Revista Livro Zero numero 3 - Forum do Campo Lacaniano SP

Page 120

não sem pesar, que a presença de expressões que sugerem a existência de um verdadeiro pedido de passe, passe reeditando a doxa? Aqui não apenas porque verdadeira(mente), o verdadeiro segue a ordem dos ditos, mas também porque o que é do campo do dizer, isso mostra o afastamento radical entre o verdadeiro e o real. O verdadeiro sentido religioso, a meu ver, não seria uma esperança de passe. Não obstante, algo como uma orientação pode deixar suas marcas. Orientação e doxa não equivalem entre si. O imperativo superegoico e a resposta ética são excludentes um do outro. Diria que é do campo da orientação um dizer assim: se pode haver algum enodamento entre a experiência, a transmissão e o gozo, na vertente da “apreensão experimentada da inexistência” (LACAN, 1972-73/1985, p. 198), que cada qual faça/ mostre e demonstre/ desmonte a seu modo. Penso que igualmente seja da ordem da orientação o que Lacan escreveu em sua Nota italiana: “Pois já afirmei em outra parte que é do não-todo que emerge o analista. Não-todo ser ao falar pode se autorizar para fazer um analista” (LACAN, 1974/2003, p. 312). Passo aqui ao terceiro ponto para então, em um quarto tempo, reencontrar minhas questões iniciais. Deparamo-nos frequentemente com extensivos comentários sobre o tempo excessivo em que os passadores ficam a recolher os intermináveis testemunhos dos passantes. É interessante pensar que esses excessos talvez mostrem uma visada do dizer tudo/ todo. Por outro lado, também vimos pontuados que falas por demais concisas (ou até inibidas) tampouco costumam transmitir. O dizer exagerado não precisa exagerar apenas fatos históricos, a meu ver, a saída “mais fácil” para um passante ou mesmo para um passador. Afinal, não há nada mais organizador do que a história oficial. A verdade (toda) parece ali até existir. O passante, e o passador, podem também cair na tentação das minúcias. Na tentativa de dizer o dizer com muitos ditos. Como se a multiplicidade dos ditos assegurasse (garantisse) um dizer... E, finalmente, a função de passador. Resposta pronta: deixar passar. Outra resposta: deixar passar, sem mim. Nossa colega Glaucia Nagem apresentou-nos uma interessante articulação da função de passador com o daguerreótipo na fotografia. Havia ali a presença do tempo, um tempo para deixar imprimir algo do estilo do passante. Citaria, igualmente, uma bela passagem do texto de Trinidad, publicado em Wunsch 10 que diz assim: “Uma difusão da música do passante que possa ser recolhida e, por sua vez, emitida para que ressoe no cartel do passe”. Acrescentaria, então, ao tempo para imprimir, a importância do corpo em presença. A música, a

Considerações sobre a “função de passador”

119


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.