Palavra feita Capela | por Rui Ferreira

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quinta-feira • 15 de Março de 2012

Diário do Minho Este suplemento faz parte da edição n.º 29528 de 15 de março de 2012, do jornal Diário do Minho, não podendo ser vendido separadamente.

Dia do pai

em s. Bento da Porta aberta Página II

São José

as festas na arquidiocese Página II

ANN FRANK

o arranque da exposição Página VII

ÁRVORE DA VIDA palavra feita capela

@ Rui Ferreira


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IGREJA VIVA

Reportagem

Quinta-FEIRA, 15 de março de 2012

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A capela do Seminário Conciliar de Braga, denominada “Árvore da Vida”, foi solenemente sagrada pelo Arcebispo Primaz, D. Jorge Ortiga, no dia 20 de outubro de 2011. Dedicada a São João Maria Vianney, o padroeiro dos párocos, a capela acabou por ficar mais conhecida pelo nome do tríptico “Árvore da Vida”, colocado em posição central no altar.

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Todas as sextas-feiras, entre as 17h00 e as 18h00, a capela está aberta para quem a quiser visitar. Uma iniciativa que pretende dar a conhecer este espaço na hora em que a luz melhor o invade.

ÁRVORE DA VIDA Palavra feita capela

A capela Árvore da Vida foi distinguida com o prémio ArchDaily para a categoria de espaço religioso. Os leitores do site, que reivindica o estatuto de mais visitado na especialidade, deram o primeiro lugar à capela projetada pela empresa Cerejeira Fontes Arquitetos e concluída no ano passado. Localizada no interior do Seminário Conciliar de São Pedro e São Paulo, em Braga, esta capela mostra-se ao mundo como nova referência na maneira de pensar e projetar um espaço sagrado. Aqui a Palavra fez-se capela e tudo encontra aí a sua força criadora. A atestar que Deus continua hoje a sua obra de criação. Texto e Fotos Rui Ferreira

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obra é superior às individualidades. A cultura, esse canal privilegiado de diálogo entre os seres humanos, reunião de sabedoria entre os diversos povos e proveniências, encontra nesta capela a sua justificação. Quatro nacionalidades contribuíram para fazer da Arte uma expressão sublime do religioso. Aqui nada foi colocado ao acaso. Tudo encontra na Palavra a sua força criadora. O cónego Joaquim Félix de Carvalho, vice-reitor do Seminário e um dos principais responsáveis por esta obra, conduz-nos pelos mistérios entrecobertos em cada pormenor da matéria que constitui esta obra. Cinco anos após longa reflexão, centrada nos mais relevantes estudos e artistas da arquitetura religiosa contemporânea, e nas constituições saídas do Concílio Vaticano II, iniciou-se a obra. Nesta capela nada foge à escala humana. É uma opção. Daí provém a necessidade de rejeitar os acabamentos que apagam a marca do esforço humano. Não há verniz, tintas ou polimento. Tudo aparenta a passagem do tempo. A capela nunca toca nas paredes do salão

em que se instalou. A toda a volta há um deambulatório, o caminho mais longo, na esperança dos novos céus e da nova terra. Uma seta, riscada pelas mãos do artista Asbjörn Andresen na parede do “caos”, aponta o nascente, o lugar da luz. Em cima surge uma clareira, pois nos bosques é sempre possível contemplar a luz por diferentes canais e intensidades, um pouco à imagem da linguagem de Deus na nossa vida, que se vai entrevendo e escondendo à medida que peregrinamos.

