Da Diáspora

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operar diretamente sobre ela), algumas regioes preservaram por muito tempo urn carater de enclave virtualmente impenetravel. Foi necessario quase urn seculo para que os representantes da "lei e da ordem" — a nova policia — conquistassem urn ponto minimo de apoio dentro delas. Ao mesmo tempo, a penetracao das culturas das massas trabalhadoras e dos pobres urbanos foi mais profunda e mais continua — e mais constantemente "educativa" e reformadora — naquele periodo do que em qualquer outro desde entao. Um dos principals obstaculos que se interpoem a periodizacao da cultura popular e a profunda transformacao na cultura das classes populares que ocorre entre os anos de 1880 e 1920. Ha historias inteiras a serem escritas sobre esse periodo. Embora contenha provavelmente muitos detalhes incorretos, creio que o artigo de Gareth Stedman Jones sobre a "reformacao das classes trabalhadoras inglesas" chama a atencao para algo fundamental e qualitativamente diferente nesse periodo, que se caracterizou por profundas mudancas estruturais. Quanto mais o observamos, mais convencidos nos tornamos de que em algum momento desse periodo se encontra a matriz dos fatores e problemas a partir dos quais a nossa historia e nossos dilemas peculiares surgiram. Tudo mudou — nao foi apenas uma mudanca nas relacoes de forca, mas uma reconstituicao do proprio terreno da luta politica. Nao e por acaso que tantas das formas caracteristicas daquilo que hoje consideramos como cultura popular "tradicional" emergiram sob sua forma especificamente moderna, ou a partir dela, naquele periodo. O que se havia feito pelos anos 1790 e 1840 e que se estava fazendo pelo seculo dezoito precisa ser feito radicalmente pelo periodo que poderiamos chamar hoje de crise "social imperialista". O argumento geral apresentado anteriormente e verdadeiro, sem restricoes, para esse periodo, no que diz respeito a cultura popular. Nao existe um estrato "autentico", autonomo e isolado de cultura da classe trabalhadora. A maioria das formas de recreacao popular mais imediatas, por exemplo, estao saturadas de imperialismo popular. Poderiamos esperar outra coisa? Como explicar e o quefazercom a ideia da cultura de uma classe dominada que, apesar de suas complexas formacoes e diferenciacoes internas, manteve uma relacao 250

bem especifica com a grande reestruturacao do capital; que se relacionou de forma peculiar com o resto do mundo; um povo unido pelos mais complexes lacos a um conjunto variavel de relacoes e condicoes materiais; que conseguiu de alguma forma construir uma "cultura" que permaneceu intocada pela ideologia dominante mais poderosa — o imperialismo popular? Sobretudo por que essa ideologia, contrariando seu nome, foi tao dirigida para o povo quanto o foi para a mudanca de posicao da Gra-Bretanha na expansao capitalists mundial? Pensemos, em relacao ao imperialismo popular, sobre a historia e as relacoes entre o povo e um dos principals meios de expressao cultural: a imprensa. Voltando ao deslocamento e a superposi£ao — podemos perceber como a imprensa liberal da classe media da metade do seculo dezenove foi construida as custas da efetiva destruicao e marginalizacao da imprensa local radical da classe trabalhadora. Mas, alem desse processo, algo qualitativamente novo ocorre mais para o final do seculo dezenove e o comeco do seculo vinte nessa area: a efetiva insercao em massa de uma audiencia desenvolvida e madura da classe trabalhadora num novo tipo de imprensa comercial popular. As consequencias culturais disso foram profundas, embora a questao nao seja estritamente "cultural". Isso exigiu um reorganiza^ao geral da base de capital e da estrutura da industria cultural; o atrelamento a uma nova tecnologia e a novos processes de trabalho; o estabelecimento de novas formas de distribuicao, que operavam atraves dos novos mercados culturais de massa. Mas um dos seus efeitos principals foi a reconstituicao das relacoes politicas e culturais entre as classes dominantes e dominadas: uma mudanca intimamente ligada a contencao da democracia popular na qual "nosso estilo democratico de vida" hoje parece tao firmemente baseado. Seus resultados sao palpaveis ainda hoje: uma imprensa popular, que quanto mais se encolhe mais se torna estridente e virulenta; organizada pelo capital "para" as classes trabalhadoras; contudo, com raizes profundas e influentes na cultura e na linguagem do "Joao ninguem", "da gente"; com poder suficiente para representar para si mesma esta classe da forma mais tradicionalista. Esta e uma fatia da historia da "cultura popular" que vale a pena elucidar. 251


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