Revista Maracajá - 4ª Edição

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ARTIGO

Alencar e Nabuco: dois polemistas e cavalos

Charles Ribeiro Pinheiro

FLORES DE AÇUCENA

Ode ao Amor do Mar

Barros Pinho

Minha Terra

Caio Porfírio Carneiro

Dia da libertação

Caetano Ximenes Aragão

Invenção

Nilto Maciel (in memoriam)

CHAPULETADAS

Alba Valdez: em sonho e realidade

Lílian Martins

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA

João Dummar Neto presidência

André Avelino de Azevedo direção administrativo-financeira

Raymundo Netto gerente editorial e de projetos

Emanuela Fernandes análise de projetos

MARACAJÁ

Raymundo Netto curadoria, pesquisa e edição geral

Emanuela Fernandes assistência editorial

Charles Ribeiro, Lílian Martins, Weaver Lima, Lene Chaves, Daniel Brandão e Raymundo Netto colaboraram nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”)

Rafael Limaverde ilustrações

Amaurício Cortez editor de design

GENTE ILUSTRADA

Weaver Lima

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MALA DE ROMANCES

O Impossível Romance da Franga de Granja com o Galo Pé-Duro

Klévisson Viana

CRISTALEIRA

Franklin Nascimento: a história de uma biografia perdida

Raymundo Netto

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TIRAGOSTOS

Raymundo Netto

Daniel Brandão

Leni Chaves

Artista da capa

Rafael Limaverde

RADIADORA

Bruno Paulino

Ricardo Kelmer

Juliana Guedes

João Bosco Ribeiro

Raymundo Netto

Milena Bandeira

Marcello Camelo

Henrique Beltrão

Daniel Glaydson Ribeiro

Inocêncio de Melo Filho

Íris Cavalcante

Dércio Braúna

Gylmar Chaves

Renato Pessoa

Carlos Nóbrega

Alves de Aquino

Luan Brito de Azevedo

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fdr.org.br/maracaja

Giselle Fernandes projeto gráfico

Amaurício Cortez Welton Travassos editoração eletrônica

Karlson Gracie tipografia Maracajá revistamaracaja@gmail.com contato

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo a opinião deste suplemento ou de seus editores.

Este suplemento literário mensal é parte integrante do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza, sob o nº 05/2018.

ISSN 2596-1373

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O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta por onde escorre e se perde o sangue do Ceará.

O mar não se tinge de vermelho porque o sangue do Ceará é azul

O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta (Demócrito Rocha – assinando “Antônio Garrido” – para Maracajá nº 1)

Leitores, amigos e amigas dessas aventuras maracajás, bem-vindos e bem-vindas.

Como nas demais edições, trazemos uma parte, apenas, da produção da literatura pintada no cenário cearense. Dela, extraímos contos, poesias e artigos, sempre no esforço de traçar a diversidade e a pluralidade estética e/ou temática, seja de autores reconhecidos (vivos ou não), assim como a de iniciantes.

A “Mala de Romances” volta nessa edição com Klévisson Viana.

Alba Valdez, primeira mulher a ingressar na Academia Cearense de Letras é o tema da “Chapuletadas”, por Lílian Martins.

“A História de uma Biografia Perdida” deita na “Cristaleira” Franklin Nascimento, um dos autores de O Canto Novo da Raça, obra inaugural do Modernismo no Ceará, e de Maracajá.

“Gente Ilustrada” tem como protagonista do mês, Weaver Lima, artista plástico, quadrinista e fanzineiro.

O pesquisador Charles Ribeiro, nos 190 anos de José de Alencar, fala um pouco sobre o famigerado e polêmico debate jornalístico entre Alencar e Joaquim Nabuco.

Na videoentrevista do mês, Daniel Brandão, jornalista, professor e quadrinista, autor de “Os Mundos de Liz”, tiras diárias publicadas em O POVO, e colaborador deste suplemento.

A Maracajá é terreno vasto e pertence a todos que dela se apropriarem. Abanquemse e a devorem!

3 Do Alpendre

Alencar e Nabuco: dois polemistas e cavalos U

ma das mais instigantes polêmicas da literatura brasileira ocorreu entre José de Alencar e Joaquim Nabuco.

O mote da briga foi a repercussão negativa da peça O jesuíta, escrita por Alencar em 1860, somente encenada em 1875. O espetáculo atraiu pouco público ao Teatro São Luís, no Rio de Janeiro, saindo de cartaz após a terceira apresentação. Com esse fracasso, a polêmica se instaurou quando Nabuco, anonimamente, escreveu um texto ácido contra a peça no jornal O Globo. Esse confronto verbal é significativo para observamos a tensão na construção da tradição literária brasileira, pois Alencar já era considerado o “chefe da literatura nacional”, segundo Afrânio Coutinho. O desafiador, Joaquim Nabuco, era jovem aristocrata, filho de um senador imperial,

que passou uma longa estadia na França e, para se afirmar como novo escritor, imprescindível era demolir o “gigante”.

Nabuco iniciou a série de ataques com a coluna “Aos domingos”, no dia 3 de outubro de 1875, com o intuito de “fazer um minucioso exame da obra literária de Alencar”. Com a repercussão do texto, revelou sua identidade e escreveu mais sete artigos. Impetuosamente, acusou o autor de Iracema de estar em decadência literária; de ser um escritor de gabinete que “desconhecia” as paisagens brasileiras que pintava; de entregar um livro mais falso do que outro e de só ter sucesso na imprensa, pois coagia os jornalistas com seu prestígio político.

José de Alencar, aborrecido com as críticas, defendeu a sua peça e, ao descobrir a identidade do seu algoz, seguiu escrevendo mais artigos irritadiços no mesmo jornal. A troca de desaforos se estendeu por três meses: Nabuco, aos domingos, e Alencar, às quintas.

