Imaginário de Porto Alegre

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IMAGINÁRIO DE PORTO ALEGRE Faculdade de Comunicação Social/PUCRS


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EDITORIAL Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Reitor Joaquim Clotet Vice-reitor Evilázio Teixeira Pró-reitora de Graduação Solange Medina Ketzer Faculdade de Comunicação Social (Famecos) Diretora Mágda Cunha Coord. do curso de Jornalismo Vitor Necchi Projeto Experimental em Jornal (noite) Professor orientador Vitor Necchi Alunos Projeto Gráfico Ângela Müller da Rosa Edição de textos Ana Cecília Nunes, Cláudio Rabin, Luana Fuentefria, Tomás Adam Edição de fotos Bruno Felin, Clareana Kunzler, Mateus Frizzo Foto de capa Ivo Gonçalves/ PMPA Textos Alice Klein, Amanda Schnor, Ana Cecília Nunes, Ângela Müller da Rosa, Auã Gill, Bruna Matins, Brunna Radaelli, Bruno Felin, Camila Cunha, Camila Konrath, Clareana Kunzler, Cláudio Rabin, Cristiano Oliveski, Daniela Grimberg, Denise Frizzo, Fábio Paranhos, Flávia Mu, Gabriela Carpes, Gabriela Rodrigues, Gabriela Thomaz, Guilherme Bertollo, Janaina Azevedo, Jéssica Gustafson, João Rios, Laura Toscani, Leandro Nunes Sieburger, Luana Fuentefria, Marcus Bruno, Mateus Frizzo, Rafael Raffa, Raquel Robaert, Sabrina Ribas, Tiago Vasques, Tomás Adam, Vladimir Schilling. Dezembro de 2010 Av. Ipiranga, 6.681 Porto Alegre – RS www.pucrs.br/famecos

UM NOVO OLHAR SOBRE A CAPITAL

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sta não é uma publicação comum. Ela trata de assuntos abstratos, e sua leitura terá significados diferentes caso você seja porto-alegrense, gaúcho ou esteja fora deste contexto social. No entanto, independentemente disso, você, leitor, conhecerá a capital do Rio Grande do Sul melhor do que percorrendo todos os seus pontos turísticos. O imaginário popular não foi um tema escolhido ao acaso. A ideia é criar um documento que perpetue histórias e mitos de uma população, desvendando a cidade a partir do olhar coletivo, e não do individual. Escrever sobre algo abstrato é muito mais complexo do que dissertar sobre a concretude dos prédios da cidade. Assim, sentimos a necessidade de situar o leitor no contexto intangível sobre o qual desenvolvemos os textos. Iniciamos esta revista com dois ensaios sobre o imaginário. Com isso, será possível percorrer as páginas da publicação como quem anda no espaço urbano de que falamos, numa esfera que transcende o próprio sentido do olhar. Os assuntos, se é que assim podemos chamá-los, são tratados em duas partes: o resgate do imaginário e o personagem que foi escolhido, entre aproximadamente 1,5 milhão de pessoas, para representá-lo. A Capital que se procurou desvendar aqui não pode ser vista em um olhar rápido e distraído, também será difícil encontrá-la em livros. Captamos imagens das ruas que não se encontram na superfície palpável da capital gaúcha.


O CONCEITO DE IMAGINÁRIO

A AURA DE UMA CIDADE

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o momento em que se definiu o tema desta publicação, houve muitas discussões acerca de uma questão: afinal, o que é o imaginário? Existem algumas possíveis respostas: 1) Algo que só existe na imaginação, que é ilusório, fantástico; 2) Aquilo que é obra da imaginação; 3) Conjunto de símbolos ou atributos de um povo ou determinado grupo social. O que buscamos seria então a definição número um? Obviamente é algo que surge na imaginação, mas admitir apenas isso subestimaria a complexidade do tema. O imaginário é mesmo fantástico, mas nem sempre ilusório. Para o sociólogo francês Michel Maffesoli, em entrevista concedida a Juremir Machado da Silva para a Revista Famecos (agosto de 2001), o termo transcende o real e o irreal. “É algo que ultrapassa o indivíduo, que impregna o coletivo ou, ao menos, parte do coletivo (...). É da ordem da aura, uma atmosfera. Algo que envolve e ultrapassa a obra”, define. Seria, então, aquilo que é obra da mente, como sustenta a segunda definição? Ora, se transcende o real e o irreal, se é uma aura que a tudo recobre, como defende Maffesoli, baseado em Gilbert Durand e Gaston Bachelard, então esta definição deve estar equivocada. Na realidade, o imaginário não é uma simples construção criativa dos seres humanos. O pensamento é racional demais para, de repente, construir deliberadamente um imaginário. Ele se constitui de forma lenta e gradual. Não se pode senti-lo, nem tocá-lo, mas está aí, onipresente. Logo, esse não é o sentido aqui buscado. Chega-se ao número três, certamente o que mais se aproxima do objetivo: um conjunto de símbolos ou atributos de um povo ou determinado grupo social – no caso, os porto-alegrenses. Juremir Machado da Silva define o imaginário social como um conjunto de valores, emoções, sentimentos e imagens que vão se formando com o passar do tempo e que são compartilhados: “é uma espécie de reservatório, o que se chama de bacia semântica, porque ele é líquido, está sempre se transformando, pode evaporar, se desconstruir, fluir etc”. Outra visão é a de algo que impulsiona para a ação, “aquilo que, por dar sentido à nossa vida, por ser importante para nós, tem esse valor de combustível”, explica Juremir. No artigo Cidade: imagem e imaginário, publicado por Lucrecia D’alessio Ferrara no livro Imagens urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário urbano, a autora o define como algo que “corresponde a necessidade do homem de produzir conhecimento pela multiplicação do significado”. Ele se dá por meio de “incorporações de significados extras e autônomos em relação à imagem básica que lhes deu origem”, no caso às urbanas como monumentos, emblemas, espaços públicos e privados. Um exemplo disso é o que acontece em Paris, como ressalta Mafessoli, onde o imaginário gera uma forma de pensar os elementos que compõem a cidade.

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MATEUS FRIZZO

O CONCEITO DE IMAGINÁRIO

“O imaginário de Paris faz Paris ser o que é. Isso é uma construção histórica, mas também o resultado de uma atmosfera”, explica. Quando está relacionado a uma cidade, Juremir afirma que podem existir milhões de grupos, de situações, mas de um determinado recorte. Pode ser de uma cidade, de um bairro, de um estado ou de um país: “Há de tudo um pouco. Há um imaginário brasileiro, porto-alegrense, do Bom Fim, dos estudantes da Famecos. É um compartilhamento de imagens, de emoções, de sensações, de vivências, de mitos e valores”. Para Lucrécia, a relação entre o urbano e o imaginário está no uso da cidade como um “cenário, um pano de fundo, um recorte que sustenta uma cauda de sentimentos e reflexões”. A partir desse conhecimento da cidade e da geração de significados aos seus elementos é que se dá seu surgimento. O imaginário nasce de forma espontânea a partir de experiências do mundo real para então contaminar o coletivo. No entanto, ele sofre influência de vários meios, como a ideologia, e também de signos, significados, imagens, experiências coletivas e individuais, pontos de vista, fatos reais, cultura, clima, história etc. Juremir afirma que é o excedente que se coloca, a aura que encobre. Para Lucrécia, é um processo desencadeado por um elemento identificado com o meio e o cotidiano urbanos. Maffesoli acredita que é “algo mais”, e isso é o que se busca nesta publicação: o algo mais de Porto Alegre.

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“É da ordem da aura, uma atmosfera. Algo que envolve e ultrapassa a obra” Michel Maffesoli


O IMAGINÁRIO E A MÍDIA

A INFLUÊNCIA DA COMUNICAÇÃO

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ada leitor é único e tanto recebe como interpreta a informação de maneira individual. Dizer que a mídia influencia o imaginário coletivo em nada diminui essa ideia de um público que reflete de maneira singular e desmassificada. O pensamento e a comunicação são uma das bases da construção de um imaginário, tanto social e coletivo, como individual. A palavra imaginário remete a imaginação e fantasia, mas vincula-se também a muito mais, como à memória, à simbologia e à própria identidade do povo. Como afirmam Ib Bondebjerg e Peter Madsen no livro European culture and the media, “a comunicação e cultura no sentido mais amplo da palavra é um elemento essencial em qualquer construção e desenvolvimento cultural e nacional/transnacional das identidades”. O imaginário, portanto, está vinculado à realidade, mas também a fatores sociais e culturais. Nesse processo de formação de uma imagem ligada a lugares ou ambientes, como no caso desta publicação – a cidade, as ruas e o espaço urbano de Porto Alegre –, a mídia assume papel de relevância, apesar de não ser decisivo. A construção de um imaginário social perpassa os indivíduos, mas encarando-os de modo a valorizar as semelhanças e formar uma imagem única. O imaginário social está ligado ao individual e vice-versa, numa relação de interdependência, ainda que o imaginário social tenha maior influência sobre o individual que o contrário. A mídia que aqui se fala não é apenas a ligada ao jornalismo, aos noticiários ou às revistas. O imaginário de uma cidade sofre influência de todos os meios de comunicação por meio da sua representação neles. A afirmação é corroborada por Jonathan Bignell na obra intitulada Media semiotics: an introduction. Nela, sustenta que “os signos nunca denotam simplesmente uma realidade objetiva. Eles sempre transmitem significados conotativos, com base em significados sociais míticos que dão apoio a um determinado ponto de vista ideológico”. É o famoso mito da imparcialidade. Toda informação vem sempre carregada de significados e impressões. Em seu ensaio Notas sobre o imaginário social e hegemonia cultural, Dênis de Moraes, calcado na revisão de autores como Bronislaw Baczko, assinala que é possível identificar os medos, as esperanças e as aspirações de um povo através do imaginário coletivo do lugar. “É nele que as sociedades esboçam suas identidades e objetivos, detectam seus inimigos e, ainda, organizam seu passado, presente e futuro. O imaginário social se expressa por ideologias e utopias, e também por símbolos, alegorias, rituais e mitos”, esclarece. Pode-se considerar neste âmbito, inclusive, as telenovelas. Tão populares no Brasil, elas re-

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O IMAGINÁRIO E A MÍDIA

ANA CECÍLIA NUNES

presentam modos de vida e a própria rotina dos brasileiros, podendo também exercer influência sobre este imaginário social, como afirma Roberta Manuela Barros de Andrade em O fim do mundo: imaginário e teledramaturgia: “[...] as telenovelas de investigação se apresentam como um importante ponto de entrecruzamento não somente de investigação sobre a cultura de massa, mas de uma reflexão sobre o próprio lugar da ficção televisiva na narrativa de constituição do imaginário social brasileiro”. Desta forma, tanto o rádio e a televisão quanto as propagandas, as novelas e o cinema têm papel nesta formação de uma imagem simbólica, vinculados às lendas, aos rumores, à cultura, à religiosidade e tudo mais que diz respeito ao povo. Forma-se, então, este imaginário coletivo, esta representação verdadeira e fantasiosa de um espaço ou ambiente. Espaço urbano aqui representado pela cidade de Porto Alegre.