O políptico de Ilda David representa o ato criador de Deus nos primeiros cinco dias e meio

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A criação como inspiração Na capela estão espelhados seis dias e meio da criação, cinco e meio no políptico de Ilda David, e o sétimo dia representado pela própria capela, que corresponde ao repouso doxológico, dedicado exclusivamente ao louvor do nome de Deus. A criação de Adão e Eva, realizada por Deus na tarde do sexto dia, não está representada. Nós, seres humanos, somos a porção de tempo que falta, integrando-nos nesta criação, que simboliza a contínua ação operada por Deus. No pilar com que nos deparamos à entrada vemos surgir o primeiro versículo do primeiro livro da Bíblia: “No princípio criou Deus o Céu e a Terra”, grafitos escavados pelo escultor norueguês Asbjörn Andresen. Na face lateral desta coluna, surpreendentemente, reparamos numa mão humana gravada a carvão no betão, atirando-nos a memória para as catacumbas dos primeiros cristãos. Mais uma representação do trabalho humano, sinal do esforço necessário para alcançar a beleza.

Por cima de nós surge uma entrada de luz, forte e decidida, que imprime uma força brutal sobre o cenário cinzento do “caos”, antecessor da criação. A explicação surge em seguida, pela voz entusiasmada do cónego Joaquim, cuja profundidade nos desarma. «Trata-se de uma alusão ao primeiro gesto criador de Deus: a luz», refere. Voltamo-nos agora para a capela propriamente dita, construída totalmente em madeira, sem qualquer tipo de tratamento químico, polimentos ou pregos a unir cada partícula. «Apenas estão suportadas pelo seu peso», sublinha o nosso guia. A madeira simboliza o jardim do Éden, daí a presença de inúmeros tipos de lenho na sua constituição. O pinho americano foi a madeira escolhida para a estrutura da capela, dado que apresenta o tempo gravado na matéria, ficando claramente expostos os seus anéis cronológicos, correspondentes a cada ano de existência. Uma breve alusão à biblioteca espiritual presente sob o nártex, de onde surgem volumes embutidos nas frechas da madeira. Biografias de santos, literatura espiritual ou exegese bíblica podem acompanhar o peregrino na sua estadia neste lugar sagrado. Não há porta. A brecha por onde entramos dá uma sensação de acesso livre. A interpretação vamos busca-la à Sagrada Escritura: o jardim do Éden que, depois do pecado de Adão e Eva, foi fechado e guardado por dois querubins e uma espada inflamada. O acesso à árvore da vida foi vedado. De cada lado, duas telas surgem, aludindo à guarda solene do jardim. Só o Crucificado voltou a abrir o jardim à humanidade. “Diante de ti será aberta uma porta que nenhum de vós poderá fechar” (Apocalipse 3, 8), repetiu o cónego Joaquim. Aproximámo-nos da entrada. Lá ao fundo, em diagonal, vemos surgir a outra entrada. O eixo transversal permite fazer o caminho mais longo possível no interior da capela. Como peregrinos na história, buscamos neste espaço o acesso ao mistério que se entrevê a partir de Cristo. Como nos labirintos nas catedrais da Idade Média ou nos pavimentos cosmatescos nas basílicas e capelas romanas, o mistério procura-se, mesmo se a passo de dança na aproximação ao altar.

Ambão na manhã de Páscoa O lugar da Palavra está fundado na teologia do túmulo aberto na manhã de Páscoa. Este tipo de iconicidade, que se encontra frequentemente associado ao centro e sul de Itália, recorda que foi a partir daquela manhã que se iniciou o anúncio do Ressuscitado entre nós. A Palavra nasce do túmulo vazio, cuja silhueta serve de forma ao ambão das leituras. Uma pedra completa o conjunto, servindo de escabelo para os pés do leitor. Também esta laje se apresenta inserida numa


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Quinta-FEIRA, 15 de março de 2012

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As galhetas e o jarro para o lavabo resultam da obra conjunta da barrista barcelense, Júlia Ramalho, neta da famosa Rosa Ramalho, e do escultor norueguês Asbjörn Andresen. O cálice, a patena, a custódia e o turíbulo são de prata, realizados numa oficina bracarense, a partir de desenhos do escultor Asbjörn.

