Minas Faz Ciência 55

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Redação - Rua Raul Pompéia, 101 - 12.º andar, São Pedro - CEP 30330-080 Belo Horizonte - MG - Brasil Telefone: +55 (31) 3280-2105 Fax: +55 (31) 3227-3864 E-mail: revista@fapemig.br Site: http://revista.fapemig.br

Na pesquisa “Percepção Pública da Ciência e da Tecnologia no Brasil – 2010: O que o brasileiro pensa da C&T?”, organizada pelo Departamento de Popularização e Difusão da Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), constatou-se que os brasileiros estão visitando centros e museus de ciência com maior frequência. Se em 2006, ano da enquete anterior, apenas 4% dos entrevistados responderam que haviam, sim, visitado espaços desse tipo nos últimos meses, em 2013, o número subiu para 8,3%.

O crescimento, mesmo que tímido, é um incentivo ao trabalho de pes-

quisadores e divulgadores da ciência. Novas linhas de apoio à divulgação científica lançadas nos últimos anos tanto em âmbito nacional como estadual também parecem ter contribuído para o resultado, pois possibilitaram o aumento do número de museus espalhados pelo Brasil e a concretização de iniciativas que buscam ampliar o acesso da população a esses espaços. Um exemplo são os museus itinerantes, que percorrem cidades com aulas e experimentos interativos.

Atrair um público maior e diversificado e aumentar a frequência das vi-

sitas são apenas alguns dos desafios enfrentados por esses espaços de conhecimento. Eles também precisam se adaptar aos novos tempos e às novas tecnologias, Blog: http://fapemig.wordpress.com/ Facebook: http://www.facebook.com/FAPEMIG Twitter: @fapemig

constituindo-se como espaços de preservação da memória, mas também de aprendizagem. Para conquistar públicos variados, devem trabalhar com novos conteúdos, metodologias e tecnologias, aliando, a um só tempo, educação, cultura e diversão. Na reportagem especial desta edição, é possível conhecer um pouco mais sobre a história dos museus de ciência, que começam como espaços de “curiosi-

GOVERNO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Governador: Antonio Augusto Junho Anastasia SECRETARIA DE ESTADO DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E ENSINO SUPERIOR Secretário: Narcio Rodrigues

dades”, e suas conquistas e desafios para tornar o conhecimento mais acessível.

Entre os destaques está também um projeto da Universidade Federal de

Lavras, que utiliza os filmes do “mestre do suspense” Alfred Hitchcok como ferramenta para a capacitação de docentes. Os medos e angústias vistos na tela são o ponto de partida para uma reflexão sobre a sociedade e os papeis assumidos pelos indivíduos. O projeto de extensão tem como objetivo incentivar os docentes a trabalhar técnicas em outros espaços, enriquecendo sua formação. Na mesma Universidade, mas em área diferente, um grupo de pesquisadores busca desenvolver um método para determinar o limite aeróbico de corredores sem que precisem ir ao

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais Presidente: Mario Neto Borges Diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação: José Policarpo G. de Abreu Diretor de Planejamento, Gestão e Finanças: Paulo Kleber Duarte Pereira Conselho Curador Presidente: João Francisco de Abreu Membros: Alexandre Christófaro Silva, Antônio Carlos de Barros Martins, Dijon Moraes Júnior, Evaldo Ferreira Vilela, Flávio Antônio dos Santos, Júnia Guimarães Mourão, Marcelo Henrique dos Santos, Marilena Chaves, Ricardo Vinhas Corrêa da Silva, Sérgio Costa Oliveira, Valentino Rizzioli

laboratório para fazer testes. Esse índice é importante para o melhor controle dos treinos, evitando, por exemplo, lesões musculares. A identificação em campo, além de prática e fácil, também evita a mudança de rotina do treino.

Esta edição, que é a última de 2013, traz muitas outras novidades: com-

bustíveis mais eficientes; preservação da cultura popular; microrganismos que ajudam a combater doenças inflamatórias. Vire a página e boa leitura! E, em nome de toda a equipe envolvida na produção da revista MINAS FAZ CIÊNCIA, um bom Natal e um excelente 2014! Vanessa Fagundes Diretora de redação

AO LEI TO R

EX P ED I EN T E

MINAS FAZ CIÊNCIA Diretora de redação: Vanessa Fagundes Editor-chefe: Maurício Guilherme Silva Jr. Redação: Ana Flávia de Oliveira, Ana Luiza Gonçalves, Marcus Vinícius dos Santos, Maurício Guilherme Silva Jr., Vanessa Fagundes, Virgínia Fonseca e William Ferraz Diagramação: Fazenda Comunicação Revisão: Sílvia Brina Projeto gráfico: Hely Costa Jr. Editoração: Fazenda Comunicação & Marketing Montagem e impressão: Rona Editora Tiragem: 20.000 exemplares Capa: Hely Costa Jr.


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ENTREVISTA

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Zootecnia

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Engenharia Mecânica

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Agricultura

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Medicina

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LEMBRA DESSA?

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5 PERGUNTAS PARA...

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hiperlink

Estudo revela que barulhos ocasionados pela atividade mineradora prejudicam saúde de animais

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Í N D I CE

Ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marco Antonio Raupp comenta nuances da produção científica brasileira

Modelo matemático é capaz de facilitar a identificação de tumor ocular

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Cinema

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Esporte

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Engenharia

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Filmes de Alfred Hitchcock são usados para auxiliar formação de professores em Lavras (MG)

Limites físicos de corredores são mensurados por meio de protocolo desenvolvido na Universidade Federal de Lavras

Mistura de hidrogênio a óleo diesel e etanol produz eficiente combustível ecológico

Educação

Investigação busca compreender manifestações de educação e cultura presente nos versos e na prosa de populações tradicionais

ESPECIAL

De que modo os museus de ciência buscam democratizar o conhecimento? Especialistas discutem a questão

Pesquisadores da Ufop auxiliam agricultores familiares a comercializar seus produtos em escolas

Estudiosos da UFMG investigam ação de probióticos contra doenças degenerativas e inflamatórias

Pesquisa investiga fungo responsável por eliminar microrganismos nocivos ao café

O neurocientista Sidarta Tollendal Gomes Ribeiro fala sobre memória, educação, Freud e drogas

Confira o que rolou no blog Minas faz Ciência e saiba mais sobre pesquisa que usa poesia contra a depressão

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Fisioterapia

Técnica do Pilates é usada no tratamento da osteoartrose e de outras doenças


Gustavo Greco Gonçalves Por e-mail

Fiquei encantada com a revista MINAS FAZ CIÊNCIA. Tive a oportunidade de ler alguns exemplares e gostaria de receber a revista em casa. Além de conhecer a pesquisa mineira, poderei usar em trabalhos escolares!

Como amante da Ciência, da Tecnologia e da Inovação, agradeço por receber esta ótima revista em meu lar. Ela tem contribuído muito para o meu desenvolvimento na área. A que eu mais li e reli foi a de nº 53, que explicava questões acerca da doação de corpos para pesquisa. Que projetos como este aumentem em nossa cidade, em nosso estado, em nosso País.

Amador Madalena Maia Por e-mail

Marcella Moreira Estudante São Gonçalo do Rio Abaixo (MG)

Prazer em conhecê-lo, blog Minas faz Ciência. Estou seduzida por vossos encantos. Cientista e apaixonada pelas letras, amei este espaço e esta matéria. Parabéns! [Sobre a reportagem “Poesia estimula a mente e é mais eficaz do que autoajuda”] Jane Raquel Pelo blog Minas faz Ciência (http://fapemig. wordpress.com)

A equipe do Sistema Mineiro de Inovação (Simi) também está ligada na revista MINAS FAZ CIÊNCIA. O Simi (www.simi.org.br) busca promover a inovação por meio da articulação entre empresas, governo e instituições de pesquisa Para receber gratuitamente a revista MINAS FAZ CIÊNCIA, envie seus dados (nome, profissão, instituição/ empresa, endereço completo, telefone, fax e e-mail) para o e-mail: revista@fapemig.br ou para o seguinte endereço: FAPEMIG / Revista MINAS FAZ CIÊNCIA - Rua Raul Pompéia, 101 - 12.º andar - Bairro São Pedro Belo Horizonte/MG - Brasil - CEP 30330-080

MINAS FAZ CIÊNCIA tem por finalidade divulgar a produção científica e tecnológica do Estado para a sociedade. A reprodução do seu conteúdo é permitida, desde que citada a fonte. MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2013

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CARTAS

Sou assinante da revista MINAS FAZ CIÊNCIA e gostaria de alterar o endereço de recebimento. Aproveito para parabenizar pelo excelente conteúdo da revista. Sou Engenheiro de Alimentos, formado pela Universidade Federal de Viçosa. Acompanho a revista desde a época de minha graduação (2003 a 2008) e sempre gostei bastante das informações contidas na publicação.


especial

Museus de grandes novidades Espaços de ciência reinventaram-se ao longo dos séculos, de modo a ampliar o acesso e a interação do público à fascinante história da busca pelo conhecimento Maurício Guilherme Silva Jr.

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“Metais, argilas, pluma de pássaro triunfam silenciosos no tempo. Só dá risadinhas a presilha da jovem risonha do Egito”. Experimentais, os versos da escritora polonesa Wislawa Szymborska – no poema “Museu” – gracejam com algo fundamental à história da conservação e da difusão do saber: cada objeto exposto à apreciação dos indivíduos guarda, em si, vestígios de eternidade. À ilação metafísica, some-se a evidência de que “risonhos” e/ou misteriosos ornamentos concentram significados para muito além de sua singela materialidade. Daí o obrigatório compromisso social das (boas) políticas públicas de Museologia – em espaços de resgate da História da Ciência, principalmente – com a democratização do acesso às marcas (tangíveis e intangíveis) do passado, às evidências do presente e – por que não? – às possibilidades do futuro. “Museus têm compromisso com o processo evolutivo da apreensão do conhecimento, que permanece como símbolo de poder”, destaca Fabrício Fernandino, professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ex-diretor do Museu de História Natural e Jardim Botânico (MHNJB) e coordenador do projeto de desenvolvimento do Espaço Interativo Ciências da Vida (veja relato de William Ferraz à página 10). Tal discussão acerca das relações entre níveis de autoridade e iniciativas de exibição do conhecimento sempre esteve no cerne das teorias e práticas museológicas. Que o digam as ações ligadas à História da Ciência, cujas matrizes pretendem que a proliferação e a melhoria dos espaços de exibição da memória possam democratizar o ingresso ao universo da produção dos saberes. Apesar de atualíssimo, o debate em torno do assunto não nasceu há pouco. “Mesmo antes da Idade Média, quando o conhecimento restringia-se a grupos específicos, já se discutia e se almejava a democratização das descobertas científicas”, destaca Fabrício. Interessante lembrar, conforme destaca o professor e gestor, que as nações capazes de conservar e exibir o conhecimento que produzem apresentam melhores condições de se afirmar no atual contexto

geopolítico. “Afinal, é assim que os países terão capacidade de intervir em busca da preservação da vida. A necessidade de democratizar o acesso ao conhecimento não é fruto de reivindicações diletantes, mas das obrigações do homem frente às questões contemporâneas”, afirma. Coordenadora da Rede de Museus e Espaços de Ciência e Cultura da UFMG – entidade ligada à Pró-reitoria de Extensão da Universidade –, Rita de Cássia Marques acredita que a disseminação do conhecimento ocorre como fruto da democratização geral, fenômeno, que, a seu ver, atinge o Brasil e o mundo na atualidade. “O acesso aos museus é alvo de políticas que promovem a cultura para receber públicos variados. Tenho percebido grande investimento nos receptivos desses espaços, que desenvolvem ações educativas e buscam formas mais atraentes de apresentar o acervo a visitantes diversos”, destaca. Neste cenário, segundo a professora, a tecnologia auxilia os museus a se aproximar do modo de vida contemporâneo. “Além disso, se, antes, predominavam grandes espaços de exposição nas metrópoles, assistimos, hoje, à proliferação de pequenos e médios museus que tratam de temáticas específicas”, explica, ao lembrar, por outro lado, que as maiores instituições acabam por desenvolver parcerias com empresas, de maneira a viabilizar preços acessíveis a parcelas cada vez mais numerosas da população. “Por fim, nas últimas duas décadas, o governo brasileiro tem incentivado a criação de novos museus”, completa. Para que se tenha ideia de tal crescimento, importante destacar que, apenas na primeira década do novo milênio, mais de 600 museus foram criados no País. Segundo Rita de Cássia, tais espaços consolidaram-se como ambientes não formais de aprendizagem. Por isso atraem tanto público. “E não falo só de estudantes e pesquisadores. Todos os tipos de pessoas passaram a enxergar os museus como boa alternativa de lazer”, opina, ao sublinhar que o mundo vive a era da diversidade, marcada pela inclusão de grupos sociais tradicionalmente alijados da economia, da educação, do consumo, da cultura etc. “In-

Atualmente, a Rede é formada pelos museus de Ciências Morfológicas, de História Natural e Jardim Botânico e da Escola de Arquitetura e Urbanismo, além dos Centros de Memória das faculdades de Farmácia, Medicina, Odontologia e Veterinária e das escolas de Enfermagem, Engenharia, Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Por fim, integram o grupo os Centros de Referência em Cartografia Histórica e em Patrimônio Geológico, a Estação Ecológica, o Espaço do Conhecimento UFMG, o Centro Cultural da UFMG e o Laboratório de Estudos em Museus e Educação (Leme).

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clusão e diversidade são desafios para a sociedade brasileira, o que, é claro, também diz respeito aos museus de ciência”, completa. A professora comenta, ainda, que os espaços para exposição das práticas científicas – geralmente, ligados a universidades – apresentam-se, cada vez mais, como equipamentos interativos, que buscam atrair o público jovem ao aliar educação, cultura, cidadania e diversão: “O grande desafio dos museus de ciência é conquistar públicos variados. Para isso, modernizam-se os espaços e os professores são incentivados a trabalhar com novos conteúdos, metodologias e tecnologias”.

Democratização? Na acepção de Silvania Sousa do Nascimento, professora da Faculdade de Educação da UFMG e diretora de Divulgação Científica da Pró-reitoria de Extensão da Universidade, a democratização do conhecimento, por vezes, é analisada – e compreendida – em comparação com o desenvolvimento das ciências e das tecnologias no continente europeu. Desse modo, segundo a pesquisadora, usam-se como referência os processos de produção e circulação do saber relativos à expansão das ciências empíricas no século XVIII e as benesses resultantes da invenção da imprensa. “Outra marca, também europeia, seria ‘maio de 1968’, responsável pelo grande processo de expansão da circulação do conhecimento científico e pela intensificação do uso de estratégias de mídia para a aproximação das ciências com o público”. Apesar de reconhecer a importância de tais acontecimentos, a professora frisa a necessidade de os pesquisadores locais debruçarem-se sobre as estratégias usadas nos contextos americano e asiático. “Mais do que em qualquer outra época, temos, hoje, relações de forte poder, que dificultam a circulação de conhecimentos ao desqualificá-los, exatamente como foi feito pelos europeus, que destruíram o conhecimento superior em áreas como Tecnologia naval, Astronomia e Matemática, encontrado na Índia, na China e na América Central”, relembra Silvania, ao citar, por fim, o

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aniquilamento, pelos portugueses, dos saberes da Medicina Tradicional, desenvolvidos pela população autóctone brasileira. “Precisamos romper com um glorioso passado imperial para começarmos a conceber as estratégias de produção e circulação do conhecimento científico na contemporaneidade, de modo a enfrentar toda a fluidez da inovação e a solidez do processo de produção do saber científico”, afirma. Para tal, segundo a professora, o Brasil precisa enfrentar sérios problemas de alfabetização e letramento científico e tecnológico. Também no que diz respeito à própria ideia de “democratização”, a professora Silvania Sousa revela-se bastante crítica. “Não considero que estamos mais próximos da democratização do conhecimento. Aproximamo-nos mais da ampliação do acesso às informações. Nenhum dos processos de produção ou de circulação do saber científico, do meu ponto de vista, está na pauta das grandes discussões públicas da sociedade civil organizada”, ressalta. A pesquisadora cita a 4ª Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, realizada em 2010, para reafirmar que muito pouco do que se discute acerca do assunto aparece na pauta das mídias tradicionais. “A produção de conhecimento novo é extraordinária em nosso tempo, mas também é imenso o descompasso entre a produção nos países pós-industriais e em nossas economias emergentes. As estratégias de produção e circulação de conteúdos são ainda precárias para nossa população, ávida por consumir o conhecimento como produto, e não como processo”, conclui.

Confira algumas das conclusões do evento no endereço eletrônico http://www. cgee.org.br/publicacoes/livroazul.php.