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“Imaginar é dar ao imaginário um pedaço de real para roer.” Jean-Paul Sartre


CIDADE POLITIZADA GABRIELA DIBELLA

POLÍTICA CONSTRUÍDA EM POLOS

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imaginário de Porto Alegre como a cidade mais politizada do Brasil vem sendo reproduzido ao longo de várias gerações. O porto-alegrense – e o gaúcho, de maneira geral – se vangloria dos presidentes conterrâneos, de não ter representantes corruptos, de seu histórico de oposição ao poder central e de seu espírito democrático. O fato que espalhou o mito pelo país foi a Guerra dos Farrapos. Dividido durante dez anos (18351845) entre apoiadores do império e republicanos, o Rio Grande do Sul ganhou a imagem de um estado idealista e independente. “Com características muito próprias, a Capital é politizada na medida em que

o Rio Grande do Sul em seu conjunto é politizado”, sugere a professora Maria Izabel Noll, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRGS. Dessa elaboração histórica também se criou, particularmente na Capital, um imaginário dentro de outro. A polarização – uma ideia de que a cidade se articula de um lado ou de outro – é atualmente vista em uma posição a favor ou contra ao Partido dos Trabalhadores (PT), força política que permaneceu na administração de Porto Alegre durante 16 anos. A professora do Instituto de Filosofia da PUCRS e especialista em política brasileira Áurea Pettersen

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CIDADE POLITIZADA caracteriza isso como típico de um processo de reação. O PT se fortaleceu na Capital devido a uma vontade da população em terminar com os resquícios deixados pela ditadura militar. Em resposta, nasceu a força de oposição ao petismo, representada por vários partidos em um só bloco. Áurea situa o início desse pensamento nos primeiros anos do Brasil República (1889-1891). Na época, a força política dominante no país era o Partido Republicano, liderado no Rio Grande do Sul por Júlio de Castilhos. Como oposição, surgiu no estado o Partido Federalista, sendo Gaspar Silveira Martins a fugura mais importante. A localização estratégica entre o norte do país e a região do Prata – portanto, local propício para a disputa entre espanhóis e portugueses – foi mais um fator, na visão de Maria Izabel, para a bipolarização. “Quando você vai à guerra, acaba tendo que tomar um partido. Por isso essa posição de avaliação crítica da população”, justifica. A pesquisadora esclarece que a circunstância em que se encontravam os republicanos (pica-paus) e os federalistas (maragatos) mais tarde seria transferida para a oposição entre Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e Aliança Renovadora Nacional (Arena). Posteriormente, isso se refletiria no embate entre PT e demais partidos. “Nos últimos anos, houve certo momento de saturação da polarização absoluta no estado e na Capital”, explica a cientista política. Ela avalia a eleição de Yeda Crusius (2006) para o governo como uma quebra nesse paradigma, que era figurado por PT versus PMDB. O que teria havido seria o surgimento de uma terceira força (representada com a eleição da governadora pelo PSDB). “Foi a partir daí que se deu claramente um sistema multipartidário, apesar de ainda permanecer um bloco centrado no PT, mais à esquerda, e outro

flutuando junto ao PMDB, mais à direita”, percebe. Maria Izabel vê a alternância no poder nos últimos anos em Porto Alegre como mais um traço sintomático de politização. Soma-se a isso a racionalidade com que o processo de mudança é pensado. “O porto-alegrense é um conservador no sentido de que as mudanças se dão, mas de uma maneira mais lenta, mais pensada, não de forma radical”, avalia. Por vivenciar políticas de ampla participação popular, como o Orçamento Participativo, a cidade foi considerada apta para se tornar sede do 1º Fórum Social Mundial. Daí em diante, receberia mais três edições. Isso fortaleceu os dois imaginários políticos: não somente daquele da politização como também o de que o porto-alegrense se situa à esquerda na política. “Essa ideia de esquerdização não é verdade, mas é fácil defendê-la, visto que o estado é o berço do trabalhismo e alçou grandes lideranças do PT nos anos 1980”, observa o jornalista Paulo Cezar da Rosa, diretor da Veraz Comunicação, empresa que trabalhou ativamente nos fóruns organizados na Capital. A experiência na Capital serviu como uma espécie de materialização de um imaginário. Nesse mesmo processo, foi também criado, ao longo da história da cidade, um ambiente propício para a prática política. O Parque Farroupilha – que reúne militantes políticos durante o ano todo – e a Avenida João Pessoa – conhecida pelos seus comitês e diretórios partidários – são exemplos de redutos que alimentam o imaginário. No entanto, por mais que se tente demonstrar a politização de diferentes formas, Maria Izabel adverte que isso pode não passar de um mito. “A verdadeira politização da cidade está na necessidade das pessoas em tomarem partido. O que não significa instrução política”, salienta.

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“Com características muito próprias, a Capital é politizada na medida em o Rio Grande do Sul em seu conjunto é politizado.” Maria Izabel Noll


PERFIL: JÉFERSON ASSUMÇÃO

UM ALTERMUNDISTA PELA CULTU RA

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azer política é fazer cultura. Para Jéferson Assumção, não há outro modo. Por meio dela, ele entrou na política, e por meio dela, percorreu o mundo difundindo política. O secretário de Cultura de Canoas, santa-mariense de nascimento e porto-alegrense de coração e de morada, afirma convicto: “Sou um militante da área cultural. A cultura é algo muito transversal e precisa incidir em todos os âmbitos”. O mundo ele percorreu principalmente devido ao Fórum Social Mundial, do qual participou em todas as edições. A presença no primeiro não foi um impulso pessoal, embora o sangue do graduado em Filosofia e autodidata em jornalismo fosse alimentado naturalmente por uma adrenalina política. “Em 1985 eu tinha 15 anos de idade”, resume, para justificar a rebeldia dos anos pós-ditadura militar, que contribuiu para o seu engajamento político. O pontapé inicial, no entanto, foi na área da cultura. Expressões como literatura e música são, para ele, instrumentos políticos importantes. Jéferson tinha 31 anos em 2001, quando “Um outro mundo é possível” – lema desde a primeira edição – ecoava nas vozes de porto-alegrenses ávidos por conhecer essa nova possibilidade. Trabalhando na agência Veraz, que fazia publicações para o setor sindical e que se envolveu ativamente com o evento, a participação foi inevitável. “Disseram que tínhamos de estar à altura do que estava para acontecer. E o interessante é que havia várias pautas novas, que ultrapassavam a maneira com que se pensava a política a partir de partidos e sindicatos, os verticalistas, de estrutura mais clássica e rígida. Tinha, então, a novidade de haver outras formas de organização, movimentos horizontalistas. E isso tudo era muito novo”, reconstitui. A possibilidade de unir diferentes pautas e pessoas em torno de um objetivo comum foi uma oportunidade para Jéferson. Era o espaço que faltava para inserir a ideia de cultura como objeto de politização em todos os setores da sociedade. “De repente as pessoas estavam engajadas não na sua pauta política, mas precisavam se atualizar. Os calçadistas precisavam ser também ecologistas, defender a livre orientação sexual e a marcha mundial das mulheres”, compara. Assim ele se tornou um altermundista, como designa aqueles que seguem o mote do evento. Nas quatro edições realizadas em Porto Alegre, Jéferson foi responsável por abrir discussões sobre cultura e pela biblioteca do Fórum, o Mosaico de Livros. Carregou suas ideias na bagagem que levou para as outras edições do evento em Mumbai (Índia), Caracas (Venezuela), Nairóbi (Quênia) e novamente no Brasil, em Belém. Em nem todas as cidades, no entanto, encontrou a percepção porto-alegrense de leitura como processo indispensável à ampliação da capacidade crítica e, consequentemente, da politização, assim como em relação a outros temas. “Na Índia, estavam recém entendendo temas que não toleraríamos mais”, conta. A realidade desse país o impactou. O maior choque, porém, foi se perceber impotente na implantação das experiências de sua cidade em outras. A situação de cada lugar não permitia que todas as propostas fossem aplicadas com o mesmo sucesso. Como difusor das ideias do Fórum e como coordenador-geral de Livro e Leitura do Ministério da Cultura, entre 2005 e 2008, essas tentativas foram constantes e, muitas vezes, fracassadas.

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PERFIL: JÉFERSON ASSUMÇÃO ARQUIVO PESSOAL

Ainda assim, nos anos de Fórum, diferentemente do que vê hoje, suas propostas eram recebidas com entusiasmo. Ele relembra uma Porto Alegre que há anos significava muito internacionalmente. Em todos os países, Jéferson recebia somente manifestações positivas em relação à cidade e, nos Fóruns, saudava-se porto-alegrenses como exemplos, devido às políticas de participação popular que vivenciavam. Atualmente, ele lamenta que não seja mais assim. Acredita que a mudança de governos e a ida do evento para outros locais tornaram a cidade menos politizada. Para ele, isso aconteceu em virtude dos diferentes interesses na política de Porto Alegre. Jéferson considera que a chegada ao governo do grupo de oposição à administração municipal que inicou o Fórum é um entrave para a perpetuação do evento na cidade. Herdaram-se, no entanto, alguns resquícios. Jéferson se mostra fascinado com o efeito que a experiência surtiu nos porto-alegrenses. A participação na comunidade e a percepção de que o mundo tem fronteiras além das margens do Guaíba são apenas parte disso. “Muitas pessoas mantêm, até hoje, uma relação com o ambiente, com os outros e com a ideia de participação política que são uma herança do que a cidade passou naqueles anos”, acredita. Responsável por levar a 10ª edição do Fórum para a região metropolitana da Capital, em 2010, ele acredita que a consciência política do porto-alegrense voltará à tona quando o evento retornar à cidade. O processo de ascenso e descenso da politização, para ele, teria se dado justamente pela chegada e partida do evento. Afinal, “ele é feito em cidades que compartilham as ideias que ele pretende discutir”, observa. Isso teria contribuído para Porto Alegre ter sido o berço desse novo mundo possível. O altermundista da cultura, que deseja levar livros ao mundo, atribui a eles o seu entendimento de que as coisas são mais complexas que os problemas pequenos e individuais. Uma compreensão que, para Jéferson, é a síntese da verdadeira política.

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“O Fórum é feito em cidades que compartilham as ideias que ele pretende discutir.” Jéferson Assumção


FERNANDA GRABAUSKA

A CIDADE DOS AUTORES

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A CIDADE DOS AUTORES

aulo Francis costumava dizer que suas imitações feitas por humoristas eram, além de lisonjeiras, provas de sucesso e aceitação diante do público. Se isso for verdade, a afirmação também pode ajudar a sustentar o imaginário de que Porto Alegre é uma cidade de escritores. No conto “Gaúchos”, do escritor Sérgio Rodrigues, a visão de um estado e sua capital com produção literária em grande

quantidade – e não necessariamente de boa qualidade – é satirizada em uma história em que todos os personagens rio-grandenses escrevem livros em seu tempo livre. Do garçom de churrascaria ao taxista. Do jovem universitário ao velho crítico. Rodrigues, mineiro e jornalista que assina o blog Todoprosa do portal Veja.com, destaca o fato de existir em Porto Alegre uma “cena relativamente madura” longe dos grandes

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A CIDADE DOS AUTORES centros culturais do Brasil, como São Paulo e Rio de Janeiro. “É sabido que existe um mercado em Porto Alegre para escritores locais. Isso é bem raro no país”, aponta o jornalista. A particularidade porto-alegrense, contudo, não é vista como algo fantástico por Rodrigues. “A cidade não chega a ser uma cornucópia de escritores. Apenas se destaca nesse quesito o suficiente para justificar a piada da minha crônica”, justifica. “Porto Alegre é sem dúvida uma cidade com ambiente literário peculiar, automotivado. Algo que Belo Horizonte também já teve e parece ter perdido em parte.” Um ambiente literário peculiar que, apesar disso, não é necessariamente homogêneo. “Não vejo unidade, não. Um certo viés pop, talvez, mas isso é usado de modos tão diferentes que não parece ter sentido falar em unidade”, analisa o blogueiro. Quem partilha da mesma opinião é o crítico literário Jonas Lopes, da revista Bravo!. “Não dá para comparar Clarah Averbuck a Carol Bensimon, por exemplo, ou [Daniel] Pellizzari e Antônio Xerxenesky”, exemplifica. Mesmo assim, é possível destacar alguns elementos comuns a boa parte da nova geração de escritores porto-alegrenses. Dois deles, segundo Lopes, são mais visíveis: oficinas literárias e editoras independentes. Ao contrário do resto do Brasil, popularizou-se na Capital cursos e disciplinas de escrita criativa – como a de Luiz Antonio de Assis Brasil e a de Charles Kiefer –, o que representa uma educação formal de técnicas voltadas à literatura. A publicação independente, como na Livros do Mal e, mais recentemente, na Não Editora, permitiu que novas promessas chegassem de maneira mais rápida ao público e às grandes editoras. O que estava materializado no formato canônico dos livros, em grande parte, já havia

iniciado no ambiente online. Sites, blogs, listas de discussão e e-mails reforçaram a cena tanto como uma plataforma de publicação quanto de ampliação de referências intelectuais e estéticas. Um caso emblemático – hoje mítico na cidade – é o e-zine CardosOnline. Dali, saíram nomes como Daniel Galera, Daniel Pellizzari e o próprio “Cardoso” (André Czarnobai) – todos com livros publicados posteriormente por grandes editoras. “Apesar disso, não me parece que Porto Alegre seja uma cidade de escritores em termos de quantidade, e sim em termos de organização”, avalia Lopes. Segundo ele, contudo, tal organização e auto-suficiência também podem ser interpretadas a partir de um lado negativo. “Um risco que essa geração poderia correr era o de ficar presa nos limites do Rio Grande do Sul. Os melhores escritores gaúchos se mudaram para os grandes centros, o que é inevitável para estabelecer uma carreira consistente”, aponta o crítico. Por mais contraditório que pareça, a aceitação local ainda é pequena. O professor de literatura e escritor gaúcho Pedro Gonzaga se diz “cético” quanto à caracterização da atual cena literária porto-alegrense como um “fenômeno”. “Comparar-nos com São Paulo pode funcionar do ponto de vista proporcional. Mas não vejo grande vantagem em se pensar nisso”, critica. Considere-se isso algo positivo ou negativo, Porto Alegre cristalizou a fama de “cidade de escritores”. Em meio a autores, editoras e livrarias, parece pulular da capital gaúcha – aos olhos de muitos – uma cena literária vibrante e efervescente. Talvez repita a trajetória de outros centros urbanos. Aqui, no entanto, esse aspecto já está configurado no próprio imaginário popular – de onde até mesmo taxistas e garçons distribuem, orgulhosos, rascunhos de seus próprios livros.

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Considerese isto algo positivo ou negativo, Porto Alegre cristalizou a fama de “cidade de escritores”.


