Revista Maracajá 6

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Realização Apoio

ARTIGO

Nilto Maciel: a herança de um contista inclassificável

Araceli Sobreira Benevides

O Amor de um bom Amigo

Tércia Montenegro

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FLORES DE AÇUCENA

Trevas do Dia

Rogaciano Leite Filho

A Morte do Jangadeiro

Pe. Antônio Tomaz

Verde

Júlio Maciel

As Doces Meninas de Outrora

Horácio Dídimo

CRISTALEIRA

Um brinde à cidade e ao país de Airton Monte

Ana Karla Dubiella

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GENTE ILUSTRADA

Walber Feijó

RADIADORA

Eudismar Mendes

Lisiane Forte

Luciano Bonfim

Magna Maricelle

Tainá Aquino

Bôscoly Morais

Rinaldo de Fernandes

Kelson Oliveira

Argentina Castro

Antônio Beethoven

Hermínia Lima

Fernanda Quinderé

Lourdinha Leite Barbosa

Diogo Fontenelle

Mônica Silveira

Cícero Almeida

Anielly Aquino

Joan Edesson de Oliveira

Cândido Rolim

Carlos Gildemar Pontes

Deive Maria Agostinho

Cândido B.C. Neto

Elton Danana

William Lial

Cid Carvalho

Franklin Viana

Flávio San

Majela Colares

Marly Vasconcelos

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TIRAGOSTOS

Os FitoManos

Raymundo Netto

Artista da Capa Fernando França

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA

João Dummar Neto presidência

André Avelino de Azevedo direção administrativo-financeira

Raymundo Netto

gerente editorial e de projetos

Emanuela Fernandes análise de projetos

MARACAJÁ

Raymundo Netto curadoria, pesquisa e edição geral

Emanuela Fernandes assistência editorial

Araceli Sobreira Benevides, Tércia Montenegro, Ana Karla Dubiella, Walber Feijó e Raymundo Netto colaboraram nesta edição com textos e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”)

Fernando França ilustrações

Amaurício Cortez editor de design

Giselle Fernandes projeto gráfico

Amaurício Cortez editoração eletrônica

Karlson Gracie tipografia Maracajá

revistamaracaja@gmail.com contato

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo a opinião deste suplemento ou de seus editores.

Este suplemento literário mensal é parte integrante do Projeto Maracajá: Vida & Arte, em decorrência do Contrato de Patrocínio celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, sob o nº 69/2018.

ISSN 2596-1373

Para ler todas as edições da revista Maracajá e assistir a todas as suas videoentrevistas, acesse: fdr.org.br/ maracaja

Todos os direitos desta edição reservados à:

Fundação Demócrito Rocha

Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará

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04 08
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“A arte é um doce veneno, meu amigo, que somente os eleitos provarão.”

Filgueiras Lima

(“Canção dos que sofrem”)

Quando de minha passagem pela Coordenadoria de Políticas de Livros e de Acervo da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (2008-2011), deram-me a responsabilidade — entre tantas outras ditadas pela falta de pessoal e/ou de interesse — de selecionar, editar e publicar títulos de autores cearenses. Havia recursos para a diagramação e impressão. Para pesquisa, edição, seleção de imagens, elaboração dos elementos pré-textuais, revisão, ilustração, criação de projeto gráfico e capas... não!

Como sou ruim de dizer "não posso" ou "não consigo", encarei o desafio, me virei como pude (e não podia) e lançamos mais de 100 títulos apenas em nossas coleções, não contando com o número de obras acolhidas por editais e aqueles 110 elencados pelo Prêmio Literário para Autor(a) Cearense, o primeiro a premiar os nossos autores pela sua criação, coisa que só aconteceu no Ceará desta vez e nunca mais, assim como após a minha saída da Secult o fôlego de publicações desapareceu completamente.

Dessa leva, descobrimos que boa parte das obras literárias em nosso estado, mesmo aquelas que são consideradas marcos de nossa literatura, nunca tiveram uma segunda edição. E que, mesmo essas, foram produzidas em tiragens muito restritas, de 300 a 500 exemplares, o que as invisibiliza, não permitindo o seu acesso para análises, estudo, pesquisa ou mesmo para a simples e necessária fruição.

Daí, essa revista Maracajá ser um oásis de um deserto sem profeta. Durante as 6 edições impressas e distribuídas e as respectivas videoentrevistas exclusivas produzidas e veiculadas com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza (SecultFOR) e da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, nós tivemos a oportunidade de trazer luz a alguns de nossos autores injustamente esquecidos (são muitos ou quase todos) e de apresentar ao mundo internético cerca de 140 autores vivíssimos (gostaríamos de ter sido mais), de todas as tabas alencarinas, entre poetas, contistas, ensaístas, ilustradores e quadrinistas, sendo para alguns desses a sua primeira publicação. E com que alegria recebemos todos os meses, encartado em jornal – a contramão mundial — um suplemento literário novinho em folha, “Meidin Ceará”. Agradecendo a todos os leitores e também a todos os colaboradores (autores, divulgadores e pontos de distribuição) e parceiros, encerramos o primeiro ciclo de edição da Maracajá. Os 90 anos se foram, mas acreditamos em um amanhã — um breve e ultraidílico outro dia — no qual sorriremos novidades. Vida longa ao que vale ser vivido!