Museus versus tradição

Conforme dados apresentados em artigo pelo biólogo e museologista Jeter Jorge Bertoletti, fundador do Museu de Ciências e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), existem, hoje, no mundo, mais de 50 mil centros, museus, parques e casas de ciências, tecnologia e artes. Trata-se de instituições a abranger temas como “fotografia, objetos antigos, arqueologia, etnologia, minerais, rochas, fósseis, ossos, cera, vidros, madeiras, exsicatas de vegetais inferiores e superiores, zoologia,

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O título do artigo é “Filosofia de centros e museus de ciências”.


insetos, aranhas, animais marinhos, serpentes, moedas, bicicletas, ferramentas e implementos rurais, automóveis, literatura, medicina, armas e munições e quase tudo que se possa imaginar”. A maioria desses espaços de preservação e exposição do conhecimento é visitada apenas pela comunidade local, que habita os arredores do estabelecimento, e, em menor proporção, por pessoas residentes em cidades vizinhas. “Outros são conhecidos regionalmente, às vezes por uma boa parte da população do país, e, em alguns casos, de países vizinhos. São raros aqueles conhecidos mundialmente e

este privilégio é das pessoas mais esclarecidas”, escreve o pesquisador. A investigação de Jeter Bertoletti revela, ainda, que os centros e museus não estão distribuídos homogeneamente pelos continentes e nações. “A maioria situa-se no Hemisfério Norte, onde estão os mais importantes, os mais famosos. Tal fato é de fácil compreensão. Dentre diversos fatores, os países mais ricos, no passado ou no presente, são detentores dos mais renomados museus e centros. Talvez seja possível afirmar que a cultura de um povo é proporcional ao número e qualidade de seus museus”, completa.

Dos copistas aos “velocistas” Ao longo da história da humanidade, diversas foram as práticas de conservação do conhecimento. O professor Fabrício Fernandino lembra, por exemplo, o ofício dos freis copistas, que se dedicavam a realizar o maior número possível de cópias de obras, no sentido de preservar o saber adquirido. Já os museus surgem, como espaços de “curiosidade”, repletos de coisas peculiares sobre o novo mundo, a partir do século XIX. “Eles continham coisas fantásticas sobre a Terra e a vida”, esclarece o professor, ao lembrar que, no mesmo período, disseminam-se as figuras dos colecionadores, que passam a reunir objetos para promover grandes bazares. Com o passar das décadas, cresce a demanda por curadorias temáticas. “Surgem, então, os museus com estrutura curatorial, cujos acervos passam a ser planejados segundo critérios bem definidos. A começar pela ideia de que não se deve colecionar tudo”, afirma. Tais instituições aprendem a aglutinar acervos e publicações e as pessoas começam a frequentá-las como espaços de conhecimento. “Naqueles ambientes, além de espectadores de obras, os visitantes tornam-se leitores das detalhadas informações sobre os objetos e os temas”, explica. Em seguida, os museus ampliam-se e se sofisticam. “Nascem, a partir daí, questões relativas a preservação e conservação”, resume Fabrício Fernandino. Hoje, como fruto da revolução tecnológica, a noção de aprofundamento do saber convive com os desafios da vasta quantidade de narrativas e imagens. “Aquele homem que tinha tempo de se aprofundar na investigação de um tema encontra-se perdido diante do enorme volume de informações. Há necessidade, portanto, de preservação da própria memória”, comenta. Neste panorama, a própria velocidade do mundo faz com que os indivíduos tenham que aprender a lidar com as novas temporalidades para apreensão do conhecimento. “A maneira de perceber e sentir o mundo está em processo de mudança. Por isso é que não podemos abrir mão da possibilidade de promover o saber, adequando os museus às novas tecnologias”, conclui o professor.

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Exclusiva com o coração Em visita ao Espaço Interativo Ciências da Vida (EICV), repórter de MINAS FAZ CIÊNCIA interage com o órgão vital e outros tantos aparelhos do corpo humano William Ferraz

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O leitor conseguiria imaginar-se numa galeria de arte cujas obras abandonassem sua própria inércia em nome de certa didática hipermidiática, responsável por combinar recursos visuais e sonoros, movimento e interatividade com o público? Pois essa é a proposta dos espaços interativos, conceito que começou a se difundir, no Brasil, em meados dos anos 1980, e tem se reinventado a cada dia. Hoje, tais ambientes apresentam potencial para refletir o futuro da museologia e dos espaços culturais nesta sociedade informatizada. O aprendizado se dá por meio da comunicação direta entre visitante e museu. Em Belo Horizonte, um antigo porão foi transformado no lugar ideal para que a ciência e a tecnologia se fortalecessem na capital mineira. Inaugurado em setembro, no coração do Jardim Botânico e Museu de Histórias Naturais da UFMG, o Espaço Interativo Ciências da Vida (EICV) tem como tema central os sistemas fisiológicos e biofísicos humanos. A ideia da iniciativa foi dos professores José Israel Vargas, ex-ministro de Ciência e Tecnologia e professor emérito da UFMG, e Mario Neto Borges, presidente da FAPEMIG, que levaram a proposta ao conhecimento do então reitor da Universidade, Ronaldo Pena. No Espaço Interativo Ciências da Vida, a intercomunicação do indivíduo com o ambiente tem apelo ainda mais atrativo quando considerada a temática do museu: a proposta é fazer da visita uma viagem pelas veredas do corpo humano. O museu conta com estrutura e ambientação estrategicamente planejadas para estimular os sentidos do visitante, por meio de recursos físicos e sensoriais que se manifestam de maneira ora objetiva, ora subliminar. O lugar ainda conta com a incorporação de jogos interativos. Por meio deles, o corpo e os movimentos do visitante transferem-se para a condição de objeto de estudo, em um misto de aprendizado e entretenimento.

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Repórter em interação

Portas deslizantes se abrem tão logo o visitante se aproxima, revelando o que pretende ser uma minuciosa jornada pelo universo da biofísica humana. Os primeiros passos ao interior do EICV já oferecem certa projeção da experiência que nos aguarda. Luzes multicoloridas de intermitência e uma ressonância vibrante, que mais parece ecoar das paredes, dividem espaço com modelos da anatomia humana e réplicas de órgãos das mais diferentes escalas, dispersos em ambiente que mescla elementos de arte e ciência. O cenário beira a psicodelia. Estímulos sensoriais permeiam os sentidos e disputam a atenção do cérebro, enquanto um guia virtual descreve o conteúdo de cada um dos sete nichos temáticos pelos quais a aventura há de se desenrolar. Um golpe de vista para a direita e o espectador se defronta com o mais vigilante dos olhares: do interior de um salão com nuances azuis, um globo ocular de aproximadamente 1,5 metro de diâmetro fita-o com intensidade. Ao fundo, uma língua de proporções similares projeta-se da parede, como a zombar nossa bisbilhotice. À esquerda, um humanoide em escala real, despido de pele, exibe seus músculos – e o realismo se pronuncia em cada uma das fibras. Logo ao lado, outra réplica humana, dividida em dezenas de peças horizontais, revela ricos detalhes do interior de órgãos e tecidos fatiados. Comecei minha peregrinação pelo universo do corpo humano, a partir da sala à esquerda da porta de entrada. Aquele era o nicho “Corpo e movimento”, dedicado às minúcias do sistema locomotor. De perto, tudo se revela mais interativo e envolvente. Atrás do modelo musculoso, uma figura descarnada dá ao público uma visão detalhada do esqueleto humano. Placas explicativas e peças a representar ossos, articulações, fibras, ligamentos e outras


curiosidades ornamentam as paredes. Nos quatro cantos da sala, pessoas de todas as idades se desafiam nos jogos interativos. Diante de sensores, os visitantes dão seus melhores saltos, enfrentam desafios em exercícios de alongamento e tentam se equilibrar sobre uma corda bamba virtual. O visitante segue viagem pelo trato digestivo. No nicho “Digestão e nutrição”, hospedado em sala de cor laranja, o indivíduo se depara com intrigantes curiosidades sobre o sistema. Dentes em grande escala se enfileiram nas paredes, como se prontos para morder quem ousar tocá-los. Dentre eles, um imenso molar corroído pela cárie se destaca. Ao centro da sala, um manequim esconde longa corda, que reproduz a extensão do intestino humano. O aparato, com algo em torno de 11 metros de extensão, desperta o ceticismo de quem o manipula, enquanto olhares surpresos se voltam para a corda, à medida que ela se desenrola. O ambiente conta com divertida animação gráfica, que representa as aventuras de um pequeno brócolis pelo tubo digestivo humano e a gradativa absorção de seus nutrientes pelo organismo. A caracterização dos personagens e o tom descontraído com que o tema é abordado conquistam o gosto do público. Antes de deixar a sala, o visitante é desafiado em mais um jogo: nele, o usuário guia os passos de um personagem por um labirinto. O objetivo é alimentar-se saudavelmente. Ganha aquele que preencher, devidamente, as lacunas de uma pirâmide nutricional exibida no monitor, dentro de tempo proposto. A tarefa não é nada fácil: guloseimas calóricas cruzam o caminho o tempo todo, dificultando a missão. No salão seguinte, o visitante se vê cercado por paredes vermelho-sangue. Sonoras pulsações retumbam e atraem sua atenção para o protagonista desse nicho: um coração oito vezes maior que o tamanho natural. Estamos no ambiente “Coração e circulação”. Nele, a interação é física e vigorosa: um aparelho de step – como aqueles vistos em academias desportivas –, acoplado a um monitor cardíaco, interage com o órgão gigante, que irá reproduzir a frequência de batimentos do coração do

usuário por meio de luzes de Led, que se acendem dentro de cada ventrículo e átrio, seguido pelas peculiares pulsações, que repercutem pela sala. O brinquedo é um dos mais disputados: em duas horas dentro do museu, não consegui encontrá-lo vago. A sala conta, também, com divertido vídeo educativo, que representa a odisseia da oxigenação do corpo humano realizada pelas hemácias, que tomam a forma de figuras sorridentes na telinha. Em “Reprodução”, a decoração ganha destaque. A sala cor de rosa conta com representações, em macroescala, das células reprodutoras, órgãos dos sistemas de ambos os sexos e representações das diferentes fases da gestação – desde o pequeno zigoto até um bebê de 9 meses, em destaque, no centro da sala –, que se dispersam por todas as partes, propondo certa cronologia em sua disposição. O ambiente é suave e bem harmônico. Sua animação sonora sugere a experiência do feto no interior do útero. No ambiente, mais interatividade. Desta vez, o jogador relembra a primeira contenda emplacada por um ser vivo, na “corrida pela vida”. Esgueirando-se por territórios sinuosos do corpo humano, os desafiantes, em forma de gametas masculinos, disputam o melhor tempo na procura pelo óvulo.

Universo celular Mergulhamos, então, no último ambiente à esquerda. Na sala “Célula ao alcance da mão”, a proposta é transportar o visitante ao universo do “muito pequeno”. No total, 64 peças, com representação de diferentes tecidos, tornam detalhes do mundo microscópio observáveis a olho nu. As peças possibilitam, ainda, uma nova e inclusiva interatividade: o tato é explorado como metodologia educacional. As peças, texturizadas e ricas em detalhes – com pelos ampliados e reentrâncias –, também dão oportunidade aos deficientes visuais de desfrutar a interativa didática do Espaço. Nos bastidores da sala, surge a peça de maior escala: uma célula partida ao meio permite a observação de suas organelas. Ainda no mesmo nicho, é momento de sentir-se um pesquisador. A sala oferece

um microscópio ótico para que o visitante possa observar microrretalhos de tecidos orgânicos. Na parede, ao fundo, um painel em Led exibe imagens capturadas por meio de um microscópio eletrônico. A viagem se completa pelos nichos situados à direita do salão de entrada. Momento de conhecer os segredos da sala “Sentidos”, uma das mais interativas. O grande olho é equipado com pequena câmera, posicionada onde seria a pupila. Em monitores espalhados pela sala, observa-se a reprodução das imagens capturadas pelo dispositivo. Diversos equipamentos do salão, que podem ser manuseados, demonstram como os olhos capturam e reproduzem as imagens. Um deles mostra como o cristalino ajusta o foco das imagens, por meio da regulagem de volume de líquido à frente da pupila. O toque na língua revela o sabor detectado em cada extremidade do órgão. No último nicho, é hora de “Sentir, lembrar e agir”. Em tons de violeta, a sala é, talvez, a mais abstrata de todas. Um imponente cérebro em grande escala destaca-se no centro. Um aparelho cheio de válvulas giratórias envia sinais luminosos por uma tubulação emaranhada, enquanto emite um conjunto de sons típicos de tramas de ficção científica. A proposta é transportar o visitante ao misterioso mundo das sinapses. Os sinais correspondem à intensidade com a qual o indivíduo aciona as chaves giratórias. Nas paredes, estruturas se ramificam em todas as direções, como se o visitante estivesse dentro do sistema nervoso do corpo humano. As cores se alternam, do azul ao vermelho, gradativamente, intrigando os sentidos. Em cada um dos modelos, realça-se o contraste entre o realismo e a arte. Desse modo, os modelos garantem fidelidade científica à anatomia humana e se consolida como boa estratégia para a formação de jovens cientistas. O fato se comprova ao longo da visita: vozes mirins ecoam por toda parte. Gargalhadas, comentários vibrantes, “enxames” de perguntas voam em direção às monitoras, enquanto súplicas chorosas perseguem pais à saída do Espaço. E permanecem do lado de fora.

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ENTREVISTA

Sem fronteiras para o conhecimento Quase dois anos à frente do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marco Antonio Raupp faz balanço de sua gestão e aponta os rumos da ciência no Brasil Dany Starling

Em janeiro de 2012, ao assumir o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o físico gaúcho Marco Antonio Raupp tinha como principal desafio estabelecer parcerias com o setor produtivo para dar mais consistência à pesquisa tecnológica brasileira. Hoje, quase dois anos depois, o ministro se revela, ao mesmo tempo, cauteloso e alvissareiro. Ele vê motivos para comemorar, mas também sabe que, no País, os resultados estão sempre aquém das carências. Nesta entrevista, Raupp fala dos avanços obtidos em sua gestão – principalmente, por meio de programas como Ciência sem Fronteiras, Inova Empresa e Embrapii – e comenta as exigências para que o país siga a toada do crescimento e enfrente os percalços a barrar, há décadas, o estímulo às práticas científicas. No último dia 19 de outubro, celebrou-se o Dia da Inovação no Brasil. Temos motivos para comemorar? Vamos deixar bem claro: inovar é um dos pré-requisitos para se chegar à economia do conhecimento, assim como o é um bom sistema de ensino. Focando na inovação, tenho certeza de que há motivos

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para comemorar. O Plano Inova Empresa é a base dessa comemoração. Em 2012, os aportes da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] para inovação foram de cerca de R$ 5 bilhões. Neste ano, até agora, os editais do Inova Empresa somaram mais de R$ 19 bilhões. Há, ainda, um dado adicional muito importante: as propostas apresentadas pelas empresas foram de R$ 56 bilhões. Ou seja, o Governo ofereceu montante elevado de recursos para inovação e as empresas mostraram que têm projetos para além disso. Saímos das expectativas e fomos para um cenário real e bastante positivo. A partir da criação de programas como Inova Empresa e Embrapii, é possível traçar uma agenda para a ciência brasileira referente aos próximos dez anos? A agenda já está posta, baseada em dois pontos fundamentais. Nosso sistema de produção científica já tem bom desempenho quantitativo. Precisamos melhorá-lo qualitativamente, de modo a aumentar o impacto da ciência brasileira na ciência mundial. Além disso, o sistema precisa se expandir. Já fazemos bastante ciência com viés acadêmico, mas precisamos fazer mais pes-

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quisa com viés empresarial: ciência para a inovação, para a produção de riquezas. Ciência, enfim, para o desenvolvimento sustentado. A meta do Governo Federal é aumentar para 1,8% do PIB os investimentos em Ciência, Tecnologia e Inovação (C,T&I) até 2015. Se compararmos com outros países, não é muito pouco? O Brasil tem inúmeras prioridades, como saúde, educação, habitação etc. C,T&I figura entre essas prioridades – não é a primeira, ainda que o dispêndio nacional, tanto público como privado, para C,T&I, venha aumentando de maneira constante e dentro da capacidade de o sistema absorver esse aumento. Ou seja, temos de reconhecer que o sistema de produção científica e tecnológica está razoavelmente bem servido em termos de recursos financeiros, e que, se houver aumento, de um ano para o outro, digamos, de 20% ou 30% em nossos orçamentos, o sistema não terá como absorvê-lo. De que modo o Ministério tem lidado com a questão do apoio à divulgação científica, por meio do estímulo a entida-


Divulgação/Agência Brasil

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“A agenda já está posta, baseada em dois pontos fundamentais. Nosso sistema de produção científica já tem bom desempenho quantitativo. Precisamos melhorá-lo qualitativamente, de modo a aumentar o impacto da ciência brasileira na ciência mundial”

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des como CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]? A divulgação científica é uma questão que cabe a todos os atores do sistema nacional de C&T. Podem se dedicar às atividades de divulgação científica todos que fazem ciência ou que a financiam. Se é bom para a cidadania que as pessoas tenham alguma dose de cultura literária, artística, musical, esportiva etc., é bom, também, que as pessoas tenham doses de cultura científica. Uma das maneiras de conseguir isso é por meio da divulgação científica. Nesse campo, o Ministério pegou para si duas ordens de responsabilidade: promover uma atividade de âmbito nacional – a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia – e financiar iniciativas que resultam em divulgação, como eventos científicos e centros e museus de ciência.

senvolvimento científico brasileiro? As metas têm sido cumpridas? Quais os principais desafios e problemas? O CsF será um marco na vida científica brasileira. Num período de quatro anos, é um salto significativo a possibilidade de introduzir, no sistema, cem mil pessoas que passaram por experiência acadêmica intensiva no exterior. Ao estudar em universidades de classe mundial, os bolsistas do programa terão referência elevada em termos de prática científica e trarão isso ao Brasil, especialmente no que diz respeito a atividades de pesquisa voltadas ao desenvolvimento tecnológico, à inovação. Em termos de envio de estudantes para o exterior, estávamos caminhando. Com o CsF, passamos a correr. Ele inaugurou uma nova formulação política, mais ousada e apropriada para o objetivo do Governo Federal de colocar C,T&I como eixo do desenvolvimento sustentado do Brasil.