PERFIL: ANTONIO XERXENESKY

A GERAÇÃO SEM NOME

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Como boa parte dos novos autores da cidade, Xerxenesky se tornou escritor pela constante leitura.

umbis. Antônio Xerxenesky escreve sobre zumbis, paga para publicar o livro pela própria editora, vende todos os 900 exemplares, tem lucro e assina contrato com uma grande editora. Parece pouco, mas para um escritor desconhecido num país de analfabetos funcionais, o número é significativo. Em parte, sintetiza uma geração; em parte, exemplifica o sucesso inicial que um jovem escritor pode alcançar. Xerxenesky, ou apenas Nesky, como alguns amigos o chamam para encurtar seu longo sobrenome cheio de consoantes, é a novidade da vez na cena literária de Porto Alegre. Antes dele, seguindo trajeto parecido – livro, editora própria, boa recepção e contrato com uma grande –, vieram alguns nomes como Daniel Galera, Daniel Pelizzari, Clarah Averbuck, André Czarnobai (o Cardoso) e Carol Bensimon, que ganharam destaque na cena nacional. Ok, nenhum deles escreveu sobre zumbis, o que apenas reforça mais uma marca geracional: a pluralidade. “Eu sei que Areia nos dentes não é o novo Ulisses”, pondera Nesky sentado em um bar da rua Fernandes Vieira, no bairro Bom Fim. “E essa nem era minha intenção”, complementa entre expressões como “palhaçada”, “foda”, “palha”, “almofadinha”, “massa” e outras gírias. O ex-estudante de Física não veste fraque e cartola nem na linguagem, nem na literatura. Nada é empostado ou sério no seu comportamento. Ele gosta de zumbis. E de cerveja. A entrevista marcada pela assessora de imprensa da Não Editora (da qual ele é um dos seis sócios) deveria acontecer em um café todo fancy do Bom Fim. Quando chegou apenas cinco minutos após o horário marcado, um bom tempo para os padrões brasileiros, sequer cogitou tomar um café. “Cerveja?”, ele perguntou. Como boa parte dos porto-alegrenses que trabalham com literatura, Xerxenesky, 26 anos, tem blog, twitter, facebook, um orkut fake, joga videogame e é amigo do “Cardoso”, ou André Czarnobai – que passou pelo bar instantes antes de uma pergunta sobre ele –, o grande responsável pela zine Cardoso Online e espécie de webxamã da geração. Como boa parte dos novos autores da cidade, ele se tornou escritor pela constante leitura e conquistou reconhecimento pela iniciativa e pelo talento, sob os olhos benevolentes da imprensa local. O padrão regional, contudo, é contraditório. “Quem lê os novos autores aqui são os novos autores. No Rio, por exemplo, tu entras nas livrarias e encontra gente lendo literatura brasileira contemporânea, sabe? Leitores puros.” Apesar de a cidade possuir um bom quadro de talentos, o Rio Grande do Sul, segundo Xerxenesky, não paga por cultura. Para ele, Feira do Livro é um “câncer na alma”. “Pedem para tu montar uma mesa, chamar os convidados e nem cogitam te pagar. Até Santa Catarina paga por isso”, prossegue com sua indignação mais ou menos séria. Justamente de fora do Estado chegam os contratos de trabalho. Com ganhos superiores a R$ 2 mil, o escritor faz traduções, escreve orelhas de livros, é convidado para escrever resenhas em jornais e traba-

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CLÁUDIO RABIN

lha até mesmo como ghost writer para um cliente cuja identidade não pode ser revelada. Um político? “Não. Já me convidaram, mas eu não aceitei”, desconversa. Formado em Letras, atualmente faz mestrado em Literatura Comparada, analisando o chileno Roberto Bolaño (atual fetiche de dez entre dez literatos) e o catalão Vila-Matas. Com contrato fechado pela editora Rocco, Areia nos Dentes foi reeditado e mais dois livros devem ser lançados. Nenhum deles com zumbis. Por trás do rosto jovem onde a barba de três ou quatro dias luta para aparecer no desenho de um cavanhaque, Xerxenesky se esforça para mostrar que pode crescer no cenário brasileiro. Há nele um permanente conflito entre humildade e arrogância da sua capacidade. Ao mesmo tempo em que sabe que tem orgulho do sucesso rápido e precoce, desculpa-se toda vez que posta algo relacionado ao reconhecimento do seu trabalho em seu blog. Na internet, pode parecer uma afetação, mas na conversa ao vivo, é visível o constrangimento ao falar das vendas e convites. Por quê? Ele responde: “Talento. Óbvio que eu tenho pretensões, mas não sei se tenho essa visão de mundo tão única e tão singular do grande escritor”.

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GAÚCHO DA METRÓPOLE YVO GONÇALVES

NOSSO LAÇADOR É DO INTERIOR

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“fardados” com os trajes típicos ou ostentam um vocabulário mestiço com um pai arcaico e uma mãe urbana. Aquele gaúcho de apartamento, que no domingo toma chimarrão na Redenção e ouve tchê music no churrasco assado no salão do condomínio, perde credibilidade para o interiorano que redefine o espaço urbano à sua maneira para se adaptar sem ceder a novos valores. O sujeito pilchado e cavalariano que se vê em contraste nas ruas da cidade, proavelmente não nasceu em Porto Alegre, mas vive e transforma a metrópole e se torna símbolo autêntico da tradição gaúcha na cidade. Ainda que se veja que tem orgulho das raízes, de bombacha e esporas na bota, ao lado de cidadãos de terno e gravata no coração de concreto de

aúcho que é gaúcho não tem lugar para ser tradicionalista e continuar cultivando o folclore e os hábitos campeiros. É o que reza a lenda. Mas em Porto Alegre, o mito se motra um pouco diferente. Quem vem do Interior caracteriza o gaúcho porto-alegrense com mais força do que quem nasce aqui, dando vida ao protótipo do gaúcho urbanizado. Se, para quem permanece no Interior, o migrante em direção à cidade grande parece visionário e cosmopolitano, inapto para a vida tradicionalista, quem mora na Capital vê a maioria dos interioranos como híbridos culturais entre o passado e o presente do Rio Grande do Sul, trabalhando e compartilhando da modernidade como qualquer outro cidadão ao mesmo tempo que andam

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GAÚCHO DA METRÓPOLE outro lado, a identidade tradicionalista do portoalegrense é digna daqueles que migraram para a zona urbana e transformaram seu hábitat. A diferenciação do gaúcho de apartamento do campeiro na Capital começa pelos valores. Quem nasceu na metrópole é propenso a ser desgarrado das tradições. Porto Alegre não é símbolo de tradicionalismo, apesar de ser símbolo do estado, não somente por ser sua capital, mas por sintetizar todas as cores, crenças, valores e virtudes do gaúcho. A metrópole que se apropria do símbolo do laçador como um de seus símbolos culturais não detém sua naturalidade. O interiorano carrega consigo toda a potência do tradicionalista e está aberto para o novo e o moderno ao migrar para a cidade grande que completa suas lacunas.

Ivo Gonçalves O pelotense Paixão Côrtes na reinauguração do monumento do Laçador (página esquerda). Um dos muitos encontros do clube de cutelaria na Zona Sul (E).

JAIR KERSCHER

Porto Alegre, a morada tradicionalista tem endereço fixo na zona sul. Com mais espaço rural, as regiões de Cavalhada, Belém Novo e Belém Velho são reduto para CTGs, ranchos e campos dedicados às atividades típicas. Como a maior parte dos moradores da cidade, eles também têm uma “vida dupla”, dividida entre o dia-a-dia convencional com um trabalho e cotidiano agitados ao lado de finais de semana em que participam de competições de bocha e cavalaria. O perfil de gaúcho urbano não é exclusivo de Porto Alegre. Da América do Norte à Europa, quem é tradicionalista se destaca por toda a indumentária, valores e principalmente o discurso de superioridade de quem nasce no Rio Grande do Sul e pode ser de qualquer cidade do estado. Por

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PERFIL: JAIR KERSCHER

ENTRE A TECNOLOGIA E O CAMPO

Gaudério do Interior, Kercher ARQUIVO PESSOAL

adaptou o máximo possível o espaço urbano para o tradicionalismo.

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issioneiro natural de Campinas das Missões, no noroeste do estado, Jair Marinho Kerscher, 43 anos, é gaúcho porto-alegrense há mais de 15 anos, mantendo os hábitos campeiros no bairro Belém Velho. “Aqui tem espaço rural de sobra pra andar a cavalo e continuar o estilo de vida do Interior. Acredito que a maioria dos cavalos da cidade está aqui, assim como os gaúchos de raiz”, afirma. Cinegrafista da equipe de jornalismo da TVE-RS há mais de 10 anos, Kerscher trabalha com vídeo e imagem há mais de 20 – já passou pela RBS, viajando o mundo junto ao lado da equipe de jornalismo de vários programas, mas sempre pilchado, inclusive em Veneza, onde cantou músicas folclóricas com Neto Fagundes nas gôndolas para o programa Galpão Crioulo, mas ele deixa claro que gosta mesmo é de “mostrar o Rio Grande”, enfatiza orgulhoso. Para a próxima gestão da TVE-RS ele já tem dois projetos de programas temáticos sobre o tradicionalismo para serem apresentados à diretoria. Possui um site dedicado somente às tradições gaúchas e está trabalhando também no projeto de uma ONG cultural que funcionará como uma escola para crianças carentes integrando-as numa rotina de aprendizado da atividade campeira na Capital. Além do

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PERFIL: JAIR KERSCHER engajamento social focado nas tradições, Kerscher já venceu campeonatos de bocha e cavalgada ,além de cultivar uma grande paixão pela cutelaria. Dedicação ao tradicionalismo é o que não falta. Sem deixar morrer sua paixão, ele já passa adiante os valores tradicionalistas para suas duas filhas. Uma, nascida em Giruá, a outra, em Porto Alegre. Ambas foram influenciadas pelo pai a participarem das atividades tradionilistas no CTG Lanceiros do Sul, e tanto a porto-alegrense quanto a interiorana dividem a mesma paixão encarnando a prenda gaúcha. A opinião de Kerscher sobre a imagem do gaúcho tradicionalista em Porto Alegre ser feita de pessoas provenientes do Interior é afirmativa. Pai de duas meninas que foram introduzidas no universo gaudério para fugir da cultura funk rejeitada por ele, o cinegrafista justifica o fundamento de sua hiper atividade pelas causas folclóricas. “Quando a gente vem pra Capital, parece que aflora ainda mais o gosto pela vida campeira. Eu sinto falta da vida pacata do Interior e tento ser gaúcho do melhor jeito que der. Aqui é mais voltado para atividades em CTG, no Interior é vida campeira mesmo”, explica Kerscher. Em uma cidade em que o modelo da estátua do Laçador é de Santana do Livramento, não se duvida que o gaúcho não nasceu aqui, assim como todo interiorano não desgruda fácil da vida campeira e faz mais pelo tradicionalismo na cidade do que quem nasce nela. Entretanto, para o gaúcho missioneiro radicado na Capital, ser tradicionalista é uma questão de hábito pelo gosto campeiro, algo paradoxal para uma metrópole. “Acho que muito gaúcho de apartamento quando pega o gosto não larga. É só se entrosar que pega gosto”, explica o tradicionalista.

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CENTRO FOTOS MATEUS FRIZZO

MOSAICO DE IMAGENS MIL

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ove são os bairros que limitam o “coração da cidade”. Estima-se que pelo centro de Porto Alegre orbitam 500 mil pessoas por dia – quase um terço da população da Capital; mais que o total de habitantes de qualquer município do Interior. Tal contingente é resultado da migração pendular proveniente da Região Metropolitana, já que são tantos os porto-alegrenses que pouco ou nunca vão até a zona central. Para monitorar o fluxo de pedestres, em 2004 foram instaladas dez câmeras em pontos estratégicos. Atualmente, são 43, de acordo com a unidade da Brigada Militar responsável pela fiscalização dos equipamentos. “Não sei se funcionam”, questiona-se Alexandre Soares, 46 anos, segurança de uma joalheria localizada na Rua

Vigário José Inácio. “Mas ajudam a inibir ações.” Não fosse o negro corpanzil de peso pesado e o walkie-talkie na mão, ele passaria despercebido ante a multidão que às 17h30min sobe e desce – pelas calçadas, entre os carros no meio da rua – a ladeira característica não apenas dessa, mas de boa parte dos passos centrais. Não veste uniforme nem usa armas. Vigia atento e mantém boas relações com as figuras locais. Do catador de latas ao executivo engravatado, são todos “meu querido” para o profissional que vive 14 horas diárias nas imediações da loja. “O que já foi bom, hoje está pior do que uma vila”, avalia. Utiliza dois exemplos recentes como exemplo: um ex-policial baleado na saída de um “inferninho” da Rua Marechal Floriano Peixoto e um jovem assassinado próximo à Santa Casa. “O que deveria ser uma união de tribos não é mais”, afirma.

