwege, os trabalhos foram continuados segundo os planos já aprovados. O novo palácio é mais do que um monumento restaurado, é uma verdadeira criação, tamanha é a importância das ampliações e das construções anexas. Com efeito, as novas construções acrescentadas às antigas identificam-se entre si, de tal forma que se torna impossível distinguir umas das outras, trabalho duplamente árduo em presença das dificuldades que tiveram de se vencer para conservar e recompor, num todo grandioso, as características notáveis do estilo nacional primitivo. O palácio da Pena deve ser colocado entre os monumentos de que o país deve merecidamente orgulhar-se. Graças à sua construção, a nossa excelente escola de operários escultores foi regenerada. Esta escola, tão justamente célebre e que depois das nossas prolongadas guerras civis, tinha-se encontrado, por assim dizer, no esquecimento, teria infalivelmente sucumbido se não tivesse encontrado um vigoroso impulso na obra empreendida pelo rei D. Fernando. J. da Silva Mendes Leal.

A ASSOCIAÇÃO DOS JORNALISTAS E DOS ESCRITORES PORTUGUESES

Os portugueses e os estrangeiros a quem foi permitido assistir ao terceiro centenário da morte de Camões, que foi celebrado em Lisboa a 10 de Junho de 1880, conservaram certamente desta brilhante festa uma recordação tão inspiradora como cheia de encanto. A solenidade consagrada à memória do grande poeta português deu ao sr. Eduardo Coelho, um dos mais distintos escritores e um dos proprietários do Diário de Notícias, a ideia de formar entre os escritores de Portugal uma associação semelhante à que existe em França entre os homens de letras263. O projeto foi acolhido com entusiasmo pelos representantes da imprensa portuguesa e, no próprio dia do terceiro centenário de Camões, uma comissão cons263 Antes, em Abril desse ano, uma comissão de jornalistas aprovava por unanimidade as bases da Associação, que foram assinadas por João Carlos Rodrigues da Costa, Teófilo Braga, Luciano Cordeiro, Ramalho Ortigão, Magalhães Lima, Pinheiro Chagas, Jaime Batalha Reis e, obviamente, Eduardo Coelho, como relator. CUNHA, 1941: 53-54 (n. do ed.).


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FIGURA 148

Desenho da estátua de Camões em Lisboa WOLOWSKI, 1883: 208­209

tituiu-se no salão da Sociedade de Geografia, sob a presidência do sr. Sampaio, decano dos jornalistas264, e uma ata decretando a formação da sociedade foi redigida no mesmo instante. Esta ata foi assinada não só pelos jornalistas portugueses presentes, mas também pelos representantes da imprensa francesa, espanhola e brasileira, que tinham vindo assistir a estas festas. A sua constituição efetiva e definitiva realizou-se no mês de Setembro seguinte265. Os estatutos foram redigidos pelo sr. Coelho e aceites em assembleia-geral. Uma casa foi arrendada imediatamente para instalar a secretaria. 264 António Rodrigues Sampaio, jornalista ilustre que subiu na vida e na carreira política graças em grande parte ao seu talento jornalístico. Além de Rodrigues Sampaio muitos outros membros da elite da literatura e do periodismo associaram o seu nome à fundação da nova associação de classe (Sousa Viterbo, Brito Aranha, Vilhena Barbosa, Latino Coelho, Bulhão Pato e Sousa Martins, só para citar alguns deles). CUNHA, 1941: 54. MÓNICA, 2005-2006, vol. 3: 541-543 (n. do ed. 265 Na verdade, em Outubro, quando é publicado o alvará que aprovava os estatutos. CUNHA, 1941: 53 (n. do ed.).


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FIGURA 149

António Rodrigues Sampaio Infopédia.pt

Foi neste local que Aassociação dos Homens de Letras Portugueses recebeu e celebrou os escritores e os sábios estrangeiros, que vieram ao congresso internacional de arqueologia pré-histórica e literária. Foi igualmente na sede da Associação que o sr. Júlio Lermina, secretário-geral da Associação Literária Internacional, explicou aos seus colegas numa reunião o objetivo dos trabalhos do congresso literário. Como acontece em muitas instituições desta natureza, os primeiros tempos da Associação dos Homens de Letras Portugueses foram difíceis. A quotização mensal dos aderentes era das mais módicas e teve de lutar contra muitas dificuldades. Mas cedo ou tarde a perseverança é coroada pelo triunfo e foi o que aconteceu a esta instituição de uma utilidade incontestável. Hoje, a Associação prospera e afirma-se, tomando parte em todos os congressos artísticos e literários que se têm realizado em Portugal depois da sua criação. Possui uma biblioteca e um gabinete de leitura, onde se encontram quase todos os diários portugueses, bem como jornais franceses, ingleses, espanhóis, brasileiros, etc. Numa das suas salas, o sr. Adolfo Coelho, professor do Curso Superior de Letras e filólogo distinto, fez uma série de conferências sobre as epopeias homéricas. O exemplo deste sábio foi imitado por outros escritores, nomeadamente pelo sr. Consiglieri Pedroso, professor na mesma instituição, que se debruçou sobre a história universal; o eloquente professor continuará as suas interessantes conferências no próximo Outono266. 266 Além do já citado, Francisco Adolfo Coelho era um ilustre linguista e o introdutor da Filologia científica em Portugal. Zófimo Consiglieri Pedroso foi um insigne intelectual republicano português, jornalista, orador, professor do Curso Superior de Letras, presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa e sócio efetivo da Academia de Ciências de Lisboa. ELBC, vol. 5: 834-835; vol. 14: 1600. MÓNICA, 2005-2006, vol. 3: 731-735 (n. do ed.).