O currículo Lattes possui uma aba destinada a atividades de divulgação científica, mas ainda restam dúvidas sobre mensuração. Artigo publicado em jornal comum deve ter o mesmo peso de texto publicado em revista de cunho acadêmico? Qualquer atividade, para ser reconhecida e valorizada, precisa, antes de tudo, ser registrada. Neste sentido, as novas abas do Lattes oferecem os campos adequados ao registro das atividades de divulgação científica, bem como de inovação. Quanto ao peso ou valor que os comitês de assessoramento dão a cada tipo de produção, depende do objeto do julgamento. Ou seja, em uma chamada por projetos de divulgação científica, talvez os artigos publicados em jornais de grande circulação tenham mais peso que um artigo científico. Se a chamada for para temas específicos de ciência e tecnologia, a produção científica deverá ser priorizada. Cada Comitê de Assessoramento estabelece os critérios gerais para cada área do conhecimento, os quais são divulgados no site do CNPq.

Ainda sobre o Ciência sem Fronteiras: das 101 mil bolsas oferecidas, 64 mil destinam-se à graduação. Por que essa escolha? As metas originais do programa previam proporção maior de bolsas para a pós-graduação. Porém, estritamente por falta de demanda qualificada para as modalidades de doutorado-sanduíche, doutorado pleno e pós-doutorado no exterior, o comitê executivo reviu as metas, de forma a prever número maior de bolsas para a graduação-sanduíche, que segue com alta demanda qualificada.

Qual a importância do programa Ciência sem Fronteiras (Csf) para o de-

Uma crítica recorrente ao CsF é que ele exclui as Ciências Humanas das áreas

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O mercado está pronto para receber os profissionais formados pelo CsF? As empresas que já fazem P&D, obviamente, demandam profissionais formados pelo CsF, e as que pretendem começar a fazer P&D terão, nos egressos do programa, excelente oportunidade de encontrar recursos humanos qualificados. Para facilitar a colocação, criamos o Portal de Empregos e Estágios, que está cumprindo seu papel.


prioritárias do programa. Isso pode ser revisto nos próximos anos? Pode, desde que a realidade mostre essa necessidade. O CsF foi feito para atender carências do País nas áreas das Ciências Naturais, nas engenharias e nas tecnológicas. Para incrementar e qualificar o seu ritmo de desenvolvimento econômico, o Brasil precisa, urgentemente, de profissionais preparados nessas áreas. Como é o diálogo entre o MCTI e o Ministério de Minas e Energia, no que diz respeito a pesquisas que contemplem o desenvolvimento de novas formas de energia, principalmente as chamadas energias renováveis? Temos não só bom diálogo, mas, também, ótima prática com o Ministério de Minas e Energia. Isso decorre da visão do governo da presidenta Dilma, de que precisamos desenvolver e dominar as novas formas de produção de energia. No Plano Inova Empresa, por exemplo, o MME está conosco. Vale registrar que, atualmente, temos atividades em comum com 20 ministérios. Nosso objetivo é levar a ciência e a tecnologia a todas as áreas do Governo Federal.

“Se é bom para a cidadania que as pessoas tenham alguma dose de cultura literária, artística, musical, esportiva etc., é bom, também, que as pessoas tenham doses de cultura científica. Uma das maneiras de conseguir isso é por meio da divulgação científica”

Ao pensar da base à pesquisa em alto padrão, de que maneira a educação (ensinos fundamental e médio) e a produção científica se relacionam? Creio que há duas maneiras de identificar essa relação. Uma é formal, linear; a outra, tácita. A formal ocorre por meio de uma lógica linear: quanto melhor o ensino fundamental, mais e melhores alunos teremos no pós-doutorado. Já a maneira tácita ocorre na dinâmica da sociedade, no dia a dia da vida nacional. Estamos falando, aqui, de cidadania e de uma questão estrutural do País. Ou seja: educação básica e produção científica devem fazer parte de um mesmo ambiente, pautado pela oferta de oportunidades para o desenvolvimento das pessoas e da sociedade, e pela fruição dos benefícios da educação e da ciência para todos os indivíduos. Os investimentos feitos na base já surtem efeito no topo,

pois o nosso topo mostra bons resultados – a exemplo da boa posição que temos alcançado no ranking mundial de produção científica. Porém, nossa base de qualidade é ainda muito estreita. Ela precisa ser alargada, e muito, para fortalecer e ampliar a relação com o topo. O jovem brasileiro do século XXI está mais interessado em temas como inovação, empreendedorismo e pesquisa do que em outras gerações? De que forma isso ajuda no processo de desenvolvimento da ciência no País? Acho que a melhor maneira de medir o interesse concreto por alguma coisa é quando há oferta real de oportunidades. Sabemos que o Brasil nunca foi próspero em oferecer oportunidades para jovens, principalmente aos de família de menor poder aquisitivo. Por isso, fica difícil fazer comparações entre as gerações atuais e as anteriores. Contudo, é possível observar, claramente, que os jovens respondem satisfatoriamente ao que se oferece hoje para eles. O Brasil Mais TI, programa de capacitação profissional a distância do nosso Ministério para a área de tecnologias da informação, por exemplo, teve participação de 103 mil jovens em 2013. O número é formidável! O Pronatec [Programa Nacional de acesso ao Ensino Técnico e Emprego] foi criado pelo Governo Federal, em 2011, com o objetivo de ampliar a oferta de cursos de educação profissional e tecnológica. Neste ano, chegamos a 4,6 milhões de alunos matriculados, residentes em 3.200 municípios. Mais um exemplo: o Ciência sem Fronteiras. Até agora, foram concedidas mais de 50 mil bolsas. Portanto, mais da metade das 100 mil planejadas anteriormente. Fica claro, pois, que nossos jovens estão, sim, interessados em ciência, tecnologia, inovação e empreendedorismo. Isso ajuda no processo de desenvolvimento da ciência porque a inovação e o empreendedorismo exigem a geração de conhecimentos que sejam aplicados em áreas de interesse da sociedade e do País. Isso é muito bom para a ciência.

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Arquivo Matheus Silveira

ENGENHARIA MECÂNICA

Sob o olhar das Ciências Exatas Estudante de Engenharia desenvolve modelo matemático capaz de auxiliar a detecção de tumor ocular Virgínia Fonseca

A imagem do voluntário, obtida por meio da termocâmera, é tratada em software e os dados referentes à área de medição são comparados àqueles obtidos pelo modelo construído no estudo

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Condução, radiação e convecção. Existem três mecanismos de transferência de calor, cujo entendimento está na base de diversos experimentos especialmente desenvolvidos e aplicados por estudiosos das Ciências Exatas. Especialmente, mas nunca “exclusivamente”. Em tempos de práticas científicas cada vez mais dinâmicas e interdisciplinares, a intercessão entre as áreas é comum – e, sobretudo, proveitosa. Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o aluno Matheus Silveira Rodrigues, do 10º período de Engenharia Mecânica, usou conhecimentos de condução de calor para chegar a um modelo aplicável na Medicina, com vistas a detectar tumores oculares. Sob orientação da professora Adriana Silva França, do Departamento de Engenharia Mecânica, Matheus desenvolveu um modelo que pode facilitar o diagnóstico do melanoma de coroide, tumor intraocular que ocorre em adultos, e, em casos graves, pode levar à cegueira. A partir de padrões computacionais, o estudante construiu o “modelo do olho” que possibilita avaliar a transmissão calórica no interior do órgão, para comparação com padrões de normalidade. O estudante conta que sempre teve interesse em trabalhar com transferência de calor e simulações computacionais. Assim, ao procurar a professora Adriana França – que leciona a disciplina de transferência de calor em tecidos vivos no Programa de Pós-Graduação – para orientá-lo no trabalho de conclusão de curso, ouviu a sugestão de estudar, na monografia, aplicações médicas para o tema. “Abracei instantaneamente a ideia e comecei a revisão de literatura para diversas partes do corpo humano”, lembra. O empenho em privilegiar o estudo do olho veio da dificuldade de medir a temperatura interna do referido órgão, devido à fragilidade de elementos próximos. A impossibilidade de realizar experimentos invasivos tornava relevante e instigante a aplicação de modelos computacionais.

Modelo diferenciado

Estabelecido o foco no diagnóstico oncológico, o primeiro passo foi a defini-

ção de um modelo matemático que descrevesse as transferências de calor no olho humano. A seguir, o estudante construiu, com auxílio de um programa de desenho em computador, o domínio da simulação, no qual constam todos os elementos e a geometria do órgão. Os modelos matemático e geométrico foram unidos no software de simulação, onde Matheus determinou as condições de contorno do problema. Para verificar se o padrão elaborado iria se aproximar das temperaturas reais do corpo, modelou-se, inicialmente, apenas o olho sadio. “Nesta fase, surgiram entraves: embora o modelo teórico apontasse o calor e a temperatura em toda a extensão do olho, eu só poderia medir, experimentalmente, a temperatura superficial da córnea. Mesmo assim, teria de ser sem contato direto”, relata. Para solucionar a questão, optou-se pelo uso da termografia – mecanismo já existente e amplamente usado em diversas aplicações de Engenharia. O método proporciona o registro do espectro infravermelho da luz em fotos, por meio das quais o pesquisador pode mensurar a temperatura de toda a superfície da córnea. Somente após a validação desse primeiro protótipo, prosseguiu-se à inserção do modelo de tumor no fundo do olho. Os estudiosos optaram por focar no melanoma de coroide, tipo de câncer ocular mais comum entre pacientes adultos. Como as propriedades térmicas da doença não são bem definidas na literatura, devido às suas diversidade e singularidade, estabeleceu-se uma faixa de variações considerada pertinente. Da mesma forma, Matheus trabalhou com diferentes tamanhos e posições de tumor no globo ocular.

Aplicação

Detectada a suspeita de tumor, o registro do globo ocular, por meio da termocâmera, proporciona a captação dos dados do espectro infravermelho. A imagem é, então, submetida a um programa de computador que compara o calor captado com as temperaturas consideradas habituais para o interior do órgão. O local onde se detecta temperatura mais elevada do que se imaginava é chamado de “ponto quente”.

Camada vascular da parede do globo ocular, que fica entre a parte branca (esclera) e a membrana visual (retina). Matheus ressalva que diversos trabalhos já estudam o uso do dispositivo no diagnóstico de doenças. “A grande novidade de nossa pesquisa foi o desenvolvimento de modelo computacional específico para o olho humano, que reproduz as condições e medidas geométricas do órgão”, detalha. Embora não possibilite definir a localização exata do tumor ocular, o método pode apontar a necessidade de exames aprofundados. Cada pessoa possui seu padrão termográfico particular, que não muda com o tempo, de modo similar ao que ocorre com a impressão digital. A presença de um tumor desencadeia aumento de temperatura em tecidos vizinhos, devido à alta vascularização e à maior produção de calor metabólico. Assim, independentemente da localização, há alteração no padrão. Tal variação em relação à temperatura sadia esperada para a córnea – e detectada nos termogramas – permitiria ao médico avaliar investigações mais detalhadas do caso. O diagnóstico da doença, hoje, é feito pelo mapeamento de retina, com aplicações periódicas de colírios para dilatação da pupila. Tal procedimento pode durar até duas horas. Matheus ressalta que a técnica estudada atuaria como ferramenta adicional, e não como substituta, do diagnóstico tradicional. Afinal, não é viável determinar, efetivamente, apenas pela elevação de temperatura, se o paciente possui câncer ou não. A despeito dessa constatação, o estudante visualiza, no pré-diagnóstico por termogramas, uma alternativa promissora, por permitir que inclua ou descarte outras possibilidades, como hemorragias e inflamações. “A praticidade da medição, em que a captura é instantânea e não invasiva, é algo extremamente atraente e pode auxiliar o médico a decidir se ou qual outro exame oftalmológico é necessário”, pondera. Matheus acrescenta que, por meio da mensuração de temperaturas superficiais, a termografia pode auxiliar o diagnóstico em

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Arquivo Matheus Silveira

Antes das medições nos voluntários, Matheus Silveira construiu protótipo em esfera de gelatina balística para simular o aquecimento interno do olho

qualquer outro tipo de câncer superficial, como o de mama e o de pele. “Por meio do desenvolvimento de novas pesquisas, outros modelos podem ser construídos visando este objetivo”, informa o estudante. Apesar disso, ainda não há previsão para aplicação clínica do modelo.

Dobradinha pela ciência

Discussões travadas com um oftalmologista especialista no tipo de tumor estudado, logo no início do trabalho, foram decisivas para que se definisse o foco. De acordo com Adriana, esse tipo de parceria é imprescindível, pois o engenheiro possui o conhecimento do fenômeno do ponto de vista da física e de como trabalhar a questão sob a ótica da matemática. “São necessárias, portanto, informações complementares, que possam ser fornecidas, apenas, por um profissional com conhecimento do problema, do ponto de vista médico”, avalia Para a continuidade do trabalho, Adriana explica que seria necessário aprofundamento nos aspectos práticos. Segundo a professora, embora se tenha obtido boa concordância entre resultados experimentais e de simulação, no caso de olhos sadios, há grande variabilidade nas medições empíricas, decorrentes de diferenças normais de temperatura entre indivíduos, ou da própria pessoa. “Seria necessário estabelecer outros pontos de referência para medições de temperatura, como forma de minimizar tais variações”, opina. Matheus acrescenta que os resultados encontrados podem servir de incentivo

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A partir de dados fornecidos pela captura da imagem do protótipo por termocâmera, parâmetros do modelo computacional foram ajustados

a outros pesquisadores, que decidam focar nessa linha e aprimorar a investigação. Os estudos iniciaram-se há, aproximadamente, um ano e meio. Embora Adriana já tenha orientado trabalhos referentes à simulação de transferência de calor em tecidos vivos, a pesquisa de Matheus foi conduzida de forma independente, sem vínculo a outros projetos. No artigo Simulation of temperature variations in the human eye affected by the presence of a tu-

mor, [Simulação de variações de temperatura em olho humano afetado pela presença de tumor] o estudante propõe o modelo computacional para diagnóstico do tumor por meio da temperatura, diferente daquela observada em outras partes do globo ocular. A pesquisa foi apontada como a melhor apresentação oral em análises térmicas e aplicações da 4ª Conferência Internacional de Engenharia Mecânica e Aeroespacial, realizada em Moscou, na Rússia.

Do antebraço aos olhos O equacionamento matemático do processo de transferência de calor no olho humano baseou-se em modelo proposto, em 1948, por H.H. Pennes, para simular a transferência de calor no antebraço humano. As descobertas resultaram em método aplicado com sucesso, de modo a simular a transferência de calor em diversas outras situações, o que inclui uma série de estudos recentes.