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“Se o Centro é ruim, a Farrapos é o inferno”, pondera Alexandre. Segundo ele, pela avenida, “tranquila” em outros tempos, hoje só circulam “pedreiros” (usuários de crack) e prostitutas. Apesar das pessimistas considerações, acha o bairro uma maravilha. “Sou putanheiro velho, gosto disso aqui”, reconhece. O rádio toca. Palavras inaudíveis. A comunicação é feita com outros dois seguranças, um posicionado acima, na Salgado Filho, outro abaixo, entre a Voluntários e a Andradas. Hora de trabalhar. Quando chegou a Porto Alegre, na década de 1980, Vera Santos foi logo conferir a afamada Rua da Praia, única referência que obtera da cidade antes deixar sua terra natal, a capital paulista. Aposentada, 78 anos, já se considera gaúcha. “Falo até tchê”, enfatiza. Esperava vislumbrar a costa, talvez até molhar os pés na água do rio, ou lago. “Foi um desgosto tão grande”, relembra ela, que à época não sabia ser este o mais antigo nome da primeira rua da cidade, dado quando esta de fato margeava o Guaíba. A denominação oficial dos Andradas foi instituída em 1892, quando a cidade já carregava 140 anos de história. História que começa pelo Centro. Em 1752, lá onde desembarcaram os “quase lendários 60 casais açorianos”, indica a historiadora Sandra Jatahy Pesavento, na obra O imaginário da cidade. A ameaça constante de guerra na região fronteiriça

fez com que a cidade se tornasse uma espécie de refúgio contra os castelhanos e, assim, alcançasse um índice de crescimento mais elevado do que outras do estado. O espaço da urbe que, desde 2008, chama-se Centro Histórico era separado então em duas áreas: a cidade alta, rica, aristocrática – o centro dos Poderes, na altura das ruas Riachuelo, Duque de Caxias e arredores –, e a cidade baixa, popular, miscigenada – reduto comercial por excelência: o “Centrão”. Vera nunca sentiu vontade de conhecer os “arrabaldes” do bairro. No cotidiano, são os pombos os seus companheiros. Alimenta-os com milho, sentada em um banco da Praça Raul Pilla. Define o Centro como sujo. “As pessoas aqui não conservam a limpeza, é tão triste. As ruas estão cheia de maloqueiros”, e desemboca nas críticas à segurança. “Roubaram até o Pilla daí”, diz, em referência ao busto não mais presente do homem que dá nome à praça, localizada nas imediações do viaduto José Loureiro da Silva. Para ela, nesse quesito, a capital gaúcha – “que é um ovo” – não deve nada a São Paulo. Conta que certa tarde quase quebrou um “porrete” nas costas de um menino que lhe acertou a perna com uma pedra. Antes de fraturar o joelho esquerdo (anda apoiada em uma muleta), carregava um pedaço de pau com pregos na ponta quando

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Pelo centro de Porto Alegre orbitam diariamente cerca de 500 mil pessoas. Nos últimos dois anos, 4830 pedestres prestaram queixa de roubo; 259 desses apresentavam lesões.


CENTRO saía da casa. Consequência de uma “brincadeira” de crianças que tentou impedir, a pedrada atingiu a mesma perna que agora a faz manquejar. Ao ser atingida, então, correu em direção ao menino e lhe acertou com sua maça improvisada as nádegas. “Perco o controle com esse desrespeito.” Por parte dos mais antigos, parece consenso a ideia de degradação do Centro. “Isso aqui virou um mercadinho a céu aberto”, avalia João Francisco Montano, 66 anos. Nas memórias da infância, carrega os passeios pela Rua da Praia, onde observava as vitrines a passo lento. “Hoje, logo te enfiam um papel na cara”, comenta. Guarda consigo a visão do ambiente romântico de outrora, onde desfrutava seu jogging sem perturbações. Ao lado, o amigo Astrogildo Madruga pontua as frases de João com outras lembranças. “E a paquera na Alfândega?” “Dava até para deixar a chave no carro que nada acontecia.” Em 2009, 250 cidadãos tiveram seus veículos roubados na área central; 162 neste ano. Os números são do Sistema de Informações Policiais, coletados junto à 1ª e à 17ª Delegacias da Polícia Civil. Nas 63 categorias de registro, foram enquadrados 19.985 crimes nos últimos dois anos no centro de Porto Alegre. Os mais jovens parecem ter a mesma impressão de João e Astrogildo. “É muita chinelagem”, afirma Karan Assad, 13 anos, morador da Rua Duque de Caxias. “Acho o Centro tri bonito, mas tem muito roubo. Tá podre.” O amigo Pedro da Cunha, 14 anos, parceiro das tardes e noites de skate na Praça da Matriz, concorda: “O pior aqui são os maconheiros”. Conotação: maconheiros = drogados. Arrisca até uma estatística: “A cada mês tem uma média de dois skates roubados aqui”. A situação preocupa, mas não impede os meninos de frequentar o ponto. “O piso é bom, tem umas elevadas ali”, diz Pedro apontando para o pé

do rabiscado monumento a Júlio de Castilhos. “O negócio é fazer uma certa amizade pra que eles não te incomodem”, sugere Karan. Nos últimos dois anos, 4.830 pedestres prestaram queixa de roubo; 259 desses apresentavam lesões. Os objetos mais visados são os celulares - 342 ocorrências de roubo; 1.842 de furto. “Um mosaico de imagens mil.” O trecho da música A Marchinha Psicótica de Dr. Soup, do músico Júpiter Maçã – cujas externas do clipe foram gravadas no Viaduto Otávio Rocha – pode ilustrar o centro de Porto Alegre. Morador da Rua Fernando Machado (antiga do Arvoredo) há um ano, “entre idas e vindas”, o compositor da canção, Flávio Basso, o Júpiter, é um defensor das belezas da região. Tem especial admiração pela arquitetura, “com o toque franco-português, que não tem o propósito francês”. Flávio vive um momento “café e tabaco” e vê no Centro o ambiente ideal para sua nova fase. “Tem toda essa coisa nostálgica, não do que eu vivi, mas das décadas de 40 e 50, que eu procuro enxergar”, divaga. Compara o bairro a pontos de Liverpool. “É muito parecido, o Largo Glênio Peres, a proximidade com o rio. Lembra muito o Mersey”, explica, referindo-se ao rio que corta a cidade inglesa. “Me passa uma ideia de pioneirismo andar por aqui. Uma terra nova”, continua. “O Centro me faz bem e influencia, claro, o meu trabalho.” Belo, feio, sujo, agradável... Muitos e controversos são os adjetivos cabíveis a este espaço urbano por onde circulam seguranças pessimistas, velhinhas armadas de tacapes medievais, românticos desiludidos com as transformações urbanas, gênios excêntricos, pedreiros, putas, nós e talvez você. A imagem construída se traduz em medo e admiração. Como o coração ao corpo, o Centro mantém viva a cidade. Pulsa 24 horas sua história, seu presente e seu futuro.

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PERFIL: MAJOR CÓRDOVA

O SENHOR DO CENTRO

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uando André Luiz Nickele Córdova, 37 anos, fala do centro de Porto Alegre, está só. A lembrança dos passeios de bicicleta pela Usina do Gasômetro tira o seu fôlego. “É um manancial de possibilidades e de proximidades que permite viver a multidiversidade num ambiente apenas”, define. Major Córdova, como é chamado, assim que veste seu uniforme, torna-se comandante da 1ª Companhia do 9º Batalhão da Brigada Militar. Ele assumiu a companhia que atua no Centro justamente quando fazia cinco meses que havia deixado de morar no bairro. Ao assumir o posto, em março, encontrou em ruínas o novo local de trabalho, na Rua José Montaury, 40. Banheiros entupidos, paredes descascadas, teto caindo. Como ele mesmo conclui, sem condições. Sua primeira ordem foi uma reforma completa . “O policial precisa se sentir respeitado, e naquele ambiente, era impossível”, reconhece. Em seguida, criou uma espécie de funcionário da semana. “Até o McDonald’s tem isso”, brinca. O soldado destaque ganha ingressos para algum espetáculo no Theatro São Pedro e, caso esteja a serviço naquele dia, uma folga. Ele acredita que a polícia tem de estar presente em todos os momentos. Uma operação de um ou dois dias não é eficiente. Córdova frisa que o Estado deve sempre estar presente na comunidade, que reatividade e visibilidade são mais importantes que proatividade. “O dever maior dos soldados não é prender, é prevenir”, ressalta. Desde o início, busca aproximar a Brigada e a sociedade em que ela atua. Organizou uma reunião com todos os moradores e comerciantes da Rua Marechal Floriano. Queria unir os dados frios das estatísticas com a vivência dos polícias e moradores. Reuniu todas as informações adquiridas e montou equipes em pontos estratégicos, percebidos como problemáticos. Em menos de seis meses, colheu os frutos. Com a ajuda dos dedos, lista os dados de redução de criminalidade. Córdova dimensiona a diminuição dos roubos de estabelecimentos comerciais (67,9%), de veículos (50%) e de pedestres (20%). Acredita que o imaginário das pessoas sobre a violência no Centro não mudou. É violento. E se lhe perguntarem, ele sabe o porquê. As pessoas passam pelos brigadianos por sete segundos. Não têm tempo de perceberem sua presença no local. “O povo chega em casa, no fim da tarde, e passa 40 minutos na frente da dominadora (como ele nomeia a TV). E nesse tempo todo o noticiário passa estupros, assassinatos, roubos... Fica difícil concorrer com essa propaganda”, desabafa. Fecha o punho com força, admite que é difícil, mas garante: fará de tudo para mudar essa ideia. Enquanto o grupo de moradores concorda: “Melhorou 80%”. Mesmo assim, ele não assume para si todos os méritos. Acredita que a Brigada Militar representa muito mais que sua figura, tanto que não quis um retrato seu para ilustrar o perfil. “Hoje o major sou eu, amanhã pode ser outro”, explica.

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O major Córdova acredita que “o dever maior dos soldados não é prender, é prevenir”.


MATEUS FRIZZO

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BOM FIM OU O COMEÇO?

aminhar pelas ruas do Bom Fim é como ler parte da história do bairro e ter a oportunidade de reparar que, em contraste ao tradicional, fervilha, quadra a quadra, o mix cultural que o lugar carrega atualmente. Há quem diga que sente saudade dos “anos dourados” da Avenida Osvaldo Aranha, mas a juventude moradora salienta que não tem do que reclamar. Novos bares traçam o roteiro noturno, novas lojas e restaurantes fazem o movimento no raiar do dia. E apesar do novo também compor a identidade do Bom Fim, os tradicionais estabelecimentos e símbolos ainda estão lá,

abrigando a história do bairro, que de cultura judaica, música e artes tem muito a contar. As referências aos judeus no bairro seguem fortes desde o início de sua chegada à cidade. Na década de 1930, eles se instalaram no local como artesãos, alfaiates, marceneiros e profissionais liberais, vindos da Polônia e da Alemanha. “É bairro de judeu ainda, por mais que a diversidade tenha alcançado esse nível, o histórico do local está totalmente ligado a eles”, conta Thiago Vianna, cineasta e morador do Bom Fim. “Os prédios construídos por eles contam um pouco da sua cultura no bairro.”

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BAIRROS Ao final da década de 1950, o Bom Fim surgiu oficialmente, seguindo a proposta da divisão de bairros em Porto Alegre, criada em julho de 1957. Registrado em dezembro de 1959, e antes conhecido como Campo de Várzea (área onde os carreteiros descarregavam o gado na cidade) e Campo do Bom Fim (graças à capela construída nos anos 1930 com o mesmo nome), o bairro valorizou-se em função de todas as facilidades oferecidas, como a proximidade do Centro, da Cidade Baixa e do parque da Redenção. Mas não se engane, a famosa área verde não faz parte do território “bonfiniano”. O Brique (feira de artesanato e antiguidades localizada na José Bonifácio) dá o ar interiorano, embora também fora dos limites do bairro. A Lancheria do Parque, tradicional restaurante do Bom Fim, se agrega aos símbolos do loteamento. Lá que é possível reparar com clareza a diversidade da população que habita, trabalha ou passeia pelo lugar. “Aqui se vê famílias inteiras chegando para o almoço, jovens, moderninhos, músicos, escritores, gente famosa e gente que só vem tomar um suco ou uma cervejinha depois do expediente”, define Daniel Bolson, arquiteto e frequentador do bairro há cinco anos. Ele garante que ter o bairro como quintal de casa é o maior prestígio por tudo que há à disposição e pela facilidade de acessos. “Se o lugar de destino não for perto, há transporte para isso.” Para moradores como Daniel, as mudanças que o bairro sofreu ao longo dos anos são sempre positivas e cumprem seu papel para a otimização de todos os serviços oferecidos sem precisar deixar o bairro ou andar muito longe. Da sua fundação ao seu auge, o bairro passou por inúmeras transformações. Os moradores recentes e antigos formam a identidade do atual Bom Fim, juntamente com a mescla de estabelecimentos novos que se

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misturam aos tradicionais pontos. Logo ali, na esquina com a Rua João Telles, funciona o Bar ocidente, a casa mais conhecida do bairro, uma lenda que ainda vive nas noites do Bom Fim, com 30 anos de existência. Além de shows, peças de teatro e festas, todos os dias tem almoço e “é o único lugar onde hoje existe vida madrugada adentro no bairro”, reclama Técio Trindade, morador e professor de inglês. Ao lado da tradicional casa noturna, com poucos meses de existência, vive o bar Odessa. O toque moderno e “descolado” que muitos amam e outros temem. Sim, ainda há muita nostalgia conservadora nos habitantes. O professor lembra que o bairro já teve seus tempos áureos com o Bar João e a clássica sala de cinema Baltimore: “O fechamento desses dois lugares representou, para mim, uma nova era no bairro. Uma modernidade triste que deixou muitos órfãos”. O amor pelo Bar do João continua vivo no sentimento de antigos frequentadores, mas quem avistava o estabelecimento de longe, mal se atrevia a passar em meio a tantos punks e pessoas vestidas de preto até chegar ao cinema Baltimore. “Minha infância foi pautada em parte por isso. Era uma aventura chegar ao Baltimore com tanta gente diferente lotando as calçadas da Osvaldo à noite”, lembra Técio. Com o novo e o velho em mesclas, o Bom Fim se encontra num ponto onde, embora haja divergências extremas sobre as evoluções do bairro, tudo pode ser complemento. Nada melhor pra exemplificar essa diversidade do que um belo passeio pelo local. Pelas palavras de um adorador que plantou vida e carreira por lá, nota-se que as mudanças, apesar de incomodarem em alguns aspectos, não tiram o sabor que o bairro tem em sua vida. É o que diz Fiapo Barth, dono do Ocidente.

