Da Diáspora

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em produto ou mercadoria. Esta e a definicao de pratica — a pratica do trabalho. Ela se situa fora do significado e do discurso? Certamente que nao. Como poderia um grande numero de pessoas aprender aquela pratica ou juntar sua forca de trabalho na divisao do trabalho com os outros, dia apos dia, se o trabalho nao estivesse inserido no domfnio da representacao e do significado? Essa pratica de transformacao nao e, entao, nada mais que discurso? Claro que nao. Nao se pode afirmar que todas as praticas nao sao nada mais que ideologias so porque elas se situam na ideologia ou a ideologia esta inscrita nelas. Ha uma especificidade aquelas praticas cujo principal objetivo e produzir representacoes ideologicas. Elas diferern de outras praticas que — de forma inteligivel e significativa — produzem outras mercadorias. As pessoas que trabalham na midia produzem, reproduzem e transformam o proprio campo da representacao ideologica. Sua relacao com a ideologia difere em geral de outras em que os individuos produzem e reproduzem o mundo das mercadorias materiais — que estao tambem inscritas pela ideologia. Barthes observou no passado que todas as coisas sao tarnbem significances. Este segundo tipo de pratica opera na ideologia, mas nao e ideologico em termos da especificidade de seu objeto. Quero conservar a nocao de que as ideologias sao sistemas de representacao materializados em praticas, mas nao quero fedchizar a "pratica". Frequentemente, neste nivel da teorizacao, o argumento tende a identificar a pratica social com o discurso social. Enquanto a enfase sobre o discurso esta correta ao apontar a importancia do significado e da representacao, ela tem sido conduzida ao lado absolutamente oposto, que nos permitira tratar toda pratica como se nao houvesse nada mais que a ideologia. Isso e simplesmente uma inversao. Observe-se que Althusser menciona "sistemas", nao "sistema". O importante sobre os sistemas de representacao e que eles nao sao unicos. Existem diversos deles em qualquer forrnacao social. Eles sao plurais. As ideologias nao operam atraves de ideias isoladas; mas em cadeias discursivas, agrupamentos, campos semanticos e formacoes discursivas. Ao ingressarmos em um campo ideologico e escolhermos 180

qualquer ideia ou representacao nodal, imediatamente acionamos uma cadeia inteira de associates conotativas. As representacoes ideologicas conotam — convocam — umas as outras. Assim, uma variedade de sistemas ideologicos ou logicas distintas esta disponivel em qualquer forrnacao social. A nocao de uma ideologia dominante ou de uma ideologia subordinada e uma forma inadequada de se representar a complexa interacao dos distintos discursos ideologicos e formagoes em qualquer sociedade desenvolvida moderna. Tampouco e o terreno da ideologia constituido como um campo de cadeias discursivas mutuamente exclusivas e internamente auto-sustentaveis. Elas se contestam umas as outras geralmente a partir de um repertorio comum e compartilhado de conceitos, rearticulando e desarticulando esses conceitos dentro de sistemas de diferenca ou equivalencia. Tomemos a proxima parte da definicao de ideologia de Althusser — os sistemas de representacao nos quais os homens e mulheres vivem. Althusser coloca viver entre aspas, pois para ele nao se trata de vida genetica ou estritamente biol6gica, mas a vida da experiencia, dentro da cultura, do significado e da representacao. Nao e possivel por urn fim a ideologia e simplesmente viver o real. Sempre necessitamos de sistemas para representar o que o real significa para nos e os outros. O segundo ponto importante sobre o "viver" e que precisamos compreende-lo de forma ampla. Por "viver" Althusser quis dizer que os seres humanos utilizam uma variedade de sistemas de representacao para experimentar, interpretar e "dar sentido" as condicoes de sua existencia. Consequentemente, a ideologia sempre pode definir um mesmo objeto ou condicao objetiva no mundo real de maneiras distintas. Nao existe "correspondencia necessaria" entre as condicoes de uma relacao ou pratica social e as varias formas pelas quais estas podem ser representadas. Nao sucede dai que, porque nao podemos conhecer ou experimentar uma relacao social que nao esteja "inserida na ideologia", ela nao exista fora do aparato da representacao, como supoem alguns neokantianos da teoria do discurso: urn ponto ja bem esclarecido por Marx na "Introducao de 1857", mas extremamente mal-interpretado pelo proprio Althusser. Talvez a implicacao mais subversiva do termo "viver" seja que ele conota o dominio da experiencia. E dentro dos 181


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