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FIGURA 150

FIGURA 151

Francisco Adolfo Coelho

Zófimo Consiglieri Pedroso

BND (purl.pt/93/1)

Ilustração Portuguesa, n.º 238: 343

A Associação conta atualmente com perto de 350 membros e o número dos correspondentes estrangeiros eleva-se a perto de 200. Decidiu criar em breve um concurso literário para as línguas românicas. Cada ano, a Sociedade celebra a 10 de Junho o duplo aniversário da sua fundação e o da morte de Camões. Foi uma feliz ideia ter assim associado na mesma solenidade essas duas recordações: a de um grande génio, que elevou tão alto a glória da literatura portuguesa e a da criação desta sociedade que tem por fim estreitar os laços que unem os seus compatriotas, que prosseguem a sua obra e se esforçam por seguir as suas pegadas e acrescentar novos florões à coroa que as suas mãos poderosas teceram. A literatura portuguesa conta ainda hoje com mais de um nome glorioso e digno de figurar junto do de Camões. Temos a convicção de que este ímpeto não parará e que a associação dos escritores portugueses dará excelentes resultados. Os seus começos são uma garantia certa. Além disso, é depositária de todas as coroas, ramos e insígnias, oferecidas em honra de Camões na celebração do seu terceiro centenário267. A associação tem três presidentes honorários: O sr. António Rodrigues Sampaio268, ministro de Estado, decano dos jornalistas portugueses, redator principal da Revolução de Setembro, fundador; 267 Mais uma vez, o otimismo de Wolowski não foi correspondido. A Associação de Jornalistas viu-se rapidamente em dificuldades, que levariam ao seu desaparecimento. Uma notícia da época refere que as rivalidades políticas entre jornalistas estiveram na base deste fracasso. Seria sucedida por uma Associação de Jornalistas, que, de facto, prestou maiores serviços à classe. CUNHA, 1941: 54-60 (n. do ed.). 268 O sr. Sampaio faleceu pouco depois.


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O sr. J. Eduardo Coelho redator principal do Diário de Notícias269; O sr. Manuel Pinheiro Chagas, jornalista, deputado e primeiro presidente da Associação 270. Vice-presidente honorário: o sr. João Carlos Rodrigues da Costa, professor do Colégio Militar, deputado, redator da Revolução de Setembro, presidente da comissão do terceiro centenário de Camões271 .

FIGURA 152

Caricatura de José Eduardo Coelho PINHEIRO, 1880­1902, n.º 10

FIGURA 153

FIGURA 154

Manuel Pinheiro Chagas

João Carlos Rodrigues da Costa

BND (purl.pt/93/1)

Site da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Angra do Heroísmo

Durante a minha estadia em Lisboa eis como era composta a direção da Associação. Presidente: o sr. Zófimo Consiglieri Pedroso, professor de história no Curso Superior de Letras. Vice-presidente: o sr. dr. Fernando Pedroso, redator do diário A Nação. Secretário-geral: o sr. Jacinto Inácio de Brito Rebelo, comandante de Infantaria, antigo aluno do Colégio Militar, redator d’ O Ocidente: revista ilustrada de Portugal 269 E seu fundador. Era natural de Coimbra e trabalhou em muitos outros jornais. Foi o responsável pela redação dos estatutos da Associação, sendo portanto o sr. Coelho a que se refere Wolowski. ELBC, vol. 5: 838. CUNHA, 1941: 53 (n. do ed.). 270 Além de homem de letras, jornalista, encenador, escritor e professor universitário, Manuel Joaquim Pinheiro Chagas distinguiu-se também como orador e político (foi deputado e ministro da Marinha e Ultramar). ELBC, vol. 5: 108-109. MÓNICA, 2005-2006, vol. 1: 780-782 (n. do ed.). 271 João Carlos Rodrigues da Costa era um militar de carreira natural de Lisboa. Além disto, foi um distinto escritor e jornalista (era íntimo de Eduardo Coelho), colaborando em vários jornais, tendo substituído Rodrigues Sampaio na redação da RS. Foi ainda deputado em duas legislaturas. MÓNICA, 2005-2006, vol. 1: 877-879 (n. do ed.).