Com o novo e o velho em mesclas, o Bom Fim se encontra num ponto onde, embora haja divergências extremas sobre as evoluções do bairro, tudo pode ser complemento.


PERFIL: FIAPO BARTH

O REI DO BOM FIM

S Para Fiapo Barth, um protagonista do bairro Bom Fim, a Redenção é praia e o Ocidente, uma ilha

entado em uma poltrona macia, dentro de um apartamento-escritório em um prédio de fachada antiga no bairro Rio Branco, Antônio Augusto Pereira Barth espera tranquilamente para começar a desfilar suas lembranças para o gravador. Veste tênis, calça jeans escura e uma camisa cinza. É alto, magro e não aparenta os 57 anos que tem. A barba e o bigode lhe conferem uma feição compreensiva, quase como a de um professor que sabe bem das coisas que diz. Antônio é conhecido por toda Porto Alegre como Fiapo Barth, o dono do Ocidente. Apesar de hoje residir no Rio Branco, é sobre o Bom Fim – o bairro ao lado e sua eterna paixão – que Fiapo fala tranquilamente. Natural de Taquara, veio para Porto Alegre aos 18 anos para estudar arquitetura. O que encontrou ao chegar, nos anos 1970 e 1980, era um bairro que fervilhava tanto na vida diária quanto na noturna. Os tempos de estudante foram vividos intensamente no local. Para ele, o Bom Fim daquela época era repleto de ideias que se agitavam. Um ponto para os intelectuais, os jovens e os artistas. Um lugar onde era possível encontrar os amigos para beber muito, comer barato, discutir arte, política, bobagem, qualquer coisa. Foi em meio a esse clima que Fiapo e mais cinco amigos tomaram uma decisão que mudou para sempre a cara do bairro e de Porto Alegre. “Eu trabalhava há dois anos com habitação popular na Cohab. No momento em que eu saí de lá, descobri uns amigos interessados em criar um bar. E eu tinha outros amigos que pensavam em investir num restaurante, então nos reunimos para abrir um lugar”, lembra. Nascia aí o Ocidente. A data exata da inauguração foi 3 de dezembro de 1980. Cinco dias depois, John Lennon cairia no chão do Central Park, sem vida, vítima dos quatro tiros de um revólver calibre 38. Os tempos estavam mudando. Apesar da referência fúnebre, o Ocidente nasceu na hora e no lugar exatos para marcar a história de Porto Alegre. Com o objetivo de servir de palco para o teatro, o bar surgiu da vontade sincera dos sócios. Desde a escolha do local (que precisava ser no Bom Fim, mas não podia ter a porta voltada para a Osvaldo Aranha) até a construção do espaço (a obra básica da casa foi feita pelos sócios, e o balcão que está hoje no bar foi feito a mão por eles na época), o Ocidente foi um esforço constante e coletivo. Após a inauguração apressada, ainda sem um palco para as peças de teatro, tudo aconteceu de forma muito natural. “Em janeiro de 1981 uma banda nos procurou porque queria fazer um show. Então construímos um palco e dissemos que tudo bem. Depois disso, as bandas invadiram imediatamente o Ocidente. Foi uma coisa súbita, o teatro praticamente não teve vez, porque as bandas precisavam muito mais do lugar. Isso foi muito interessante, muito bom de ver”, conta Fiapo. Quando perguntado se por causa disso o bar teve uma participação ativa na construção da cultura do bairro, ele é singelo. “A palavra ativa é um pouco estranha, pois nós fomos apenas disponíveis. Nós só estávamos lá, de portas abertas.” Com os shows de janelas abertas no casarão na João Telles, esquina com a Osvaldo Aranha, a rua se enchia de gente querendo ouvir e viver a música. O clima era frenético, os bares sempre lotados. As calçadas amplas conduziam as pessoas até o parque da Redenção. Essa foi a época áurea do Bom

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Fim, que Fiapo relembra com gosto. Fica clara a saudade que sente desse tempo ao reclamar que hoje o Ocidente é uma ilha. “Não existe mais nenhuma vida noturna no bairro. E não é vida noturna de festas, entende? Não há vida na noite do Bom Fim. É morto, não tem ninguém na rua. É tudo gradeado, fechado, trancado”, reclama. Uma das coisas que mais o agrada, entretanto, é o Parque da Redenção. Para ele, a ligação com a área é um dos pontos principais do imaginário do bairro. “A Redenção sempre foi a praia de Porto Alegre”, filosofa. “Enquanto o Guaíba sempre ficou de costas, o Bom Fim esteve de frente, de braços abertos. Os domingos na Redenção são uma marca. A beira do rio sempre foi o porto abandonado e aquela ponta do Gasômetro, que era uma obra sem fim. O próprio Parque Marinha, do jeito que foi feito, tem a avenida que o separa do rio. Aquilo nunca ficou uma praia. Eu acho que a orla da Capital é aqui”, fala entre risadas. Para Fiapo, o Bom Fim é simples: um bairro bonito, que recebeu a ele, sua família e suas ideias. É um lar acolhedor, apesar das mudanças, e uma lembrança bonita de um tempo de juventude ativa e sonhadora. “Não me imagino vivendo em nenhum outro lugar em Porto Alegre. Meus filhos nasceram aqui, meu trabalho e minha vida são aqui”, explica. “Fora que tem aquela visão das palmeiras da Osvaldo Aranha. Cara, aquilo é uma coisa única, uma marca”, complementa com a propriedade de quem há 30 anos caminha orgulhoso pelas ruas do bairro que escolheu. Um rei, em seu reino.

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FOTOS SABRINA RIBAS

VOLUNTÁRIOS DA PROSTITUIÇÃO

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parte inicial da rua era ocupada por casas elegantes, foi no fim dela, perto do Centro, que se propagaram as casas de tolerância. A historiadora Fernanda Guedes dos Santos lembra que “marinheiros de todos os cantos chegavam e saíam, sempre buscando consolo nos braços de uma ‘mercenária do amor’, pois se encontravam há dias ou até meses longe de suas casas”. Moacyr Scliar, no livro Porto de histórias, escreve: “Os bordéis mais populares ficam próximos aos locais de acesso à cidade: a estação ferroviária, a estação rodoviária, o cais. Em Porto Alegre, numa época, estes locais ficavam perto uns dos outros, o que favorecia ainda mais o desenvolvimento do chamado comércio sexual, que, ao menos no caso de uma rua, a Voluntários da Pátria [...] coincidia com comércio propriamente dito, basicamente de lojinhas”.

Rua Voluntários da Pátria, em Porto Alegre, é hoje a principal localização de galpões de reciclagens da cidade, especialmente perto da Rodoviária. Além disso, diversos são os tipos de comércio que abriga, típicos de zonas centrais. Como reflexo de um mundo violento e do abuso de drogas, também é utilizada para fumar crack por quem troca lixo por qualquer dinheiro nas reciclagens e imediatamente compra a droga. Mas a maioria das pessoas consultadas, ao responder no que pensa quando ouve “Voluntários da Pátria”, associa diretamente a “prostituição barata”. A Voluntários da Pátria já foi uma zona de intenso meretrício, justamente pela sua localização. Nos anos 1920 e 1930, a vida noturna na região era intensa, agitada principalmente pelo porto. Se a

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VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA

Na foto da página ao lado, Segundo o casal Waldemar e Ana Alchieri, proprietários de uma loja de produtos tradicionalistas gauchescos desde 1967 na Voluntários, foi a partir da década de 1970 que as mulheres passaram a oferecer seus serviços na rua, desfilando num vai e vem pelas calçadas e fazendo com que a prostituição fosse mais evidente. Na década de 1990, a zona de meretrício já estava em decadência, sendo que atualmente concentra-se em ruas venais à Voluntários, apesar de ainda estar repleta de quartinhos alugados por hora. Eles são utilizados não apenas para programas, mas também por funcionários das reciclagens e por viajantes menos abonados que estão de passagem pela cidade e sem lugar para passar a noite. Elaine, prostituta há 15 anos, recorda que a Voluntários, no início, era muito disputada pelas concorrentes: “A maioria das garotas de programa acabaram indo para outras áreas ou voltando para suas cidades no Interior”. A própria Elaine mudou-se para os arredores e hoje

prefere ficar na Garibaldi, rua perpendicular ao seu antigo ponto. As prostitutas do lugar reclamam por estarem associadas ao uso de drogas. Como a região acabou virando local de encontro de usuários de crack, muitas mulheres viciadas acabam se prostituindo para comprar a droga. Assim, as garotas de programa fixas da região ficam, dessa forma, também associadas às drogas. Paola, 25 anos, há três abandonou o emprego numa rede de fast-food para se tornar mais uma “profissional do sexo” das cercanias da Voluntários. Reclama que os R$ 700 que recebia anteriormente não bastavam para pagar a aula de balé e a escolinha da filha, de seis anos, e afirma que ali consegue garantir uma renda mensal de até R$ 3 mil, principalmente recebidos de clientes fixos, sua principal fonte de renda. A maioria de suas colegas de trabalho são mães e não usam drogas. A principal reclamação é a concorrência com viciadas, que

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o prédio verde é um dos únicos da parte inicial da Volunta que ainda tem quartos alugados para prostitutas.


deixam o local mal-falado. “O que nos incomoda são as pedreiras (usuárias de crack, na linguagem informal) que, quando não conseguem dinheiro nas reciclagens, fazem programas por aqui mesmo”, completa. Daniela Cordeiro é proprietária de um galpão de reciclagem fixado na Voluntários. Apesar de lidar com lixo, ela é extremamente vaidosa e preferiu estar maquiada e arrumada para a foto que ilustra essa matéria. Explica que, mesmo que o meretrício não seja mais a característica principal da rua, ela já foi confundida com uma prostituta quando disse que trabalhava na Voluntários da Pátria. Para lidar com os viciados em crack que aparecem para trocar pequenos lixos recicláveis, fez uma relação de fornecedores. Assim, acredita que colabora para a diminuição de viciados nos arredores de seu galpão. Quando percebe que um deles é usuário de drogas, prefere dar conselhos e incentivo, ao invés de recriminar ou isolar. “Eu não tenho preconceito ou pena, porque sei que cada um tem sua história. As pessoas aqui não me veem como uma mulher qualquer. Eu sou uma espécie de mãe de todos”, conta Daniela. Mas se os frequentadores afirmam que a prostituição está mudando de lugar e que a região está degradada, por que a “Volunta” continua sendo associada a meretrício, não apenas por portoalegrenses, mas também por quem vem do Interior? Algumas pessoas entrevistas sobre esse assunto expõem alternativas: “Acho que foi por questões familiares e culturais em geral, foi passando através dos comentários de diversas pessoas” (Leonardo Rostro). “Desde que eu me conheço por gente, já faz muito tempo, meus pais me falavam que ali era local de mulheres da vida” (Ellen Dick). “Esta associação vem de muitos anos e passou de

uma geração para outra. Hoje, mesmo não sendo o principal ponto de prostituição da cidade, é o primeiro nome que vem à cabeça” (Luiza Carmona). “Desde os tempos de rapazinho lá em Pelotas, ouvia falar que na Voluntários de Porto Alegre as gurias faziam programas, às vezes, até puxando os homens que lá transitavam pelo braço para fazerem esquemas” (Carlos Alberto Saraiva da Rosa). “Na minha infância, a palavra prostituta estava quase sempre associada a essa rua. As expressões ‘prostituta da Volunta’ ou ‘vai pra Volunta rodar bolsinha’ eram comuns quando se queria, digamos, menosprezar alguém... Para ser sincera, nunca vi este tipo de atividade lá. Por experiência, a Voluntários representa um mar de gente transitando e muito barulho. Mas aquele imaginário de infância continua fortemente associado ao nome da avenida para mim” (Camila Merg). Diversas outras pessoas também referiram a origem desta associação por “ouvir falar”. Principalmente para quem não costuma passar pela rua, o imaginário da Voluntários da Pátria continua sendo a realidade da década de 1920, quando as casas da luz vermelha dominavam a região. Talvez porque o imaginário da prostituição em si seja de luxúria e mistério é que ele se mantenha tão relacionado aos lugares onde ocorre (ou já tenha ocorrido). Até existem projetos de revitalização, muito em função da Copa do Mundo de 2014. Algumas obras de mobilidade urbana estão ocorrendo e já há tentativa de reestruturação do Centro Antigo e do 4° Distrito. Essas informações, porém, são recebidas com descrédito pelos comerciantes e moradores da região, que já ouviram diversas promessas semelhantes. Independentemente do futuro da rua, no imaginário de Porto Alegre, a Voluntários da Pátria dificilmente vai deixar de ser a “Volunta da prostituição”.

