Revista Maracajá 5 - Junho

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ISSN 2596-1373

5 | nº 5
2019
VOL.
Junho de

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA

João Dummar Neto presidência

ARTIGO

O Olhar do Cinema FLORES DE AÇUCENA

O valor da Vida

Pedro Lyra

Soneto à Lua

Antônio Girão Barroso

Filosofia

José Alcides Pinto

Rosa D’Alvorada

Antônio Sales

As Palavras Gentis...

Arthur Eduardo Benevides

CHAPULETADAS

A cachoeira das Eras: 40 anos

Léo Mackellene

Por uma Poética Tigelírica

Léo Prudêncio

Oswald Barroso: desventuras e desencaminhos

Raymundo Netto

Padre Cícero: por trás das câmeras

Camilo Pestana

André Avelino de Azevedo direção administrativo-financeira

Raymundo Netto gerente editorial e de projetos

Emanuela Fernandes análise de projetos

MARACAJÁ

Raymundo Netto curadoria, pesquisa e edição geral

Emanuela Fernandes assistência editorial

Nirton Venancio, Léo Mackellene, Léo Prudêncio, Raymundo Netto, Camilo Pestana, João Belo Jr., Ise Nishi, Débora Nishi e Karlson Gracie colaboraram nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”)

Jabson Rodrigues ilustrações

Amaurício Cortez editor de design

GENTE ILUSTRADA

João Belo Jr.

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TIRAGOSTOS

Ise Nishi e Débora Nishi

Karlson Gracie

Artista da capa Jabson Rodrigues

RADIADORA

Denis Akel

Luana Braga

Eugênio Leandro da Costa

Silas Falcão

Ângela Calou

Hermes Veras

Batista de Lima

Raymundo Netto

Qulo PeTrus

Ormisa Sales de Freitas

Aíla Sampaio

Giselda Medeiros

Magna Maricelle

Fabiana Guimarães Rocha

Sânzio de Azevedo

Rosemberg Cariry

Maria de Fátima Maia

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fdr.org.br/maracaja

Giselle Fernandes projeto gráfico

Amaurício Cortez

Welton Travassos editoração eletrônica

Karlson Gracie tipografia Maracajá

revistamaracaja@gmail.com contato

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo a opinião deste suplemento ou de seus editores.

Este suplemento literário mensal é parte integrante do Projeto Maracajá: Vida & Arte, em decorrência do Contrato de Patrocínio celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, sob o nº 69/2018.

ISSN 2596-1373

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O primeiro número de Maracajá foi espalhado por todo o globo e até por fora do referido asteroide.

A esta hora, qualquer habitante de Marte já estará fazendo antropofagia. Vocês lá do Sul que escreveram sobre o gato selvagem do Nordeste, toquem nos ossos. Isso!

Nós estamos ligados por um sentimento único – o da voracidade. Juntemo-nos para comer tudo o que deva ser comido no Brasil.

Demócrito Rocha (assinando “Antônio Garrido”)

Maracajá nº 2, em 20 de maio de 1929

Bem-vindos, fieis e especiais leitores da nossa felídea e caríssima — mesmo quando gratuita — revista Maracajá. Caríssima por serem raras as ações no estado que dirijam holofotes à produção literária de seus autores e cultores. Tanto no que se refere à literatura ficcional quanto aos ensaios, resenhas e, ainda mais, à crítica.

O sumiço desse personagem “crítico literário” não é um privilégio cabeça-chata. No país, a maioria está caindo fora, personas non gratas de um mundo e meio vaidoso e intolerante. Também no meio acadêmico, encastelado e ausente de seu papel de formador de opinião, de saberes e difusor da cultura, a literatura produzida no Ceará não merece ser lembrada. E digo “literatura produzida no Ceará”, pois falar em “literatura cearense” é considerado um crime quase hediondo. Não sabemos assim o porquê de não se chiar com a existência de uma “literatura brasileira”, já que um todo não pode existir sem as suas partes.

Esses detratores da literatura cearense são estranhamente conformados com o desleixo ao nosso patrimônio literário – a não ser quando esses autores ou obras vêm chancelados por meio de revistas ou de prêmios nacionais. Da mesma forma, surgem todos os dias contagiosas academias e agremiações no Ceará que desconhecem qualquer literatura a não ser aquela produzida na mesa de suas salas de estar. Medalhas demais; leituras de menos. Não são todas, felizmente.

Esse quadro, hoje, está mudando. E mudando “por baixo”, já que essa literatura tem as ruas, as redes sociais e a criatividade a seu favor.

Acompanhamos alguns clubes de leitura, saraus, movimentos, associações, academias e faculdades (em especial, no interior cearense) – além de outras ações – que despertaram para esse papel de pesquisa, elaboração, produção e promoção da literatura cearense, tanto da antiga como da contemporânea. Vemos luzes, em forma de palmas, a essa Maracajá, um palco democrático de resistência, como assim o queria o seu patrono Demócrito Rocha.

Em Marte ainda não chegamos, mas estabelecemos parceria com 18 pontos da cidade que ousaram receber nossos autores e exemplares, além daqueles distribuídos gratuitamente no jornal O POVO. Maracajá, que não é para todo mundo, agora está ainda mais acessível a todo mundo. Aproveitemos e vamos divulgar a nossa página para quem quiser fazer parte dessa campanha solidária (fdr.org.br/maracaja).

Do Alpendre
Raymundo Netto Curador e editor

Artigo

O OLHAR DO CINEMA

Eu não vim para Hollywood para ser a garota ao lado. Eu vim para ser uma estrela de cinema”, disse a atriz Jayne Mansfield, no começo da década de 1950, quando estreou nas telas, e foi uma das primeiras a posar na Playboy, além de ser apontada como a grande rival de Marilyn Monroe. Jayne, falecida em um acidente em 1967, quando tinha apenas 34 anos, ficou conhecida por suas artimanhas de publicidade muito mais do que por seu talento nas telas. Fazia de tudo para atrair a atenção de todos. Um dos principais incidentes envolveu Sophia Loren.

Seus seios eram o foco de um golpe de publicidade notória. Em 1957, durante um jantar em homenagem à estrela italiana, no restaurante Romanoff, em Beverly Hills, Mansfield entrou no local fazendo-se notar a cada passo e rebolado.