Raymundo Netto

Curador e editor do (sonho) Maracajá

3 Do Alpendre

Nilto Maciel:

a herança de um contista inclassificável

foto:

Desde a publicação de seu primeiro livro de contos, Itinerários (1974), Nilto Maciel é um privilegiado contista. Produtor de histórias por 40 anos, a narrativa curta é a sua especialidade. As gerações atuais necessitam conhecer a obra de desse incansável escritor, cuja herança ficcional não pode ficar apenas ao círculo de amizade de escritores. Os leitores jovens, leitores estudantes do ensino básico, o público em geral não conhece sua obra detalhadamente, muito menos a plasticidade de seus contos. Isso é uma generalização, concordo, contudo, cabe a leitores mais experientes a tarefa de se levar o mundo de Nilto Maciel aos jovens.

O desenho de suas histórias, a narrativa linear e sintética e o humor dão vida a personagens comuns e incomuns. Alguns possíveis de serem encontrados bem ali na praça do Ferreira, enquanto outros são seres tirados de um mundo infinito, fantástico, avesso a classificações. A estética característica de sua linguagem dá ao autor uma fina percepção das possíveis realidades narradas por contistas brasileiros dos anos de 1970

Artigo
acervo Raymundo Netto

a 1980, como Murilo Rubião, Moacyr Scliar, J.J. Veiga e o próprio Drummond.

Nilto Maciel produziu sem descanso. Cuidava dos detalhes de cada cena, fosse ela a mais simples cena de um incêndio em uma fábrica de descaroçar algodão (ler “Incêndio”, em Contos Reunidos) a uma história sobre o fim/começo do mundo como se vê no inusitado “O Mundo Estaliano”. Esse conto provoca no leitor um efeito singular quando o personagem central, um tirano controlador e vigilante das ações humanas, procura uma nova saída para seu dilema de não dar conta do engendrado sistema social criado para proibir o nascimento de novas gerações até chegar à total destruição do agir reprodutivo. Algo sempre lhe escapa: o amor sobrevive e gera o grande conflito que também encontramos em 1984, de George Orwell; com uma singela diferença: a densidade provocada pelas proibições e vigilância na sociedade estaliana é exposta em três páginas apenas!

Peripécias de Nilto Maciel.

Em Luz Vermelha que se Azula, o mérito maior de sua prosa repousa-se na inserção de personagens históricos (Hitler, Jesus, Freud, entre outros) em seus cotidianos, como mesquinhos, individualistas, insaciáveis. As histórias ficam contemporaneamente mais curtas, baseadas em uma ou duas cenas, e isso é uma tendência estilística muito cativante, principalmente para a formação de novos leitores de literatura.

Outro caminho que o contista Maciel revisita é o de inserir temáticas vindas dos fatos históricos e científicos da humanidade, desenvolvendo personagens fantásticos, misteriosos, cujos papéis

reconstituem a vida simples, memorialística, às vezes, no limiar, como é caso do “Primeiro Homúnculo” e de “Um Coveiro Monstruoso”, ambos em Contos Reunidos. Por isso afirmo ser o seu estilo inclassificável. Não cabe em uma caixinha de características essencialistas. Ao contrário, o acontecimento de sua palavra literária é amplo e dialógico, no sentido bakhtiniano do termo.

Misturando um saber clássico e uma criatividade provocadora, esse cearense de Baturité precisa sair dos muros de um mundo fechado e entrar na vida, no diálogo cotidiano do novo público presente nos espaços culturais e educacionais que formam leitor de literatura.

Araceli Sobreira Benevides aracelisobreira@yahoo.com.br

Escritora que vive em terras potiguares. Professora de Literatura. Estudiosa da Análise Dialógica do Discurso.

Para conhecer mais sobre Nilto Maciel e a sua produção Indicamos a leitura do blog “Literatura sem Fronteiras”, criado pelo próprio autor: literaturasemfronteiras.

blogspot.com

5 Artigo
Misturando um saber clássico e uma criatividade provocadora, esse cearense de Baturité precisa sair dos muros de um mundo fechado e entrar na vida

Tércia Montenegro, Ana Miranda, Pedro Salgueiro e Caio Porfírio Carneiro

O Amor de um bom Amigo

Minha memória entra em loop sempre que desejo: volto àquela noite na livraria Café com Letras, onde havia algum evento — um sarau, lançamento? Não lembro mais — e no meio do barulho escuto alguém chamar “Pedro Salgueiro!” Olhei na direção de onde vinha a voz; fui lá, rompendo a timidez dos meus 17 anos, e me apresentei. Pouco tempo depois, saía O Peso do Morto, livro de estreia desse autor que conheci antes pelos contos lidos aqui e acolá, com entusiasmo.

Muita literatura se passou desde então. Foi Pedro — não esqueço! — quem me apresentou Kafka, Quiroga, Rulfo, Munro... Até hoje ele continua me indicando novos nomes (seus presentes são invariavelmente livros); prossegue sendo um dos

6 Artigo
foto: acervo Raymundo Netto

leitores mais compulsivos que conheço — e este é o fundamento óbvio da qualidade do que ele escreve. Os seus contos têm o estilo da sua existência: o mesmo olhar arguto, objetivo, persistente. Numa época em que pela mídia se regurgitam tantas frases feitas, é um conforto (re)ler um autor como Pedro Salgueiro. Ele aposta na própria coerência e sabe que o mais importante é a criação de um universo particular, inconfundível. Só busca isso quem tem alma de artista.

Ao longo do tempo, ambos construímos narrativas dentro e fora de nossas vidas. Sei que dei alguns sustos em Pedro: ele sempre tão calmo, com a voz baixa e os gestos discretos, muitas vezes considerou minhas viagens ou aventuras com espanto. Quando nos encontrávamos e eu falava dos riscos que tinha vencido, escapando de situações tão diversas, geralmente ele ria, jogando a cabeça para trás: “Mulher, se aquieta!”. Em outras ocasiões, quando eu estava superando relacionamentos funestos, ele me fazia ver o lado engraçado da coisa. Pedro sabe como ninguém transformar pessoas em personagens – e há momentos em que apenas se precisa enxergar um desafeto de modo caricato. Gente rala feito caldo de bila, como Pedro costuma dizer, encontrando valores nos inimigos.