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Ana Luiza Gonçalves

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EDUCAÇÃO

Janela indispensável

Em Lavras (MG), a obra cinematográfica de Alfred Hitchcock abre novos horizontes ao olhar e à formação de professores da educação básica


O que seriam os filmes do inglês Alfred Joseph Hitchcock (1899-1980) senão sonhos gravados? Sonhos esses a sofrer pequenos choques de realidade, para, então, adquirir tom de pesadelo. Assustam, no cinema do mestre, a elasticidade do tempo, a imprevisibilidade dos dias, o tiquetaquear do relógio, o vai-e-vem de amores, a excentricidade da vida. Se, nos idílios, há toques de solidão e repressão, transposição de tempo e de lugar, regras rompidas e tabus quebrados, também nos filmes – mesmo que lineares – destacam-se grandes transformações, capazes de surpreender o espectador. Gravar fazia parte dos devaneios diurnos do cineasta, e, por isso, sentia-se tão à vontade naquele universo. Ao longo de sua vida, dividida entre Inglaterra e Estados Unidos, Hitchcock talvez não previsse que sua vasta obra fosse contribuir, até mesmo, para os sonhos de conhecimento de uma série de professores de educação básica no “distante” Brasil. A sétima arte, afinal, também se revela uma porta aberta à formação dos espectadores. Com linguagem peculiar – capaz de traduzir o medo, o suspense e o humor de forma natural –, as obras de Hitch, como ele gostava de ser chamado, estão inseridas, de modo inusitado, em projeto coordenado pela professora Luciana Azevedo, pesquisadora da Universidade Federal de Lavras (Ufla). Trata-se de uma mostra que investe, justamente, na compreensão dos filmes como ferramentas aptas a produzir modificações na percepção humana. A proposta resultou de trabalhos anteriores, desenvolvidos dentro do projeto “Cinema com vida”, realizado entre 2008 e 2009, que inicialmente, voltava-se à sétima arte, tomando-a como veículo para discutir temas relacionados ao processo educativo. Os pesquisadores perceberam, porém, que trabalhar com filmes apenas para ilustrar conteúdos específicos limitaria o potencial formativo do produto. Além disso, a formação de professores não poderia se restringir a metodologias e técnicas de ensino. O corpo docente também teria que pensar sobre si mesmo. “Aquele que educa precisa pensar em sua própria formação. Essa capacidade não está dada, nem é natural, mas precisa do relacionamento efetivo com os bens culturais dos tempos passado e presente”, destaca Luciana.

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Se estivesse vivo, Hitchcock teria completado, em agosto, 114 anos. O diretor começa a mostrar parte de seus atributos cinematográficos, em 1925, com o tímido The pleasure garden. Mesmo não sendo considerado uma obra-prima, o filme construiu seu nome como cineasta e serviu de marco às principais características do cinema do autor. Ali, já dava para sentir que o suspense seria sua zona de conforto. E que o menino nascido em Londres, e educado de forma religiosa, viria a se tornar o mestre do gênero. De lá até sua morte, em abril de 1980, foram mais 53 filmes.

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Com base na ampliação de tais relações, equipe formada por cinco professores da Ufla, uma pesquisadora convidada, estudantes do mestrado profissional em Educação, licenciandos-bolsistas de extensão e pesquisa, além de um técnico-administrativo da universidade, reúne-se, às quartas-feiras, no Museu de História Natural da Universidade, para discutir os temas trabalhados pelo diretor. Nessas ocasiões, os participantes comentam a linguagem cinematográfica usada por Hitchcock e o modo como suas inovações contribuem para a expressão de angústias e medos – em especial, de professores e licenciandos. Ao todo, 19 filmes de Hitchcock serão exibidos, com a finalidade de contribuir com a formação de docentes, para que se tornem capazes de compreender o cinema como signo das modificações sociais e perspectivas produzidas ao longo do século XX e neste princípio de novo milênio. A escolha do cineasta como foco do projeto deu-se em função da importância das obras e de sua genialidade em filmar a humanidade. A mostra busca discutir a contribuição do diretor para a reflexão de emoções que muitos professores têm desconsiderado. Segundo Luciana Azevedo, de acordo com autores da Teoria Crítica da Sociedade, os sentimentos ambivalentes vividos pelas pessoas só podem deixar de atuar contra a formação quando reconhecidos e trabalhados nas relações entre mestres e alunos. A herança do expressionismo e a capacidade de lidar com o universo objetivo, características trabalhadas pelo diretor por meio de imagens que dialogam com sensações de medo, culpa, angústia e outros tantos conflitos internos, são reconhecidas no processo educativo. “Hoje, o professor sofre ações imediatistas, além de urgentes demandas que, talvez, o impeçam de se expressar e lidar de forma segura com questões internas, inerentes ao homem. Dessa forma, docente e aluno acabam por suprimir o reconhecimento do medo, por exemplo, como algo negativo ao processo de ensino e aprendizagem”, explica a pesquisadora.

Autoconhecimento

Por meio dos filmes de Hitch, portanto, o projeto auxilia a compreensão do “universo” interno dos indivíduos e permite

que o professor transponha essa experiência para o aluno. “Os filmes contribuem com tal entendimento, pois o professor pode se voltar a suas referências, expressando-as na construção do próprio trabalho. Assim, ajudará os estudantes a reconhecer que é no seu ofício, na criação e na construção de algo, que tais expressões encontram espaço para existir”, destaca Luciana. Professor de Educação Física do Ensino Médio na Escola Estadual João Batista Hermeto, Fernando Cardoso Montes participa do projeto desde 2010. E confessa ter se aproximado das obras de Hitchcock por meio da mostra. Para ele, o projeto contribui para a formação cultural do professor devido à aproximação com as produções cinematográficas e pela possibilidade de percepção das contradições sociais. “As atividades nos possibilitam refletir sobre nossa própria percepção acerca do cinema, e, consequentemente, acerca da sociedade na qual estas obras são produzidas”, comenta. Por meio do projeto, Fernando passou a ter contato com uma série de diretores clássicos, a exemplo de Charles Chaplin, Luis Buñuel, Orson Welles e Ingmar Bergman – cineastas que, hoje, auxiliam-no a compreender melhor a realidade social e a refletir, criticamente, sobre sua própria relação com a cultura. Outro ponto destacado pelo professor relaciona-se a indagações internas dos alunos. “Nos dias de hoje, nos apegamos muito às questões imediatamente aparentes. Olhamos para nossos alunos de maneira rápida, prática, deixamos de lado importantes questões simbólicas, o que nos leva a um entendimento superficial da realidade em que estamos envoltos”, completa.

Desafios

Em função do sucesso dos filmes comerciais, cujas temáticas parecem sempre tão iguais e rendem enormes bilheterias, há grande preocupação, por parte dos pesquisadores, em inserir obras clássicas – em especial, as de Hitchcock – na vida profissional de um professor. Luciana Azevedo ressalta que, por não haver circuito alternativo de cinema em Lavras, e para que se obtenham bons resultados na iniciativa, é importante investir em trabalho contínuo, que só pode avançar lenta e coletivamente.

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Para além das obras de Hitchcock, as discussões do projeto são subsidiadas pelo referencial da Teoria Critica da Sociedade e se fundamentam em artigos e outros tantos trabalhos acadêmicos dedicados ao cinema hitchcockiano. Para a coordenadora do programa, faltam iniciativas como essa nos processos educativos. “Afinal, os professores precisam vivenciar a relação entre ensino, pesquisa e extensão, além de ter mais tempo para se dedicar à própria formação e aprender a olhar mais vagarosamente para o mundo. Falo de olhar com os outros e de construir um estilo próprio de trabalhar e construir conhecimento”, afirma, ao ressaltar que os docentes não podem se fechar na educação básica. “Assim como não é se fechando em si mesma que a universidade se fortalecerá”, destaca. Na visão de Fernando Montes, é imprescindível a expansão, em instituições de ensino superior e de educação básica, de projetos que levem o docente a desenvolver técnicas trabalhadas em outros “espaços”. Para o professor de Educação Física, a dificuldade está no entendimento sobre as obras cinematográficas, principalmente, no que tange a questões relacionadas às técnicas de filmagem, também carregadas de sentidos. “Importante ressaltar que essa

dificuldade é impulsionada pela quantidade de atividades para as quais somos demandados nos dias de hoje. Outro desafio é alcançar mais professores da educação básica para participar do projeto, o que enriqueceria ainda mais nossa experiência”, alega o professor. Luciana Azevedo espera que a mostra consiga alcançar maior número de professores, de modo a sensibilizá-los, no sentido de que valorizem a própria formação cultural. Muitos, afinal, estão acostumados a ler e estudar cada vez menos, por meio de cursos rápidos, superficiais ou vinculados a progressões funcionais e a elevações de salário. Para a equipe de pesquisadores responsável pelo projeto, o maior desafio é obter apoio das escolas, e de suas direções, para que os professores interessados possam destinar parte de seu tempo de trabalho à própria formação. “Com este apoio, o envolvimento dos professores seria muito mais efetivo. Desse modo, os professores poderiam, por exemplo, desconstruir a ideia de entretenimento aplicada ao cinema e reconhecer os limites da perspectiva instrumentalizada da sétima arte”, conta a pesquisadora.

Projeto: Cinema como uma experiência inovadora de formação cultural docente Coordenadora: Luciana Azevedo Rodrigues Modalidade: Apoio a projetos de extensão em interface com a pesquisa Valor: R$ 16.632,00

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ESPORTE

Velocidade controlada Protocolo desenvolvido na Universidade Federal de Lavras facilita mensuração de limites físicos para corredores

Virgínia Fonseca

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O ano era 776 a.C., a cidade, Olímpia, na Grécia. A modalidade, uma velha conhecida do homem: a corrida. A prática desse esporte encontra-se na origem dos jogos que, de quatro em quatro anos, envolvem o planeta. E, se o mundo, tal qual o formato dos aros olímpicos, é cíclico, isso ajudaria a explicar por que a atração do homem por essa atividade agora volta a crescer. A corrida tornou-se uma das modalidades que mais conquistam adeptos, atualmente, no Brasil. “Logo ali”, em um dos cartões postais da capital mineira, os dados atestam: de 2008 a 2012, aumentou em mais de 30% o número de pessoas que participaram e – dado importante – concluíram a Volta Internacional da Pampulha. Tais informações integram investigação conduzida pelo professor Sandro Fernandes da Silva, do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Lavras (Ufla). Integrante do Grupo de Pesquisa e Estudo em Respostas Neuromusculares, o docente analisou o fenômeno da corrida de rua, e, mais recentemente, coordenou projeto especialmente interessante para os adeptos dessa modalidade, intitulado “Criação de um protocolo de campo para identificar o limiar anaeróbico em corredores”. A iniciativa teve como foco determinar o limite aeróbico dos praticantes, sem que precisem ir ao laboratório para fazer os testes. Por Limiar Anaeróbico (LAn), entende-se aquela carga de trabalho a partir da qual a concentração de lactato no sangue

de um indivíduo incrementa-se de maneira exponencial, durante a atividade física. Tal ponto marca a transição nos sistemas de energia, de aeróbico para anaeróbico. A partir deste nível, ainda que se mantenha uniforme a intensidade, o lactato muscular e sanguíneo aumenta progressivamente, ocasionando acúmulo de hidrogênio no organismo. Como resultado, ocorrem modificações significativas nas variáveis ventilatórias – principalmente, aumento da ventilação pulmonar e da produção de dióxido de carbono. Esses valores tornam-se desproporcionalmente maiores em relação à elevação linear da potência de consumo de oxigênio correspondente. Sandro Silva explica que existem diferentes modelos para determinar em que momento da atividade ocorre este fenômeno fisiológico. Por meio da avaliação do lactato sanguíneo, pode-se determinar o Limiar Anaeróbico de um atleta, e, assim, prescrever o treinamento em intensidades ideais para controle de seu desenvolvimento. “A prática de exercícios acima desse limite provoca grande esgotamento nas reservas de energia, e, se as atividades forem recorrentes, levam a sobretreinamento (overtraining) e a lesões musculares”, explica o professor. Produzido pelo organismo a partir da glicólise – queima da glicose –, para o fornecimento de energia sem presença de oxigênio (metabolismo anaeróbico láctico).

O acúmulo de hidrogênio durante o exercício de alta intensidade é um dos vários fatores associados à ocorrência de câimbras.

O projeto desenvolvido em Lavras conseguiu estabelecer um protocolo para definir o Limiar Anaeróbico em testes de campo. Ou seja, validou-se um método de avaliação em que os corredores não necessitem ir ao laboratório para conhecer sua capacidade aeróbica – determinante para o bom desempenho na corrida. “Dessa forma, os praticantes realizariam testes, sob a supervisão de um profissional de educação física, sem a necessidade de mudar sua rotina de treinamento, pois as avaliações podem ocorrer em pista de atletismo e na rua”, explica o professor, que também coordena o Laboratório de Estudos do Movimento Humano da Ufla. Os resultados são aplicáveis a todos os tipos de corredores. A pesquisa, inclusive, foi realizada com atletas amadores.

No limite Usualmente, a avaliação do LAn se dá por meio de teste progressivo em esteira, cicloergômetro e ergômetros específicos, respectivamente, para corredores, ciclistas e outras modalidades esportivas. O exame é iniciado com baixa velocidade ou carga de trabalho, que é gradativamente elevada, em ciclos de dois ou três minutos, até a fadiga voluntária do sujeito. A cada aumento de

Características dos voluntários da pesquisa

3015 2535

Grupo

Quantidade

Idade (Anos)

Massa Corporal (Kg)

Percentual de Gordura (%)

Corredores

17

34,46 ± 10,68

68,28 ± 6,78

12,27% ± 4,97

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estágio, realiza-se coleta de material para avaliar o nível de lactato sanguíneo. No projeto em questão, as amostras são extraídas em pista de atletismo, o que permite ao corredor fazer sua avaliação no dia a dia de treinamento. Os estudiosos realizaram, ainda, testes nos quais se determinou o LAn sem a utilização de coleta sanguínea, por meio de um parâmetro indireto: a velocidade crítica. Dezessete praticantes de corrida amadores, com idades entre 24 e 44 anos, participaram da investigação (veja quadro na página 24). Para avaliar o limiar de lactato, os corredores voluntários realizaram seis séries de mil metros, com esforços de 75 a 100% do melhor tempo do período, com intervalo de um minuto. Imediatamente após tal etapa, fez-se coleta de 25 microlitros de material no lóbulo da orelha, para verificar o comportamento do lactato sanguíneo. De modo a identificar o LAn, utilizou-se equipamento específico para o método visual de fotometria de reflexão, cujo critério baseia-se nas diferenças de aumento de lactato entre valores iniciais e finais. “Esta técnica simples possibilita identificar o limiar anaeróbico individual, apontando os valores para velocidade e frequência cardíaca em cada estágio”, detalha Sandro Silva. Já na avaliação pautada em velocidade crítica – à qual o professor dá destaque, por não precisar de coleta sanguínea –, foram executados dois testes em pista de atletismo de carvão com 400 m, um de 3

mil metros e outro de 5 mil metros, com intervalos de 24 horas entre eles. Os participantes deveriam percorrer essas distâncias no menor tempo possível. A velocidade crítica foi determinada a partir da relação de regressão linear entre as distâncias e os respectivos tempos. As investigações também se desdobraram em novos projetos, nos quais a equipe identificou parâmetros de distância

capazes de aferir melhor a velocidade crítica e avaliou as alterações do LAn em diferentes momentos do dia. Em trabalho relacionado, os pesquisadores determinaram o Limiar Aeróbico e a velocidade crítica em nadadores. “Verificamos que essa medida modifica-se de acordo com a modalidade, mostrando-se como excelente parâmetro para avaliação e controle do treinamento”, infere o professor.

Popular e saudável O Brasil ainda corre atrás de dados sobre o número de praticantes da atividade existentes, oficialmente, no País. A popularização dos circuitos e a inexistência de informações consolidadas sobre o perfil do público e a frequência da prática do esporte dificultam o consenso a respeito. Quanto ao quesito “benefícios”, porém, impera a unanimidade. Segundo dados do Ministério da Saúde, a prática regular de corrida ajuda a controlar a pressão arterial, reduzir o “mau” colesterol (LDL) e aumentar o “bom” (HDL), ocasionando claros benefícios para o sistema cardiovascular. Classificada como aeróbica, a atividade conquista os adeptos da boa forma por contribuir com a ampliação da taxa metabólica de repouso e tonificar os músculos. Ganho de força, resistência, equilíbrio e flexibilidade também são mencionados. Os benefícios se estendem, ainda, ao campo psicológico, já que tal esporte libera neurotransmissores como a serotonina e a endorfina, capazes de levar à sensação de relaxamento e reduzir a ansiedade. Na Ufla, a Coordenadoria de Esportes e Lazer, coordenada pelo professor Sandro Silva, criou o circuito de corridas da Universidade, que consiste em quatro etapas, correspondentes às letras do nome da instituição. Ao final, quem fizer todas as fases completa a palavra “Ufla”, com a junção das medalhas conquistadas. “O circuito está no primeiro ano e temos, em média, 500 inscritos por etapa, confirmando a importância da corrida como meio de prática de atividade física e de promoção de saúde”, comemora o docente. O pesquisador destaca, contudo, a necessidade de que toda atividade esportiva seja praticada sob aconselhamento de profissionais da área de saúde, para garantir benefícios e evitar riscos.