“Naturalmente”, foi direto à mesa onde estava a convidada. Chegou, cumprimentou-a, e sentou-se, separando Loren de seu companheiro de jantar, o ator Clifton Webb. A intenção foi desviar a atenção da mídia sobre a atriz, já consagrada em clássicos como Quo Vadis?, de Mervyn LeRoy, 1951,

Duas noites com Cleópatra (Due notti con Cleopatra), de Mario Mattoli, 1953, O signo de Vênus (Il Segno di Venere), Dino Risi, 1955, além de ser casada com o grande produtor de cinema Carlo Ponti.

Uma sequência de fotos foi publicada em várias revistas, mostrando o olhar de Loren caindo sobre o decote de Jayne Mansfield, que ao chegar se inclinou sobre a mesa, permitindo que seus seios ficassem à mostra, expondo um mamilo.

Analisando as fotos por outro viés, pode-se teorizar sobre um dos conceitos mais fortes que definem uma narrativa cinematográfica. Ali não era um filme, claro. Entretanto, na tela, quando a expressão de um personagem desenha uma reação muito definida diante do que não vemos, mas conseguimos “ver” através desse olhar, o cinema atinge sua mais completa tradução. Cinema é sugestão. Cinema é também o que está fora do quadro. É o outro lado da lua.

A arte não imita, reflete a vida. Os volumosos e belos seios de Mansfield chamaram a atenção do mundo e dos presentes no Romanoff naquela noite. Contudo, foi o olhar de Sophia Loren que se cristalizou para sempre com o incidente.

Sophia, atriz. Mansfield, estrela. Longa é a arte, breves os seios de Mansfield.

Nirton Venancio

poeta, cineasta

nirtonvenancio@gmail.com

5 Artigo

Flores de Açucena

O Valor da Vida

Adeus, privacidade!

Um olho eletrônico nos vigia até em nosso sono.

Prerrogativas, adeus!

Um tribunal bloqueia a porta por onde teríamos de entrar (ou de sair).

Adeus, segurança!

Uma bala nos espreita na esquina onde vamos passar daqui a pouco.

Antes, inocentes até prova em contrário; agora, suspeitos até mesmo sem indício algum. (Só um jeito diferente de olhar – coisa de apaixonado.)

É o terror, a conta-gotas.

Adeus, direitos humanos!

Adeus, democracia!

Adeus, amor!

(A vida vale um enterro.)

Pedro Lyra

Soneto à Lua

a Arthur Eduardo Benevides

Lua Branca, como é terrível tua face        No céu escancarada, a se mostrar aos homens Ó astro fluorescente, a espiar as mazelas Surgidas cá em baixo, ao toque das espumas.

Mulher, ó dulçorosa, o mar te espelha tímida Mente, corça da noite, ó tu, lua fremente Que navegas ao léu, sem bússola nem norte Lua branca, vergel, perdida nas alturas.

Continente de gelo, o sangue tu derramas De virgens sem fanal, ao jeito das marés Que sacodem o meu barco, a dois passos da terra

Não te deténs, ó lua, e indiferente estás A brisa que se espalha, terna como carícia ou aos ventos tão febris, que acordam as madrugadas.

Antônio Girão Barroso

Rosa D’Alvorada

Esmorecia ao longe o garganteio Dos galos; pouco a pouco e docemente, Folha a folha, de cumulus no meio Desabrochava a rosa do nascente.

Expandia-se mais e, sutilmente, Ganhava todo o céu; – no enorme seio Brilhava um rocio estranho e refulgente, E de aromas o espaço estava cheio...

Mas, súbito, tremeu no hastil enorme E murchou e pendeu; e, em bando informe, As pét’las pelos píncaros do monte

Voaram... Quando a pálpebra radiosa Do sol se descerrou, da pobre rosa Nenhum vestígio havia no horizonte.

Antônio Sales

As Palavras Gentis...

Tudo é inútil menos o inútil do que foi útil.

Foge desse círculo dessa corda de vento comprida, que te laça e teu pescoço enlaça.

Foge da astúcia da manha dessa aranha: busca a paz no estio no gume desse fio das águas desse rio.

As palavras gentis não cansam nunca. Se o sonho já se foi a vida é finda. Mas a clara esperança nos domina, Põe ternuras em nós, auroras mansas.

A seresta do amor nunca termina E nela nos sentimos como os anjos. Somos puros e leves nos alçamos Sobre as cousas mais rudes e mais tristes.

Por isso canto, permanentemente, O milagre de ter do amor a glória, Capaz de o próprio mundo ir transformando.

E se tivessem de escrever-me a história, As palavras seriam muito simples: “Foi um servo do amor. Passou cantando”.

Arthur Eduardo Benevides

Filosofia

Chapuletadas

A Cachoeira das Eras

40 ANOS

Há exatos 40 anos, Carlos Emílio Corrêa Lima lançava pela editora Moderna

A Cachoeira das Eras (1979), seu primeiro romance e, cronologicamente, o seu segundo livro. À época, a recepção foi estrondosa! Repercutiram Onezio Paiva, no jornal O Globo; Cicero Sandroni, no extinto Jornal do Brasil; Gerardo Mello Mourão, nosso Nobel de Poesia, na Folha de S. Paulo; Caio Fernando Abreu, na revista Veja; Moacir Scliar, no Zero Hora, de Porto Alegre; Murilo Rubião, n’O Estado de Minas; José Alcides Pinto, Moreira Campos, Francisco Carvalho e Nilto Maciel no jornal O POVO.

Para Nilto Maciel, o romance de estreia de Carlos Emílio

“tem seu lugar reservado na Biblioteca Universal”, ao lado de Dante, Cervantes e Camões. Segundo ele, o livro é a epopeia brasileira que refunda nossos mitos nacionais. Eu próprio já o havia sentido, quando o li pela primeira vez, em abril de 2005, comentando com o, primeiramente aluno e depois amigo e escritor Valdemar Neto Terceiro, autor de Romanzeiras das fábulas (Substânsia, 2015): “Se Iracema é o Gênesis, A Cachoeira das Eras

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Foto: Arquivo do Autor

é o Apocalipse”. Valdemar ficou tão impactado com o livro, que se tornou objeto de sua monografia.

O livro narra a história da Coluna de Clara Sarabanda, que, como uma espécie de Coluna Prestes, percorre a Mata Atlântica em busca de um templo perdido que é o nosso próprio passado, uma terra às cegas porque devastada por séculos de uma história que não é a nossa história, mas a de nosso colonizador (“Os mortos serão nossos guias”, diz logo na invocação às musas, “gritando do antes dos aniquilamentos gerais, porque ninguém os escuta”).

Ali, refundam-se os mitos que recomeçam a América: “Brasil, centro do mundo desconhecido”, destino inevitável, porque “todos os homens tendem para o que não se conhece”.