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O mais interessante dessa polêmica é a comparação entre escritores e cavaleiros, por Nabuco. Ele comparou a atividade literária a uma corrida e a obra de cada autor a um cavalo, tendo como hipódromo principal, o Rio de Janeiro.

No concorrido turfe do romantismo, cujo prêmio era a “popularidade” entre os leitores, citou vários corredores como Gonçalves de Magalhães, Sales Torres Homem, Porto Alegre, Pereira da Silva, contudo, declarou que o “jockey do Guarani” se encontrava muito adiantado e o único que lhe estava próximo era Joaquim Manuel de Macedo. Na metáfora do crítico, os cavalos de Alencar foram vencedores porque, além do público ser diminuto, os concorrentes fraquíssimos.

Em contrapartida, Alencar com a missão de “arrancá-lo do êxtase em que vive como um narciso namorado de si”

usou vários epítetos para desqualificá-lo como escritor, taxando-o de “folhetinista parisiense”, “tribuno gorado”, “macaqueador da língua francesa” e, para ser alvo constante da atenção pública, seus textos nos jornais serviam como um “tônico” ao “orgasmo de vaidade” que impacientemente cultivava.

Sobre a metáfora suscitada, Alencar como “jockey” afirma que se sua Carta sobre Confederação dos Tamoios foi uma égua voraz, enquanto

o irrelevante “Sr. J. Nabuco” não passava de um dr. Fausto montado em um cabo de vassoura, “a cavalgar por esses ares a fora, levando por pajem um Mefistófeles, bom diabo, fanfarrão, mas inofensivo”.

Anos depois, no livro Minha Formação, Joaquim Nabuco reconheceu ter sido bastante audacioso e imaturo em tentar demolir José de Alencar, que também tinha uma face prepotente. Os dois foram intelectuais que contribuíram inestimavelmente para a cultura brasileira, porém o embate verbal estampado nos jornais nos revela que nem tudo são flores em relação à Literatura, constituindo-se também num minado espaço de concorrência. No afã de vituperar um contra o outro, os escritores se comportaram mais como cavalos do que cavaleiros.

Professor de Literatura, com doutorado em Literatura comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com a tese “Rodolfo Teófilo polemista: a crítica polêmica como estratégia de glorificação literária” (Capes). Foi coordenador do projeto de extensão “O entre-lugar na Literatura cearense” (UFC), além de atuar como revisor, redator, roteirista e autor de livros didáticos de literatura.

Artigo 5
Na metáfora do crítico, os cavalos de Alencar foram vencedores porque, além do público ser diminuto, os concorrentes fraquíssimos.

Ode ao Amor do Mar

Gosto do mar  pelo absurdo  sensual  de suas sereias  pelo encrespar  do vento  no ventre  de peixes  abomináveis

pelo lésbico  despudor  das ondas  violentando  as águas  gosto do mar  absorvendo  sol  na máscara  de bronze  dos pescadores  gosto do mar  mistério azul  das mulheres-marinhas  visivelmente estranguladas

gosto do mar  concupiscente  e paradoxal  em seus horrores.

Minha Terra

Minha terra  querida com laço de fita  eu rimaria sem pressa.  A minha terra é áspera  é tempo que se prolonga  desde avoengos tropéis  que o sopro do vento não mata  em espaço tão corrido  ao embalo desta rede.

Meu pé borrando a parede  e o ranger dos armadores  pra cá pra lá  pra lá pra cá  marca o tempo presente  tic-tac ao correr do tempo  que firma o mourão na terra  e com ela perpetua  currais porteiras campos  espelhos de águas tranquilas  paredes buscando os céus  pé direito oito metros  janelas portas rangentes  alpendre aberto aos caminhos  retratos que fitam austeros  esperam muito de mim  e me eternizam aqui  na argila deste chão.

Dia da libertação

pelas vertentes da noite a manhã já se fazia quando Iansã abriu as grades das cadeias da Bahia pra ver Bárbara passar por dentro da luz do dia

dia pleno de orixás cavalgando a ventania ogun oxum olorun vento alvo alvenaria de cabelos cor de cal que de seu rosto escorria

do corpo dos encantados a noite se fez em dia tocaram todos os sinos das igrejas da Bahia pra ver Bárbara passar por dentro da luz do dia

Caetano Ximenes Aragão

Invenção

De tanto não te ver, aflito o peito, desesperado, resolvi inventar-te. Hoje duvido se eras desse jeito e se de fato és, no todo ou em parte.

De tanto não te ver, nunca te ver, ou por sumires tão furtivamente, ou minha sorte bem mesquinha ser, achei por bem criar-te novamente.

Quem mais existe? Qual mais delas noto? Talvez a que me fez seu criador, talvez a que me fez versejador.

Não sei a quem amor eu mais devoto: se a ti que foges minha inspiração, se a ti que chegas minha criação.

Nilto Maciel (in memoriam)

6 Flores de Açucena
Caio Porfírio Carneiro Barros Pinho

Chapuletadas

Alba Valdez: em sonho e realidade

Quando o assunto é a presença feminina nas academias literárias no país, muito se fala sobre Rachel de Queiroz (1910-2003), a primeira mu -

lher a ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL). Mas este aparente pioneirismo não nos deveria ser um motivo de orgulho e, sim, de vergonha! Pensar que somente em 1977 permitiram que uma mulher pudesse ocupar o espaço de poder 1 da mais prestigiosa academia literária nacional é, para

1 A expressão vem dos postulados teóricos de Pierre Bourdieu sobre os campos de produção cultural (intelectual, científica e artística) e as suas relações de poder, explícitas ou implícitas, conscientes ou inconscientes, em que permeiam todas as relações humanas, em toda parte do espaço social.

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nós brasileiros, um advento tardio frente a todas as demais mulheres escritoras que a antecederam e que muito contribuíram para as letras nacionais, até mesmo para a própria edificação do projeto artístico-literário da ABL como, por exemplo, Júlia Lopes de Almeida (1862 - 1934).