Métodos de mensuração do Limiar Anaeróbico Os procedimentos de mensuração do LAn podem se basear no comportamento da ventilação ou dos equivalentes ventilatórios de O2 e CO2. Ou, ainda, confrontando-se o VO2 extraído (consumo de oxigênio pelo organismo em determinada intensidade de exercício) e o CO2 produzido. Outros modelos empregam a determinação do lactato sanguíneo no sangue arterial, a partir da verificação de seu comportamento durante o esforço. É possível comparar, também, o lactato apresentado ao longo do esforço com os níveis da substância detectados durante a recuperação.

Projeto: Criação de um protocolo de campo para identificar o limiar anaeróbico em corredores Coordenador: Sandro Fernandes da Silva Modalidade: Edital Universal Valor: R$ 19.559,00

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ENGENHARIA QUÍMICA

Energia limpa e do bem

Pesquisadores da PUC Minas misturam hidrogênio ao óleo diesel e ao etanol para produção de combustíveis mais eficientes e, ao mesmo tempo, menos poluentes Diogo Brito

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Nos últimos séculos, a humanidade enfrentou diversas mudanças, que culminaram com sua evolução intelectual, social e econômica. Uma das principais revoluções já vividas pelo homem, ocorrida na Inglaterra do século XVIII – período marcado pela evolução das máquinas e dos sistemas de transporte –, criou uma burguesia industrial sedenta por lucros e custos diminutos. A descoberta da energia a vapor e o desenvolvimento dos gigantes teares alteraram os modos de produção. Além disso, houve grande crescimento populacional, assim como aumento da oferta de empregos, das demandas e das escalas de produção. Nos transportes, as novas tecnologias de locomoção conseguiam encurtar as distâncias. Além disso, os princípios da Modernidade começavam a enraizar, na civilização, a cultura da exploração de combustíveis fósseis. Na Europa, a abundância do carvão mineral fez com que o produto se tornasse ingrediente fundamental ao funcionamento das máquinas a vapor. Passados três séculos depois da eufórica Revolução Industrial, todos os países desenvolvidos buscam soluções alternativas para minimizar a emissão de poluentes, por meio, principalmente, do uso de novas fontes de energia. Qual a possibilidade, porém, de existir um combustível de fonte renovável, inesgotável, e, ainda por cima, não poluente, capaz de representar benefícios a todos? Curioso pensar que esse produto já existe – e é chamado, por muitos, de “combustível do futuro”. Trata-se do hidrogênio, elemento químico que merece tal título por suas características únicas. Além de abundante – sendo o terceiro mais presente na Terra, atrás apenas do oxigênio e do ferro –, possui características fantásticas. Do ponto de vista técnico, o hidrogênio possui grande capacidade de armazenar energia. Por essa razão, é utilizado como combustível de propulsão de foguetes e de cápsulas espaciais. Em seu estado natural, e em condições normais, o elemento químico é um gás incolor, inodoro e insípido. Some-se a isso o fato de que os únicos elementos emitidos a partir da

queima junto ao oxigênio puro são a água e o próprio calor, o que o torna o combustível perfeito. Contudo, o que aconteceria se esse mesmo hidrogênio fosse utilizado, como aditivo, para queima de óleo diesel? Um grupo de pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) desenvolve, há três anos, uma técnica que busca, por meio da mistura de pequena quantidade de hidrogênio e etanol, uma maneira eficiente de melhorar o desempenho de motores estacionários que operam com óleo diesel. Além de render excelentes resultados, a pesquisa se desdobrou em cinco dissertações de mestrado, além de dois artigos em periódicos internacionais e de um sistema de injeção de hidrogênio, já em processo de patenteamento. De acordo com José Ricardo Sodré, professor do curso de Engenharia Química da PUC Minas e coordenador da pesquisa, a ideia era criar um “kit” simples – similar ao usado, atualmente, em veículos adaptados a gás –, a ser adaptado por qualquer motor gerador de energia – incluindo-se aqueles que já estivessem em operação. A escolha pela mistura de hidrogênio ao óleo diesel surgiu a partir de projetos desenvolvidos por meio de parceria entre a universidade, a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

Hidrogênio?

O pesquisador explica que o fator decisivo para a escolha do elemento químico foram os períodos de queda na demanda de energia diurna, por parte da população, durante o dia, e a manutenção do elevado ritmo de produção de energia nas hidroelétricas. “Em função disso, logo foi sugerido usar tal período do dia para produzir hidrogênio, já que não há possibilidade de redução da fabricação de energia nas usinas”, comenta. O hidrogênio produzido nas hidroelétricas, mas sem utilidade, foi disponibilizado para a pesquisa. Desse modo, o grupo desenvolveu um sistema capaz de injetá-lo, nos motores, paralelamente ao óleo diesel. Após várias tentativas, descobriu-se, então, a quantidade exata

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a ser utilizada na mistura – que, hoje se sabe, chega a 5% do total do combustível usado no veículo. Cumprida tal etapa, contudo, identificou-se o primeiro problema: no motor a diesel, em que não há variação na rotação, ficou inviável obter economia para a queima do combustível, assim como melhor desempenho. Para tal, seria necessária uma série de mudanças, que tornariam a aplicabilidade do projeto economicamente desfavorável. Sodré explica que isso se verificou porque, no gerador de energia, não há aumento nem redução da velocidade no motor. Afinal, ele opera em frequência única, e, de acordo com a demanda de energia elétrica, seria exigida quantidade elevada de combustível. “Para obter melhoria significativa desses resultados, é preciso fazer modificação no motor. Neste caso, adaptar um kit de hidrogênio não seria tão vantajoso assim”, explica o professor. Entretanto, apesar de o investimento não ser elevado, Sodré justifica a economia do uso em geradores de energia, ao afirmar que “as empresas que possuem atividades em lugares remotos consomem, por vezes, grandes quantidades de combustível apenas para manter sua frota de máquinas abastecida. Neste cenário, o uso do hidrogênio se mostra altamente viável”, comenta. Se, por um lado, a aplicação de hidrogênio nos motores estacionários não é vantajosa, isso não inviabiliza o uso da mesma técnica em motores diesel para caminhões e ônibus que, atualmente, circulam na cidade. A aplicação do kit, nessa situação, traria benefícios não apenas financeiros, mas, principalmente, ao meio ambiente. Hoje, os componentes emitidos diariamente na atmosfera – hidrocarbonetos, monóxido e dióxido de carbono –, causadores do efeito estufa, são reduzidos significativamente, por meio do uso da porcentagem de 5% de hidrogênio ao óleo diesel. A mistura melhora as características de combustão do motor, que passa a operar com menor quantidade de combustível para transportar a mesma carga – numa comparação com o mesmo equipamento, mas sem a adição de hidrogênio. “A expectativa é de redução de todos os poluentes, com exceção dos óxidos de nitrogênio”, esclarece.

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Outros testes Paralelamente ao estudo com equipamentos estacionários, a equipe aplicou a mesma técnica em motores automotivos. Os resultados foram animadores. Apontou-se redução de até 15% no consumo de combustível dos veículos, assim como diminuição das emissões de poluentes. José Ricardo comenta que o uso em carros seria um sucesso, pois uma das grandes vantagens é que o hidrogênio usado não precisa, necessariamente, ser engarrafado, ocupando parte importante do veículo – como hoje é feito com o gás natural. “O hidrogênio pode ser produzido a bordo do próprio veículo, por um método chamado de hidrólise. A partir da água, é possível a produção do elemento químico em um sistema fechado, de autoalimentação”, explica o pesquisador. Diferentemente do primeiro teste com os geradores de energia, a economia é alcançada, justamente, porque ocorre oscilação na operação do motor. “Normalmente, os motores atuais operam na faixa de 4 mil rotações por minuto (RPM), em ruas e estradas. Nessas condições, portanto, o hidrogênio mostra-se uma alternativa viável”, diz. Em outra etapa da pesquisa, pretende-se recorrer à mesma técnica, mas o hidrogênio será misturado ao etanol. Segundo o pesquisador, o estudo ainda está em andamento, mas já é possível observar redução – em quase sua totalidade – da emissão de poluentes. O ponto negativo está no consumo elevado do etanol, se comparado ao diesel. Características próprias do combustível o fazem ser mais consumido durante o processo de queima. “Temos testado quatro técnicas, da mistura do etanol com óleo diesel a um sistema mais robusto, de alta pressão”, afirma. O kit para uso do hidrogênio em motores a diesel está criado. Espera-se, agora, comprovação do pedido de patente. José Ricardo destaca que, para que o método chegue à população, não existem mais restrições técnicas. “Há necessidade, apenas, de empresas que tenham interesse em comercializar o produto”, completa o coordenador das pesquisas.

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Projeto: Geração de energia utilizando motores diesel abastecidos com etanol, hidrogênio e óleo diesel Coordenadora: José Ricardo Sodré Modalidade: Programa Pesquisador Mineiro Valor: R$ 48.000,00


EDUCAÇÃO

Versos diversos

Estudos buscam compreender significados subjacentes às práticas culturais e educativas de povos tradicionais Virgínia Fonseca

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arquivo pessoal Rosana Lacerda Monte Alto

No norte de Minas, pesquisadores estudaram a preservação de tradições dos remanescentes quilombolas

“Senhor e dono da casa, vai chegando a folia / Vem beijar a nossa bandeira e escutar a cantoria”. A origem é europeia, mas os brasileiros já conferiram, há séculos, identidade local aos festejos, por meio de músicas, danças e orações que variam, até mesmo, de uma região a outra do País. Entre os dias 1º e 6 de janeiro, comunidades de todo o Brasil celebram a Folia de Reis, em homenagem aos nobres visitantes que levaram presentes ao Menino Jesus, segundo a tradição católica. Essa foi uma das manifestações estudadas pela professora Valéria Oliveira de Vasconcelos, junto ao programa de Mestrado em Educação da Universidade de Uberaba (Uniube). Entre 2008 e 2012, a pesquisadora conduziu investigação acerca dos modos como a educação e a cultura popular manifestam-se nos cantos, nos versos e na prosa das populações tradicionais. A docente também analisou a maneira como essas pessoas educam – e se educam – em suas distintas práticas sociais. Durante o pós-doutorado, concluído em 2012, Valéria realizou pesquisa híbrida, expandindo o foco às comunidades extrativistas da Amazônia. “Em minha trajetória acadêmica, busco identificar diferentes práticas e experiências educativas ocorridas em diversas formas de expressão da cultura, conceito que compreendo, ao seguir o antropólogo americano Clifford Geertz, como uma teia de significados, – tecida por homens e mulheres – e sua análise”, detalha. A ideia dos estudos, por-

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tanto, é entender alguns desses sentidos e refletir sobre eles, coletivamente, a partir do reconhecimento e do respeito à diversidade cultural. Outra busca do grupo é auxiliar a formação continuada de professores e professoras em exercício, ou em formação inicial, a partir dos resultados alcançados com a pesquisa. Ao trabalho interessam, principalmente, as manifestações de resistência, que se expressam da cultura popular – fala, escrita, rimas, cantigas, educação e cultura. Essa resistência pressupõe diferença: história interna específica, modo peculiar de existir no tempo histórico e no tempo subjetivo. Daí o interesse pelos povos tradicionais, denominação dada a grupos que preservam cultura diferenciada – similar à de seus antepassados – e possuem formas próprias de organização social. Os pesquisadores escolheram manifestações como a Folia de Reis e o Congado, por tratar-se de representantes legítimas da cultura e das expressões artísticas populares. Também foram estudados povos de reservas extrativistas da Amazônia e comunidades quilombolas. Para tanto, coletaram-se “histórias de vida”, por meio de audição sistemática dos moradores mais antigos das regiões analisadas, a fim de aprofundar a compreensão sobre as práticas de educação cotidiana. Segundo a pesquisadora, tais narrativas são potencializadas como processos de formação e de conhecimento, já que se baseiam na experiência.

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Manifestações culturais surgem como forma de resistência da cultura de povos tradicionais

Um pouco dessa história

Quando perguntados a respeito do nome da comunidade quilombola ali remanescente, os moradores mais antigos narram a história que conheceram por meio de seus tataravós, bisavós, avós e pais. Há cerca de 200 anos, chegou à localidade uma mulher chamada Justina, que morava, com a irmã, nas matas. Eram escravas fugidas de uma fazenda do estado da Bahia. Em seguida, outros fugitivos começaram a chegar e a se instalar na região, em busca de lugar para plantar. Eis a origem do quilombo.


arquivo pessoal Valéria Vasconcelos

Práticas e saberes repassados entre gerações marcam o modo de vida das comunidades

A metodologia em que se pauta o grupo soma pesquisa e reflexão, histórias de vida e práxis, teias e interpretação de significados. O modelo implica ver a população estudada como sujeitos ativos do conhecimento de sua própria realidade – uma forma de pesquisa feita “com as pessoas, e não por elas”. Por sua vez, o ponto de partida e o horizonte dos pesquisadores ancoram-se na educação popular. Em outras palavras, procura-se, de modo coerente e de forma a respeitar a diversidade, a conceitualização organizadora das distintas dimensões da realidade.

Resultados Valéria Vasconcelos explica que, pelo fato de ter a educação popular como base, a pesquisa, além de envolver os atores a partir de suas demandas, apresenta resultados que emergem, principalmente, como aprendizados comuns. Ao refletir sobre sua própria posição, e ao se reconhecer como sujeitos históricos e políticos, os participantes passam a intervir mais assertivamente nessa realidade – ou “tomam seu destino nas mãos”, segundo palavras do educador Paulo Freire. Os resultados obtidos, explica a professora, devem ser encarados como conquista coletiva, e não como algo produzido externamente. Em certas localidades da Reserva Extrativista Arapixi, na Amazônia, por exemplo, as pessoas se mobilizaram e organizaram turmas de alfabetização de adultos. “Quando perguntados sobre essa ‘novidade’, uma

moradora me disse: ‘Vocês vieram aqui e botaram fogo’”, lembra a pesquisadora. A partir da realidade constatada nos estudos, Valéria defende que, quando pessoas sofrem cotidianamente com a opressão, faz-se necessário que sejam propostas práticas dialógicas pautadas em seu cotidiano e baseadas no respeito mútuo, na valorização e no compartilhamento de saberes e na busca contínua por formas mais dignas e humanas de viver. “Esses caminhos, seguramente, também conduzem à inclusão social, que se expressa na garantia de que os direitos humanos, básicos e universais, se concretizem”, afirma. A máxima se aplica, com maior ênfase, àqueles que possuem formas de vida tradicionais. Do projeto emergiram duas pesquisas de Iniciação Científica, que trataram a questão do ponto de vista dos aspectos ligados ao meio ambiente e à Pedagogia, além de dissertações de mestrado. Em todos os trabalhos, o referencial teórico remete à Educação Popular – que se pauta, segundo Paulo Freire, na responsabilidade ética de desvelar e superar situações de opressão. Valéria Vasconcelos também dá sequência aos estudos da temática. “Sigo no encalço de pesquisas que contribuam, efetivamente, para a busca de emancipação e de fortalecimento comunitário, assim como de formas mais justas e humanas de viver, ensinar e aprender”.

Projeto: Educação e cultura de populações tradicionais cantadas em verso e prosa Coordenadora: Valéria Oliveira de Vasconcelos Modalidade: Demanda Universal Valor: R$ 6.100,00

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No campo, educação e sabedoria Resgatar a cultura quilombola nos processos educativos destas populações, de modo a valorizar seus múltiplos conhecimentos e práticas sociais. Com tal objetivo, a professora Rosana Lacerda Monte Alto, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), desenvolveu seu projeto de mestrado, sob orientação de Valéria Vasconcelos. O estudo partiu da premissa de que a educação do campo tem conquistado espaço em debates e políticas educacionais brasileiras e não se concretiza sem reconhecer a existência do próprio ambiente, de sua realidade histórica e dos sujeitos que nele vivem. “A Educação do Campo busca manter e legitimar a identidade desses habitantes, além de valorizar os diferentes saberes já construídos, a partir de suas histórias de vida”, destaca Rosana. No trabalho em questão, a professora baseou-se nas experiências da comunidade quilombola Justa I, situada no município de Manga, ao Norte de Minas Gerais, para perceber como se constrói a educação informal nessa realidade e como a Educação do Campo dialoga com as práticas já constituídas. Uma das principais dificuldades encontradas no campo, neste contexto, refere-se à capacitação inadequada dos profissionais responsáveis pelo ensino, que desconhecem a realidade dos alunos. “É necessário considerar a vivência dessas pessoas e atrelar outros valores a ela, buscando traçar novas diretrizes para nortear o processo de ensino-aprendizagem e construir ações como cidadãos ativos e participativos”, detalha. Os resultados da pesquisa apontam para o Programa Nacional de Reforma Agrária (Pronera), que, no município, contribuiu para fortalecer a Educação do Campo, a partir da formação de profissionais capazes de desenvolver um ensino voltado ao diálogo e à construção própria do conhecimento das comunidades. “Os quilombolas, por sua vez, consideram ‘saber’ o conhecimento formal adquirido na escola, embasam seus valores no trabalho, na família e no território”, atesta a pesquisadora. E o processo educativo – formal ou não – mostra-se presente no cotidiano dos remanescentes quilombolas de Justa I, impresso em suas atividades. Em Manga, existem dez assentamentos do Pronera, assistidos pelo Incra. As atividades desenvolvidas – visitas, capacitações aos alfabetizadores das comunidades, seminários, oficinas, encontros com

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No Brasil, o direito universal à educação tem como principal referência a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Por sua vez, o decreto 6.040/2007 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCT), contemplando as especificidades para uma Educação do Campo. Também a Resolução nº 02, de 28 de abril de 2008, estabelece normas complementares para Políticas Públicas de atendimento à Educação Básica do Campo. monitores – têm o objetivo de assistir pedagogicamente, acompanhar e avaliar ações. A Unimontes atua em parceria com o programa, desenvolvendo três projetos na região do Norte de Minas Gerais, com turmas de Ensino Fundamental (Alfacampo), de Ensino Médio grau (Magicampo) e de Graduação (Educampo).