Mais do que narrar o recomeço da América, no entanto, o livro de Carlos Emílio narra a história do nascimento de todas as eras, a história de além do Atlântico, para lá do Egito, essa história feita por todos (“Todos nós somos os narradores dessa imensa perdição”). “O povo andava de costas e estava impossibilitado de vislumbrar o passado” sugere, em referência ao povo que habitava estas paragens, os Gês, que deram ao local o nome de Siriará, segundo o historiador João Brígido, por conta de um pequeno espécime de caranguejo que vivia tanto no litoral quanto no mangue.

acometido por “alucinações histórico-botânicas”) e Ludovico (“filho espúrio do célebre professor austríaco Ludwig Schwennhagen” e que “pouco se lembrava de seu pai”). São esses os que vão desbravar “os sertões brasílicos na direção do sorvedouro do Renascimento”, na reconstrução de nosso passado.

O livro é todo uma metáfora, uma fabulação da colonização, cuja história nunca começa – antes de ser contada, precisa ser redescoberta. E é esse livro – pela tessitura ficcional inacabada do romance, pela estrutura narrativa sempre anunciada ao longo da história – o ponto de encontro entre as personagens, o escritor e o leitor, todos escrevendo juntos – e ao mesmo tempo em que as personagens vivem, o autor escreve e os leitores leem – essa intersecção temporal, própria do estilo alquímico de toda a literatura carlemiliana – “Eu não passo de uma mensagem”, segreda-nos o narrador, “Na verdade, eu também estou sendo escrito”.

Todos nós!

Léo Mackellene leomackellene@gmail.com

Graduado em Letras pela Universidade Federal do Ceará. Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste (Alane). Lançou recentemente o romance Como gota de óleo na superfície da água (Radiadora, 2017). Reside em Sobral, Ceará.

vasta criação de coelhos no quintal”), Mário

material sobre a terra. Apenas poucas rou-

A Coluna de Clara Sarabanda é formada por Antônio Luís (“que se enamorou de um macaco [...]; estava cansado de viver cansado”), João José Ribamar (“o mais velho e o mais moço de todos os personagens. [...] Defini-lo, aprisionar sua alma para descrevê-lo é tarefa improvável”), Eduardo Bravo (“que tinha uma vasta criação de coelhos no quintal”), Mário Almeida (“que não possuía nada de valor material sobre a terra. Apenas poucas roupas e alguns livros”), Augusto Lopes (que era

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O livro é todo uma metáfora, uma fabulação da colonização, cuja história nunca começa

Por uma poética tigelírica

ma orquestra que entoe o desconforto da palavra, mas não apenas os seus infortúnios tendo em mente que a palavra guarda em seu abismo os mais variados tons de silêncio. Essa é uma das propostas do Poeta de Meia-Tigela1. Ele trabalha em apenas um único livro: Concerto nº1unico em mim maior para palavra e orquestra. Poema. Esse livro é composto por quatro movimentos e em cada movimento quatro livros e em cada livro quatro capítulos e em cada capítulo há uma dispersão em vários poemas.

O primeiro movimento deste grande concerto foi publicado, integralmente, em 2010. Em 2008, um dos capítulos do segundo movimento foi publicado de forma independente

Uancestral que enunciava verdades e ia buscar seus argumentos na longa tradição poética que vem de Homero, passa por Borges, João Cabral, Patativa do Assaré, Ezra Pound e outros grandes nomes da poesia de todos os tempos, sem a necessidade de rótulos.” Não digo que haja influências, digo que o que ocorre em textos assim são diálogos, logo, a poesia de estro tigelírico produz um rico diálogo com o que há de moderno, e até pósmoderno, na poesia uni-versal.

Memorial Bárbara de Alencar

ao livro, em , reeditado em 2011.

Nele, observamos o trabalho com a linguagem e cultura po-

Nele, observamos o trabalho com a linguagem e cultura popular. Sobre o livro, Gilmar de Carvalho, prefaciador da obra, comenta: “A leitura dos poemas me colocou diante de uma voz

Os mais recentes ensaios são Miravilha: liriai o campo dos olhos (Confraria do Vento, 2015) e Girândola (Substânsia, 2015). Em menos de um ano, ele publicou dois livros após um silêncio que já durava quatro anos2. Parafraseando uma frase dita pelo Poeta nas notas finais que acompanham o livro Miravilha, nenhum desses ensaios existem. Publicar livros inexistentes é o que ele tem feito, é um tanto confuso, mas se o único livro a ser escrito, e é “palavra em movimento” como ele sempre comenta, é o Concerto. Mas por ser palavra em movimento não haverá um ponto final definidor em sua obra. A sua poesia é um vir a ser infindável.

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Foto: Lia Leite

O Poeta de Meia-Tigela, em sua construção poética, faz uso de temáticas e formas que nos remetem a estética pós-moderna, me arrisco a dizer que entre os poetas cearenses ele é um dos que melhor soube utilizar esse argumento formalista em suas composições textuais. Ler a poesia d’O Poeta de Meia-tigela é não apenas deleite estético é um aprendizado sobre arte.

Fazem parte de sua temática tigelírica o uso de numerologia, descrição de obras de arte, tarô, astrologia, partitura musical, biografia, literatura fantástica, artes plásticas, tradução (ou no dizer de Augusto de Campos: intraduções), poema em cartões-postais, prosa poética, cordel, soneto, quadra, martelo, sextilha, heptassílabo, verso livre, haicai, uso de notas de rodapé etc etc. Todo o espaço da página é aproveitado para fazer poesia. E quando a página do livro se mostra insuficiente temos os muros da cidade, temos o panfleto, a música, o vídeo-poema, as tirinhas de jornais e cédulas para rabiscar poesia antes de pagar o trocador do ônibus. O Poeta de Meia-tigela nos mostra um concerto a solo de palavra sobre toda uma corrente poética, lê-lo é aprofundar-se na poesia.

