Da Diáspora

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atual sobre o "canone" parecem incapazes de fazer. (A sociologia as vezes merece a ma fama que tern; mas um pouco de sofisticacao sociologica nao faria mal aqui e acola).

A analise de Raymond Williams do funcionamento da "tradic/ao seletiva" e sua posterior desconstru^ao da "literatura" em modos de escrita adquiriram um sentido subversive no contexto do mesrno debate. u Para outros de n6s, foi a categoria do "popular" que efetivamente cortou o no gordiano, nao atraves de uma celebracao populista acntica, tao comum em alguns circulos, mas por haver perturbado os contornos estabelecidos e — precisamente — transgredido as fronteiras da classificagao cultural. Desde o advento do modernismo, e mesmo na era do "pos-modernismo", tern sido impossfvel manter o alto e o baixo cuidadosamente segregados em seus proprios locals no esquema de classificacao. Tentamos encontrar uma safda para o dilema binario, repensando o "popular" nao em termos de qualidades ou conteudos fixos, mas relacionalmente — como aquelas formas e praticas exclufdas do "valorizado" ou do "canone", ou opostas a estes, pelo funcionamento das praticas simbolicas de exclusao e fechamento.15 Em 1975, o Centro publicou um volume de ensaios sobre "As subculturas jovens no pos-guerra britanico". Embora esse volume tenha se tornado bastante influente na area, deslanchando um grande numero de estudos mais aprofundados, ele representa um comeco bastante precario. t citado aqui nao para que se possa resgata-lo da relativa obscuridade, mas por causa daquilo que esse texto nos revela sobre a concepipao das ideias de transgressao, inversao simbolica e contestae.ao cultural. O titulo do livro era Resistance through Rituals [Resistencia atraves de rituais]; a utilizagao de dois termos no titulo foi deliberada.16 Por "resistencia" sinalizavam-se as formas de desafiliacao (como os novos movimentos socials ligados a juventude) que, de certa forma, representavam as ameae.as e negociacoes corn a ordem dominante, que nao poderiam ser assimiladas pelas categorias tradicionais da luta revolucionaria de classes, Ja o termo "rituais" apontava para a dimensao simbolica desses movimentos — a estiliza^ao das acoes sociais, o "jogo" dos signos e simbolos, a "encenacao" 228

da resistencia e da repeticao nos teatros da vida cotidiana, o "efeito bricoleur" da dissociacao de fragmentos e emblemas de um discurso cultural e sua reassociacao em outro. Os rituais tambem sugeriam uma resposta para a questao, apresentada por muitos criticos sociais convencionais, de haver ou nao limites embutidos em todas essas formas de resistencia — por causa de sua qualidade gestual, sua dissociacao das agendas classicas de transformacao social, seu status — como se definiu na linguagem da epoca — de "solucoes magicas". Esta e uma questao seria — o proprio Bakhtin reconheceu que "nenhuma ligaclo consistente e estabelecida na maioria das vezes" — mas esta forma de expressar a questao tambem refletia a presence duradoura da crenca de que o simbolico nao poderia ser outra coisa senao uma categoria de segunda ordem, dependente. No contexto da presente discussao, o que parece mais significative e a forma como Resistance through Rituals se distanciou ativamente das metaforas classicas da "luta revolucionaria" e das antinomias reforma/revolucao, ao oferecer uma definigao ampliada de ruptura social. No lugar das dicotomias simples da "luta de classe", a obra inaugura a nocao gramsciana de "repertorios de resistencia" que, insiste-se ali, sempre foram historicamente especificos e conjunturalmente definidos. Tenta basear esses repertorios nao diretamente no binarismo rigido dos classicos conflitos de classe, mas em uma analise do "equilibrio nas relacoes de forca" conforme Gramsci desenvolve em sua analise da luta hegemonica. Negocia^ao, resistencia, luta: as relacoes entre uma formacao cultural subordinada e uma dominante, onde quer que se localizem nesse espectro, sao sempre intensamente ativas, sempre opostas num sentido estrutural (mesmo quando essa "oposi^ao" for latente, ou experimentada simplesmente como o estado normal das coisas ...). Seu resultado nao e dado, mas construido. A classe subordinada traz para esse "teatro de luta" um repertorio de estrategias e respostas — formas de lidar com situacoes e resisti-Ias. Cada "estrategia" no repertorio mobiliza certos elementos materials, sociais [e simbolicos]: os constroi como suportes para as diversas formas de vida das classes, [negocia] e resiste a continua subordinacao das mesmas. Nem todas as estrategias tern o mesmo peso; nem todas sao potencialmente contra-hegemonicas.17 229


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