Vidas em história

As sete histórias de vida recolhidas para pesquisa observaram certos critérios: sujeitos com idade acima de 60 anos, residentes no campo de estudo, interessados em participar da pesquisa e auto-declarados remanescentes de quilombola. Ao longo das investigações, a professora comprovou a importância atribuída à preservação do modo de vida entre os idosos participantes, que procuram transmitir seus valores e vivências por meio da oralidade, não deixando que as tradições se percam no tempo. “Os antepassados sentem-se valorizados quando são ouvidos e contam suas histórias, trazendo boas e más recordações, justificando os comportamentos do cotidiano e reavivando os antigos costumes”, explica. Fotografias e filmagens feitas durante as visitas, bem como cedidas por entrevistados, ajudaram a compor a contextualização sobre Criado pelo Governo Federal, desenvolve atividades educacionais em assentamentos assistidos pelo Instituto Nacional de Colonização da Reforma Agrária (Incra), com vistas a elevar a escolaridade de jovens e adultos incluídos em projetos de assentamento.

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a vida dos participantes e da comunidade. Os sujeitos da pesquisa – remanescentes quilombolas – são reconhecidos como populações tradicionais, que vivem e lutam pela terra e pela preservação de seus direitos. A comunidade Justa I se organiza social, política e culturalmente, de modo a desenvolver ações coletivas, com grau de afetividade e de parentesco bastante presentes na vida dos moradores. Os grupos se identificam, a partir de uma noção de que “são dali mesmo”, “de uma mesma família”. As entrevistas permitiram caracterizar os participantes da pesquisa: quem são, como trabalham, como vivem, quais suas crenças, como se comunicam. Ficou evidenciado, ainda, que os laços afetivos revelam-se muito fortes entre eles, assim como grande importância é atribuída ao trabalho, à terra – como alicerce de suas vidas – e à religião, desenvolvida por meio de crenças e espiritualidades individuais. “Considerada por muitos como a única maneira de adquirir conhecimento, a escola não deve se distanciar da cultura das populações quilombolas, de suas tradições”, alerta Rosana, para quem a cultura ainda resiste no cotidiano destas populações. “Acredito na possibilidade de sobrevivência dos povos, com respeito aos costumes, à cultura do passado e aos valores ancestrais”, ressalta a pesquisadora, ao concluir que o que move a comunidade são elementos básicos do cotidiano: o trabalho, presente na vida de todos; a família, base e estrutura a uni-los por meio dos vínculos afetivos, e o território, lugar onde vivem desde que nasceram e que representa o passado, o presente e o futuro. Lamentavelmente, porém, os remanescentes quilombolas “aprenderam” que “são fracos”. “Trata-se de resquício do rótulo colonial, segundo o qual o ‘forte’ era o senhor das fazendas, seus filhos ‘estudados’, seus casarões e seu saber institucionalizado das escolas, que era (e ainda é) valorizado e reconhecido pelas elites, pelos intelectuais, pelo patrão, pela filha do senhor e pelo escravo, pelo remanescente quilombola de Justa I, no século XXI”, arremata Rosana. Segundo a pesquisadora, é necessário inverter o processo de aprendizagem, já que vários outros saberes e fazeres aparecem como aqueles fundantes da tradição desses povos.


Zootecnia

Do canto ao silêncio Expostos a sons provenientes da atividade mineradora, animais têm a saúde prejudicada e, por vezes, são obrigados a fugir de seu habitat Ana Luiza Gonçalves

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Eu e a bióloga Marina Duarte, mestre em Zoologia de Vertebrados, conversávamos, numa sala do Museu da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), sobre o projeto coordenado por ela – em parceria com Nilo Bazzoli, doutor em Biologia Celular –, quando fomos quase interrompidas por um barulho no céu. “Se esse avião estivesse mais próximo, poderia atrapalhar nossa conversa, pois sua passagem ocorreu ao mesmo tempo em que nossa comunicação. Se atrapalhasse, ocorreria o que chamamos de mascaramento. A mesma coisa acontece com os animais na natureza”, explicou a pesquisadora. Como se pode perceber, durante a entrevista para esta reportagem surgiria o exemplo ideal para que Marina pudesse iniciar a conversa sobre seu projeto de estudo, que busca gerar protolocos para sons produzidos por ações antropogênicas – provocadas por interferência humana – e que agridem áreas onde estão abrigadas diversas espécies da fauna. O referido mascaramento ocorre quando um som interfere no outro, dificultando a recepção e a decodificação sonora por “sujeitos” em processo de comunicação – no caso da pesquisa, os animais.

De acordo com o art. 3 da Lei Federal do Meio Ambiente 6.938/81, poluição é a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que, direta ou indiretamente, prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; afetem desfavoravelmente a biota e as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente e/ou lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos. Importante ressaltar, neste sentido, que também a energia provocada por ruídos, sons e/ou vibrações deve ser interpretada como agente poluidor. Neste cenário, os impactos causados pelo processo de extração e transporte de minérios são vistos como formas de poluição, por provocar ruídos e vibrações no ambiente. Para que uma mineradora seja implantada, a legislação exige a realização de um estudo. Embora se saiba que a carga sonora afete a comunicação entre os animais, quando se realizam medições, apenas a população humana – que vive próxima às áreas afetadas – é considerada “receptora”. Exclui-se, assim, o impacto dos sons sobre a fauna silvestre. Ou seja: não há especificações e valores acerca das

Marina Duarte

Song meter – ou “medidor de som” – instalado no bioma Cerrado

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Fundamental para o desenvolvimento econômico de um país, a mineração é conhecida por produzir altos índices de frequência sonora nas regiões onde é executada. Somam-se, a esse fato, atividades realizadas paralelamente, como tráfego de caminhões e abertura de estradas. Em Minas Gerais, a extração de minério de ferro é amplamente desenvolvida – especialmente, no Quadrilátero Ferrífero, região localizada no Centro-Sul do Estado, estendendo-se de Ouro Preto a Belo Horizonte, com, aproximadamente, sete mil quilômetros quadrados. Além de ser um dos principais locais de execução da atividade mineradora no mundo, com cerca de 70% do trabalho sendo ali desempenhado, a área também é prioritária à conservação da biodiversidade mineira.


ameaças ao bioma e às espécies moradoras dessas regiões.

Tétrade de discussões

A análise da interferência da poluição sonora na comunicação animal está sendo feita, desde agosto de 2012, no Quadrilátero Ferrífero. Trata-se de regiões marcadas pelas vegetações de Cerrado, Campos rupestres sobre canga e remanescentes de Mata Atlântica. Segundo os coordenadores, há quatro tipos de problemas a serem discutidos em tais áreas. Em primeiro lugar, está a preservação. Neste quesito, o projeto analisa o comportamento das espécies no que diz respeito a seus sistemas particulares de comunicação, que precisam se adaptar às exigências impostas pelo ambiente. Nessas regiões, é imprescindível caracterizar a paisagem acústica natural com base na representatividade e na importância da fauna, assim como da localização e da viabilidade. Para coletar os dados, foram escolhidas doze áreas, onde se instalaram três sensores, programados para gravar sons durante 24 horas, a uma frequência de, no mínimo, 20 kHz. As medições duraram 30 dias consecutivos. Em seguida, os sensores foram retirados para serem avaliados, e, 30 dias após as análises, os medidores foram reinstalados. A segunda discussão diz respeito ao impacto da mineração nesses ambientes. Os pesquisadores visam identificar como os sons produzidos provocam o mascaramento das vocalizações dos animais. Por meio dessa caracterização, verifica-se, em seguida, a sobreposição de espaços acústicos com a comunicação da fauna. A partir do estudo feito em paisagens naturais, chega-se aos resultados dos efeitos responsáveis por “agredir” a interação entre as espécies. O terceiro problema refere-se à maneira de medir o impacto sonoro. Com o estudo do mascaramento, previu-se o desenvolvimento de protocolos para avaliação de como o ruído antropogênico atingiria a paisagem acústica natural. Para tal, foram selecionadas quatro minas em produção dentro dessa mesma região. Por fim, como quarto item de discussão,

o projeto busca medir o alcance dos efeitos da mineração por meio de alto-falantes instalados nas mesmas áreas e, também, a abrangência do impacto em si. Terminadas as quatro vertentes de análise, o que se propõe é a criação de estratégias de mitigação dos impactos sobre a fauna. Conforme exemplifica Marina Duarte, o ruído de um caminhão dependerá tanto do peso e da quantidade de material carregada pelo veículo, quanto de sua natureza técnica, do modelo ao motor e à potência. Além disso, seria importante identificar o horário da “perturbação”, para, em seguida, pensar em soluções eficientes. “Se o maior número de caminhões trafega perto da mata entre 5h e 7h, sugeriremos mudança de horário, pois todos sabem que é de manhã que as aves cantam mais”, destaca a pesquisadora.

Da fuga à doença

Espécies de primatas, como guigó e mico-estrela, de aves – bem-te-vi, sabiá, tico-tico e pica-pau –, além da irara e do lobo-guará, animais difíceis de serem encontrados e gravados, interagem no Quadrilátero Ferrífero. O bem-estar das espécies expostas a esses estímulos é altamente prejudicado e as consequências vão do deslocamento para áreas que favorecem a sobrevivência a modificações no aparelho auditivo dos animais. Marina explica que as gravações realizadas nessas áreas, e depois analisadas em laboratório, revelam índices de grande complexidade acústica. Além disso, pode-se saber a região com maior intensidade de vocalização. “Estamos testando se as áreas próximas de mineração têm mais ou menos biofonia – os sons dos animais –, do que em áreas mais distantes de ruídos humanos. Desse modo, verificaremos quais espécies estão perto e longe dessas regiões para saber quais se adaptam à mineração e quais se deslocam”, explica a coordenadora do projeto. Doenças como hipertensão e estresse, ou enfermidades relacionadas ao coração e à respiração, tornam-se mais propícias a aparecer quando o animal está exposto a frequências e intensidades sonoras impactantes. Os sons também podem

alterar comportamentos associados à reprodução, à locomoção, à alimentação, à defesa e à saúde dos animais – atividades desenvolvidas por meio da comunicação acústica. A pesquisadora explica que o mascaramento das vocalizações ocorre quando o ruído é produzido na mesma frequência em que a comunicação da fauna. “Em áreas ruidosas, quando os filhotes vocalizam porque sentem fome e os pais não escutam, há entrega menor de quantidade de alimentos, o que pode até levá-los à morte”, ressalta. O dos ruídos, porém, varia de espécie para espécie, pois há diferenças na capacidade de recepção de sons: certos animais estão aptos a ouvir ultrassons, enquanto outros captam infrassons. Com o efeito do mascaramento, além de doenças, muitas espécies não poderão transmitir sinais de sobrevivência, relativos a situações de alarme, perigo, defesa de território e aproximação de predadores.

Projeto: Análise dos impactos potenciais do ruído proveniente de atividade mineradora e acessos viários sobre a comunicação acústica da fauna silvestre Modalidade: Chamada de propostas 01/2010 - FAPEMIG/Fapesp/Fapespa/ Vale S.A. Coordenador: Nilo Bazzoli Valor: R$ 1.623.125,97

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AGRICULTURA FAMILIAR

Mesa farta e saudável Pesquisadores da Ufop auxiliam agricultores familiares a vencer obstáculos para comercialização de seus produtos junto a instituições de ensino Ana Flávia de Oliveira

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Os pesquisadores encontraram vários impedimentos para a realização da negociação entre fornecedores e escolas. Dentre as mais frequentes, estão a organização dos agricultores em associações ou cooperativas, a determinação dos preços dos alimentos e a logística de entrega nas escolas. Outras dificuldades dizem respeito à obtenção de insumos e de financiamento, ao pouco conhecimento da lei e ao modo de lidar com o pagamento de impostos, além do desconhecimento das técnicas de plantio agroecológico ou orgânico.

As terras férteis da região central de Minas Gerais são, hoje, fontes de alimentos para mais de mais de dez mil estudantes locais. É que, em Congonhas e Ouro Branco, um programa de extensão, realizado por pesquisadores do curso de Nutrição da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), transmitiu know how e melhorou as condições de produtividade de cerca de 50 agricultores residentes nos dois municípios. Sob coordenação da professora Olívia Maria de Paula Alves Bezerra, professores e alunos da Ufop desenvolveram pesquisa – que contou com apoio da FAPEMIG – dividida em cinco etapas: na primeira, identificou-se o potencial de comercialização dos produtos da agricultura familiar para a alimentação escolar. Posteriormente, houve diagnóstico participativo das dificuldades enfrentadas pelos agricultores familiares para comercializar seus produtos junto ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). A fase seguinte consistiu na elaboração de uma cartilha contendo instruções

aos agricultores familiares. Na quarta etapa, promoveu-se visita técnica orientada a uma unidade de produção orgânica e agroecológica. Por último, ocorreu a consolidação das estratégias para superação das dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores do campo. O projeto buscou proporcionar qualidade de vida aos agricultores por meio da identificação das dificuldades enfrentadas para inserção de seus produtos na alimentação escolar. “Por isso, propusemos estratégias para a mudança deste cenário, a partir da organização dos agricultores familiares e de metodologias participativas”, esclarece Olívia Bezerra”, ao lembrar que, em panorama de mercado institucional seguro, representado pelas escolas públicas municipais, seria mais fácil que o agricultor familiar diversificasse e aumentasse a produção. “Desse modo, poderia atender às demandas das escolas, e, com isso, aumentar a renda e a qualidade de vida”. Economicamente, o trabalho mostrou-se bastante positivo, tanto para as escolas quanto para os fornecedores. Os Anelise Andrade

A cartilha foi elaborada com o objetivo de facilitar a compreensão do processo de compra dos gêneros alimentícios para o PNAE. O material contém o passo a passo do processo de compra e venda dos produtos da agricultura familiar para a alimentação escolar. Dessa forma, cada um dos envolvidos na ação conheceu seus direitos e deveres. A cartilha foi entregue a agricultores familiares e nutricionistas que participaram do projeto.

Os agricultores participaram de um dia de campo para aprender técnicas de manejo nas lavouras MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2013

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O projeto revelou-se financeiramente viável para agricultores e escolas

agricultores familiares produzem alimentos com a garantia de que os produtos serão vendidos às instituições de ensino pelo preço de mercado e com a garantia de pagamento – já que os recursos financeiros são repassados, aos municípios, pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), com a finalidade de adquirir gêneros alimentícios. Outro fator que contribui para a redução dos custos é a distância. Afinal, os valores que seriam pagos com fretes, transporte, embalagens e refrigeração foram eliminados. No fim das contas, as escolas ganham qualidade e o custo dos alimentos e os gastos com logística de abastecimento são bem menores. O índice de perda de produtos também cai, em virtude da redução do tempo de estocagem e fornecimento. “Além disso, o uso de alimentos produzidos localmente, de forma agroecológica – respeitando os hábitos alimentares e a cultura da região –, fazem com que os alunos se habituem a ingerir alimentação saudável”, destaca a coordenadora da iniciativa.

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Merenda reforçada De acordo com o PNAE, todos os estudantes matriculados na rede pública para a educação básica têm direito a alimentação na escola. Por isso, foram beneficiados desde alunos do ensino fundamental até participantes dos programas de Educação para Jovens e Adultos (EJA). Todos os matriculados na rede pública municipal de Ouro Branco (20 instituições e 4.790 alunos) e de Congonhas (29 escolas e mais de 7 mil estudantes) tiveram acesso aos alimentos produzidos pelos agricultores familiares. O trabalho foi executado com a preocupação de manter as quantidades nutricionais necessárias, considerando alimentos regionais. A agricultura familiar dos dois municípios é capaz de fornecer, em quantidade e regularidade, os produtos necessários, com melhor qualidade nutricional – posto que produzidos sem agrotóxicos, aproveitando-se a safra e respeitando-se a cultura alimentar local – e, por fim, com menor custo.