Tenho muitas outras cenas na memória. Encontros no Bosque de Letras, reuniões para projetos coletivos — antologias, revistas — aniversários, almoços,

passeios e alguns atritos também, que toda amizade fiel conhece pontos nevrálgicos. Mas no conjunto carrego uma certeza maior: se a literatura me trouxe alegrias, a mais especial delas é conviver há décadas com o Pedro Salgueiro. Mesmo se passamos por hiatos de silêncio, cada reencontro se faz tão espontâneo que percebo, ao vê-lo, o imutável amor de um bom amigo.

Tércia Montenegro

literatercia3@gmail.com

Graduada e mestre em Letras e doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará(UFC). Hoje, é professora adjunta da UFC, junto ao Departamento de Letras Vernáculas. Escritora, iniciou a carreira como ficcionista com a publicação de O vendedor de Judas (EDR). Em 2000, com Linha férrea, venceu o prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, promovido pela revista Cult. De sua autoria, O resto de teu corpo no aquário, (Edital de Incentivo às Artes da Secult), O tempo em estado sólido (prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura e o prêmio nacional Ideal Clube de Literatura), Rachel: o mundo por escrito (EDR), Os espantos (EDR), Turismo para cegos (Companhia das Letras - Programa Petrobras Cultural e Prêmio Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional, como o melhor romance do ano)

Mais sobre Pedro Salgueiro

Nasceu em Tamboril, em 1964. Publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005 - indicado pela Universidade Federal do Ceará para o seu vestibular, em 2005 e 2006) e Inimigos (2007 – finalista do Prêmio Jabuti em 2008), de contos; além de Fortaleza Voadora (2006), de crônicas, e Pici (2014), de pesquisa histórica. Entre suas premiações, Prêmio da União Latina/Concurso

Guimarães Rosa (Radio France Internationale – RFI). É cronista convidado do Caderno Vida & Arte do jornal O POVO, desde 2007, coeditor das revistas literárias CAOS Portátil e Para Mamíferos e organizou, em parceria, o Almanaque de Contos Cearenses (1997) e O Cravo Roxo do Diabo: o conto fantástico no Ceará (2011). Participou de diversas antologias nacionais.

Artigo 7
Os seus contos têm o estilo da sua existência: o mesmo olhar arguto, objetivo, persistente

Cristaleira

Um brinde à cidade e ao país de

Airton Monte

Embriagai-vos. É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o horrível fardo do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como quiseres.

Era uma tarde de sábado, quando o conheci em uma roda de samba da cidade. Até então, a referência mais forte que tinha dele era o caderno em que minha mãe, cuidadosamente, colecionava suas crônicas. Naquele tempo, nem imaginava que um dia iria pesquisar um gênero tão brejeiro quanto desprestigiado como a crônica (academicamente falando, é claro).

Ao me sentar ao lado de Airton Monte, entre goles e requebros febris, o que mais me chamou a atenção, instantaneamente, foi o seu olhar úmido, que contradizia seu bom humor e me remetia a algo preso em uma gruta, um sentimento, uma sensação de profundidade escorregadia e recôndita, que também se insinuava em seus textos. Era assim que eu via (e ainda vejo) a crônica de Airton Monte, que teve início entre 1987/88, em um jornal semanal, tipo tabloide, um encarte do Jornal do Dorian (JD). O presidente era o Neno Cavalcante e o diretor-executivo era o Gervásio de Paula. E se firmou diariamente, nas páginas do jornal O POVO, até que ele nos deixou, em 2012.

foto: acervo Raymundo Netto

Logo ao aposentar a caneta, a máquina de datilografar e aderir ao computador, o escritor/psiquiatra começou a receber diariamente e-mails de leitores de todas as idades, criticando ou elogiando seus textos, o que, segundo me afirmou, o surpreendeu. Desde Moça com flor na boca, sua primeira coletânea (que acabou indicada para a seleção de vestibular da UFC), a linguagem de Airton Monte tem o poder de encantar (“a maior parte dos meus leitores são mulheres — e mulheres de 40 anos para cima — e uma grande parte de aposentados”, dizia).

Em 2004, resolvi entrevistá-lo em minha primeira pesquisa acadêmica (e que está no livro A traição das elegantes pelos pobres homens ricos: uma leitura da crítica social em Rubem Braga). Foi ele que me fez pensar sobre a grandeza do gênero litero-jornalístico e sua relação umbilical com a cidade, todas as cidades: “não tem um jornal, do menor jornalzinho de uma pequena cidade do interior ao maior, que não tenha um cronista. Até televisão tem um. A TV se rendeu, desde Paulo Francis até o Jabor. Aqui, o jornalista Rogaciano

Leite Filho já fazia uma espécie de crônica na TV Verdes Mares; o Lustosa fez, o Guilherme Neto fazia; o rádio, com o Narcélio Limaverde, por exemplo, faz”.

Fã de Caio Cid e Milton Dias, Rubem Braga e Cony, Airton Monte conceitua sua obra com uma palavra: vida. E, dentro dela, a amizade, a mulher, a noite e a boemia, a infância, a política e o futebol, emoldurados pelo

humor e pela melancolia, ora desencantada, ora tipicamente cearense, ao rir de si mesma para sobreviver. De bar em bar, a prosa e a poesia — a proesia, no dizer de Affonso Romano de Sant’Anna — correm frouxas e viram literatura: “Porque nós gostamos de botequins. Por isso que a gente frequenta o Flórida Bar que tem 60 anos, que nossos pais frequentavam. E o bar pra gente é isso (...) um espaço urbano onde nos reuníamos para discutir as coisas. Nós éramos uma geração, a geração de 60, que nos interessávamos pelo Brasil! Que líamos Paulo Freire, que líamos Gilberto Freyre, Caio Prado Jr, a gente queria saber que país era esse que a gente vivia. Coisas que a gente não vê mais”1... Mas que costumamos ler, ainda, nas crônicas de Airton Monte.