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PERFIL: WALDEMAR ALCHIERI

A CASA DO TRADICIONALISMO

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local escolhido para montar uma loja na Capital parecia não favorecer os proprietários. Afinal, abrir uma confecção de roupas tradicionalistas na Voluntários da Pátria, zona de meretrício de Porto Alegre, parecia contraditório. O prédio escolhido abrigava uma vidraçaria e, com o incêndio do ponto, o antigo proprietário desistiu do negócio e alugou as instalações para seu Alchieri, em 1967. Waldemar e Ana Alchieri, casados há 51 anos, decidiram, naquela época, abrir uma selaria. A ideia pareceu meio extravagante – afinal, quem compraria selas em Porto Alegre? –, e os proprietários resolveram estender a proposta: a loja Alchieri vende todos os produtos tradicionalistas que um bom gaúcho possa querer. Relativamente longe da área principal de compras do Centro, a Voluntários já era zona de prostituição. Mesmo assim, eles acabaram comprando o prédio inteiro e instalaram no andar superior a confecção. Existente há mais de quatro décadas, a loja do Alchieri, como o slogan diz, é um “nome de tradição na tradição do Rio Grande”. É ali, em meio a pelegos, guaiacas, mateiras e bombachas que ele e Ana fabricam alguns artigos e atendem a clientes fieis da Capital e do Interior. Segundo Ana, houve um tempo em que as mulheres tomavam conta da rua e, consequentemente, da frente do comércio. “Mas nunca tivemos problemas com elas, sempre houve respeito”, relata a costureira de vestidos de prenda e bombachas. Hoje, quem a incomoda são os catadores, que passam o dia todo freneticamente indo e vindo dos galpões de reciclagem, às vezes vendendo algumas latinhas para financiar o vício do crack, comprado e consumido nas imediações. Mesmo já tendo ultrapassado a idade necessária para se aposentar, o casal não pretende parar de trabalhar e faz questão de atender a clientela pessoalmente. Afinal, clientes como Nico Fagundes e Rodi Borghetti merecem atendimento de primeira. Seu Alchieri garante que fez a primeira bombacha em Porto Alegre, e o negócio acabou dando tão certo que a empresa produziu toda a indumentária utilizada na minissérie O tempo e o vento, da Rede Globo, transmitida em 1985. Um dos primeiros sócios do 35 CTG, Waldemar diz que não se arrepende da empreitada de abrir uma loja de pilchas em um local como a Voluntários. Afinal, no meio em que atua, ele é hoje uma referência. O casal também relata que o período mais crítico da prostituição nas ruas acabou há mais de uma década. “Não penso mais em sair e vou ficando enquanto Deus permitir”, completa.

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SKATE E SURF

DOIS SONHOS RADICAIS

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FOTOS FABIO PARANHOS

queles que moraram, residem ou já passaram algum tempo em Porto Alegre certamente conhecem o Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF), um prédio de arquitetura inusitada que sempre esteve no imaginário dos porto-alegrenses por sua semelhança com uma enorme rampa de skate. Para os adeptos do surf, o quente verão da capital gaúcha faz muitos lamentarem a impossibilidade de se pegar onda no Guaíba. O CAFF é um prédio em forma de pirâmide localizado no bairro Praia de Belas, colado ao Centro. No edifício funcionam diversas secretarias e outros órgãos da administração estadual. O edifício foi inaugurado no dia 10 de março de 1987, possui 21 andares, com uma altura de 119 metros. Em 12 de julho de 1989, através da Lei 8.858, ele passou a ser chamado Fernando Ferrari em homenagem ao ex-deputado estadual que faleceu em 1963. Mas esse prédio não chama atenção dos skatistas pelo seu valor político, e sim pela sua arquitetura em forma de duas rampas. Essas descidas são a fantasia de muitos praticantes de skate em Porto Alegre, como Diego Dutra Ribas, 28 anos. “Um dia alguém vai dropar esta rampa. Desde os meus 12 anos ando de skate e é um sonho a realizar. Acredito que com uma estrutura adequada, um skatista profissional do porte do brasileiro Bob Burnquist ou do americano Tony Hawk consiga”, arrisca Ribas. Entre os mais jovens, o desejo de descer o prédio permanece. O estudante Mateus Braga,

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15 anos, que tem o costume de andar de skate há menos de dois anos, considera que descer a rampa é algo muito difícil. “Esse é desejo de todo nós que andamos de carrinho, mas o prédio possui algumas ranhuras onde as rodas do carrinho podem se prender e a pessoa ser alçada ao chão”, explica Braga. Para Vinicius Menger, 15 anos, há um ano praticando este esporte, essa é uma loucura presente na imaginação de todo skatista gaúcho. “É um sonho impossível de ser realizado, até fizeram um vídeo na internet de um cara descendo, mas foi montagem”, esclarece. O vídeo ao qual Menger se refere foi postado

no site Youtube há cerca de um ano. As imagens mostram um skatista descendo a rampa do CAFF. Logo após sua exibição, o secretário estadual da Administração, Elói Guimarães, afirmou ao jornalista André Machado que é impossível o jovem chegar até a cobertura de helicóptero, pois o último andar abriga o gabinete da governadora Yeda Crusius e é sempre protegido por brigadianos. Mas teria como alguém descer essa rampa de skate em Porto Alegre e permanecer vivo? O professor e doutor em física da PUCRS Cássio Stein Moura explica que é possível, mas ao mesmo tempo improvável. “O CAFF tem uma altura de 119 metros. Se desconsiderarmos forças de atrito, uma pessoa que estivesse em repouso no topo do prédio e simplesmente se soltasse para baixo chegaria no chão com uma velocidade de 174 km/h, aproximadamente”, calcula. A queda levaria apenas cinco segundos. “Levando em conta forças de atrito, sua velocidade seria menor, mas da mesma ordem de grandeza. Se a pessoa utilizasse um automóvel talvez conseguisse chegar viva à base, porém deveria ter uma distância considerável para parar ao longo da horizontal, o que não existe”, salienta. Moura ainda relata que o corpo do skatista

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Uma enorme rampa de skate e surf no Guaíba são duas fantasias presentes na Capital


SKATE E SURF CRISTINE ROCHOL/PMPA

estaria sempre em contato com a curva. “A força resultante no corpo da pessoa seria sempre apontando para baixo”, comenta. Ele também explica a influência que o vento poderia ter na descida. “Na vertical, podemos desconsiderar essa possibilidade, no caso de um vento lateral, poderia fazer com que a pessoa fosse jogada para fora da rampa”, alerta Moura. Apesar dos riscos da prática de skate no CAFF, o que poucos sabem é que o prédio foi cogitado para abrigar um grande evento de esportes radicais. Durante o governo de Germano Rigotto, de 2002 a 2006, o então secretário do Turismo, Luis Augusto Lara, recebeu uma proposta de uma empresa. Lara estava bastante animado com a possibilidade de fazer um grande evento e atrair milhares de desportistas a Porto Alegre, além do público em geral, mas o projeto não foi adiante. Além do skate, o surf está presente na imaginação dos porto-alegrenses. Muitos sonham em curtir o belo pôr-do-sol no Gasômetro e pegar uma onda no Guaíba, como canta o músico

catarinense Armandinho na canção Reggae das Tramanda. A professora do Laboratório de Oceanografia Costeira e Estuarina da Universidade Federal de Rio Grande (FURG) Débora Cuchiara explica que é complicada a possibilidade da prática de surf no lago que banha a capital dos gaúchos. “Para formação de ondas, é necessário uma pista de vento soprando, o que é muito improvável no Guaíba. No Amazonas tem surf na Pororoca, mas lá só é possível porque há uma variação de maré”, esclarece. Em 2009, aconteceu o primeiro surf em Porto Alegre. Durante um dia chuvoso e com muito vento, o publicitário Ricardo Dullius pegou sua prancha e surfou no Arroio Dilúvio, na Avenida Ipiranga. A prática foi possível apenas devido ao forte temporal que ocorreu naquele dia na Capital, que aumentou consideravelmente o nível e a correnteza do arroio, e a muito vermífugo após o banho. É como diz a música de Armandinho, o jeito mesmo é rumar pela freeway e ir pegar onda lá no píer de Tramanda.

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PERFIL: ARMANDINHO

O SURFISTA DO GUAÍBA

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DIVULGAÇÃO ARMANDINHO E BANDA

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surf no Lago Guaíba – que já foi chamado de rio – é um sonho de muitos gaúchos. É o que diz a letra da canção Reggae dos Tramanda, lançada em 2002 pelo músico porto-alegrense Armando Antonio da Silveira, 40 anos, mais conhecido como Armandinho. A música conta a história de um surfista na capital gaúcha que sonha em poder pegar uma onda no Guaíba. O músico também é surfista – o que, segundo ele, é um dos motivos para morar, desde 2003, na Praia Brava de Itajaí, em Santa Catarina. Armandinho conta como se inspirou para compor esta canção: “Enquanto todos os meus amigos iam para praia nos finais de semana, eu ficava em Porto Alegre para trabalhar. Era quando os barzinhos lotavam e eu ia lá fazer o meu som. Ficava imaginando como estavam as ondas, o vento e o tempo no litoral”. Ele relata que a ideia da letra da música foi se construindo durante o seu dia-a-dia. A vontade de surfar era tão grande que Armandinho chegava a imaginar coisas. “Na minha época, era só alucinação. Me lembro de ficar sentado na mureta do Timbuca vendo uma marolinha quebrando perfeita, aquela ondinha minúscula quebrando bem na beirinha, e imaginei o boneco Falcon surfando. Quem pega onda sabe do que eu estou falando”, brinca. Ele comenta que o local mais próximo de Porto Alegre onde praticou surf foi na praia de Tramandaí. “A minha vida de surfista se resumia a pegar freeway e fazer um bate-volta nos dias de semana. Nunca peguei onda em Pinhal ou em Quintão, que seriam as praias mais próximas”, afirma. A música de Armandinho foi uma das mais tocadas pelas rádios no Rio Grande do Sul no verão de 2002. O cantor acredita que surfar no Guaíba é uma vontade de qualquer porto-alegrense que tenha o hábito de surfar. A rotina caótica do dia-a-dia e o calor intenso do verão da Capital gaúcha já fizeram muitos delirarem com a hipótese de ondas no lago que banha a capital gaúcha. “Imagina sair do escritório e poder passar num parque no Centro, pedir para ligar os refletores, acionar o motor e conseguir enxergar uma série de cinco ondas perfeitas quebrando para os dois lados”, fantasia o músico. Armadinho concorda que esta música quer dizer muito para os surfistas que moram na Capital e comenta a possibilidade da prática de surf no Guaíba. “Até hoje tem muita gente sonhando com uma piscina de ondas no Parcão. Já tem vídeos no YouTube com uma galera pegando umas ondinhas de vento no Guaíba e até no arroio Dilúvio a galera surfou.”