dimensão simbólica. A dúvida espelhada no rosto das mulheres na manhã de Páscoa – quem iria remover aquela pedra? – cessa com o Ressuscitado. A pedra já não oferece medo, mas está agora debaixo dos nossos pés. Contemplando a pedra, percebemos que é da mesma matéria do degrau de acesso à entrada, da pia de água benta semiesférica e da base do altar. Negra e com tonalidades alvas, fortes e irregulares. «É a pedra rejeitada», completa a análise, que o nosso olhar já havia operado. Estas pedras são as chamadas “mulas”, que não servem para venda. Situam-se nas bermas das pedreiras, pois os seus cristais estão irregularmente distribuídos. Por cima do ambão, está uma luz forte, sempre acesa sobre o Evangelho aberto. Segundo o cónego Joaquim, «Deus torna a passear no jardim terrestre, sempre que lemos a Sagrada Escritura». A colocação do ambão na extremidade meridional da capela também é intencional. A Palavra de Jesus deve ser lida ao meio-dia, voltada para o norte, o lugar do frio. Uma tradição palestinense confirma este propósito: as mulheres eram colocadas a sul dos templos, porque foram as primeiras a anunciar a ressurreição do Senhor.

Monumento à Eucaristia O altar é um monumento à Eucaristia. Nele se apresentam as suas duas dimensões: a sacrificial e a convivial. Por princípio, a dimensão sacrificial corresponde à verticalidade da pedra, pedra essa que apresenta um dos lados aberto, denotando-se o entrecortado, que alude ao lado de Jesus, de onde nasceu a Eucaristia. Já a dimensão convivial denota-se na horizontalidade da mesa-masseira, um dos símbolos de uma comensalidade acessível a toda a família. No meio, surge um laço de madeira tangente às duas dimensões. Sobre o tampo de carvalho, em duas tábuas e um nó numa delas, denota-se uma fenda, símbolo da fração do pão, que sucede a cada Eucaristia. O nó, resultante da estrutura da madeira, representa a centralidade eucarística na vida da Igreja. As manchas de óleo sobre a superfície da mesa são as marcas da unção do óleo do Crisma, tombado sobre o altar no dia da sua sagração. «O altar é o próprio Cristo, o Ungido; não é mais uma mesa», acrescenta o vice-reitor do Seminário de S. Pedro e S. Paulo. Sobre o altar estão três lâmpadas, exposição da dinâmica trinitária, cuja sombra refletida pela verticalidade no tampo de madeira, confere força a cada gesto litúrgico. O nosso guia imita a epiclese – momento da Eucaristia em que se invoca o Espírito Santo sobre os dons – e percebemos o alcance que o gesto ganha com a expansão da sua sombra na madeira. Atrás do altar, o cenário é composto por um tríptico da Árvore da Vida, o mesmo

que acabou por batizar a capela. Da autoria de Ilda David, também se apresenta carregado de uma dimensão iconográfica profunda. A árvore, cujas raízes assentam no pecado de Adão, culmina na cruz onde Jesus foi crucificado, a verdadeira árvore da vida. Do nosso lado direito vemos surgir ainda uma pequena tela representando a mulher vestida de sol, descrita no Apocalipse. É a imagem da nova Eva, de Santa Maria, sinónimo de uma Igreja

A madeira, encaixada na horizontal, representa as árvores de copas e troncos dobrados, em posição de reverência para com a Árvore da Vida que peregrina ao longo da história. Em seguida, um outro pormenor é ressaltado: a cadeira presidencial apresenta-se discreta e simples. É uma cadeira de serviço, a atestar que aquele que preside está ali, não para ser adulado, mas para recordar o lava-pés. Na estrutura da capela estão também claras as posições de cada servidor, sempre enquadrados numa perspetiva ministerial. O ministro das leituras, o ministro do altar, o ministro da música, os leitores. Todos em espírito de serviço, à imagem da própria construção deste espaço sagrado, para o qual toda a comunidade colaborou. O órgão abdica de tudo o que é orna-

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O tríptico de Ilda David denominado da Árvore da Vida, que ocupa posição central no cenário da capela, acompanhou o “Breve Sumário da História de Deus”. Esta peça de teatro de Gil Vicente foi levada a palco nos teatros nacionais S. João no Porto e D. Maria II em Lisboa, expondo simultaneamente obras de arte relacionadas com a temática.

mental. Fabricado por Pedro Guimarães, de Esmoriz, é talhado em carvalho francês. Todavia, os lábios e as teclas apresentam-se revestidas de madeira de ébano, buxo e ácer. De um registo e meio, o órgão concretiza a opção pelos números partidos e abertos, típico da linguagem apocalíptica.