Possui graduaço em Comunicação Social, especialização em Estudos Literários e Culturais e mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará. Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente, professora de Jornalismo, Gestora de Pesquisa e TCC no Centro universitário Inta (Uninta). É autora dos livros

A traição das elegantes pelos pobres homens ricos: uma leitura da crítica social em Rubem Braga (Edufes, 2007), Um coração

postiço: a formação da crônica de Rubem Braga (CCBNB, 2010) e a adaptação de sua tese de doutorado As cidades de Rubem Braga e W. Benjamin: flanando entre Rio, Cachoeiro e Paris (Lumiar, 2017).

Para conhecer mais de Airton Monte

A Primeira Esquina, de Airton Monte (EDR). O livro pode ser adquirido na Livraria Dummar: Endereço físico: Av. Aguanambi, 282, Joaquim

Távora (anexo à sede do jornal O POVO)

Endereço virtual (e-commerce): livrariadummar.com.br

1 “Entre copos, conversas e canções: um estilo ‘boêmio’ de viver a cidade” é a tese apresentada pela autora ao curso de doutorado em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos para obtenção do título de doutor em Sociologia. Em destaque, trecho da entrevista com Airton Monte.

Cristaleira 9

Flores de Açucena

Trevas do Dia

Na noite do mundo a nuvem gélida do sonho percorre meus ossos vazados trazendo dos corações atômicos

das palavras não ditas

dos circuitos elétricos

das memórias esquecidas

dos braços partidos

das mortes insensíveis

dos olhos vendados

das ideias falidas

dos sentimentos perdidos

das bombas mortais

dos Deuses escondidos

O nascer da morte

No começo do dia.

A Morte do Jangadeiro

Ao sopro do terral abrindo a vela, Na esteira azul das águas arrastada, Segue veloz a intrépida jangada, Entre os uivos do mar que se encapela.

Prudente, o jangadeiro se acautela Contra os mil acidentes da jornada; Fazem-lhe, entanto, guerra encarniçada O vento, a chuva, os raios, a procela.

Súbito, um raio o prostra e, furioso, Da jangada o despeja nágua escura; E, em brancos véus de espuma, o desditoso

Envolve e traga a onda entumecida, Dando-lhe, assim, mortalha e sepultura O mesmo mar que o pão lhe dera em vida.

Verde

Há uma ressurreição no Sertão rudo. Uma ressurreição! – Verde e risonho É o vale, verde a serra, é verde tudo Em que os meus olhos, deslumbrado, ponho.

Bruto alcantil de aspecto mau, desnudo Esvão de terra, ríspido e tristonho. — Agora, tem branduras de veludo, Verdes agora os vejo, como em sonho!

Em cisma, a sós, contemplo verde liana, Verde, tão verde, com carícia humana As ruínas afagando a uma tapera.

E, na contemplação que me não cansa, Sinto quão doce és tu, cor da Esperança, — Até nos olhos de quem nada espera.

As Doces Meninas de Outrora

as doces meninas de outrora amanheceram

vestiram os vestidos novos pintaram as unhas de vermelho por um instante resplandeceram depois baixaram as cabecinhas louras e envelheceram como as flores

Nascido em Maranguape-CE (1970), Walber Feijó cresceu sob influência das Histórias em Quadrinhos de onde tirou inspiração para o desenho. Formado em Administração de Empresas pela Uece, entrou em contato com a Oficina de Quadrinhos da UFC por volta de 1990, onde colaborou com vários projetos, inclusive no álbum Moreira Campos em Quadrinhos Teve trabalhos publicados na revista Manicomics e Brazilian Heavy Metal e, atualmente, compõe o grupo Armagem Herética. Além de quadrinhos, trabalha com pinturas, ilustrações e retratos, especializando-se em técnicas como pastel e aquarela, como na ilustração “Jeri” (21x30cm), escolhida pelo artista para esta seção.

11 Gente Ilustrada
Walber Feijó

Radiadora

A Última Música Navegantes

A noite caíra. Na abertura do crepúsculo o show começa. Todos se divertiam no anfiteatro repleto, ao som do jazz. De repente, a orquestra silenciou. Como num ritual, os músicos saíram em fila indiana, permanecendo apenas o gaiteiro. Era um homem alto, olhos ardentes, tinha aproximadamente cinquenta anos, vestia com elegância uma camisa de seda vermelha e usava um chapéu panamá. Fumava cigarro numa piteira de metal e conduzia atitudes nervosas.

Com a saída dos músicos, Franco continuou tocando frenéticamente. As pessoas que estavam no local tinham a impressão de que não estavam ali por acaso. O ar estava denso. Mesmo assim, os indivíduos imitavam com seus corpos a cadência do músico.

A noite estava além da madrugada. As pessoas já demonstravam cansaço, mas o gaiteiro não parava de tocar. Parecia mais inspirado ao ficar sozinho.

De repente, um susto! Os outros componentes da orquestra voltaram e recomeçaram o jaz num volume ensurdecedor.

Fiquei estarrecida! Não tinha coragem para levantar-me. Aquela música, sinistra, parecia tocada por mil demônios. Finquei pé e jurei que só sairia dali ao final do espetáculo.