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e do estrangeiro, colaborador d’ O Arquivo dos Açores para as investigações históricas e arqueológicas nos arquivos nacionais272. Segundo secretário: o sr. Francisco Tomás Labordé Barata, secretário de embaixada, homem de letras. Vice-secretários: o sr. António Manuel da Cunha e Sá, romancista; O sr. José Cipriano da Costa Goodolfim, escritor que trata de problemas económicos, secretário dos congressos das associações273. Tesoureiro: o sr. visconde de Ribeira do Paço274, proprietário nos Açores, jornalista. Eis a estatística dos jornais publicados em Portugal em 1882:

Políticos...……………... literários……………...... científicos…………....... humorísticos…………… especiais……………….. Em Lisboa: Políticos……………...... literários……………….. científicos…………........ humorísticos...…………. especiais………………..

121 26 16 10 21 194 32 15 9 6 21 83

No Porto: Políticos……………...... literários……………….. científicos…………........ humorísticos...…………. especiais……………….. No arquipélago dos Açores: Políticos……………...... literários……………….. humorísticos………....... especiais…....…………. Na ilha da Madeira: Políticos……………......

13 8 5 1 6 33 25 2 3 7 37 5

272 Nascido em Ponta Delgada, foi também engenheiro, além de notável intelectual. Colaborou em outros jornais como o Concórdia, o Campeão das Províncias ou o Jardim Literário. Em termos historiográficos, contribuiu com estudos sobre Gil Vicente, Afonso de Albuquerque e Alexandre Herculano. Enciclopédia Açoriana, disponível em www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/default.aspx?id=9625 (consulta em 15.10.2012) (n. do ed.). 273 Jornalista, conferencista e escritor, dedicou especial atenção ao movimento operário, designadamente às questões da previdência e do mutualismo. ELBC, vol. 9: 782 (n. do ed.). 274 Francisco de Medeiros Costa e Albuquerque, que, entre outras, se destacou como jornalista n’ O Açoriano Oriental. ZUQUETE, 1989, vol 3: 219 (n. do ed.).


A inauguração da linha da Beira Alta em 1882. Narrativa de viagem de B. Wolowski

Outros 36 jornais repartem-se pelas demais cidades de Portugal. Antes de concluir este relato, é para mim um dever de equidade e de justiça exprimir uma vez mais aos meus colegas portugueses toda a minha gratidão e os meus agradecimentos pela cordial hospitalidade que fizeram o obséquio de me conceder e pela solicitude com que facilitaram a minha tarefa. É por vezes um trabalho bastante difícil para um jornalista estrangeiro, que ignora a língua e os costumes de um país, encontrar as informações de que necessita e criar relações úteis. Graças à amabilidade dos meus colegas portugueses não tive de contar com esses dissabores. O seu amável acolhimento foi para mim um encorajamento que pesou muito na determinação que tomei de fazer uma nova viagem a Portugal para continuar os estudos que efetuei e que me permitirão, talvez, um dia consagrar a este simpático país, não algumas notas apressadas escritas em caminho-de-ferro e ao correr da pena, mas um trabalho que dê uma ideia mais completa das atividades intelectual, política e económica deste valente povo. FIM

TIPOGRAFIA A KREISS, VIENA


Hugo Silveira Pereira



No dia 3 de agosto de 1882 procedeu-se em Portugal à inauguração da linha da Beira Alta entre a Figueira da Foz, a Pampilhosa do Botão, a Guarda e a fronteira em Vilar Formoso. Só o mero facto de se tratar de uma nova ferrovia já daria motivos para uma celebração emotiva. No entanto, esta tinha ainda o interesse adicional de ser considerada a verdadeira linha internacional, que colocaria o porto de Lisboa mais próximo do centro da Europa e do seu movimento e tráfico. A festa foi protagonizada pelo Rei e sua Família, que aproveitou a oportunidade para visitar os seus súbditos do Norte de Portugal num périplo que se estendeu da Beira Alta ao Porto, ao Minho e ao Douro. Contudo, no séquito real seguia também um improvabilíssimo convidado. Tratava-se de um cidadão estrangeiro, que se dizia chamar B. Wolowski, provavelmente oriundo do Leste da Europa, que se encontrava em Portugal na altura da inauguração e que não desperdiçou a oportunidade de apreciar a forma como os portugueses festejavam os seus avanços tecnológicos. Wolowski seguiu a par e passo a festa da inauguração, acompanhou a Famí́lia Real, conviveu com membros do governo e jornalistas nacionais e apreciou de perto os modos, viveres, representações, desejos, crenças e ideologias dos portugueses que conheceu durante a viagem. Publicou depois essas notas de viagem num livro, o qual intitulou Les Fêtes en Portugal. Inauguration du chemin de fer de la Beira-Alta . Voyage de la famille royale. Notes et souvenirs de voyage. É essa obra que agora se reedita, em português, e se discute. Uma viagem ao Portugal fontista em finais do século XIX.

é investigador de pós-doutoramento no Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade NOVA de Lisboa. Colaborador da iniciativaTUA e do projeto FOZTUA. Hugo Silveira Pereira

é Senior Research Fellow no IN+ Center for Innovation, Technology and Public Policy (IST, Lisboa), colaborador do Programa MIT Portugal, coordenador da iniciativaTUA e do projeto FOZTUA. Eduardo Beira


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