O uso de pseudônimos começa a ser uma constante maior com a modernidade. Em uma conversa desprovida de entrevista literária, o Poeta me disse que desde sempre fez uso de pseudônimos. Todos sempre com uma sacada de bom-humor. E é sobre o humor que gostaria de falar aqui, é o humor característica fundamental em poetas como Carlos Drummond de Andrade, Osvald de Andrade, Manoel de Barros e até em haicais de Bashô e Millôr Fernandes. Fazer do humor matéria de poesia é tarefa para poucos e poucos souberam utilizar bem este recurso estilístico. Aliás, aqui vai um soneto tigelírico:

1 Pseudônimo usado por Alves de Aquino. Sobre a escolha do pseudônimo em entrevista a revista Para Mamíferos (Fortaleza, 2009, nº 1) ele comenta que essa escolha foi de “cunho social com o qual se identifica, visto que o termo representa a metade da ração que era oferecida ao serviçal, enquanto o seu senhor ganhava a tigela inteira. Outra razão do pseudônimo é criar um personagem que seja o próprio autor e personagem de si mesmo, como o João Grilo ou o Cancão de Fogo. Enfim, o uso do epíteto não é um distintivo de humildade, ao contrário, traz o Poeta um objeto ambicioso de encarnar um múltiplo personagem, criando uma bandeira dupla, uma apresentação automática para a sua obra, expressando algo inusitado.”

2 Sobre o uso numérico-místico do número quatro é explicado nas notas finais do primeiro movimento do Concerto, o Poeta nos diz: “Para Jung a totalidade exprime-se em símbolos quaternários. Propositadamente a estrutura aqui apresentada dá-se a partir de uma ordenação quadripartida, propositadamente é dividida em quatro movimentos.” Em suma, o número quatro para o filósofo Jung representa a TOTALIDADE, mas não seria mesmo a obra do Poeta de Meia-tigela uma totalidade em andamento?

5. Vai um soneto aí?

Mirabilia. Ali-se

O amor me fecha os olhos para tudo que não miró mirá-la O amor me amputa as mãos para o que não só tateá-la

O amor me cala O amor me faz voz surda cava se não a fim de anunciá-la

O amor me entope as oiças se não para O amor me desnarina me desfara

O amor se emputa quando se depara ante outra que não ela O amor insulta se lhe propõem a farsa de olvidá-la de substituí-la O amor se sabe amor por manter nela a Mirabilia

O amor me fecha o corpo para todo corpo que não aquele que me cabe

[Do livro Miravilha: liriai o campo dos olhos]

Léo Prudêncio

prudencioleo@hotmail.com

Mestrando em Crítica Literária e Literatura pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás e poeta dos livros: Baladas para violão de cinco cordas; Aquarelas: haicais e Girassóis maduros

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Oswald do Barro Barroso: desventuras e desencaminhos*

Mundo, mundo, vasto mundo, ah, se ele se chamasse Raimundo e tivesse nome de flor. Mas, não. Ele era feito de barro, do barroso resto da criação do mundo, mundo que trazia em seu nome, como um rei, “Rei Mundo”, e que assistia, moleque e nu, cercado de passarinhos, tijubinas e calangos, o curso melancólico de um descuidado berço Pajeú.

Alheio a esse ainda estranho mundo, nosso herói, um menino amarelo, magro e empombado, fincava seu universo em uma casinha de motor de puxar água, fortaleza pessoal da solidão, na qual planejava seu futuro e contava a memória de seu caminho, moldando sonhos de barro em caixas de fósforos, com pedaços de palito de picolé e hastes de flores. Um mundo de encantamento, o seu teatro da vida, que aqui entra em cena nesta enfeitada e descartesiana publicação. Aliás, aos 5 anos, foi ali, no palco do José de Alencar, que Mundinho estreava no teatro.

Sim, era o que todos já sabiam: ele tinha pressa! Queria vir a este mundo, vasto e perverso mundo, e por promessa nasceria e seria Raimundo e “feito um pequeno deus, entre ritos, risos e batalhas, criouse”: dona Albinha, “Nâna êite mim”, “Nâna êite mim”.

Em Menino Amarelo: as desventuras de um rei desencaminhado, o pentalógico1 Oswald Barroso debulha a história do menino Raimundo Flor – qualquer semelhança é mera coincidência –, retratando, assim

1 A obra, ricamente ilustrada pelo artista Descartes Gadelha , promete 5 volumes. Até então foram publicados dois deles: Menino Amarelo e Risco Vermelho .

(

* ) Texto de apresentação da obra lido por Raymundo Netto durante o primeiro lançamento de Menino Amarelo no Theatro José de Alencar.

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Foto: Aurélio/O POVO

mesmo, feito um grande álbum de retratos, suas histórias e as histórias de seus ancestrais, mesmo os mais longevos e dantescos, de sua família, de seus amigos, de seus amores, de seus lugares e impressões, de suas saudades e dores, como se a puxar, sossegado pelo cordão, um caminhão de madeira com molas de flandre, em um caminho de terra, com gosto de terra, da nossa terra.

O menino, filho de dona Alba, uma genealogista inata, e de seu Antônio, que assegurava: “Se me perguntassem (quem ousaria?)/ qual o maior poeta  do mundo/ o que sofreu na carne a dor da poesia/ responderia apenas: infelizmente, eu!”

Neto de dona Alda e de seu Luiz, de dona Nenén e de seu Theodorico, o Tidico, como era chamado, e que partiu ao som da canção de rádio, como despedida, cortando o seu coração de menino: “Eu sei que em breve, muito em breve morrerei, por esse mal que me tortura o coração. Já não suporto mais viver sem teu amor e vim me despedir nessa canção.”

Antes mesmo do Moacyr das 7 mortes, Raimundo Flor havia de conhecer a morte na pele bovina de Flor do Campo, depois pelo cachorro Fly e, por fim, pela irmã, a pequena Diana, perda irreparável de dona Alba, primeiro e eterno amor do menino. Um garoto que descobria o mundo pela janela de trem, que precisou até tirar quebrante de mau-olhado, que tinha medo do mar aberto, da força das ondas, das pancadas d’água nos paredões de quebra-mar, que tinha medo dos medos. Que detonava bala em penico, eternamente assombrado pela figura de um boi holandês, com argola de ferro no focinho, preso, esmurrando o chão e cavando a terra em fúria. Um pequeno cabo eleitoral de um pai candidato a nunca eleito. Menino que se deliciava doente com maçã, marmelada e guaraná com biscoito ou com a novidade da merenda na escola: o sanduíche de pão com doce de goiabada! Que aguardava em casa na fila do banho “talco, pente, sabonete, toalha, sapato, tamborete”. Que subia na caixa d’água a pensar no desconcerto do mundo, lançando letras ao sol, saudoso a rememorar: os passeios no zoológico da Cidade da Criança, a sorveteria da Loja de Variedades, as vitrines do centro, as matinês do Cine Rex, o cordão das Coca-Colas, o bloco dos bombeiros e das Marietas, o maracatu, o corso de automóveis no carnaval, os circos montados na praça da Faculdade de Direito, a Procissão dos Passos, os bondes, os cata-ventos, o acendedor de lampiões em noites sem luar, o sereno dos teatros, a Noite de Violas com o Cego Aderaldo na Casa de Juvenal Galeno, a festa

de São Sebastião no Ipu, as retretas da praça da Lagoinha, a irradiadora do padre Caubi, o Grupo de Pajens de São Luís, o Grupo de Escoteiros da Aldeota, as sessões do Clube de Cinema do Ibeu, as histórias contadas na beirada de rede pela Non, índia do Ipu, cria de sua avó Alda, dos quintais repletos de frutas (manga espada, atas, goiabas, seriguela, maracujás) e tantas e tantas outras suas, mas poderiam ser também nossas, lembranças e aventuras retratadas com detalhes de quem talha a cinzel esse Ceará de curumins e curuminhas.