Novo sobressalto. O grupo de músicos que retornara foi engolido um a um, por uma enorme e repugnável aranha que se movimentava em gigantesca teia sobre o palco. Mesmo assim, o gaiteiro continuava tocando com uma força sobrenatural.

Nesse exato momento entrou a moça realizando acrobacia numa corda de pano.

De início subiu, e, a certa altura da corda, acomodou-se quieta. Fiquei intrigada com a atitude da acrobata. Mas de repente ao vê-la serpenteando naqueles panos, senti simpatia por ela. Isso porque não havia nenhuma rede de proteção. Verifiquei posteriormente que nem precisava, pois, num passe de mágica, a contorcionista foi subindo até desaparecer numa fresta do teto.

Revi meus sete anos em um circo mambembe. As estacas fincadas ao chão sustentavam uma empanada de lona rasgada. Os atores a fazer propaganda de uma “peça”: Os salteadores da Calábria.

Fui selecionada para ser um salteador. Às 19h30min lá estava eu a receber um tiro. Pei! Caí durinha. Foi o suficiente para atuar nas noites subsequentes.

Esta minha primeira atuação me acompanhou por toda infância e adolescência. Fiz vários dramas posteriormente.

Meio a essas conjeturas, verifico que o gaiteiro não terminou aquela música louca, pois morreu de repente. Uma multidão de pernetas adentrou o palco e apoderou-se do músico.

Voltei ao passado mais uma vez ao verificar que cobriram o corpo dele com panos velhos, colocaram-no em uma fianga carregada por dois homens. Os mortos da minha infância eram levados para ser sepultados desse mesmo jeito. Entretanto, aquele ilustre músico não chegou a ser enterrado, pois surgiu um fogaréu que consumiu a ele e aos dois homens que o carregavam.

Eudismar Mendes

eudis_dinda@hotmail.com

Caço, sedenta, a saudade que irrompe como uma onda tempestiva — veloz e feroz.

Feitio aquático dessas marés cheias. Fecho os olhos salobros e busco sentir o que, talvez, nem tenha mesmo acontecido; coisas dos raios que caem atormentados e indiscretos sobre o mar.

O percurso estrondoso marcha de solas grossas sobre as minhas recordações.

E são tantas — todas elas; saudades, escolhas e marés que enfrentei.

Morri e nasci muitas vezes, esforçando-me a respirar dos instantes que tirei o sal da minha boca insaciável, que engolia tudo e ainda tinha sede e fome; das águas salgadas e das algas vermelhas.

Pés molhados, sobreviventes, sobre as conchas cortantes e recifes pontiagudos. E o mel que descia era puro sangue, dos cortes e das saudades que nem sei se existiram.

A maresia tem odores que dependem dos mergulhos.

Radiadora 12

As Pessoas Sentem Inveja da Felicidade Alheia

Muita fumaça de cigarro pela casa ao passo que eles enchem a cara de literatura. Primeiro beberam muitas doses de Hilda Hilst. Depois deram cabo de três garrafas de Neruda e tantas outras de Bukowski.

Com os olhinhos carregados de chama, ela falou que o melhor carinho do mundo é ser feliz com quem se ama e que o amor é uma bebida fina que aos beberrões é dada a sorte de degustar, entretanto poucos sabem apreciar o raro sabor.

Ela lhe contou: todas as noites tenho o mesmo sonho. Viajo dentro de uma garrafa de vidro escuro e caio numa piscina de água transparente. A piscina é habitada por rinocerontes. Eles me empurram cada vez mais para o fundo. Sufocam-me. Choro e me esforço para sair da água, em vão. Sinto uma imensa vontade de andar pela cidade tendo como única companhia um guarda-chuva. O guarda-chuva tem o poder de admoestar rinocerontes.

A cada noite o guarda-chuva se apresenta de uma forma diferente. Foi presente de um homem bem mais velho por quem sinto afeto. O homem não tem um rosto definido. Muitas vezes é um par de botas sem cadarços. Noutras um pedaço de vidro cortante e ainda me aparece como se fosse um jardim onde eu gostaria de pisar suave e deitar na grama. O homem nunca fala e, independente da forma, quando vai embora leva consigo o guarda-chuva.

Há uma Gota de Sangue em cada  Lágrima

Quando ele some, surgem golfinhos que saltam sobre as nuvens em pleno céu sem nuvens. Pois as nuvens são os próprios golfinhos que se transformam na nuvem seguinte que os irá receber do mergulho. Olho para o chão e vejo miniaturas de árvores esquecidas no bolso dos transeuntes da cidade. Neste momento sinto que meus pés tocam o chão, contudo o chão é feito de jornais velhos e folhas arrancadas de livros abandonados. Sempre acordo neste momento.

Para fechar a noite, ela disse que o amor é uma iguaria servida para glutões. Sem dizer palavras, ele se aproximou e, bem de leve, lhe acariciou os cabelos, depois abriu outras garrafas de literatura e ali mesmo sobre o tapete da sala embriagaram-se de Drummond ao natural.

Lá fora, a lua parecia um traço inspirado no bigode de Dalí. E eles sabem muito bem que lá fora as pessoas sentem inveja da felicidade alheia.

Agora, ela dorme e ele está sozinho e nu diante do espelho. Canta e dança no tempo em que ela se embaraça com rinocerontes e guarda-chuvas. Daqui a pouco será um novo caos. Daqui a pouco será um novo cosmos. A saudade é uma canção em movimento que se propaga e propõe um depois. Daqui a pouco nada será.

lucianogbonfim@gmail.com

Uma mulher do sertão nordestino deu à luz a um cacto. Todas as vezes em que se mexia dentro de sua barriga, sentia dores provocadas pelos espinhos em formação, penetrando sutilmente a sua carne. Mas não lamentava. Esperava com ansiedade seu nascimento para tê-lo em seus braços. Sonhava beijando-o, mesmo que as pontas de seus espinhos lhe fizessem sangrar os lábios… Só desejava afagá-lo com suas mãos.