Neste sentido, apesar da relevância da romancista de O Quinze, poucos saberiam dizer qualquer fato a mais sobre a presença dela e de quaisquer outras mulheres nas academias e agremiações literárias no Brasil. Bem poucos, ainda, saberiam informar quem teria sido a primeira escritora cearense a ingressar na primeira academia de letras no país, a Academia Cearense de

Letras (1894). Pois bem, esta mulher foi Alba Valdez (1874-1962), e é para ela e a todas as mulheres silenciadas e aviltadas em seus trabalhos, relegadas à invisibilidade do esquecimento bibliográfico, a quem dedico este artigo.

Nascida Maria Rodrigues

Peixe, no sítio Espírito Santo, em São Francisco de Uruburetama, atual

Itapajé, a 12 de dezembro de 1874, adotaria mais tarde, com o intuito de que os pais não soubessem de seu ofício de escritora, o pseudônimo “Alba Valdez”. “Alba” em homenagem a sua grande amiga, Alba Pompeu (1878 - 1949),

Chapuletadas 8
Neste sentido, apesar da relevância da romancista de O Quinze , poucos saberiam dizer qualquer fato a mais sobre a presença dela e de quaisquer outras mulheres nas academias e agremiações literárias no Brasil.

filha de Thomaz Pompeu (1852-1929). O sobrenome “Valdez” foi retirado do antigo Dicionário Valdez da Língua Portuguesa. Em 1877, seus pais passaram a residir em Fortaleza, devido à grande seca daquele ano. Em 1889, formou-se professora pela Escola Normal e, em 1922, ingressou na Academia Cearense de Letras. Infelizmente, em 1930, a ACL passou por uma reestruturação e, nela, o seu nome foi retirado da composição da entidade, retornando somente em 1937, quando sob nova reestruturação. O triste episódio rendeu um dos artigos mais belos escrito pela escritora, intitulado “De pé”, publicado no Jornal do Comércio, de Fortaleza, em 22 de maio de 1930.

Além da ACL, Alba Valdez pertenceu ao Centro Literário, Instituto do Ceará, Boêmia Literária, Iracema Literária e à Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno. Seu primeiro livro, Em Sonho... Fantasias foi publicado, em 1901, quando tinha apenas 26 anos. A obra marca também o primeiro registro literário do gênero crônica em

o resultado de uma seleção feita pela própria autora dos seus textos publicados no Diário do Ceará. Além de crônicas, a obra contém também contos e alguns deles ganharam tradução para o sueco, pelo poeta Göran Björkman (1860-1923) e para o francês, sendo o seu conto “A Carta” publicado no jornal Le Matin, de Paris.

Em 2017, o livro ganhou segunda edição para a Coleção Clássicos Cearenses, publicado pelas Edições Demócrito Rocha. Ironicamente, a nova edição ganhou prefácio da escritora Ângela Gutiérrez (1945), que se tornaria, posteriormente, a primeira mulher a presidir a ACL. Seis anos depois da sua estreia na literatura, Alba Valdez publicou Dias de Luz, recordações da adolescência, obra até hoje ainda não reeditada.

O pioneirismo da escritora não foi somente na literatura, mas também nas áreas da educação e do jornalismo, nas quais colaborou escrevendo para jornais e revistas em Fortaleza e em outras cidades do Brasil.

Chapuletadas 9
Em 2017, o livro ganhou segunda edição para a Coleção Clássicos Cearenses , publicado pelas Edições Demócrito Rocha.

É uma das fundadoras e presidenta da Liga Feminista Cearense (1904), onde lutou pela emancipação feminina e pelo direito ao voto, e há quem diga que ela serviu até de inspiração ao pintor Raimundo Cela (18901954) para a imagem feminina da Liberdade no célebre painel “Abolição dos Escravos”, de 1938, fato lembrado no discurso de posse de Eduardo Campos (1923-2007), na ACL, em 1963, na cadeira de número 22, antes pertencido a Alba Valdez.

A história surpreendente de Alba Valdez, marcada pela luta em defesa dos direitos da mulher, nos encoraja a seguir adiante, pois onde mais r-existam “mulheres que, como eu, mourejam na seara das letras”2 persistiremos na luta, lembrando que ninguém solta a mão de ninguém!

2 Trecho do artigo “De pé” de Alba Valdez.

Lílian Martins

lilianabreu_martins@yahoo.com.br Jornalista, tradutora, professora, pesquisadora e militante em Literatura Cearense. Mestre em Literatura Comparada pela UFC com a dissertação vencedora do Prêmio Bolsa de Fomento à Literatura da Fundação Biblioteca Nacional e Ministério da Cultura (2015) e do Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) em 2016. Desde 2008, apresenta e produz o programa literário semanal Autores e Ideias da Rádio FM Assembleia (96,7 MHz) da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. Escreve, mensalmente, sobre música e literatura para a coluna: “Ao pé do ouvido: Baladas para Leitores” do Blog Leituras da Bel, vinculado ao Portal O POVO Online.

Para conhecer mais de Alba Valdez

Em Sonho... Fantasias, de Alba Valdez (EDR), Coleção Clássicos Cearenses

O livro pode ser adquirido na Livraria Dummar

Endereço físico: Av. Aguanambi, 282, Joaquim Távora (sede do jornal O POVO)

Endereço virtual (e-commerce): livrariadummar.com.br

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É uma das fundadoras e presidenta da Liga Feminista Cearense (1904), onde lutou pela emancipação feminina e pelo direito ao voto

Gente Ilustrada

Weaver Lima

Cearense, iniciou no meio artístico criando e integrando o grupo Seres Urbanos, responsável pela edição, na década de 1990, de uma série de fanzines que se tornaram referência no meio alternativo brasileiro. Em 2015, publicaria Seres Urbanos: antologia do quadrinho underground cearense, eleito melhor livro de HQ no prêmio Miolo(s), organizado pela editora Lote 42 e pela Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Desde o início dos anos 2000, Weaver dedica-se às artes visuais. Sua exposição individual “Weaver Discos: pop descarado” circulou, entre 2012 e 2013, em seis capitais brasileiras, além de Itália e Portugal. Desde 2011, realiza o projeto de arte itinerante “RASTRO”, percorrendo cidades do interior do estado do Ceará e realizando intervenções artísticas. Em 2016, uma exposição sobre o projeto foi selecionada no programa nacional da CAIXA Cultural.