Entretanto, na obra não há só doçura e encontros, mas amarguras e desencaminhos. Ela, aquela mulher, a cigana, um dia diria a seu pai: “Esse menino fará uma grande figura, terá grandes aventuras, mas muitas penas.” Foi ou não foi, Raimundo Flor?

É quando o caminho de uma Rural desgovernada se encontra com o sonho de nosso beque central, camisa nº 3 do Fortaleza – embora seu coração fora Ferrim –, e o desperta para o “Risco Vermelho” que se inicia.

Menino Amarelo é uma surpresa alada, um mergulho profundo no coração, uma punhalada de saudades, uma torrente de emoção. É um voltar para casa paterna, deitar-se no colo seguro, é a reunião à mesa da família, sem a incerteza de um futuro, pois ele... já chegou!

Raymundo Netto

Escritor e editor

Como adquirir os livros: Em Fortaleza, Menino Amarelo e Risco Vermelho podem ser encontradas nas Livrarias  Arte & Ciência (no Benfica, av. 13 de Maio, 2400, e no Centro, na rua Major Facundo, 594), na Letra L (na av. 13 de Maio, 2383, Benfica, quarteirão da Reitoria da UFC) e na Livraria Lamarca (av. da Universidade, 2475, Benfica).

Contato DIRETO com o autor: oswaldbarroso@gmail.com

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por trás das câmeras

Padre Cícero O

livro  Padre Cícero: o filme, de autoria de Raymundo Netto, inaugura a Coleção Memória do Audiovisual Cearense (EDR), de fomento ao acervo e preservação do patrimônio audiovisual brasileiro. A obra traz uma história breve dos primeiros 50 anos do cinema no Ceará (1924-1974), recorte que vai desde a primeira exibição cinematográfica no estado até o ano em que o diplomata, diretor e roteirista  Helder Martins de Moraes se une ao empresário e produtor  Francisco Martins de Morais e inicia a sua luta para filmar o primeiro longa-metragem colorido do Ceará e primeira obra audiovisual ficcional sobre a vida de padre Cícero.

Padre Cícero: os milagres de Juazeiro (1976), um filme tão controverso quanto o seu personagem, foi filmado em vários sítios cearenses e teve um elenco composto por artistas renomados no cinema nacional da época e de atores, hoje,

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referências do teatro e da TV cearenses: Jofre Soares, Dirce Migliaccio, José Lewgoy, Rodolfo Arena, Manfredo Colasanti, Cristina Aché, Nildo Parente e os cearenses Ana Miranda, Haroldo Serra, Ricardo Guilherme, Seny Furtado, Walden Luiz, Marcus Miranda, além de vinte e cinco técnicos, cem coadjuvantes e cerca de mil figurantes.

O livro conta a sua história, desde a concepção e filmagens até seu lançamento, incluindo a ficha técnica, curiosidades e fotos. Como anexo, traz o roteiro original do filme (simulação de fac-similar), com notas do autor, e o encarte da reprodução do pôster em tamanho original, com a ilustração de Benício, autor de diversos cartazes de filmes de sucesso na época. Também disponível estojo com 2 DVDs (filme original, trailer e documentário com a participação de membros da equipe técnica e atores, mais de 40 anos depois).

Raymundo Netto, em entrevista, nos relatou: “A ideia era essa: contar a história do filme. Mas quem pesquisa sabe como isso se dá. Iria escrever a história dele, iniciando pela biografia breve de seus personagens principais, depois avançaria contextualizando o momento histórico, o envolvimento da Embrafilme, na época, sob o comando de Roberto Farias, durante a Ditadura Civil-Militar; a execução das filmagens, apresentando a equipe técnica e os atores, o percurso da filmagem, seus principais sets, curiosidades de bastidores, ficha técnica, premiações, lançamentos etc. Mas eu me perguntei: ‘Afinal, o que difere  Padre Cícero de qualquer outra obra cinematográfica filmada no Ceará e que justifique essa atenção?’ Daí me vi obrigado a escrever um breve relato histórico da produção audiovisual não apenas cearense, mas a que foi filmada no Ceará, no recorte de tempo

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O projeto conta a sua história, desde a concepção e filmagens até seu lançamento, incluindo a ficha técnica, curiosidades e fotos

de 50 anos (1924-1974), ou seja, desde a primeira exibição do primeiro documentário de Ademar Bezerra de Albuquerque exibido no Cine Moderno, em 15 de outubro de 1924 (data instituída como o Dia do Audiovisual Cearense) até o ano em que Helder Martins decidiu fazer um filme tendo como protagonista o maior líder religioso brasileiro. Ou seja, reconhecendo como se deu toda essa trajetória, percebe-se o marco que foi a produção de Padre Cícero para a historiografia do cinema do Ceará. E, para cumprir essa etapa, passei por algumas obras e consultei alguns amigos que foram fundamentais, como Ary Bezerra Leite, Nirez, Frederico Fontenele, Firmino Holanda, Sânzio de Azevedo, Renato Casimiro, além de entrevistas com Cacá Diniz, Jefferson Albuquerque Jr., Emmanuel Cavalcanti, Benício, entre outros. Não posso deixar de agradecer ao próprio Helder que me enviou diversos jornais da época e Valmi Paiva, que me cedeu caixas de slides com fotografias de still de Evaristo Neto.”

A pesquisa acabou por gerar um documentário, um média-metragem, que conta com a participação e os relatos de Helder Martins, Elvira Sá de Morais, Ana Miranda, Ricardo Guilherme, Haroldo Serra, Walden Luiz, Nirton Venancio, Rosemberg Cariry, Valmi Paiva e de moradores de Rosário, a “Juazeiro do século XIX”, intercalados por cenas do filme de 1976.