O cacto cresceu. Depois de um período de forte seca, em que nada vingava (nem mesmo o amor que só precisa de um coração a pulsar), a mulher sucumbiu. A morte foi silenciosa e súbita. O cacto todos os dias chorava, chorava, até acumular uma boa reserva de água que o fizera resistir à seca. Chorava em silêncio, para dentro de si mesmo. Sobreviveu à intempérie, sem a esperança, entretanto, de ser novamente amado.

Na companhia de seus próprios espinhos e da solidão de suas flores hermafroditas, só o que tinha de seu era a própria vida, além da última lembrança de sua mãe: uma gota de sangue a pingar da ponta de um espinho.

Radiadora 13

Morgana de Tinta

Conheci Morgana num museu e logo ficou o registro do seu fascínio pelas obras de arte.

Dispersava-se do mundo e entrava em não sei que modo interior de apreciação, não se abalando pelo som do seu nome sendo chamado ou pelas andanças das pessoas ao redor. Nossa amizade surgiu e se estendeu pelas galerias, firmada na simples existência dos vícios que se completam. Ela, com sua mania de imergir nas sensações das obras, e eu, com a minha fascinação secreta pelas expressões que adornavam os rostos quando estavam diante do que se julgava ter valor artístico.

Não era incomum observar o riso, a crítica ou o completo desinteresse. Muitas pessoas iam a esses lugares apenas pelas taças de champanhe e pelas fotos, o que dessa vez não era o caso.

Entre as peças de arte, escadarias e tapetes, Morgana sorria para as estátuas, recostava-se às colunas, apalpava até mesmo o frio das paredes. Não tinha nenhuma angústia, mas os olhos pareciam reluzir, sonhadores de algo impossível.

Um dia me revelou seu desejo. Queria fazer parte das telas, entrar nas texturas de tinta, se integrar nos balaústres ou até mesmo se desfazer no acúmulo de poeira em lugares já impossíveis de limpar, que era para fazer ali morada.

Eu ria dela, sem conseguir lhe revelar as minhas próprias estranhezas em fotografar com os olhos aquelas expressões. Pensava que o comum seria querer pintar uma obra, escrever livros, criar esculturas. Mas isso de sonhar adentrar as criações eu nunca ouvi.

Morgana dizia, resoluta, que encontraria um jeito. Eu só acreditei depois que desapareceu.

Os amigos e a família relataram seu sumiço com verdadeira aflição. Não lhe acharam em lugar que fosse, e longos foram os dias de procura e medo por sua vida. Já eu, em andanças apressadas por museus e galerias, procurando-a em pessoas e rostos que nunca a viam, fui lhe achar numa pintura, sorrindo entre camponeses enquanto jogava flores sobre o solo já verde.

Nos olhos da tela já não havia aquela sombra do que nunca se realiza. Estava feliz.

taidaquino@hotmail.com

O Vaso de Louça

A chegada do mês de junho foi, por muito tempo, motivo de alegria porque prenunciava as férias escolares. Os dias passavam levemente e os problemas do cotidiano ficavam em segundo plano. Em tudo o que eu fazia, havia um ar de descontração e, paradoxalmente, muita ansiedade, nem tanto pelos próximos dias de descanso, mas, principalmente, por causa da viagem que sempre fazíamos no mês de julho para o sítio dos meus avós.

Melhor do que o encontro com os primos e a liberdade de correr e brincar à vontade, era o momento da chegada. Havia sempre o mesmo ritual: primeiro —  e o mais importante de todos —  ainda na varanda, entre as redes, eu recebia, dos anfitriões, um abraço amoroso que só os avós sabem dar. Depois, todos iam até a pequena cozinha que ficava cheia de gente conversando alto enquanto meu avô preparava o café. Assim que minha avó me via, pegava um vaso de louça e me pedia para colher algumas flores para enfeitar a mesa que já era coberta por uma toalha estampada sob um grosso plástico — ela dizia que era para não sujar a mesa. Eu ia até o jardim e voltava feito um raio. Pronto. Estava ali o meu lugar ideal: a família reunida entre o aroma do café e o perfume das flores.

Assim foi durante muito tempo até que, em um mês de novembro, fiz a mais triste das viagens que sempre fazia nas férias. Dessa vez, tudo era diferente: os dias ficaram mais lentos e a tristeza sufocava qualquer outro sentimento que tentasse surgir.

Já no sítio, em vez de redes na varanda, estava um caixão. Parei, olhei para o meu avô que parecia dormir, observei todo o ambiente, mas não derramei uma lágrima sequer. Então me vi capaz de afagar os mais sofridos e fui entrando vagarosamente na casa até chegar à cozinha onde estava minha querida avó sentada em uma cadeira próxima à mesa. Não havia o cheiro do café, não havia mais ninguém além dela e da solidão.

Quando me viu chegar, me deu um longo abraço. Caminhou com dificuldade, foi até o armário, pegou o vaso de louça e antes que falasse qualquer coisa, eu já sabia o que deveria fazer enquanto enxugava minhas lágrimas.