A ilustração “História Oral III” (spray sobre recorte de madeira, 67 x 53cm) integra a série RASTRO.

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Cristaleira

Franklin Nascimento: A

a história de uma biografia perdida

o recebermos a indicação de Sânzio de Azevedo e a autorização do, então, secretário da Cultura, Auto Filho, para a publicação, como parte integrante da série Luz do Ceará, coleção Nossa Cultura, do título O Canto Novo da Raça, poesias de Jáder de Carvalho, Franklin Nascimento, Mozart Firmeza (Pereira Júnior) e Sidney Netto, obra originalmente impressa pela tipografia Urânia em 1927, ficamos bastante felizes. Sentíamos que estávamos conseguindo trazer à tona, dos porões escuros do nosso tradicional esquecimento, obras de relevância que contribuiriam, doravante, para a compreensão da formação artística e literária cearense.

Vinha-nos sempre a questão: como era possível uma obra, que conforme bem nos define o prof. Sânzio, é o livro inaugural de uma corrente literária, o Modernismo, no Ceará, ter que esperar 84 anos para ter direito a uma segunda edição? Pois bem, 12

durante o processo de organização e publicação de tal livro, teríamos outras alegrias que gostaríamos de compartilhar agora com, você, leitor.

Quando lemos na apresentação de Sânzio de Azevedo, sobre o poeta Franklin Nascimento, um dos quatro autores da referida obra, “(...) aquele cujos dados biobibliográficos são mais escassos. Nascido em Fortaleza no dia 21 de abril de 1901, não se sabe onde e quando faleceu (...)”, nos preocupamos. Isto, pois, reconhecido o trabalho incansável, honesto e sério de pesquisador, aceitamos tal afirmativa como uma provocação que justificaria ainda mais a edição da obra. E assim o fizemos. Passamos a buscar na internet e conversar com outros pesquisadores sobre o possível paradeiro de Franklin. Tínhamos sempre a impressão de que ele teria saído do Ceará, o que justificaria o seu “desaparecimento” e o desconhecimento de sua continuidade na literatura.

Um dia, porém, quase por acaso, encontramos numa página da web um comentário de uma neta de Franklin, Karla, residente em Belém do Pará, citando qualquer coisa a respeito do avô que era poeta no Ceará. Tentamos rastreá-la e conseguimos descobrir o seu filho, Felipe, um jovem que tinha um blogue no qual postava crônicas. Por meio de uma rede social do qual faz parte, escrevemos, falamos sobre a proposta de publicação do livro do bisavô, a sua importância e a necessidade de resgatarmos a sua biografia, ora inconclusa. Com dias, conseguimos conversar, por telefone, com o filho de Franklin, Túlio, residente em

Recife, e depois com Tereza, residente em Fortaleza, e, desde então, muitos dos mistérios sobre o suposto “paradeiro” começaram a ser naturalmente desvendados.

O primeiro deles foi descobrir que o Franklin Nascimento, na realidade, se chamava João Abreu do Nascimento.

“Franklin”, um pseudônimo. Cremos, uma homenagem ao seu pai Abdon Franklin do Nascimento. Por meio de contatos telefônicos ou e-mails, além da única foto de Franklin em juventude, a família nos apresentou a sua origem, nome dos pais, histórias da infância, trajetória

profissional e familiar e, inclusive, não poderia deixar de ser, a data de seu falecimento, em 24 de janeiro de 1978, e o seu local, fato que nos causou maior assombro: em Fortaleza, Ceará! Ou seja, o Franklin, ou João, nasceu, viveu e morreu aqui, “debaixo de nossas barbas”, como se diz. Ou seja, foi “esquecido” ainda em vida. Estranhou-nos a família — teve 10 filhos — não ter conhecimento da existência de O Canto Novo da Raça, nem de seus poemas publicados neste livro. “Não falava sobre isso (poesias, livros) em casa”, nos afirmou o filho. Asseguraram-me

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Cristaleira

não saber de outra publicação qualquer de Franklin. Perguntei-lhes sobre Nuvem de Gafanhotos, título que encontrei na Revista de Antropofagia nº 6, de outubro de 1928, dirigido por Antônio de Alcântara Machado e gerenciado por Raul Bopp, em São Paulo. Na revista, o seu poema “Pomo Roído” aparece como se extraído de Nuvem de Gafanhotos. Provavelmente, supomos, o título provisório de um livro que o poeta pensava em publicar e não o fez.

O fato é que Franklin, com pouco, desapareceu do circuito literário, sabe-se lá por que razão. Depois do lançamento de O Canto..., além de pequenas contribuições na revista Movimento e na Revista de Antropofagia, foi um dos fundadores de Maracajá (1927) e Cipó de Fogo (1931), e casou-se, em 1933, com Francisca Aguiar, a Francinete. Inclusive, me foi relatada a história muito romântica da perseguição do jovem e apaixonado João, em bondes, à futura esposa.

Por meio de um recorte de jornal, descobrimos que Franklin, que gostava de anedotas e as escrevia, participou da fundação da Academia Cearense de Humoristas, com sede na

no livro. João, que atuava como contabilista, era simpatizante do comunismo, ateu e boêmio, nunca apegado às coisas materiais. O filho Túlio se recorda de ter crescido vendo na sala de casa, pendurado em local de honra, o retrato de Luís Carlos Prestes. Como poeta que era não nos surpreende seu comportamento de estranhamento e desajuste a este mundo, a sua sensação de solidão e uma tal angústia que parecia nunca se acabar.