Questionado sobre o resultado esperado da ação, o pesquisador afirma: “Esperamos despertar em outros pesquisadores e agentes culturais esse espírito de descobrir, fazer, refazer, registrar e assegurar para as futuras gerações a preservação de nosso patrimônio artístico-cultural. Afinal, o futuro não se espera, mas se faz desde já.”

Camilo Pestana

omosquitim@gmail.com

Jornalista, escritor, criador do jornal O Mosquitim.

O kit Padre Cícero: o filme - Livro (com pôster e roteiro original) e 2 DVDs (documentário e filme de 1976) pode ser adquirido na Livraria Dummar, em Fortaleza, na Av. Aguanambi, 282, Joaquim Távora) ou, para todo Brasil, pela Livraria Virtual: livrariadummar.com.br. Valor total: R$ 60,00 .

Para saber mais sobre o projeto e assistir ao documentário, ACESSE: fdr.org.br/especiais/padre-cicero

Chapuletadas 15
Fotos: Arquivo Hélder Martins

Gente Ilustrada

Administrador, quadrinista e aquarelista cearense, nascido em Fortaleza. Começou nas artes através da Oficina de Quadrinhos da UFC e participou de publicações como Pium, Onde a Luz Fez a Curva, zine Demolição, Tiras de Letra, Graphiq, Monalisa Reimagined, Capitão Rapadura 40 Anos e a revista Pindaíba

Foi fundador do coletivo The Comics Café, vencedor em 2010 do Prêmio Luiz Sá da Secult/CE na categoria “Quadrinhos”, coautor de um dos módulos do Curso Básico de Histórias em Quadrinhos da Fundação Demócrito Rocha (ganhador do Troféu HQMIX em 2017) e, recentemente, participou das edições dos álbuns Antologia HQ e Antologia HQ: quadrinhos para sala de aula, ambos pelo selo de quadrinhos das Edições Demócrito Rocha.

Atualmente, desenvolve um projeto de pintura em aquarela de prédios históricos da cidade de Fortaleza. A ilustração: “Náutico Atlético Cearense” faz parte desse projeto.

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João Belo Jr.

Radiadora

A Bola Sem Título

“Deixa que eu pego!”, dizia uma vozinha infantil, indo em direção a ela, quando escapava do jardim. Era o que a bola mais lembrava.

Fazia tempo que não corria tanto. Tinha passado as últimas décadas guardada num armário, praticamente esquecida. E agora estava ali, novamente rolando, em sua plenitude, em sua essência, na reunião do grupo de amigos que enfim se reencontravam. “Chuta pra mim!”, “Passa!”, “Quero ver pegar essa!”, diziam. Sorrisos nos rostos, leveza nos olhares. Parecia que nunca tinham visto uma bola, que nunca tinham visto aquela bola.

Cresceram juntos, a bola acompanhou tudo, encontravam-se todos os dias, até que a vida se encarregou de distanciá-los, assim devagar, sem que se percebessem. Tudo mudou, mas por alguma razão não se desfizeram da bola, ficando com o dono da casa que os reunia, perdida em meio a velharias empoeiradas. A bola ficou solitária, mas ainda tinha esperança. Esperou pacientemente uma chance para trazer de volta aquele momento, para voltar a encantar-se naquele encanto tão sincero.

Tal oportunidade veio no dia que foi feita uma limpeza naquele espaço,

uma limpeza que há muito era adiada. Finalmente o armário foi reaberto, e bastou isso para a bola cair lá do alto. Assim que a percebeu, o rapaz viu-se mergulhado em lembranças tão longínquas quanto próximas, bastando que viesse uma para virem todas: aquela diversão tão pura, tão simples, tão própria; os risos, os gritos, os choros; sua vida, sua memória, sua história. Onde tinha ido parar tudo isso? O que tinha acontecido com ele? Com eles? Com o mundo?

Ficou inerte por algum tempo, absorvendo a aparente realidade, o olhar fixo na bola. Decidiu reavivar, se não todas, e se não do mesmo jeito, algumas daquelas sensações. Priorizou isso, pois, como a bola, sabia que poderia não ter outra oportunidade. E agora ali estavam, o grupo novamente reunido, e apesar do tempo decorrido, lá estavam os mesmos risos, os mesmos gritos, a mesma diversão tão pura. E em um chute mais forte, lá se foi a bola além do jardim, por um caminho que ela conhecia muito bem. “Deixa que eu pego!”, gritou um deles.

Acordei. Sob teus gritos. Súbito. Levantei zonza. Ainda com sono. Atônita. Tentei a tudo entender. E agonizei: a dor de me saber, num instante, uma péssima companhia. “Quando o amor não estiver mais sendo servido, retire-se”, já havia me dito a poesia. Obedeci. E trêmula: enfiei as minhas coisas na mochila. Sob tua ira. Medo. Pedi pra deixar a porta aberta: acaso precisasse sair dali. Duro. Tentou me segurar no banheiro. Cárcere. Empunhei minha bandeira. Não me toque. Tenho em mim o número da lei: de cabeça. Exaspero. Bateu a porta, bateu no peito. E gritou. E me perguntou o que fui fazer ali. Te ver, te acompanhar, estar contigo. Estarmos juntos: nada disso te passou pela cabeça. Repentino: esqueceu-se do gostoso dia anterior, das boas risadas, dos planos de viagens, das tristezas superadas, do carinho vivido. Fugi: foi para me salvar. Mantive a porta aberta: foi pra sair viva.

Radiadora
Denis Akel @deniakel

A Licença Minicontos

– Seo Anacleto, por favor, me entenda: eu não posso fornecer-lhe uma licença com o senhor assim, sem apresentar ao menos uma constipaçãozinha.

– Mas, doutor, você sabe que não tem problema. Afinal, todos aqui cuidam de dar um jeitinho, nem sempre no regular.

– Sim, mas para fornecer a licença eu tenho de apor a minha assinatura e o carimbo do Posto. Por que o senhor não trata de arranjar alguma doença?

O senhor precisa mesmo sair de férias da Câmara?

– Quer dizer que o senhor está se negando a me dar esse papel?

– O senhor sabe, um documento assim, sem a doença, é ruim até para a sua reputação de homem público, nos dias de hoje, o povo por qualquer coisa já convoca uma comissão, vamos procurar outro jeito!...

O senhor Anacleto deu as costas sem esconder o aborrecimento. O médico era ciente de que não demoraria mais nenhuma semana naquele posto e seria transferido para alguma aldeia

bem distante de sua circunscrição, se não para a última guarda-fronteira do estado, com o que diziam que o homem na última eleição havia recebido um saco de dinheiro do governador.

