Da Diáspora

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Tomemos, por exemplo, o terreno extremamente movedi^o das "distorcoes" da ideologia e a questao da "falsa consciencia". Hoje nao e tao dificil perceber por que essas formulacoes lancaram a critica contra Marx. As "distorcoes" abrem imediatamente a questao da razao de algumas pessoas — aquelas que vivenciam suas relacoes com suas conduces de existencia atraves das categorias de uma ideologia distorcida — nao serem capazes de reconhecer essa distorcao, enquanto nos, corn nossa sabedoria superior ou armados de conceitos adequadamente formados, o somos. Serao as "distorcoes" meras falsidades? Sao falsificacoes deliberadamente patrocinadas? Se forem, por quern entao? A ideologia realmente funciona como uma propaganda consciente de classe? E se a ideologia for o produto da funcao da "estrutura", e nao de um grupo de conspiradores, de que forma uma estrutura economica gera um conjunto garantido de efeitos ideo!6gicos? Da maneira como se encontram, os termos nao sao esclarecedores. Eles fazem com que as massas e os capitalistas parecam ter um juizo fraco. Tambem implicam uma visao peculiar de como as formas alternativas de consciencia sao geradas. Pode se supor que estas surgem quando as escamas caem dos olhos do povo ou quando este acorda, como se desperto de um sonho e, de repente, deparando-se com a luz, ve, atraves da transparencia das coisas, sua verdade essencial, seus processos estruturais ocultos. Este e um relato do desenvolvimento da consciencia de classe dos trabalhadores baseado no modelo surpreendente de Sao Paulo na estrada de Damasco. Facamos um pequeno trabalho de escavacao propria. Marx nao supos — so porque Hegel era o supra-sumo do pensamento especulativo burgues e porque os "hegelianos" vulgarizavam e sublimavam seu pensamento — que Hegel deixaria de ser um pensador consideravel, alguem com quem muito se aprenderia. Muito mais entao no caso da economia politica classica, de Smith a Ricardo, em que as distincoes entre os diferentes niveis de uma formacao ideologica sao importantes. Existe a economia politlca classica que Marx denomina "cientifica"; seus popularizadores se engajavam na "mera apologetica"; ha tambem a "consciencia cotidiana", na qual os empreendedores calculam suas chances de acordo com as ideias avancadas de Ricardo ou Adam Smith sobre o assunto, mas inteiramente inconscientes destas (ate o aparecimento 274

do thatcherismo). Bern mais instrutiva e a insistencia de Marx de que (a) a economia politica classica era um corpo de trabalho cientifico substancial e poderoso que, (b) entretanto, continha um limite ideologico essencial, uma distorcao. Essa distorc.ao, segundo Marx, nao se devia a erros tecnicos ou lacunas de argumentacao, mas a uma interdicao mais ampla. Especificamente, as caracteristicas distorcidas ou ideologicas advinham do fato de que elas pressupunham as categorias da economia politica burguesa como fundacoes de todo calculo economico, recusando-se a ver a determinacao historica de suas origens e premissas; e, na outra ponta, advinham do pressuposto de que, com a produgao capitalista, o desenvolvimento economico havia chegado nao apenas ao seu mais alto ponto naquele momento (Marx concordava com isso), mas tambem a seu apogeu e conclusao final. Nao poderia haver qualquer outra forma de relacao economica depois dele. Suas formas e relacoes continuariam para sempre. As distorcoes no interior da ideologia teorica burguesa em sua versao mais "cientifica" eram, contudo, reals e substanciais. Elas nao destruiam muitos aspectos de sua validade — portanto, esta nao era "falsa" apenas por estar confinada aos limites e horizontes do pensamento burgues. Por outro lado, as distorc,6es limitavam sua validade cientifica; sua capacidade de ir alem de certos pontos, sua habilidade de resolver suas proprias contradicoes internas, seu poder de pensar fora dos limites das relacoes socials refletidas nela. Essa relacao de Marx com os econornistas politicos classicos representa uma forma bem mais complexa de postular a relacao entre "verdade" e "falsidade" dentro do chamado pensamento cientifico do que podem supor os criticos de Marx. Na verdade, os criticos, em sua busca por um maior vigor teorico, uma divisao absoluta entre "ciencia" e "ideologia" e uma ruptura epistemologica clara entre ideias "burguesas" e "nao-burguesas", contribulram em muito para simplificar as relacoes que Marx nao tanto afirmou quanto estabeleceu na pratica (isto e, em termos de como ele realmente utilizou a economia politica classica como suporte e como adversario). Podemos renomear as "distorcoes" das quais Marx acusou a economia politica, para nos lembrarmos mais tarde de sua aplica^ao geral. Marx denominou-as eternaliza$5es de relacoes que, na 275


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