Na carta a Drummond, felizmente mantida em fotocópia — e ainda desconhecida por alguns de seus familiares —, todos esses sentimentos são devidamente revelados, como se Franklin soubesse que a outro poeta ele poderia fazê-lo, e se tratando de Drummond, com certeza o entenderia. Na carta ele fala de sua velhice (estava com 73 anos), da sua tristeza por não ter “tutu” para publicar um livro com seus versos acumulados de uma vida, da sua dificuldade de pedir a ajuda de amigos para fazê-lo, da sua intenção de levar em seu caixão os versos que nunca iria

publicar — o que de fato aconteceu, por conta da obediência da filha —, e anexou alguns deles, além de quadrinhas de sátira e humor. De quebra, é claro, arriscou pedir a Drummond um livro seu autografado.

Graças ao empenho da família de Franklin, que sempre nos atendeu prontamente, conseguimos elaborar a nova biografia de João Abreu do Nascimento, o Franklin Nascimento, um dos autores de O Canto Novo da Raça, um pequeno, mas para quem sabe bem o que é isso, um grande serviço para nossa historiografia literária.

Para mim, particularmente, poucas são as emoções que podem ser comparadas à de se ler, mesmo por telefone, um poema desconhecido de um pai a uma filha, e ter a certeza de que, após tantos e tantos anos, a voz do poeta se fez imortal, forte, clara e melódica transcendendo a tudo, inclusive à vida, e tudo aquilo que ela, pessoalmente, lhe negou.

Raymundo Netto raymundo.netto@gmail.com

Radiadora

As Almas Penadas do Açude Grande

Foi numa noite de chuva forte, com relâmpagos e trovões, que ouvi pela primeira vez ao redor de uma fogueira junto aos meus primos a horripilante história das almas penadas do açude grande contada pelo velho Manuel Rosendo, vaqueiro da fazenda Forquilha – propriedade do meu avô – e um dos maiores contadores de casos de assombração em toda a redondeza do vilarejo de Boa Fé.

Manuel Rosendo dizia que o açude grande, aquele mundão de água, quando nos dias de cheia era atração garantida para os pescadores, os banhistas, os animais, e, claro, para os moradores do vilarejo, sobretudo para as crianças que se divertiam, apesar dos perigos.

As histórias sobre as almas penadas do açude grande eram antigas, reforçava o velho narrador. E iniciaram no dia em que um casal de crianças, Mariazinha e Pedrinho, filhos do bodegueiro Zé Lins, sumiram misteriosamente aos olhos da mãe zelosa que sempre foi dona Lúcia e que entrava agora aflita e aos gritos na

– Zé me acuda! Me acuda! Não consigo achar os meninos. Já procurei em tudo que foi canto, não sei onde diabos se meteram. Sumiram desde manhãzinha, quando fui estender a

roupa no cercado. E além do mais tô com uns pressentimentos.

– Calma, mulher! Calma! Não fale em diabo, que isso atrai coisa ruim. Deixe de tanta besteira. Devem de está por aí nos terreiros, brincando com o menino do cumpadre Luís, eles aparecem já. –respondeu sem demonstrar muita preocupação Zé Lins, tentado também dessa forma acalmar a mulher.

Deu a noite e os meninos não apareceram. A mãe caiu nos prantos receosa de suas premonições. Zé Lins fechou a bodega, foi acima e foi abaixo, e não deu vista de nenhum sinal dos dois filhos, acabando por reunir todos os homens do vilarejo, que solidários ganharam os matos com lampiões acesos no caminho do açude grande, pois foram informados pela preta velha Nastácia que as crianças tinham sido vistas brincando na beira d’água no fim da tarde.

Os corpos das crianças foram encontrados por um pescador, boiando perto da parede do açude, naquela mesma noite, enganchados numa árvore. Os olhos esbugalhados, a face carcomida pelos pequenos peixes e as marcas indistintas de machucados espalhadas pelos corpos deixou todos atônitos e perplexos. Nunca ninguém conseguiu entender o que se deu com os filhos de seu Zé Lins. Teria alguém matado aquelas crianças e jogado os corpos na água? As crianças teriam ido nadar e se afogado? Nunca ninguém soube responder. E por que tragédia tão sofrida se abatera sobre aquela

pobre família? Por que criaturas tão pueris teriam sofrido tanta violência?

O tempo passou e logo surgiram as primeiras histórias das aparições das almas das crianças à noite, vestidas de branco com velas nas mãos, na beira d’água do açude grande.

Zé Lins ficou sabendo das supostas aparições pelo cochichado de seus clientes na bodega, mas não acreditou naquilo até que sua mulher numa noite lhe disse na hora do jantar:

– Zé, eu vi nossos filhos. Eu vi nossos filhos mortos! Eles querem te ver.

O bodegueiro não conseguiu engolir mais nada. Insone, perturbado com as palavras da mulher ressoando na cabeça e a lembrança doída dos filhos. Ela insistia:

– Zé, eu vi nossos filhos. Eu vi nossos filhos mortos! Eles querem te ver.

Ele saiu de casa sem que ninguém o visse e seguiu no rumo do açude grande.

No outro dia pela manhã, suas roupas, sua faca e seu rosário, que costumava carregar no pescoço, foram encontrados numa canoa que vagava solitária no meio do açude. Porém o seu corpo nunca foi encontrado.

Ainda hoje contam alguns pescadores mais antigos que, ao pescar no açude grande em noite de lua alta, é possível esbarrar com a alma do homem na canoa a perguntar por seus filhos, Mariazinha e Pedrinho.