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Projeto: Ações para inserção dos produtos da agricultura familiar na alimentação escolar Coordenadora: Olívia Maria de Paula Alves Bezerra Modalidade: Apoio a projetos de extensão em interface com a pesquisa Valor: R$ 24.360,00


IMUNOLOGIA

Bactérias pró-saúde Pesquisadores comprovam ação de probióticos no combate a doenças degenerativas e inflamatórias Virgínia Fonseca*

*Colaborou Vanessa Fagundes MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2013

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Sabe-se que o intestino humano divide-se em duas porções: delgado e grosso. Responsável por etapas importantes do processo digestivo, a primeira parte mede cerca de quatro metros de comprimento e se acomoda, enovelada, no abdômen. Já o intestino grosso, que mede mais ou menos um metro e meio, processa, especialmente, a absorção da água e do sódio. Na totalidade, são quase seis metros de comprimento, que fazem do órgão um dos maiores do corpo humano. E, também, o local onde temos o maior número de bactérias. Nessa microbiota, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) prospectam a chave para o tratamento de doenças inflamatórias crônicas. Atualmente, as enfermidades mais prevalentes no mundo são aquelas de origem inflamatória crônica, que abrangem tanto alergias quanto doenças autoimunes (veja box abaixo) e degenerativas, explica a coordenadora do estudo, professora Ana Maria Caetano Faria, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB/UFMG). Os países em desenvolvimento, especialmente, têm apresentado aumento nas ocorrências – descrito, pela pesquisadora, como “preocupante”. O rol inclui diabetes tipo 1, esclerose múltipla, doença de Crohn, colite, aterosclerose, asma, entre outras, que se tornaram grande causa de morbidade em nações como Brasil, China e Índia. As opções terapêuticas atuais, focadas em imunossupressores e imuno-

terapia, são restritas e provocam sérios efeitos colaterais. Já em casos como a aterosclerose e a obesidade, adotam-se as restrições dietéticas. Nas doenças em questão, a necessidade de lidar com o problema da inflamação mostra-se crucial. “O fato é que não podemos prescindir da inflamação, pois ela é importante em aspectos como cicatrização, embriogênese e proteção anti-infecciosa. Precisamos da reatividade imunológica inflamatória”, explica Ana Faria. Porém, se a inflamação torna-se crônico e persistente, leva a dano tecidual. O grupo de pesquisadores aposta no pressuposto de que, para lidar com o fenômeno da infecção, o melhor caminho é estudar o que o corpo já faz. Inflamações consideradas benéficas, como as mencionadas anteriormente, são reguladas pelo organismo – a morbidade da doença reside na falta de imunorregulação. “Como pesquisadores da área, nossa meta é aprender com a natureza e ver as formas de resgatar a regulação perdida nos casos crônicos”, Os imunossupressores são substâncias que reduzem as reações imunológicas do organismo de forma global. Já as terapias imunorreguladoras são formas de se gerar células reguladoras específicas para determinados antígenos.

Inimigo íntimo Enfermidades autoimunes são causadas por distúrbios na tolerância imunológica aos autocomponentes. A esclerose múltipla (MS) é uma das que tem apresentando grande incidência no Brasil: recente estimativa dos registros em São Paulo e Belo Horizonte supera o número absoluto de vários países europeus. Trata-se de doença autoimune inflamatória desmielinizante do sistema nervoso central (SNC), que possui, como alvos, os neurônios. Em função de as células não se regenerarem, ocorrem perdas permanentes às funções neurológicas. Na esclerose múltipla, a ação inflamatória de linfócitos T auto-reativos incide contra a bainha de mielina – camada de proteína e lipídeos que envolve as células nervosas e atua como isolamento elétrico, de forma a aumentar a velocidade de propagação do impulso ao longo dos axônios. Atualmente, o tratamento restringe-se ao uso de imunossupressores que, além do alto custo, apresentam efeitos colaterais graves. Certos agentes imunomoduladores têm sido testados, embora sem eficácia nas formas graves. Outro problema no tratamento é a impossibilidade de se administrar essa última terapia em situações como gestação, lactação, depressão, insuficiência cardíaca e hepática.

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diz Ana Faria. O estudo investiga, então, o uso de probiótico já existente na natureza – o Lactococcus lactis – modificado para a produção de proteína de choque térmico HSP65 (que é similar àquelas produzidas pelo nosso organismo) como alternativa complementar, com a vantagem de não apresentar efeitos colaterais. “Probióticos são organismos vivos, como bactérias, leveduras e fungos, que têm efeito benéfico à saúde do hospedeiro”, esclarece. Intitulado “Administração oral de probiótico como alternativa terapêutica imunomoduladora para a esclerose múltipla experimental”, o projeto conta com apoio da FAPEMIG.

Conexão segura Quando os cientistas iniciaram os estudos acerca de agentes capazes de auxiliar no processo escolhido, os holofotes voltaram-se ao intestino, sítio privilegiado para gerar células reguladoras da inflamação. Com o maior tecido linfoide do corpo, o órgão concentra mais linfócitos do que todos os demais juntos. Dessas células, 80% estão ativadas, o que transforma a atividade imunológica local num frenesi, produzindo, continuamente, anticorpos e citocinas – substâncias secretadas por células do sistema imune. Diariamente, o homem lida com os antígenos que chegam da dieta e com uma microbiota imensa, já que a quantidade de bactérias presentes no intestino supera, em número, as células eucariotas do corpo. Mesmo com todo esse estímulo, existe um mecanismo muito potente de imunorregulação, que mantém a homeostase, ou equilíbrio intestinal, de forma a permitir que o ambiente esteja repleto de células inflamatórias, mas sem causar dano. “Usamos esse local privilegiado para tentar resgatar a imunorregulação perdida nos modelos experimentais e nos pacientes que têm doenças inflamatórias crônicas”, adianta a coordenadora. A partir disso, a equipe focou em modelos de doenças autoimunes “clássicas”, como esclerose múltipla, diabetes e artrite, além de algumas enfermidades degenerativas crônicas, a exemplo da aterosclerose, da obesidade, da doença de Chron e da colite

ulcerativa. Em todas, os cientistas testam a mesma alternativa, por acreditar que se agrupam no mesmo problema imunológico: regular a inflamação excessiva e persistente. “Temos experimentos com dietas de efeito antiinflamatório e com os probióticos”, detalha Ana Faria. Com base no conhecimento de que algumas bactérias comensais ajudam no metabolismo e produzem, inclusive, fatores anti-inflamatórios no intestino, o grupo selecionou, como agente da pesquisa, a bactéria Lactococcus lactis. O microrganismo não integra, naturalmente, a microbiota humana, mas é velho conhecido da indústria alimentícia, comprovadamente não patogênico, usado na fabricação de queijos e iogurtes. De acordo com a cepa e a espécie, os probióticos podem também produzir naturalmente substâncias mediadoras anti-inflamatórias. “Trabalhamos com alguns que secretam ácido fólico, com bons resultados na regeneração da mucosa”, exemplifica. A professora diz ter constatado efeitos profundos de estímulo de produção de células reguladoras. “Não se imaginava que tal bactéria pudesse interferir no metabolismo e na ativação de células do intestino”, revela. Outra descoberta relaciona-se ao fenômeno chamado, pelos pesquisadores, de tolerância oral. Diz respeito à capacidade do intestino de, uma vez em contato com algum antígeno, gerar, para essa substância, células reguladoras. “A ativação funciona da seguinte forma: ao invés de produzir uma resposta imune inflamatória, como faria na vacinação, com os antígenos da dieta e da microbiota, provocamos uma resposta anti-inflamatória Hoje, sabe-se que a obesidade é uma doença metabólica e inflamatória. Além de acumular gordura, o adipócito produz citocinas capazes de ativar e recrutar células do sistema imune. Assim, o tecido adiposo do paciente obeso não apenas cresce, como também está infiltrado de células inflamatórias. MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2013

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Tais proteínas desempenham papeis essenciais nas células. São bastante comuns e conservadas na natureza.

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reguladora”, explana. O processo mantém a homeostase daquele sistema. Os estudiosos pressupõem que, nas doenças autoimunes clássicas, os pacientes têm um déficit de geração de células T reguladoras para alguns antígenos que são alvo da destruição imunológica na respectiva enfermidade. É o caso da esclerose múltipla, em que o alvo do ataque imune é a bainha de mielina. Se o doente tem déficit nas células responsáveis por regular esse tipo de reatividade inflamatória, que seriam, normalmente, produzidas no timo, a proposta é administrar os antígenos via oral, para estimular a geração das células reguladoras pelo intestino. O probiótico seria ministrado como medicamento, já que os pesquisadores mostram preferência por essa opção, ao invés de, por exemplo, incorporá-lo na dieta. Outras pesquisas já foram feitas usando a estratégia de induzir a tolerância por via oral, com os antígenos alvo da doença imune. A novidade na pesquisa conduzida na UFMG consiste na escolha de um antígeno que poderia servir para todas as doenças inflamatórias crônicas, além de poder ser ministrado oralmente. Trata-se da proteína de choque térmico 65, chamada de Hsp65. “Para se ter uma ideia, a Hsp65 é proveniente de uma micobactéria e tem analogia de 75% a Hsp60 humana”, compara Ana Faria. A pesquisadora explica que, na inflamação, por serem proteínas de estresse, elas estão presentes em grande quantidade. “Era o que procurávamos: o antígeno alvo presente em todas as doenças inflamatórias crônicas”, conclui. Para viabilizar os trabalhos, a bactéria capaz de produzir a proteína é produzida no Departamento de Biologia Geral, por meio de parceria com os professores Anderson Miyoshi e Vasco Azevedo. Eles criaram recombinante de Lactococcus latis, capaz de secretar o Hsp65. “É uma bactéria segura. Dessa forma, podemos ministrá-la, como fizemos nos testes com camundongos, já que ela não coloniza o intestino. Se quisermos interromper o tratamento, entre 24h ou 48h, ela não estará mais lá”, detalha a pesquisadora. Uma vez no intestino, o Lactococcus secreta a proteína, gerando imunorregulação, que se reflete nas doenças inflamatórias crônicas.

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Os primeiros testes, em modelos animais com esclerose múltipla induzida, foram um sucesso. “Conseguimos produzir células T reguladoras, que aumentavam muito no camundongo tratado e impediam a migração das células inflamatórias para a medula espinhal, de modo a prevenir completamente a doença”, relata Ana Faria. Agora, o grupo estuda o emprego da mesma terapia em casos nos quais a enfermidade já tenha se manifestado – com resultados iniciais promissores. Na sequência, serão necessários novos processos, com produto, de mesmo perfil, que possa ser testado em humanos. Ana Faria espera passar, em breve, da fase experimental aos estudos clínicos. “Entramos com pedido de patente, via UFMG. Estamos em contato com potenciais parceiros na Faculdade de Medicina e temos até empresa interessada”, adianta. Para chegar aos resultados atuais, foram necessárias colaborações multidisciplinares. Além do Laboratório de Imunologia, coordenado por Ana Faria, e dos pesquisadores do Departamento de Biologia Geral, existe a parceria com o professor Sérgio Costa Oliveira, do Departamento de Bioquímica e Imunologia, e da professora Ana Lucia Brunialti Godard, do Departamento de Biologia Geral, e da professora Denise Carmona, do Departamento de Morfologia. Também estão envolvidos alunos de mestrado e de doutorado, responsáveis por testar diferentes modelos.

Projeto: Estratégias alternativas de imuno-modulação das doenças inflamatórias crônicas Coordenador: Ana Maria Caetano Faria Edital: Programa Núcleos de Excelência (Pronex) Valor: 490.000,00 Projeto: Administração oral de probiótico como alternativa terapêutica imuno-moduladora para a esclerose múltipla experimental Coordenador: Ana Maria Caetano de Faria Modalidade: Bolsa de Pós-Doutorado Valor: R$ 45.360,00


FISIOTERAPIA

Vida longa aos joelhos Estudo avalia possíveis efeitos do método Pilates para tratamento da osteoartrose numa das partes do corpo mais comprometidas pela descarga de peso

Ana Luiza Gonçalves

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Atividades físicas são grandes aliadas da saúde. Algumas podem, até mesmo, mudar a maneira como enxergamos a exaustiva e obrigatória rotina de exercícios. Um desses exemplos é o pilates, prática idealizada pelo alemão Joseph Hubertus Pilates (1883-1967), durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O método se popularizou na década de 1990 e trabalha com técnica capaz de proporcionar benefícios à saúde física e mental. Exercícios melhoram a respiração, diminuem o estresse, desenvolvem o equilíbrio corporal, corrigem a postura e realinham a musculatura, além de ajudar no tratamento de lesões. Quanto ao Pilates, a técnica é capaz de promover efeitos positivos, aliviando a dor e estimulando a diminuição da quantidade de medicamentos. Mas o que dizer da atividade criada por Joseph Hubertus no tratamento de problemas nas articulações, que atingem grande número de adultos e idosos e acarretam dores constantes, incapacidade funcional e queda na qualidade de vida dos portadores? Um dos casos em que o método apresenta benefícios é o da osteoartrose, doença degenerativa, de caráter progressivo, responsável por modificar não apenas a saúde, mas, também, a vida social do indivíduo. Além disso, a enfermidade conta duas classificações: na primária, a causa da lesão é desconhecida e ocorre de acordo com o avanço da idade e a sobrecarga exercida nas articulações. Na secundária, o fator inicial é identificado. Trata-se de infecções ou traumatismos articulares, doenças inflamatórias ou hemorrágicas, entre outros problemas. A afecção pode acometer várias partes do corpo, inclusive o joelho, a articulação com descarga de peso mais comprometida. Considerado deficiência de mobilidade, o distúrbio atinge em torno de 85% da população até 64 anos, sendo que, aos 85, é universal e pode afetar as atividades cotidianas de quem tem a doença. Apesar dos possíveis benefícios do Pilates, não existe, ainda, qualquer evidência científica em relação aos efeitos da técnica. O projeto “Tratamento da os-

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teoartrose de joelho pelo método pilates”, das pesquisadoras Marilene Mendes dos Santos e Marina Aparecida Gonçalves Pereira, da Pontícia Universidade Católica de Poços de Caldas, partiu da necessidade de se investigar a aplicabilidade do método na população que se encontra em processo de envelhecimento. O objetivo é verificar a efetividade do Pilates no tratamento da dor, assim como no desenvolvimento da capacidade funcional e do equilíbrio e no aumento da qualidade de vida. O estudo tem o desafio de inserir o método na comunidade e estabelecer parceria entre o sistema de saúde local e a universidade, para que o paciente seja encaminhado, com mais facilidade, ao serviço de Fisioterapia, e direcionado ao projeto.

Etapas O projeto é um ensaio clínico, no qual os participantes selecionados serão divididos em dois grupos: o primeiro destina-se a pacientes que farão 20 sessões, duas vezes por semana, do método Pilates. O segundo inclui participantes que não receberão intervenção. Ao todo, nove desfechos são avaliados: dor, capacidade funcional, qualidade de vida, rigidez articular matinal, amplitude de movimento, equilíbrio, presença de edema, trofismo muscular, flexibilidade muscular, ingestão de medicação para dor. Juntamente às pesquisadoras, três alunos voluntários e um bolsista avaliam os pacientes em três momentos: antes, após e três meses depois do término do tratamento. Marilene Santos diz que ainda não é possível avaliar os resultados, já que o projeto teve início em agosto de 2013. Os pacientes em atendimento, contudo, já apresentaram relatos e expectativas de melhoria. “Acreditávamos que poderia ser possível um resultado em termos de alívio da dor e melhoria da função, mas não pensávamos que seriam descritos, pelos pacientes, após a realização de poucas sessões”, conta. Com o processo de envelhecimento e o aumento da expectativa de vida, muitos

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idosos têm buscado clínicas e academias para praticar a atividade, sem conhecer o estado geral de saúde ou identificar a presença de doenças. Pesquisar essa intervenção é uma necessidade para sua aplicação adequada e segura. Se comparado à fisioterapia, o Pilates tem equipamentos e maneiras diferenciadas de realizar as atividades para o tratamento de osteoartrose. As duas formas de intervenção, contudo, podem ser complementares. O método se apresenta como um exercício terapêutico e busca a redução da dor, da rigidez e da flexibilidade, além da diminuição da incapacidade funcional, enquanto a Fisioterapia usa outras modalidades terapêuticas, como laser, ultrassom, ondas curtas, massoterapia e terapia manual. Marilene Santos alerta, ainda, que é importante aos profissionais de Pilates – seja no processo de prevenção ou reabilitação – ter formação especializada, para que os princípios do método propostos pelo criador sejam respeitados. “Fatores como concentração, controle, centragem, respiração diafragmática, leveza e precisão, entre outros, são os princípios a diferenciar o Pilates de outras formas de intervenção. Daí a importância de estudos para investigar seus efeitos”, conta.