Radiadora
Bôscoly Morais boscolyms@hotmail.com

ÚTERO

Faltou energia de madrugada no meu prédio. Tive que descer, do oitavo andar, pelas escadas escuras, pelo útero do edifício. E me perdi. Dentro do útero tateei saídas, mas sempre errava a porta, sempre esbarrava contra o maciço da parede. O sufoco e o calor excessivo me deixavam molhado. O escuro redobrava o calor, calava em meus músculos grandes bolhas de suor, que me empapavam a camisa. Eu subia e descia, me contorcia dentro do útero, mas sequer um fiozinho de vento eu puxava de um orifício, porque não havia orifício algum. Teve um momento que emborquei dentro do útero, depois de tropeçar numa perna. Aí eu senti o cheiro do perfume barato do meu vizinho que no fim de semana me cuspira no rosto a palavra larápio. O pilantra estava ali também procurando sair do útero. Subiu uma raiva por eu estar ali tão próximo do escroto, que, me guiando pelo perfume, resolvi apanhar o cabelo dele e lhe dar um puxão para conter o canalha num soco. Dentro do útero do prédio eu esbofeteei meu vizinho que me menosprezava por eu ter dois carros munidos, um

deles uma máquina robusta, para bater trilha. Os dentes dele aí se cravaram em meu braço, eu dei um urro e arranquei contra ele, dei-lhe sopapos e mais sopapos, nos atracamos, bolamos por alguns degraus da escada, sem falar nada um para o outro, sem saber do rosto um do outro, eu apenas me guiando pelo cheiro fétido do perfume, dávamos bracejadas, um tentando rebentar o outro, eu já sentindo o filete de sangue escorrer do meu supercílio, eu já ensaboando os dedos da mão no sangue do meu rival, nos engalfinhamos mais, a fúria sem fim, cotovelos contra cotovelos, respirações assopradas, rancor de anos de um pelo outro, e eu o esmurrei, esmurrei mais nas costas, como se querendo fazer seu pulmão berrar, e ele me trancou o pescoço com o braço,

e me apertou, fechou tão bem o aperto que eu quase desmaio, eu aí consegui lhe dar um esbarrão contra a parede, desmoronei-o contra a quina da escada, ele rangeu os ossos e roncou, mas logo se encurvou, transferiu-me um golpe violento na barriga, e de novo nos embolamos e emborcamos e desabamos pela escada até que violamos uma porta e fomos expulsos para o meio do piso brilhoso da recepção, duas criaturas geradas do escuro, ensopadas de ódio, o porteiro assustado e se dirigindo para registrar tão repentino parto no livro de ocorrência.

Radiadora
Rinaldo de Fernandes rinaldofernandes@uol.com.br

Radiadora

Amanhecer

Morei em um lugar  que ainda não existia. Criamos as casas e as músicas os pássaros e os consensos. Uma velha de cem anos me contou que com o tempo tudo mudaria, e como mudaria:

pois os extravios e erros chegam logo após o terceiro ou quarto amanhecer. Desde então, maquino todas as noites um novo lugar para a vida.

Ainda ajudo a criar este lugar onde o amanhecer não seja o fardo dos ombros nem a condenação dos dias e sim o presente do mundo.

Outros Voos

Retiro, um a um, teus dedos presos, ainda hoje, em meus cabelos. Secura tua, fez rachar o chão do meu coração

Já não espero. Nada mesmo nos prometemos.

Sigo outros voos que não passam pelo teu quintal. Tá silencioso meu coração

Arrisco beijos de outro colibri

Pelo menos ele me vê, me escuta, me sente e, principalmente, me lê. De silêncio e securas não guardo lembranças. Uso cores de Frida Khalo me perco entre borboletas e, quem quiser, que venha comigo.

Argentina Castro argesales@gmail.com

O Pedreiro

Constrói-se um verso a partir de palavras unidas pela argamassa da gramática, dentro dos imensos blocos de cimento armado da imaginação, a encadear paredes de pensamento sobre pilares de sentimento.

Definitivamente, não sou engenheiro do verso. Se engenheiro eu fora, meus versos seriam abstrações concretas de uma firme, firme, firme suavidade.

Amálgama

A tua alma sabe que a minha aura brilha quando te vê. Por isso ela se lança, antes de ti, buscando acender a luz que tu não podes ver.

Mas para isso não é preciso ser engenheiro do verso. Faz-se tão-só uso do Fio de prumo: uma dúctil racionalidade estendida pelo peso da emoção.

Antônio Beethoven abcgondim@gmail.com

E quando, a aura acesa acende o mundo em torno de mim, ela se expande. Assim, a alma se dilui no raio incandescente da aura que a conduz.

Neste instante, nós, que éramos dois, somos amálgama: aura-e-alma a iluminar o infinito.

Hermínia Lima

herminialiteratura@gmail.com

Radiadora

Radiadora Degustação

Enquanto espero

Minha língua

Obscena

Mastiga palavras

Engole ausências

Sente sabores

Degusta metáforas

À procura do instante

Que me anima

Encontrar

Silenciosa e lacônica

Tua boca

Tua língua

Farta de prazer.

Fernanda Quinderé fqmb@ig.com.br

Emendando o Tempo

A agulha do tempo costura a bainha dos dias perdidos nas verdes veredas da inocência. Tempo das primaveras, esgarçadas quimeras, debruçadas nas carcomidas cercas da existência. Das chuvas que lavam o alpendre e as dores apascentam, dos risos e das vozes infantis que ainda ressoam entre paredes inexistentes. A figura de meu pai esfuma-se na curva do caminho E retorna a galope no vento. Eterno é o tempo. Os sonhos perdidos são molambos pendurados nos varais da mente. Da juventude o calor, do interdito o medo. Água represada na nascente.

Lourdinha Leite Barbosa lourdinhalb@gmail.com

Ecos do Amor Ausente

A tua voz persiste em desdobrar-se pela taça da cristaleira, Teu suspiro persiste em esfumar-se em círculos no cinzeiro, Teu desejo persiste na estrela cadente pela noite violeira, Tua imagem persiste em ressurgir no espelho do banheiro.