Pondo o chapéu na cabeça, sem o cuidado usual, o vereador levantou-se da cadeira e virou-se para a porta, num anúncio de retirada.

Tentando se antecipar às consequências, o doutor exclamou vacilante:

– Espere, Seo Anacleto!

O homem estacou, enquanto o médico circulou a pequena mesa de trabalho indo postar-se à sua frente, ansiando por um último apelo de clareza.  A cara abusada do seu cliente, porém, só o inspirava a fazer uma única coisa.

Procurando agir calmamente, surpreendeu a contrariada autoridade ao retirar da sua cabeça o chapéu que mal acabara de colocar. Após isso, o médico segurou o pesado enfeite de pedra redonda que prendia papéis sobre a mesa e, antes que se pudesse compreender tais movimentos, acertou, com vontade, a cabeça do distinto vereador.

– Pronto, meu nobre parlamentar, agora posso pelo menos justificar a sua licença.

e.leandro@yahoo.com.br

Sangue Morto

Após o enterro, distraidamente Urv lê fileiras de lápides e cruzes

De repente, gritos

Era o nome do filho que ela não via há anos

Dos Olhos e seus Anexos

Simplesmente aconteceu Íris acordou desesperada porque não comandava os próprios olhos Eles olhavam para onde ela não desejava Ou não olhavam para onde ela queria

Enterro dos Ossos

Sob imenso toldo rubro, Ilê senta os convidados em longas mesas floridas Após o churrasco, eles retiram as vendas e, aterrorizados, veem carcaças humanas girando em enormes espetos

O Sol Divulga

Quem visita a cidade Rendeiras do Mundo, se surpreende com os habitantes que têm os mesmos sonhos

Todas as Noites Borboletas

Toda manhã Elbu senta a esposa no banco do carro e passeia feliz pela cidade Mesmo após a morte dela

Silas Falcão

jfsilasfalcao@gmail.com

De que livro tu tiraste esta verdade? Mãe-Mar

Outra vez conversaram meus olhos e teus óculos. Digo os óculos, pois nós sabemos que eles estão de tal modo pegados ao teu rosto que seria uma estranheza falar de forma diferente. Andei mesmo pela rua do medo, fiz adendos na madrugada. Havia na calçada um galpão de estacionamento, dentro dele a minha voz acendia e eu sorria, investindo no ato de nada reconsiderar. Um não bem dito (bendito!) contra o corpo de um amigo é remédio contra o vulgar. (Ei moço, me arruma uns fósforos? Deramme uma caixa inteira)... Duas eu acho. Três da Gal. Quatro dos galos. Cinco dos sinos. Seis dos pães já prontos da padaria. Sete do sol medonho, melindrado. Oito do sim-é-dia, e só depois é que a noite desenssimesmará. Então, tu me dizes, delicada perversidade, saltinhos cor de poeira e manso coração-mirrado: “é desespero isso de andar pela cidade”. Sou obrigada a te cumprimentar. “Há um excesso de verdade no mundo” – disse Raduan para uma galinha que ciscava, descompromissada, a terra do sítio – El Dourado de quem cansou dos ornamentos do circo. Depois ele desistiu, digo o Raduan. Assim, peço: não me ofertes o teu excesso de verdade, me deixa apenas a falta dela, essa mãe-d’água que nunca promete graça, milagre ou proteção. Não ouses furtar as minhas dores, foi muito difícil encontrá-las no Mercado Livre. Mas por que as cegonhas não são igualmente responsáveis pelo recolhimento dos bebês mortos? Tu, pela primeira vez em tua vida, tocas de leve as linhas da minha vida na palma honesta da minha mão, entrega-me um livro vermelho/ branco: “Poesia da Recusa”. Eu sei o que significa o livro, gente morta pra eu pôr no teu lugar

angelacalou@yahoo.com.br

Todos os dias, durante os últimos meses, Mundica se exasperava no quintal buscando as ervas adequadas. Como lhe faltava o conhecimento, contava com a intuição, a sorte e a prece a Deus. Sem se esquecer da intercessão dos santos e de Nossa Senhora, pois eles haviam de concedê-la o perdão. Se o pai descobrisse...

A mãe velha morreu e com ela levou a sabedoria das ervas. O último chá veio amargurado pela lembrança dos filhos arrancados de seu ventre. Escangalhada, no pós-operatório da cesariana, vira a neném sumir, levada para a capital. Provavelmente iria para os braços de uma família com a capacidade de lhe dar tudo do bom e do melhor. Ao preço de sua felicidade, viu repetir-se o processo com o segundo filho. “Tu é uma besta, Mundica, tu é uma anta mesmo. Não sabe que não tem condição de criar sozinha essas crianças? Tu só te envolve com peste.”

No alpendre, a xícara descansava no parapeito. A cadeira de balanço era o elemento cenográfico que conferia verossimilhança ao seu momento reflexivo. Dessa vez seria diferente, ninguém lhe tomaria mais uma semente. A noite veio como todas as outras, arejada pelo vento de praia a espalhar o cheiro de peixe. O bendito mar, o mesmo a atrair tantos turistas. Era italiano o pai fugitivo. O subsequente nem sabia de onde era, devia ser da baixa da égua. Tinha uma língua travada e estranha, as coisas do corpo se passam por outros idiomas.

Mundica dormira e acordara imaginando o cinturão do pai cortando lhe a carne. Falhara em sua alquimia,

carregava no peito choro silencioso e estava ali aos seus pés o anjinho mórbido. Correu para o quintal desesperada, diante a iminência do rapto e da sua morte. As ameaças ainda estavam fresquinhas:

“Eu te mato, tá ouvindo? Eu acabo com a tua vida, tu não vai desonrar essa família de novo.”

Não precisou cavar, já havia um buraco ali. Depositou o natimorto enfeitando o pequeno rosto com flores amarelas que ela não sabia o nome. Plantaria ali mesmo o seu filho. Nunca a deixaram ser mãe, quem disse que não queria? Qual a serventia de um pai se todas as filhas e filhos daquela terra foram criadas pela mãe maior, a própria cidade e a água do mar?

Mãe velha não estava mais ali para defender Mundica, mas viera em sonho lhe visitando o leito. “Minha filha, escute bem, ele não é seu pai, é seu irmão. Não deixe que ele te bata nunca mais! Nunca mais”.