Projeto: Tratamento da osteoartrose de joelho pelo método Pilates Modalidade: Demanda Universal Coordenador: Marilene Mendes dos Santos Valor: R$ 49.644


LEMBRA DESSA?

Super herói por acaso Pesquisadores da Ufla e da Epamig investigam ação de fungo que, de modo imprevisto, combate microrganismos nocivos ao café William Ferraz Saboroso e famoso – em função de sua eficácia como estimulante natural –, o café caiu no gosto de milhões de pessoas, a ponto de se tornar uma das bebidas mais consumidas em todo o mundo. Neste ponto, curioso ressaltar que não apenas os humanos a apreciam: o fruto do cafeeiro também é alvo de diversas espécies de microrganismos, que o atacam e prejudicam a formação e a qualidade dos grãos. Tal realidade, entretanto, está em vias de mudança, devido, em grande parte, à descoberta do Claridosporium claridospoides, fungo ao qual estão atribuídas bebidas de boa qualidade. A espécie foi encontrada em 1989, durante investigações realizadas, conjuntamente, por pesquisadores da Universidade Federal de Lavras (Ufla) e da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), que buscavam compreender a influência de microrganismos sobre a qualidade do café. Sob coordenação de Sara Maria Chalfoun, doutora em Fitotecnia e ligada à Epamig, a equipe detectou que poderia explorar as propriedades do C. claridospoides como agente antagonista aos fungos deletérios à qualidade da planta. “Percebemos que o Claridosporium apresentava ação antibiótica em favor dos frutos, uma vez que ele hiperparasita os demais microrganismos que atacam o carpo e o danificam, comprometendo a formação e a qualidade dos grãos”, explica a coordenadora. Foi o início de um trabalho revolucionário para a indústria cafeeira, abordado em reportagem da edição nº 39 de MINAS FAZ CIÊNCIA.

Os pesquisadores desenvolveram métodos para isolar o fungo, que, cultivado em laboratório, seria adaptado para aplicação em plantações de café, em forma de biodefensivo. Devidamente patenteado, o produto está em processo de registro comercial, mas já encontra terreno para aplicações, em regime de teste, nas lavouras de todo o Estado. “O produto consiste de uma suspensão concentrada do fungo, purificado e multiplicado, inoculada em água e agregada à substância que confere aderência ao produto”, explica Chalfoun. O produto não recebe aditivos químicos em sua composição. De acordo com a pesquisadora, além de melhor paladar, o café cultivado com o bioprotetor, em lugar de fitossanitários, adquire características mais saudáveis. “O fungo não produz toxinas, nem deixa vestígios de substâncias nocivas. Ademais, o Claridosporium só atua durante o período de frutificação. Na secagem dos grãos, o fungo é completamente eliminado”. Outra vantagem é a proteção do grão nessa fase, período em que não se recomenda a aplicação de defensivos, devido ao risco de absorção. O grupo se dedica, ainda, a estudos que visam a adequação ambiental para melhor acomodar o fungo e possibilitar sua reprodução natural.

Linhas de pesquisa A base de conhecimento adquirida pela equipe ramificou-se em diversas outras pesquisas de natureza similar. Um desses produtos busca inibir a formação

de mucilagem, substância gelatinosa que se forma no invólucro do grão e favorece a fermentação. “O produto é composto por enzimas fúngicas capazes de metabolizar a pectina, maior componente da substância”, esclarece Sara Chalfoun. Outro produto em fase de desenvolvimento é o bioinseticida. Seu alvo é a broca-do-café, uma das piores vilãs da indústria cafeeira no Brasil, para a qual ainda não existem defensivos em circulação no mercado. A pesquisa em andamento visa a seleção de organismos com potencial para produção de quitinase, metabólico apto a degradar a quitina, principal componente do exoesqueleto da espécie. Além destes produtos, a equipe trabalha no desenvolvimento de um solubilizador de fosfato, substância indispensável ao bom funcionamento do metabolismo vegetal. “Geralmente, o fosfato é abundante no solo onde o café é cultivado, mas, em estado sólido, revela-se impróprio à absorção pela planta. Nosso produto atua no sentido de torná-lo disponível para o cafeeiro”, afirma a pesquisadora. Os mais recentes estudos tratam do desenvolvimento de biofiltros, que, com incorporação de determinados fungos emissores de cargas voltaicas, promovem a retenção de resíduos metálicos encontrados na composição de fitossanitários e que podem contaminar as lavouras. “Atualmente, safras do café sofrem significativas reduções mediante a detecção de resíduos metálicos nos grãos, que devem ser descartados”, completa.

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5 PERGUNTAS PARA...

Sidarta Tollendal Gomes Ribeiro Dedicado, especialmente, à investigação dos mecanismos moleculares, celulares e psicológicos responsáveis pelo papel cognitivo do sono – assim como ao estudo da comunicação vocal e da competência simbólica em animais –, o neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Em 2005, após se destacar como pesquisador nos Estados Unidos, ajudou a fundar o Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, instituição vinculada à UFRN e da qual tornou-se o primeiro diretor. Em 2011, colaborou, na mesma Universidade, com a criação do Instituto do Cérebro, por ele dirigido atualmente. Em setembro, com apoio da FAPEMIG, Sidarta esteve em Belo Horizonte para participar da 3ª Semana Internacional de Neurociências da Universidade Federal de Minas Gerais e do 37º Congresso da Sociedade Brasileira de Neurociências.

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Marcus Vinicius dos Santos

O senhor diria que as neurociências sejam uma ponte para fazer avançar a educação? Certamente! Neurociências e Educação são disciplinas que se comunicam através da psicologia cognitiva. Existe crescente interesse nessa interface, pois a desigualdade educacional do planeta é um tema urgente. As neurociências têm muito a contribuir, por exemplo, no que diz respeito à identificação precoce de déficits perceptuais, motores e cognitivos que possam ser remediados por intervenções pedagógicas ou psicológicas. Contribuem bastante, ainda, com a investigação das condições fisiológicas necessárias ao aprendizado, como sono, nutrição e exercícios físicos. Para se ter uma ideia, distúrbios de sono são muito comuns em doenças psiquiátricas ou neurodegenerativas, o que inclui Parkinsonismo, TDAH, epilepsia, Alzheimer, dentre outras enfermidades.

Tenho participado do debate público sobre legalização e regulamentação de todas as drogas por entender que o “proibicionismo” desprotege tanto os usuários não-problemáticos como os abusadores que necessitam de suporte médico e psicoterápico.

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Enquanto dormimos, nosso organismo trabalha numa espécie de manutenção geral e na organização da memória? A última década assistiu a aumento expressivo da produção científica dedicada à relação entre sono e aprendizado. Hoje, sabemos que o sono favorece a consolidação, a propagação e a reestruturação de memórias, propiciando geração de insights e

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esquecimento seletivo. Muito recentemente, descobriu-se que não apenas o sono, mas também o sonho favorece o aprendizado. Há poucos meses, foi publicado um estudo que apresenta a primeira demonstração de que é possível decodificar o conteúdo onírico apenas com base no sinal neural obtido por ressonância magnética funcional. O estudo da relação entre sono, sonho e aprendizado nunca foi tão promissor.

Existe relação conhecida entre os resultados das pesquisas de sua área e a teoria de Sigmund Freud? Bastante, sobretudo no que se refere ao conceito freudiano de resto diurno e ao papel da emoção na codificação e na consolidação de traços de memória. Outras áreas da Neurociência também têm encontrado pontos de contato com a Psicanálise, como a descoberta de mecanismos cerebrais envolvidos na supressão de memórias. Tem ficado cada vez mais claro que a obra de Freud constitui fértil programa de pesquisa para as neurociências do século XXI.

O abuso de drogas tem alguma relação com todo esse processo? É preciso distinguir uso de abuso. O uso de drogas é intrínseco a todas as culturas humanas. O abuso decorre de propensões genéticas, bem como do contexto social.

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O senhor integrou um grande centro de pesquisa dos Estados Unidos e, há 8 anos, está de volta ao Brasil. Numa comparação entre as duas culturas, o que dizer dos campos da ética e da colaboração científica? Alguma sugestão para os pesquisadores nacionais? Vivi 11 anos nos EUA e trabalhei em duas instituições de ponta em pesquisa científica [Rockefeller University e Duke University]. Os Estados Unidos são o epicentro da ciência mundial, que hoje se caracteriza pelo avanço acelerado do conhecimento e das técnicas experimentais, por muitas colaborações internacionais, pelo papel cada vez mais decisivo da indústria e pela competição exacerbada, que, por vezes, chega a ser prejudicial à verdade científica e à formação de recursos humanos. Acredito que os pesquisadores brasileiros precisam focar menos na quantidade e mais na qualidade da produção científica, almejando maior inserção na competição científica de alto nível, e, ao mesmo tempo, cuidando para não perder a bússola moral.


Define-se saúde como uma medida da capacidade de realização de aspirações e da satisfação das necessidades, e não simplesmente como a ausência de doenças. A maioria dos idosos apresenta doenças ou disfunções orgânicas que, na maioria das vezes, não estão associadas à limitação das atividades ou à restrição da participação social. [...] O foco da saúde está estritamente relacionado à funcionalidade global do indivíduo, definida como a capacidade de gerir a própria vida ou cuidar de si mesmo.

A neuropsicologia é um campo do conhecimento que busca estabelecer as relações entre o cérebro e o comportamento humano. Malloy, Fuentes e Cosenza, professores universitários e referências nacionais no assunto, organizaram, nas cinco partes deste livro, uma espécie de guia multidisciplinar das bases para a melhor compreensão das alterações mais comuns no processo do envelhecer: “Aspectos do envelhecimento”, “Funções cognitivas nos idosos”, “Avaliação multidimensional em idosos”, “Estimulação cognitiva e plasticidade cerebral” e “Envelhecimento saudável”. Com apoio da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia, a obra conta com a colaboração de 43 profissionais, de variadas formações, instituições e regiões do

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É claro que vamos ter de encarar aqui algumas velhas divergências sobre a própria existência de algo como uma verdade moral: as pessoas que extraem da religião sua visão de mundo geralmente acreditam que verdades morais existam, mas só porque Deus as coseu no próprio tecido da realidade; as pessoas que não partilham dessa fé tendem a achar que as noções de ‘bem’ e ‘mal’ devem ser produtos de pressão evolutiva e intervenção cultural. No primeiro caso, falar de ‘verdade moral’ significa, necessariamente, invocar Deus; no segundo, trata-se apenas de dar voz a nossos instintos primatas, nossos vieses culturais e nossa confusão filosófica.

bom envelhecer Brasil, ativos no ensino e na pesquisa dessa área. O livro apresenta, ainda – em texto complementar –, uma metodologia de estudo de caso, com delineamento estatístico, que permite comparar o desempenho de uma pessoa com grupos de controle. Tal procedimento dirige-se a profissionais envolvidos com avaliação de idosos.

Livro: Neuropsicologia do envelhecimento: uma abordagem multidimensional organizadores: Leandro F. Malloy-Diniz; Daniel Fuentes; Ramon M. Cosenza Editora: Artmed Páginas: 456 Ano: 2013

razões da moral

Certas obras revelam-se polêmicas devido à profusão de verdades absolutas (leia-se: “máximas construídas sob a luz da retórica”) acerca da vida, do tempo, dos homens. Bem diferentes são as publicações cuja capacidade de polemizar nasce do talento do autor em retirar os leitores de suas muitas zonas de conforto. Com bastante facilidade, é possível enquadrar, nesta (fértil) categoria, este importante livro de Sam Harris, filósofo norte-americano com doutorado em Neurociência. Por meio de escrita provocante, saborosa e informativa, o crítico – hoje um dos principais expoentes do chamado “Novo Ateísmo” – recorre à ciência para revelar o quanto há de “cerebral” nas ações morais do homem. No livro, o autor busca demolir, com o auxílio de exemplos

os mais diversos, os muros a distanciar fatos científicos de valores humanos. No que tange às entidades metafísicas, deseja mostrar o quão desnecessário seria a presença de um “deus” a traçar definições sobre, por exemplo, o “bem” e o “mal”.

Livro: A paisagem moral: como a ciência pode determinar os valores humanos Autores: Sam Harris tradução: Claudio Angelo Editora: Companhia das Letras Título original: The moral landscape: how science can determine human values Páginas: 154 Ano: 2013

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LEITURAS

Em nome do


HI P ER LI N K

ciência NO AR

Peludos sob controle No Brasil, 48 milhões de cães e gatos circulam em residências, ruas e telhados. De acordo com informações de instituições veterinárias, trata-se da segunda maior população do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Tal realidade, contudo, nem sempre é animadora. Grande parte desses animais encontra-se em situação de abandono. Além disso, de acordo com pesquisadores de saúde e comportamento animal, muitos deles já tiveram um lar, e acabam nas ruas por crescer demais, gerar despesas ou, de algum modo, incomodar os donos. Com o propósito de reverter esse quadro, pesquisadores da escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) criaram o projeto de exten-

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são Ação Global Homem Animal (Agha). Grande parte do trabalho se concentra na esterilização dos animais e na conscientização e orientação dos proprietários quanto aos cuidados necessários para com seus bichos de estimação. O programa Ciência no Ar mostra um pouco do trabalho realizado pela equipe, por meio de bate-papo com a professora Daniela Ferreira, uma das responsáveis pelo projeto.

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Rotina e obrigações sobrecarregam nossa mente. Em consequência, as células cerebrais se agitam, gerando toxinas que se acumulam no órgão. Durante o sono é que as células nervosas relaxam, diminuem o volume e abrem espaço para que as impurezas sejam varridas para fora. A constatação foi verificada após experimento feito com roedores, no laboratório de cientistas da Universidade de Rochester, nos EUA, que mostrou que o sono é essencial para essa limpeza. Acumular detritos faz parte do funcionamento normal do cérebro. Porém, à medida que aumentam, os neurônios passam a não funcionar corretamente. Em algum momento do dia, essas substâncias precisam ser eliminadas. Quer saber como isso acontece? Leia mais no blog do projeto Minas faz Ciência: http://fapemig.wordpress.com

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Ondas da ciência

Dos astros ao podcast Constelações, estrelas, planetas e demais corpos celestes: o que os diferencia? Debates sobre o cosmos levam muitos a recordar um trecho do longa-metragem O rei leão, lançado, em 1994, pela Walt Disney Pictures. Durante a animação, Timão, um suricato metido a esperto, descreve, cheio de razão, o que são estrelas. De seu ponto de vista, trata-se de “vagalumes que ficaram grudados naquela coisa azul escura, lá em cima”. Mas e os astrônomos, o que dizem a respeito? Esta explicação você encontra, no programa Ondas da Ciência, ao ouvir a entrevista com o físico Leonardo Marques Soares, especialista em Astronomia e doutoran-

Antidepressivos em estrofes? Estudos conduzidos por especialistas em Ciência, Psicologia e Literatura da Universidade de Liverpool indicam que a poesia pode ser mais eficaz do que livros de autoajuda, pois estimula a mente. Cerca de 30 voluntários tiveram a atividade cerebral monitorada ao lerem trechos de clássicos literários. Em seguida, traduziram-se as mesmas passagens a uma linguagem familiar. Os voluntários, então, foram desafiados à leitura de obras de autores renomados, como Henry Vaughan, John Donne, Elizabeth Barrett Browning e Philip Larkin. Durante os testes, os pesquisadores concluíram que a parte do cérebro observada dispara quando o leitor se depara com expressões e palavras incomuns e frases com entendimento mais complexo, fato que não se percebe quando o trecho lido está num vocabulário mais acessível.

do em Educação, além de coordenador do Núcleo de Astronomia do Espaço do Conhecimento UFMG. Além de definições acerca dos objetos celestes, o programa aborda um tema bem peculiar: a influência das raízes culturais na forma como interpretamos o espaço. Não perca esta conversa!

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Versos que curam

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A abelha Eulaema nigrita – espécie identificada pelo pesquisador Rafael Martins, do Laboratório de Biodiversidade da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) – é fotografada no momento em que extrai néctar de uma flor de ipê amarelo, com a probóscide (língua) ainda para fora. A cena foi registrada durante expedição ao Parque Nacional Chapada dos Veadeiros, no município de Alto Paraíso de Goiás (GO) pela bióloga Érica Munhoz.

VARAL

Érica Munhoz


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