Os teus olhos persistem em velejar no livro de cabeceira, Teus passos persistem em me chamar na soleira da porta, Teu sonho persiste em exalar jasmim pela cama de cerejeira. De repente, acredito que tu não partiste nem estás morta.

Pelos Dedos

Meu amor transborda

Não cabe no peito Escorre pelos dedos Que querem

Mais que tudo Descaradamente te tocar E como não desejariam?

Essa tua pele cheirosa e mágica

Uma vontade trágica

Esse santo calor!

Ah, esse amor...

Mônica Silveira

Poema para Ser como se Diz

um poeta ousa um passo no ósculo do desespero, com os óculos por cima das ventas. olhar retraído. máquina de fazer imagens. parado na rua. ali calado, como quando se diz uma pedra na ilusão do caminho.

como se dissesse ser a pedra a palavra do poeta. tudo tão concreto em cruz e credo e asfalto

há como se diz as ruas de dentro caminho até o limite do poema escarnecer de ser mesmo uma esquina. então, como se pudesse dizer olha o poeta.

Radiadora

do inconsciente quando acorda

Anielly Aquino

aniellyaquino@gmail.com

semana e os viventes todos sofriam dessa espera que só conhecem os que se vão afogar demoraram pouco, as águas marrons falando alto

... o rio assombrava

Joan Edesson de Oliveira joansobral@yahoo.com.br

a mãe em seus vestidos de beleza simples não escolher nenhuma estrela

Cândido Rolim candidorolim@hotmail.com

Na vinda do teu crepúsculo. Então, apagarei as estrelas, Desnudarei a noite

E romperei teu véu

Por toda a madrugada.

Mas sorrindo, pisastes sobre meu corpo

Um dejeto, um sopro Que você rejeitou

Deive Maria Agostinho

deiviane.agostinho@gmail.com

que se divertem com armas nucleares mais fortes que a germinação do meu silêncio...

questão final: nunca farei meu último poema.

Cândido B.C. Neto

Pérolas

As cores vespertinas nos atraem, a lua solitária goza um orgasmo cheiroso com perfume de céu. Nádegas brancas contornadas pelo bronze da meia-noite. E nós, homens encantados com a lua, esquecemos as tardes, as pérolas no fundo do mar e chamamos de Pérola o solitário ponto branco à noite escura a iluminar.

Submundo

Quando o sol fecha os olhos, a lua ilumina toda a desordem que os esgotos sobre a terra realizam.

Partida

Agora parto e deixo paisagem que eu mesmo fiz; vou fazer o caminho de volta olhando as mesmas palmeiras e o mesmo pôr do sol; tentarei reconstituir rosas, juntando-lhes pétalas pisadas. Eu joguei pétalas para enfeitar o caminho e perfumar o vento.

Talvez não possa recompor flores esmagadas pelos pés trôpegos das caminhadas aflitas.

É preciso morrer

antes do fim do caminho, terminando com o último vestígio do sol vermelho que a noite vai sepultar. É preciso mesmo morrer nos primeiros passos para haver tempo de ressurgir na noite que já vem.

Cid Carvalho

tua noite

quero uma noite de você. especial onde a lua amareleça e deixe cair as estrelas com pedidos em profusão.

nuvens não resistem à noite, sonhos não entendem o raiar do dia.

assim, o cenário de amor quando olhos e braços partem na busca de paz e certezas.

na tua noite, sem fantasmas ou sombras, beijos ganham relevos que espantam lágrimas gritos ou tristezas.

Calçadas

Corpos se desfraldam esguios, saem das calçadas

— suas moradas sujas — esparsos, com frio, olham as estrelas do céu e não se contentam... atiram-se uns aos outros, dissolvem-se em gozos.

Depois

voltam às calçadas mortos de fome, olham as estrelas que somem.

Flávio San

flavioartesan@hotmail

Palavras de um Rio

Dentro de mim ainda dorme um canto alguma força que guardei da fúria

e no meu ventre se resguarda o cio...

mas vem a morte disfarçada em homem que me instiga a responder com mágoa:

— dentro de mim ainda pulsa um rio

Majela Colares

Teatro Vazio

Eu dançava sem par no teatro vazio, no braço a pulseira com o nome impresso no ouro falso das moedinhas.

Súbito, a música cessou. Parei o rodopio. Palmas, ouvi palmas entusiasmadas e perplexa ergui os olhos.

Na última cadeira com forro de palhinha, tu, solidão, tu me aplaudias.

Marly Vasconcelos

artista da capa

Desenhista, pintor e mestre em literatura pela Universidade Federal do Ceará. Neto de imigrante cearense, que partiu para o Acre por volta de 1877, nasceu em Rio Branco, em 1962. Iniciou-se nas artes ainda na infância, e profissionalizou-se após sua mudança para Fortaleza, Ceará, no início dos anos de 1980. Apresentou suas obras em diversas exposições coletivas e individuais no Brasil, Alemanha, França, Itália, Espanha, Portugal, Dinamarca, Polônia e Cabo Verde. Atualmente desenvolve uma série intitulada “Encantes Amazônicos”, com trabalhos inspirados nas histórias e mitologia da Amazônia, trazendo à tona as reminiscências de sua infância e adolescência no Acre. As ilustrações desta Maracajá refletem a sua visão (uma recriação) sobre esses mitos, criações coletivas, sem autoria específica, e repassadas ao longo do tempo de forma oral em forma de entidades e seres da floresta, redimensionando o poder encantatório desse universo mitológico.

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Tiragostos
Os FitoManos de Raymundo Netto Fernando França @fernandofrance
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