Radiadora 15
bruno_enxadrista@hotmail.com

Cem Vezes Mais

Deus é fiel, tá sabendo? Prova disso é que semana passada abriu uma igreja evangélica aqui pertinho. Toda noite tem culto, uma ruma de carrão importado na frente. Chance boa de faturar um troco, ajudar a tia a pagar o aluguel do barraco, ela que me cria desde que mamãe morreu. Morreu no corre dor do hospital, gosto nem de lembrar, bola pra frente, meu irmão. Primeiro, segundo, terceiro dia guardando os carros da igreja, faturei nada. Eles não tinham dinheiro, só cartão. Mas sempre diziam que eu orasse muito que Deus proveria. Tinha um que dizia assim, “Precisa olhar o carro não, moleque, Deus tá vigiando”. Era o carrão mais bacana de todos. Olhei no vidro, tinha um adesivo, “Foi Deus que me deu”. Uma noite descobri que o dono do carro era o pastor da igreja. Descobri porque entrei lá acompanhando minha tia, ela queria orar pelo primo que os polícia mataram por engano numa batida dia desses. O pastor estendeu um bauzinho na nossa frente e disse que aquela noite era especial, que Deus estava ali ao lado dele, e que a gente receberia cem vezes mais o que a gente botasse naquele bauzinho. Minha tia enxugou as lágrimas, abriu a bolsa e contou as moedas. Dava uns dez reais, era tudo que ela tinha. Ela botou as moedas no bauzinho e rezou. Eu olhei nos olhos do pastor. Ele repetiu, sorrindo, “Cem vezes mais, meu filho, tenha fé”. Eu acreditei nele, claro. E botei uma nota de vinte. No dia seguinte, quando o pastor saiu da igreja, cadê o carrão? Tava lá não. O lugar mais vazio do mundo. Eu também não tava. Naquela hora eu tava dirigindo o carro dele, o Isaías me esperando com dois milzim na mão. Deus é fiel.

Moreira de Deus. Lá, comecei os estudos de flauta transversal e Alan tocava violão clássico.

Os tempos tinham mudado, saímos do Cariri e nos mudamos para Fortaleza, o ano era 1969 e o casamento ia muito bem. Estudávamos, agora, no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno. Neste espaço, conheci a holandesa Judy. Ela tinha olhos de piscina, usava roupas folgadas e faixas florais na cabeça.

Alan sentiu que algo estava muito estranho. Com Judy, aprendi a renovar os valores dentro de uma casa. Por isso, passei a reivindicar direitos iguais em relação às tarefas domésticas. Em poucos dias, o café de Alan tinha o sabor mais apurado que o meu, deixando o lar inteiro cheirando à baunilha. Pelas calçadas, as pessoas comentavam baixinho: “essa moça ‘tá diferente”. Passei a sair de casa sem sutiã, o que era um escândalo e usava uma enorme peruca loira.

Neste mesmo ano, fui convidada pelo pessoal do Ceará a me apresentar em alguns festivais. Não parava mais em casa, o que fez Alan entrar em total desespero. Às vezes, ele preparava alguns jantares românticos, mas quase sempre eu estava de pileque, sem muita fome, escutando, no último volume, uma velha radiola, os discos dos Mutantes e da Gal Costa, saindo a rodopiar pela casa. O ano estava muito frutífero e tinha feito amizades de toda uma vida. Pensei em me separar, mas Alan fazia uma boa comida, dividia as tarefas de casa, era amoroso e o olhar doce permanecia. Então, resolvi dar uma nova chance, com o combinado de que não interferisse na minha carreira artística.

Radiadora

apresentações de bandas. O grupo tocava apenas um som experimental e não tínhamos problemas com a polícia, aparentemente.

Era uma quarta-feira, próxima aos festejos natalinos, e a banda foi se apresentar na Rádio Dragão do Mar. O programa chamava-se “Hoje é dia de Rock”, que contava com o apoio popular e tinha muitos fãs. Judy costumava falar em nome de todas nós, mas senti uma vontade de pegar o microfone e manifestar alguns pontos de vista sobre as últimas perseguições e repressões aos artistas nordestinos. Não deu outra, quando saímos do estúdio da emissora, os militares nos atacaram com truculência e prenderam os radialistas.

Depois de realizar um depoimento para o Doi-Codi, Judy voltou para casa, transtornada. Enquanto eu acabei ficando. Duas semanas depois, meu marido saiu pelas ruas, entregando panfletos pela cidade, em tempos de chumbo, com o seguinte título: “Eu, Alan Ferreira, procuro minha esposa.”

O Relicário

“Vão-se os anéis, ficam os dedos.”

Minha avó repetia estas palavras sempre que um objeto que nos era querido se perdia ou acabava em pedaços. Dizia para nos irritar, ou assim parecia-nos, em meio à fútil ira da privação que, na falta de adequada perspectiva, tomava proporções dramáticas.

Seu sábio e meigo riso de divertida compreensão, como o de quem pacientemente ouve as fabulosas queixas de uma criança frustrada com suas questões cotidianas, nos soava sarcástico e cruel. Aos nossos ouvidos, suas palavras de conforto eram descarada afronta.

A perspectiva, contudo, hora ou outra, em catarse ou relutante rendição, nos arrebata, revoluciona e envergonha, e o faz com distinto talento para o drama.

“Vão-se os dedos, ficam os anéis”  Reconheci a desenhada letra preenchida de significado no ordinário pedaço de papel pardo que encimava a pequena caixa azul-marinho de papelão mantida fechada graças a um fino elástico prateado preso à sua face inferior, envolvendo-lhe precariamente. O conteúdo era algo mais curioso.

Um caderninho em ruínas, de miolo nobre não-pautado, estava preenchido de notas sobre tudo e coisa nenhuma, palavras que, há muito, perderam seu significado. Um passaporte

surrado narrava, como um romance gráfico, contos cuja memória fora varrida pelo apressado correr dos anos. Um ingresso de cinema, quase completamente apagado, contava de uma amizade morta precocemente.