FOTOS: CAMILA CUNHA

TONIOLO

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O DITO REI DA PICHAÇÃO

venida Mauá, Rua da Praia, postes da rua Ijuí, Usina do Gasômetro, passarela da Rodoviária, Monumento aos Açorianos, Palácio Piratini, algum banheiro público ou banco de praça. Se não mais hoje, com certeza um dia já estiveram marcados, em spray ou tinta esmalte, por uma palavra que há mais de 20 anos é vista na capital gaúcha. Sete letras que nada representam para os que não conhecem a cidade, mas que além de presentes nos espaços físicos, ocupam também o imaginário de quem já atribuiu um significado a TONIOLO. Um nome, uma marca, um grupo, um criminoso, um qualquer, um vândalo ou um revolucionário? Muitos não acreditam ou aceitam que uma única pessoa fosse capaz de realizar mais de 70 mil pichações em diversos pontos importantes de Porto Alegre, além dos registros em outros lugares do estado e até mesmo em Brasília. Raros são os que lembram ou sabem da real história deste homem ou foram curiosos o

suficiente para se interessar por isso. Em 2005, estudantes da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da PUCRS produziram um dos poucos documentários encontrados sobre o personagem. Eles revelaram a história do pichador em um filme com entrevistas exclusivas, nas quais o próprio Toniolo conta sua vida e seus ideais. Expressar-se de alguma forma foi o objetivo que Toniolo levou até as últimas consequências e que o tornou uma lenda viva em Porto Alegre. Quem, com mais de 20 anos, nunca viu a palavra TONIOLO escrita em algum muro, algum prédio, alguma passarela, algum monumento ou até mesmo em alguma calçada ou asfalto? O reinado não é recente. Foi em 1982 que ele começou a usar spray para escrever seu nome. Os que guardam fatos da década de 1980 em sua memória devem lembrar de um furor no centro de Porto Alegre em 1984. Toniolo foi o primeiro a divulgar hora e local para uma pichação. Anunciou a todas as redações que TONIOLO apareceria na fachada do Palácio Piratini. O governador

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TONIOLO do Rio Grande do Sul na época, Jair Soares, ordenou que uma barreira de policiais militares circundasse o prédio público. Usaram para sua identificação, porém, uma foto antiga, de quando tinha cabelos. Toniolo, já careca, saiu da Catedral Metropolitana e, se passando por um cristão, teve sua passagem permitida. Faltou apenas a última letra na parede da imponente sede do governo do Estado, antes do rei da pichação ser pego. As últimas pichações datam de 2002 e foram feitas durante o 2º Fórum Social Mundial. Sua fama, no entanto, continuou sustentada por admiradores do seu legado que adotaram a assinatura TONIOLO. O motivo para isso não é único. Desde os que se promovem com uma marca já estabelecida até fãs que querem usá-la como protesto, o que fica é seu nome espalhado pela cidade há quase três décadas. Para os praticantes do picho, Toniolo é um referencial pela forma com a qual desafiou o senso comum, inovou nas técnicas e ignorou os limites do preconceito e da Justiça. “Na minha opinião,

ele foi um dos maiores pichadores de Porto Alegre. Eu tive a oportunidade de pichar com ele apenas uma vez, mas ele era quieto, oculto, não gostava de conversar e nem de falar sobre si”, revela um ex-pichador e morador da zona leste da Capital que não quis se identificar. A imagem de Toniolo para Maria Cecília Pereira, 63 anos, moradora há mais de 35 anos do centro da Capital, é outra. Diferentemente do que pensam a maioria dos mais jovens, “depredação do patrimônio público” e “falta de respeito com a cidade” são os termos que ela cita ao se referir a Toniolo. “Era um vândalo, um retardado que queria chamar atenção. Meu apartamento fica bem próximo ao viaduto da Borges de Medeiros e cansei de vê-lo sujo com aquele nome”, exalta-se. Há quem diga que Toniolo é um homem solitário que não dá entrevistas e não permite fotos, outros que ele está com problemas de saúde, esquizofrênico. Tudo apenas faz parte das muitas facetas que aquelas sete letras lembram aos moradores de Porto Alegre.

A passarela da Rodoviária de Porto Alegre é um dos lugares da Capital em que ainda existe a assinatura de TONIOLO

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PERFIL: TONIOLO

ARTE: ANDRIO CATILIO

ILUSTRE DESCONHECIDO

“O negócio é pichar tudo. Se não der polêmica, não ficarem brabos, não adianta.”

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oniolo hoje anda a passos curtos, sem distância considerável entre eles. Percorre devagar o pátio de onde vive. O banco preferido é o que fica no gramado, ao sol durante a tarde. Sentado ali, permanece horas com seu rádio de pilha sintonizado na AM 970. Para os radialistas Beatriz Fagundes e Marne Barcelos, ele manda diariamente ilimitadas mensagens via celular. Nelas pede que seja feita a gentileza de divulgarem seu site. E é atendido. Esse rádio é sua única companhia garantida. Com os outros internos do Lar Esperança, “não se consegue manter uma conversa, já estão mais pra lá do que pra cá”, reclama. “Sérgio, tchau, amor!” é a despedida que recebe da enfermeira ao fim do expediente. Mas nada há ali para se chamar de amizade. “Nas segundas e sextas, eu saio daqui”, conta Toniolo. Rigorosamente, um dos três irmãos o busca para passar esses dias na casa da família. E seus passeios não passam disso. Atualmente, ele pouco anda pela cidade. “Eu saio daqui sob o efeito dos muitos remédios que me fazem tomar”, conta. Desde que entrou na clínica, há seis anos, sua vida tem essa rotina. O filho de um amigo o visita às vezes. O pai do rapaz confeccionou TONIOLO VOADOR, pandorga que pairava pelo céu da Capital anos atrás empinada pelo próprio personagem que a batiza. Ele nunca recebe muitas pessoas, apesar de demonstrar hospitalidade na recepção de quem aparecer. O que ele quer mesmo é contar sua história. “Comecei com 37 anos, para denunciar perseguições”, exclama. Em 1972, o então escrivão da Polícia Civil começou a responder inquéritos por mandar artigos e crônicas às páginas dos leitores dos principais jornais e revistas do país. Mais de 1,5 mil textos em mais de 60 veículos, nas suas contas. “De 1970 a 2005, fui o cronista mais lido do Brasil, sem sombra de dúvida”, aposta. No início, o problema para a polí-

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cia era que Toniolo assinava seu nome real. “Diziam: ‘Se você usar um outro nome, mesmo se soubermos que foi tu, tudo bem’. Mas não parava”, admite. Depois de dez anos e mais de 70 inquéritos, foi afastado após a publicação de uma dura crítica sua aos critérios do sistema de promoções na Polícia Civil gaúcha. Em 1982, Toniolo recebeu um telegrama de Tancredo Neves. Era o convite a uma candidatura ao cargo de sua preferência. Ele concorreria, então, a deputado estadual, se não tivesse essa candidatura negada pela Justiça Eleitoral. Afastado do cargo e impedido de concorrer. “Foi quando virei pichador”, revela. “Os muros são do povo.” E não tem essa de patrimônio público ou privado. “O negócio é pichar tudo. Se não der polêmica, não ficarem brabos, não adianta.” E muitos já ficaram brabos. O ex-governador Jair Soares e os policiais militares que o deixaram passar da barreira depois de um “Boa tarde, irmãos” para então escrever TONIOL (não teve tempo para fazer o “O”) no Palácio Piratini foram alguns; os guardas que espaireciam e na volta encontraram o Monumento aos Açorianos pichado, outros. Proprietários de casas no Litoral também se enraiveceram muitas vezes. Com garotos iniciantes do picho, Toniolo se aventurava pelas praias. Capão da Canoa, principalmente. Ele tem muito nítidas em sua memória as lembranças da época. “Em Arroio do Sal, quase tomamos tiro”, recorda com expressão marota. Em Porto Alegre, seus parceiros e aprendizes eram meninos do bairro Petrópolis e do Morro Santana, garotos que ele reunia para marcar paredes e postes pelo bairro. Milhares, de acordo com ele. Era muito querido por todos. Hoje poucos ainda fazem contato. Sua atual preocupação é divulgar um site. Criado por um amigo, www.toniolopichador.com.br é o principal canal de comunicação de Toniolo com o mundo externo. Lá sua história é contada por meio de fotografias, de um documentário e de digitalizações de material publicado na imprensa a seu respeito, do telegrama de Tancredo Neves e de atestados de sanidade. Seus apelos para sair de onde está ocupam grande espaço na página – voltar para casa é seu maior objetivo. Mas o que o mantém lá? “É o que eu gostaria de saber”, reclama. “Sou saudável e não respondo mais a nenhuma acusação.” O mistério de Toniolo deixa de ser acerca de sua existência e motivações e passa a ser sobre a sua permanência naquele lugar. Sérgio José Toniolo tem 65 anos, foi policial civil entre 1966 e 1982, nunca casou e não teve filhos. Está desde 2004 na clínica Lar Esperança, localizada na Avenida Aparício Borges – lugar despercebido na Porto Alegre marcada por suas pichações.

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ARQUIVO PESSOAL

PERFIL: TONIOLO


ACERVO/ MUSEU DO INTER

DO BANDEIRÃO AO TRAPO

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ampo cheio de lama, nacos de grama voando a cada investida do adversário. Talvez a proximidade com países platinos tenha cercado o futebol gaúcho da tradicional alcunha de “copeiro”, até hoje difundida ao resto do país. Tal característica, do futebol jogado “nas canelas” contagiou e aí sim, como referência direta aos portenhos, a torcida gaúcha, diferente das outras na paixão que nutre pelo futebol. Uma nação que hoje entoa seus cânticos recheados de histórias de bravura, combates e, por fim, a glória. A devoção às cores que envolvem a bandeira gaúcha é tamanha que antes de cada jogo as torcidas de Grêmio e Internacional cantam a plenos pulmões o Hino Rio-Grandense, fato curioso para torcedores de outros estados. O Rio Grande do Sul desponta como pioneiro em relação ao modo de torcer no país. Foi aqui que surgiu uma das primeiras torcidas organi-

zadas, na década de 1940, que hoje leva o nome de Camisa 12, do Internacional. Sua criação está associada ao ex-jogador colorado da década de 1920, Vicente Rao. A partir daí, os atletas passaram a contar com uma motivação extra vinda das arquibancadas: fogos de artifício, serpentinas e os tradicionais bandeirões que saudavam os jogadores a cada entrada em campo. Tal pioneirismo observado na década de 1940 foi transportado para o século 21 e, desta vez, o arquirrival colorado era o precursor. Faixas verticais estendidas, bumbos que lembravam um coração pulsante, cantos que exaltavam o passado vitorioso do Grêmio, apoio incondicional ao time dentro de campo e um mar de gente que descia as arquibancadas em perfeita sincronia a cada gol tricolor. Estava formada a Geral do Grêmio em 2001. O Brasil estava mais próximo que nunca dos hermanos. Essa nova forma de apoio rendeu diversas ramificações entre os clubes, como o próp-

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FUTEBOL GAÚCHO

QUANDO O RIO GRANDE ENFRENTOU UM IMPÉRIO NAS QUATRO LINHAS

O surgimento dos barra bravas provém do Uruguai. O estilo teve no Rio Grande do Sul um catalisador responsável por espalhar essa novidade futebolística no Brasil. Ainda assim, é natural que haja uma resistência cultural por parte de outros estados. O futebol gaúcho visto por olhos estrangeiros é diferenciado, tanto pelo estilo, quanto pelo jeito de torcer. Para o jornalista Caio Maia, editor da revista ESPN e do site Trivela.com, cada região possui um estilo específico de jogar e torcer. “O gremista não gosta de jogar bonito, a menos que esteja ganhando tudo. Quando não ganha, se correr, der carrinho, suar a camisa e ainda der umas porradas, a torcida está feliz. No Inter, me parece, não se ganha a massa só com raça. Acho que não há um estilo gaúcho, mas sim dois”, acredita. Por outro lado, o jornalista David Coimbra, editor-executivo de Esportes do jornal Zero Hora, acredita que o futebol gaúcho já teve seu momento de pegada, nos anos 1970 e 1980. Porém, a partir da década passada o futebol se internacionalizou e todos os time adquiriram tal característica: “No imaginário do torcedor gaúcho, há uma presença forte de superioridade, assim como o próprio gaúcho se considera superior. É isso que motiva o jogador no campo, e que faz, por vezes, que joguem com tal propriedade”. Desde os primórdios do futebol no Estado, os clubes criaram uma aura do jogo feio, sem recursos primorosos. Essa cultura, tradicional de atletas gaúchos que cresceram ouvindo e vendo histórias de superação dos jogadores de outrora, encanta o imaginário do futebol gaúcho. Mesmo com a mudança de ideologias, com a vinda de jogadores de outros estados para cá, o futebol gaúcho não se adaptou aos jogadores, mas eles é que foram obrigados a se adaptar.