Afinal, quando ele descobriu a semente em seu próprio quintal, tomou a irmã como louca. Não houve tapa nem cinturão, mandou-a para a capital onde deveria ser internada, tratada a choques se preciso, porque não sabia como uma moça tão normal teria se rendido aos caprichos da loucura. Mundica presa sorria. O prédio, baú de loucura, era defronte ao mar. Ah, mar azul, mar verde, mãe e pai desse rebanho divino, ainda hei de escapar desse abismo e me atirar a ti, onde terei o mergulho maior.

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A Casa de meu Avô

A casa de meu avô tem histórias que o vento esqueceu nas cumeeiras

Traços traçam amarelo de tempo nas pessoas dos retratos

No chapéu de meu avô o peso do esperar pendurou-se nas abas

O último cachorro deixou seu jeito no canto da porta seu grito no longe da serra e no susto dos bichos

Nos varais as marcas dos panos se envergonham de nudez Nos baús o cheiro dos lençóis espera a vida que se esvaiu pelas frechas

A casa de meu avô é uma dor sem jeito

Batista de Lima jbatista@unifor.br

Amorto

O amor está morto (e) por aí Lançada a última pá de cal sobre seu peito dolente Pregada a tacha ensangre à mão dormente

Em versos sem novidades

Sem cor, com brevidades Num beijo inconsequente.

O amor está morto, mas vive por aí Cabeça margeada em receios

Com mãos alheias em seus seios

A falar frivolidades

A dividir ansiedades

A combinar saracoteios.

O amor está morto, sempre esteve, Pois que em si não se basta Não se encontra, nem se enfrenta, Não tenta, se consome, some e sequer vive em lembrança

Nem turva-se à saudade.

O amor está morto, mon coeur em aborto, Pois que nunca teve-lhe vida que não o travo insosso da partida

E a desfeita alusão à felicidade.

Raymundo Netto

raymundo.netto@gmail.com

Circo Político

Correndo seguindo a contramão

O inverso a falta de direção

Vem cegando a Constituição  Corpos vendidos a 1 milhão

Quem se vê em volta?

O que se dá em troca?

Em um glorioso batalhão   Picadeiro e a televisão

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Chiarroescuro

O escuro

Que de tanto ser encarado

Se tornou o branco mais puro

A luz

Que de tão brilhante

Até aos cegos seduz

Ormisa Sales de Freitas ormisag.defreitas@gmail.com

Feridas Abertas

O tenebroso do tempo não é o que ele leva, mas o que ele deixa em fratura exposta.

Rápido ele passa com os bons ventos, mas lento se arrasta nas feridas abertas que deixa à mostra.

Aíla Sampaio amlsampaio@yahoo.com.br

Poema Inacabado

No azul noturno do mar

Estremece a polpa da maçã

Mordida

Na ponta do anzol.

A sede das estrelas

Pousou no pulsar do ventre

Da noite

Lavrada de sombras.

Um salva-vidas

Expõe aflito

A palavra afogada.

Mas quem será que afogou a palavra?

Giselda Medeiros giselda_medeiros_@hotmail.com

Café com Cinzas

No lençol branco, o mesmo pó cinzento o mesmo ritual de pôr tudo no lugar: os pés no chão, a cabeça fora do travesseiro e as cinzas de sonhos desfeitos para o lado de fora da janela E o coração buscando jeito dentro do peito para mais um dia Todas as manhã se pratica o exercício do esquecimento como se o sol fosse realmente outro e não o mesmo velho sol, de bilhões de anos, como se o pó do café se misturasse com as cinzas de sonhos mortos enquanto é tomado lentamente.

De Sopros e Poesia

Um dia acordarei a poesia no teu coração

Nele farei lírios germinarem sementes de chuva, Para banhar-te o peito de perfumes líricos; Livres de pecados, Lívidos de esperanças...

Um dia te olharei os olhos redivivos; Ampliados em brilhos, Marinados de alegrias, Por me ter do amor

Brotado e me ser achado

Nos beirais da eternidade...

Um dia sorrirei teu firmamento

De estrelas; Construídas uma a uma

Nos meus lábios, caudalosos de esperas Untadas no bailar dos ventos...

Fabiana Guimarães Rocha lislux2000@yahoo.com.br

Radiadora

Se Procuro...

Para José Valdivino

Se procuro no cérebro as imagens que em meu olhar, há tempos, embebi, ouço o ranger de dentes de engrenagens a triturar os sonhos que perdi...

O que é que vim fazer nestas paragens? Que tempestade me arrojou aqui? Por que não me lancei noutras viagens Já que deixei a terra onde nasci?

Tive a ambição dos nômades nos olhos! Hoje, nem sei, cercado por escolhos, que tempestade me arrojou aqui!

E vivo agora assim, perdido e absorto, entre a saudade do primeiro porto e a tentação das terras que não vi!

Sânzio de Azevedo

sanziodeazevedo@gmail.com

Sexta-Feira

Entre pedras escaldadas negro lençol de poeira Gertrudes pariu um filho como se fosse uma ovelha.

Nem por isso houve festa quebrou-se o monótono ritmo Dos enxadecos no chão Nesta terra tantos morram que outros serão paridos serão servidos na mesa tantos braços escravos quanto as léguas das sesmarias sem-fim

Aqui a vida estrebucha corpo humano é queimado como lenha da caldeira Liberdade se contorce espezinhada pelas botas do senhor doutor coronel

Rosemberg Cariry

cariri.filmes@uol.com.br

Soturna Sorte

Castanha é a cor de seus olhos, soturna vidrados no sítio chamado passado percorrendo milhares de centenas de vezes insensata, de amor, as mesmas cenas... cenas que apenas em verdes campos oculares realmente têm vindo a ocorrer

Radiadora

Tiragostos artista da capa

Estudou design no extinto Centro de Design do Ceará (CDC). É formado em Artes Visuais pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE) e tem o desenho como linguagem preferida, usando suportes e materiais diversos, tendo como referência visual a cultura POP (videoclips, quadrinhos, cinema e moda).

Atua no cenário de Arte local participando de coletivos e em exposições, além de colaborar em projetos editoriais e na indústria de vestuário.

Acredita que a prática artística pode diminuir a grande diferença entre o que projeta mentalmente e o que consegue realizar; e que se a Arte é um caminho de vida, não tem a mínima noção de onde quer chegar, mas vai fazendo do caminho o destino.

Para acompanhar seu trabalho: @jabsonrodrigues

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Entre as Sarjetas de Ise Nishi e Débora Nishi (cores de Edu Matos) Zuumbizin de Karlson Gracie Jabson Rodrigues
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