Não havia fotos, apenas objetos que, apartados da alma que os mantivera reunidos por tanto tempo, diziam muito pouco de seu real valor, como que relutantes em revelar os segredos de sua falecida curadora.

No fundo do recipiente, uma joia – um relicário dourado onde lia-se, gravado em relevo, “tempus fugit”. Ao toque, abriu-se, revelando um pedaço envelhecido de papel, dobrado incontáveis vezes à forma de um pequeno quadrilátero intocado por décadas. Inscrita em seu interior uma confissão desesperada de uma mente humana corroída pelo medo. Medo de ver escorregar por entre seus dedos a felicidade que custara a conquistar e que julgava imerecida.  Encantada, encarei uma última vez o conteúdo, ora devassado, da caixa de relíquias anônimas, na certeza de que os medos de sua colecionadora jamais escaparam às fronteiras daquele débil bilhete.

Radiadora 17

quase em frente à lagoa, ainda visível à janela de sua casa. Lá chegando, amarrou-a rente a um tronco estreito de árvore, onde previamente havia preparado baldes com água, areia e cimento.

Desacordada, ela respirava suavemente, balbuciando seu nome e deixando que a lua revelasse a ternura no rosto, à medida que ele punha e moldava sobre seu corpo a massa ainda molhada do cimento. Começou pelos pés. Aos poucos, as pernas, o tronco, os seios, os braços, até finalmente cobrirlhe toda a cabeça.

Amanheceu. O Sol o encontrou sentado no capim, ainda trêmulo, com uma pequena espátula à mão e olheiras marcadas de despedida, enquanto iluminava e aquecia a figura tosca daquela mulher. Foi quando teve a impressão de ouvir dela um soluço abafado, quase como um estalo. Acordara?

Todos os dias, seria a primeira imagem que veria ao levantar. Horas e horas à janela.

À noite, tinha pesadelos. Ouvia os seus desaforos, as suas lamúrias. Imaginava que ela lá não mais estaria, que mesmo em pedra pudesse lhe escapar, se lançando nas águas lodosas da lagoa. Mas não. Ela permanecia ali, imóvel, como encantada, a seu alcance, aquecida para sempre em seu amor e zelo. E assim foi durante meses.

A ausência dela era quase despercebida. Trabalhava em casa, poucos amigos, filha única de mãe idosa. Quando muito,

um telefonema — “Ela não está. Quer deixar recado?” — Não queria. Sabia que a ingrata não retornaria.

Aos finais de tarde, aguardava a noite ao lado da mulher. Falava sobre seu dia, contava-lhe novidades, a presenteava, confessava a falta que lhe fazia e, por fim, numa loucura própria e sincera dos amantes, a cobria em beijos amorosos, se agarrando àquele corpo frio, áspero e inerte.

Em uma noite quente, porém, ele acordou e viu ao pé de sua cama a mulher de pedra. Em silêncio, e através de seus olhos nus e cinzentos, parecia mirá-lo, até jogar-se sobre ele, e, com as mãos, tomar-lhe fortemente o pescoço e o ar. Valendo-se do vagar desajeitado da estátua, ele conseguiu, com esforço, escapar-lhe. Ainda torpe e surpreso, pegou uma marreta e a golpeou no abdome. O corpo começou a rachar. Abriu-se de meio a meio. “O que foi que eu fiz, meu amor? O que foi que eu fiz?”, repetia. A estátua fez-se em pedaços e de seu interior apenas um grito moribundo, aterrorizante, de uma agonia jamais ouvida igual.

Ele, abalado, jogou-se sobre os escombros, a procurar a mulher, qualquer pedaço dela, mas nada encontrou. Saiu gritando, com restos de entulho nas mãos, e jogou-se na lagoa, pondo-se no fundo da lama com o peso de sua própria consciência e da imagem perdida de sua mulher amada.

Raymundo Netto raymundo.netto@gmail.com

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Dormência

eu não tenho medo da chuva. eu tenho medo é de não sentir os pingos caindo no meu corpo cansado.

Milena Bandeira

milenamaquinadeescrever@gmail.com

Maracaiá

avia, avoa, vaia azunha, arranha, assanha ruge, urge, ressurge abocanha, arreganha, entranha

arenga, assunga, rasga afronta, confronta, reconta enfeita, descatita, empriquita cutuca, papoca, provoca

frondoso, garboso, lustroso afrontado, espritado, inzabuado porreta, arrombado, aloprado

alencarino, genuíno, malino arisco, risco, trisco atento, retinto, maracajá

Marcello Camelo

marcellocamelo@bol.com.br

Para Esquecer

Não comporei para ti poemas, para que tua imagem se desfaça aos poucos, a clareza da pele imersa na luz desta terra, para que tuas linhas se apaguem no ar, sem delícia, nem memória, nem fantasias, para que teus gestos – que dançam! –venham, com o tempo, a parar.

Henrique Beltrão

Radiadora

Tempo Herança

Cirurgicamente se amputa coração dopado de veado preto. Proibicionismo inventado para matar pobre e lavar Grana. Em nome da REAL generosidade: Primeira-Dama, libras maçônicas, amazonas, etnocídio, fugas brancas.

– Larga meu corpo, Estado do caralho! diz potiguar enjaulada, cujo CRIME: monetizar e ingerir cultura natural, mijada maconha coca crack mec feice; das redes sociais ela trafica conversões à Facção Paulista e inefáveis códigos éticos hoje picha, seu sangue repentista corta cabeça de Novos Batistas Ministros Damares Messias enquanto, indígena, canta:

– Supremos Corvos Federais, que se regalam da carniça sentenciáveis “nunca mais”

ao que só tem em Vossa missa: bilionários, fraternidade!

“Nunca mais!”, direi eu insubmissa, petrificada em marginalidade, “Nunca mais!” dirá a carniça, torturada em neoliberdade, ao Espantalho da Justiça.