O Sacrário que se entrevê O sacrário corresponde a um cubo de madeira de freixo que, quando aberto, se desdobra em forma de cruz. No seu interior está o cilindro da reserva, feito em madeira de oliveira, à imagem do óleo do crisma, vertido dos seus frutos. O Concílio Vaticano II recomenda que a reserva eucarística esteja localizada fora do espaço da assembleia, num local discreto e lateral ao espaço de celebração. Aqui o sacrário entrevê-se por entre as frechas da madeira. O pequeno oratório onde se encaixa recorda-nos a dinâmica presente no Cântico dos Cânticos. O sacrário que espreita através das fendas e brechas da floresta. É uma presença subtil, que se denuncia em diversos ângulos. Não é um lugar fechado, mas só uma pessoa pode estar lá dentro, sinal da intimidade e profundidade que se busca entre o amante e o amado. Completando o oratório, pode admirar-se um busto do Santo Cura d’Ars, São João Maria Vianney, o padroeiro dos párocos, que nos recorda a função primordial da instituição em que se localiza este espaço sagrado. Esta escultura, em atitude de adoração contínua, saiu das mãos do escultor Manuel Rosa.

O que diz o Concílio Vaticano II? «Deus, que ‘quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade’ (I Tim 2,4), ‘tendo falado outrora muitas vezes e de muitos modos aos nossos pais pelos profetas’ (Hebr 1,1), quando chegou a plenitude dos tempos, enviou o Seu Filho, Verbo feito carne, ungido pelo Espírito Santo, a evangelizar os pobres, curar os contritos de coração, como médico da carne e do espírito, mediador entre Deus e os homens. A sua humanidade foi, na unidade da pessoa do Verbo, o instrumento da nossa salvação. Por isso, em Cristo ‘se realizou plenamente a nossa reconciliação e se nos deu a plenitude do culto divino’. Esta obra da redenção dos homens e da glorificação perfeita de Deus, prefigurada pelas suas grandes obras no povo da Antiga Aliança, realizou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão, em que ‘morrendo destruiu a nossa morte e ressurgindo restaurou a nossa vida’. Foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o sacramento admirável de toda a Igreja» (Constituição Sacrosanctum Concilium, Cap. 5).

A capela em números

0,5:

o número partido e aberto confirma a linguagem apocalítica de incompletude, de caminho por percorrer. Desta forma temos meia esfera a servir de pia, a mesma opção no cálice; 1,5 é o registo do órgão de tubos e 0,5 a porção de dia - correspondente à criação da humanidade - que ficou por iconografar.

4:

o número de nacionalidades que colaboraram para tornar esta obra realidade. Portugueses, obviamente, alemães, italianos e um norueguês.

12:

o número de focos de luz, unidos em circuito no corpo da capela. Simbolizam os doze apóstolos, que, por sua vez, aludem às doze tribos de Israel. Recordam o capítulo 12 do livro do Apocalipse: a torrente das águas purificadoras que convocam a uma dinâmica apostólica.

20:

o número de toneladas de madeira utilizada na estrutura da capela. Uma autêntica floresta plantada no meio do Seminário Maior de Braga.

300:

são os quilogramas da pedra que está alojada na superfície do ambão. Recorda a pedra retirada do túmulo na manhã de Páscoa, não simbolizando mais o medo ou a desesperança perante a morte, passando a ser “escabelo dos nossos pés”.


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