O Poema

O poema é fruto do meu ofício

Está em minha vida

No meu cotidiano

Na minha rotina

Seu tecido veste-me

Seu nascimento em mim

Renova-me apesar dos árduos combates

Apesar do tempo que pesa nos meus ombros

Curvando-me as costas.

Inocêncio de Melo Filho prof.inocencio@gmail.com

Radiadora

A Resposta para a Desumanização

a poesia ocorre, surta, surge, surpreende assalta, assusta, luta a poesia não se cala, a poesia ela insiste, insiste, insiste ate ser parida, virar palavra, verso, reverso, germinar ela fala do saqueio, da opressão, do túnel sem luz do abismo, do abismo, do abismo ah, mas ela fala da vida também apesar dos cataclismas, dos holocautos ela fala da vida a poesia é a resposta tenaz para uma terra devastada para um coração estéril vantagem sobre a destruição em série a poesia é a resposta do homem para a desumanização vou ali, levar minha poesia para passear vamos indo de braços dados e peito aberto brincar de ser poema

Íris Cavalcante iris@idt.org.br

Pela Caridadede Suas Mãos e Dentes

É o mais certo amor o que temos pela rudeza das coisas.

O bicho que se milagrou homem (pela caridade de suas mãos e dentes), que pariu um deus com gravetos e pedras (para depois apedrejá-lo):

esse bicho talha sem descanso dentro da coisa milagrada.

Impressões aos Sessenta

A impressão que eu tenho é ter me deslocado para dentro  de uns sonhos duradouros.

Vivi toda a infância sem me importar com ruínas, casas mal-pintadas, pessoas que mancavam, estradas sinuosas. Na adolescência, continuei dentro deles, Também não me ative em sempre acordar cedo para ler as estrelas derradeiras, ver o sol nascer.

Por essa época, estava mesmo era engraçado  por namorar agarradinho, beijar com muito aceite.

Veio então um sopro e cheguei aos sessenta, ainda pelejando  em desfazer rochas onde residem alguns poemas.

Radiadora

O Batismo Depois do Outuno

eu não digo o teu nome na febre do vulcão, na mão de argila, domada de ventania e alagamento. eu não digo o teu nome ecoado de pássaros, dentro do ventre, orçado na miudez. eu não digo o teu nome com a ajuda de deus, ferido na dimensão aguda da língua. eu não digo o teu nome no poema, na asa do caos, na louça e no amargo. o teu nome, o teu líquido nome, saído do absurdo e da fé. amor.

Renato Pessoa

renatopessoa_21@hotmail.com

Estátua

A minha ruga da raiva risca meu rosto de rusga. A minha ruga da dúvida risca meu rosto de busca.

A minha testa é um texto que escreve e apaga meu susto. Sim eu tenho esse rosto que enquanto existe é meu busto.

Carlos Nóbrega carlosamnobrega@hotmail.com

Não há tempo a perder com poesia, inaproveitável mercadoria

Espaço não há pra se gastar com Paul Valéry Por isso

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Alves de Aquino deaquinoalves@gmail.com

Nasceu o Poema

Atropela um pássaro em voo Rosto de menino versus bico e penas Os carros cá embaixo olham de través

Dois corpos que colidem

Na prisão do ar Acima das cruzes, acima dos topos Construções, tosca soberba Livres partilham na jaula em meu tórax

Este seio azul Constelado de poemas

Luan Brito de Azevedo luanbritoda@gmail.com

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Radiadora

Mala de Romances

O Impossível Romance da Franga de Granja com o Galo Pé-Duro

Minha querida franguinha, Nosso amor é sem futuro... Peço, não fique abatida: Entre nós existe um muro!

Você é moça tão fina, Não sobe em qualquer poleiro... Vou-me embora, sem destino, Cantar noutro galinheiro!

Sou rústico como o sertão, Sou aço duro de espada! És frágil como uma rosa De feição mais delicada...

E, nesse ingrato porvir, Sofro igual a um aleijado: Eu sou um filho da plebe! Tu comes milho importado...

Adeus, adeus, minha amada! Do meu pai, herdei prudência. Sou um fruto da natura; Tu és filha da ciência.

Nasceste em berço de ouro, Numa linda chocadeira; Eu sou um frango matuto, Desses vendidos na feira.

Sou boêmio e o meu cantar Sempre rompe a madrugada: Meu corococó saúda

O surgir da alvorada.

Sou um cantador do mato, Só temo mesmo a raposa. Ao morrer, quero seu nome Junto ao meu, na fria lousa...

Não vejo luz no caminho, Somente o breu do escuro... Você é franga de granja

E eu sou galo pé-duro.

Klévisson Viana kleviana@ig.com.br

Mala de Romances 23

Tiragostos

artista da capa

Nascido em Belém/PA, 1976, naturalizado cearense, iniciou sua carreira ilustrando para o jornal O POVO.

Formado em Artes visuais pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE), é xilogravurista, grafiteiro, design e ilustrador. Teve sua primeira exposição de pinturas e infogravuras intitulada “Caos” - Fortaleza (2000) e, depois, a segunda, “Xilofagia”. Realizou a exposição individual “Gabinete Místico” com 13 aquarelas na Galeria Estoril - Fortaleza/CE (2015). É curador da exposição Eco Barroco no CCBNB e Bestiário Nordestino.

Pesquisa atualmente desenhos, pinturas, gravura e assemblages, tendo como referência a cosmovisão religiosa, tanto litúrgica (sacralizada pela igreja) como a para-litúrgica (sacralizada pela religiosidade popular), bem como o imaginário fantástico, bestial, grotesco. Baseia seu trabalho na simbologia, no imaginário, na história, nos objetos, templos e rituais que compõem a experiência sagrada e profana da transcendência humana.

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Rafael Limaverde Os FitoManos de Raymundo Netto Os mundos de Liz de Daniel Brandão Tira de Lene Chaves
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