Até metade do século passado, não existiam competições nacionais interclubes, havia campeonatos entre seleções estaduais. Contudo, os times não eram propriamente de jogadores nascidos na sua unidade federativa, mas dos que atuavam por seus clubes. Um exemplo é Paulo Roberto Falcão, que nasceu em Santa Catarina, mas defendeu as cores do Estado contra um Brasil que se preparava para jogar a Copa da Argentina, em 1978. O confronto RS X Brasil mais antológico foi realizado no estádio Beira-Rio, em 1972. Pairava nos gaúchos um sentimento de vingança em razão do desprezo do resto do país aos jogadores do Sul: Everaldo – a estrela da bandeira do Grêmio – foi o único no time do tricampeonato de 1970. O Gigante, então, recebeu o seu maior público da história – 106.554 torcedores que ovacionaram a Seleção Gaúcha. Quando o time brasileiro abriu o placar, ouviu-se das arquibancadas “mata que é brasileiro”, pois a torcida era pelo chileno Figueroa (Inter) e o uruguaio Ancheta (Grêmio), ambos zagueiros. A partida terminou empatada em 3x3. Assim como na Revolução Farroupilha, os gaúchos enfrentaram um Império, mas desta vez a guerra terminou empatada. rio Internacional, cujos torcedores advindos do extinto setor da Coreia criaram a Guarda Popular Colorada em 2004, seguindo moldes parecidos. A origem do “jeito argentino de torcer” é dúbia – há quem diga que a ideia fora baseada nos hooligans ingleses –, mas sua aceitação é total nos estádios. Esse estilo leva o nome de “barra brava” e é caracterizado por não existir controle de adesão, nem uniformes próprios. Concentrados atrás das goleiras, os torcedores se tornam representantes da alma do time fazendo ecoar pelo gélido concreto da arquibancada seu apoio incessante.

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O Rio Grande do Sul desponta como pioneiro em aspectos relacionados ao modo de torcer no país.


PERFIL: CHARLES GRAVEM MARCUS BRUNO

O COLORADO ROMEIRO

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s mais de 35 quilômetros distantes jamais foram obstáculo para o torcedor Charles Gravem peregrinar ao seu Templo do Futebol. Pelo contrário, pois quando o Sport Club Internacional conquistara pela primeira vez o título de Libertador da América, cumpriu a promessa feita um ano antes e atravessou a sua cidade, Gravataí, a pezito no más, rumo ao estádio Gigante do Beira-Rio. Acompanhado de mais três colorados de palavra, aquela fila indiana chamou a atenção de alguns repórteres que cobriam o trânsito da freeway. A promessa acabou deixando o artista gráfico de 24 anos muito mais próximo do campo, do time, da torcida. Após aquela longa jornada, decidiu prestar um imensurável serviço à Nação Colorada conterrânea. Mobilizou um grupo de se-guidores da Academia do Povo que se reunia no boteco mais colorado da Região para criar um itinerário delirante: a Linha Vermelha. Duas vezes na semana, um ônibus caindo aos pedaços passou a cumprir o mesmo trajeto realizado a passos lentos por Charles. Bumbos, pratos e taróis, acompanhados de cerveja, cachaça e alento inspiraram o lema Sempre loucos atrás do gol!. “Este é o bus que mais levanta canecos. Nele, comemoramos a Sul-Americana, a Recopa, dois gauchões, e agora novamente a Libertadores”, se gaba. De 2005 a 2008 a torcida Guarda Popular viveu o seu auge, na opinião do torcedor. “Até dois anos, era muita euforia no Beira, todo mundo berrava com o coração, as músicas cativavam mais, muito sinalizador, muita bandeira. Agora parece que estamos desiludidos. A Linha Vermelha botava 50, 60 pessoas todo jogo, esse ano só vamos de micro-ônibus porque não dá gente!”, lamenta. De fato, o estádio Beira-Rio vem registrando queda na média de público de 2007 para cá. “Não podemo se entregar pros homi de jeito nenhum”, responde o fã sobre de onde tira fôlego para, além da Linha Vermelha e de sua firma, seguir trabalhando pelo Internacional no Consulado colorado da cidade. Numa noite de comemoração alvirrubra, 16 de agosto de 2006, o vice-cônsul de Gravataí, Paluga Martins, descobriu o potencial do rapaz e o convidou a integrar o colegiado municipal do clube. “Contribuir para o fortalecimento do Inter em Gravataí é o meu objetivo. Organizamos grandes festas todo ano, projetos sociais para as crianças carentes da cidade, até para os gremistinhas”, conta, aos risos. Charles nunca mais voltará a morar em Santa Catarina, como já tentou outrora. Futebol é mais que divertimento. O Clube do Coração, a religião. Mas nem todo fiel vai à missa todo domingo. O movimento dos colorados de Gravataí ganhou força à medida que freava o avanço tricolor nos limites da cidade. Conseguiu. Só que esvaziou. E agora, Charles? “Acho que é porque tá todo mundo pelado de tanto comemorar.” Pois é. A flauta jamais cessa.

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GLÓRIAS E FRACASSOS

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ma torcida que representa a alma do Grêmio. É desta maneira que o publicitário e conselheiro do tricolor Minwer Daqawiya analisa a importância daqueles que ocupam as arquibancadas do Estádio Olímpico. Gremista desde sempre, suas primeiras lembranças remetem a tempos gloriosos da história do clube, como o título Mundial de 1983, em Tóquio, sobre o Hamburgo, da Alemanha. Entre glórias e fracassos, Minwer presenciou uma boa parte deles. Inclusive alguns não relacionados ao futebol especificamente, como a ascensão da Geral do Grêmio de 2005 a 2007. “Em 2007, praticamente só víamos a Geral, e o Olímpico era um caldeirão apavorante pros adversários”, lembra. O publicitário não chegou a ser um frequentador assíduo do portão 10 – onde ingressam torcedores que geralmente assistem aos jogos na Geral –, porém, têm consciência, assim como 90% da torcida gremista, da importância que ela representa ao clube. Como nem tudo são flores tanto para o time quanto para a torcida, Minwer também testemunhou a divisão da Geral em 2009, que culminou na dissidência de um grupo de torcedores para o lado oposto do portão 10, formando a chamada Velha Escola. Em 2010, após acertadas as divergências, a Geral voltou reunificada, porém, não com tanta força como antes. “Esse racha acabou fomentando a volta de torcidas que pareciam extintas, como a Jovem e a Máfia (torcidas organizadas), que torcem da forma tradicional brasileira”, acredita. Para Minwer, a Geral, que não se caracteriza por ser uma torcida organizada propriamente dita, não conseguiu conter seu natural avanço e aceitação entre os gremistas. “Gostava muito da ideia inicial de uma torcida não organizada, pena que não conseguiram manter com o crescimento dela”, lamenta. Logo que houve o racha na torcida, a Velha Escola entrou com força no estádio Olímpico, competindo com a Geral do Grêmio no grito. Porém essa solução provisória acabou enfraquecendo algo muito maior que o duelo formado: a unificação da voz da torcida tricolor. Atualmente, a Geral ainda é o local de preferência de grande parte dos torcedores gremistas que vão ao Olímpico assistir aos jogos. Porém, como aponta Minwer, “existem aqueles que preferem manter uma certa distância da Geral”. Talvez devido ao trágico envolvimento de integrantes em casos de violência e até morte ou pelo fato de o torcedor gostar de assistir à partida de forma mais sossegada, com a família. Cada um tem seus motivos. O certo é que a Geral continuará com seu local de destaque no estádio e carregará para sempre a bandeira do pioneirismo barra brava no Brasil. Até quando irá durar? Ninguém pode garantir, mas seu nome já está marcado na história do clube e de milhões de torcedores que vestem as cores azul, preto e branco.

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ACERVO PESSOAL

PERFIL: MINWER DAQAWIYA


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O MITO DO ROCK GAÚCHO

maginar um tipo de rock de algum lugar é algo perigoso, talvez desnecessário. Todas as grandes bandas do gênero provaram que as fronteiras nunca existiram ou foram quebradas pelo bem de todos. O rock sempre esteve presente no Brasil, em Porto Alegre, no Bom Fim, seja onde for. Uma geração de bandas do Rio Grande do Sul, no entanto, levou o termo “rock gaúcho” para uma conotação que não se referia apenas ao gentílico que caracterizava os seus componentes. Mais do que isso, representava um momento de ruptura da história da música popular e urbana de Porto Alegre. As bandas que vieram antes da seminal metade da década de 1980 estavam na capital do estado, mas por algum motivo simplesmente ainda não eram o tal do rock gaúcho. Carlos Gerbase, ex-baterista dos Replicantes, uma das principais bandas daquele período, lembra que nos anos 1970 já havia um consumo forte de música rock em Porto Alegre. As plateias lotadas em shows internacionais, como foi o caso de Genesis e Rick Wakeman, e na década seguinte The Cure, são prova disso. “As bandas daqui ainda eram uma coisa mais restrita. Tinha a cena do IAPI, com bandas como Bicho da Seda e Liverpool, e tinha também outras de baile, mas era uma coisa diferente, eram

covers”, explica. Algo precisava ser mudado na cidade. Urgia a necessidade de acompanhar o que estava sendo feito no Brasil e no mundo. O chamado BRock de Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Blitz e Kid Abelha explodia no Rio de Janeiro dos anos 1980, assim como Ira!, Ultraje a Rigor e Titãs em São Paulo, todos buscando ter voz no período de redemocratização do país. O som dessas bandas, no entanto, não era chamado de rock paulista ou carioca. “No Rio Grande do Sul, se cunhou a expressão rock gaúcho a partir de 1985, com o lançamento do disco Rock Grande do Sul, da RCA”, lembra Frank Jorge, vocalista e baixista da Graforreia Xilarmônica e dos Cascavelletes. “Era uma cena que estava se fortalecendo de 1983 a 1985. Quem fazia som nessa época acabava rotulado de rock gaúcho muito mais pela questão geográfica do que estilística”, explica. Frank acredita que o termo se disseminou porque foi adotado pela mídia, principalmente as rádios. A questão estilística que Frank se refere é o universo de abrangência criativa coberto por bandas tão distintas como TNT, Cascavelettes, Replicantes, Urubu Rei, Graforreia Xilarmônica, De Falla, Garotos Da Rua e Engenheiros do Hawaii. Tão diferentes que fica impossível reunir

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ROCK GAÚCHO todas em um só rótulo, mas incrivelmente isso aconteceu em Porto Alegre. Criou-se um imaginário muito presente sobre esse tal rock gaúcho, alimentado pelo importante circuito de shows no interior do estado. “Isso permitiu às bandas se projetarem e se profissionalizarem”, conta Gerbase. A valorização em torno do termo rock gaúcho se deu graças às características autorais dos artistas da época. Naquele momento, uma quebra estava acontecendo na música do país, e Porto Alegre precisava acompanhar essa ruptura. “O arremedo de movimento que fizemos, muito articulado pelo Carlos Miranda [músico de algumas bandas daquela época e hoje produtor], tentou quebrar o que existia, trazer algo novo. Não queríamos desmerecer quem veio antes, mas queríamos dar uma fortalecida e uma oxigenada, acompanhar o que acontecia na música popular urbana, elétrica, barulhenta e diferente”, lembra Frank Jorge. Por mais que não fosse um movimento estruturado e teorizado como foi o caso do manguebit, em Recife, o rock gaúcho carregava consigo a característica de união entre as bandas. O vocalista dos Replicantes, Wander Wildner, não gosta do termo dado a essa fase e salienta que as coisas eram feitas muito mais despretensiosamente do que se pensa. “Posso estar completamente enganado, mas não me lembro das

pessoas preocupadas com isso [o movimento]. A gente fazia música por diversão”, conta. Na comparação com Recife, Wander lamenta a falta de uma mistura maior com os ritmos regionais. “Um dos crimes que aconteceu aqui em Porto Alegre é os nativistas não terem deixado acontecer essa troca. É inacreditável como o tiro foi no próprio pé, porque hoje em dia os netos deles fizeram a tchê music, que são uns guris de cabelo comprido, tocando baixo, bateria e guitarra, fazendo uma música de qualidade terrível”, lamenta Wander. Carlos Miranda explica que esse movimento forjado do rock gaúcho se consolida com a criação do selo Vórtex, invenção dos Replicantes e responsável por fazer os primeiros registros de muitas das principais bandas da década de 1980. Além do selo, criado após a assinatura de um contrato com a RCA, uma casa foi alugada em 1987 para funcionar como bar e ponto de encontro dos grupos. Por mais que se ouça falar do Rio Grande do Sul como um estado roqueiro, Frank Jorge considera que o termo rock gaúcho já se diluiu e não é mais tão usado. Principalmente porque toda uma leva nova de bandas está fazendo música sem se preocupar em trazer o carimbo. Há muita música sendo feita no estado, mas passou o tempo em que se fazia rock gaúcho ou que o imaginário classificava o rock dessa forma.

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“Quem fazia som nessa época acabava rotulado de rock gaúcho muito mais pela questão geográfica do que estilística”, explica Frank Jorge.


PERFIL: JUPITER MAÇÃ

O Flávio Basso participou do 13º festival de fotografia Goiânia Noise posando como Jupiter voltando do infinito

UM BEATLE GEORGE

chimarrão substituído pela cerveja à noite. As ressacas da manhã após horas de conversa no antigo Bar João. O jeans rasgado, as roupas pretas. All Star sempre sujo. Em meio à nevoa de fumaça, ali nasciam projetos, letras e partituras para a música ter sabor de gaita. Bandas irmãs como Replicantes, Graforreia e TNT, com o mesmo ideal, arquitetavam seu rock. Por que tão gaúcho e tão isolado? Ex-TNT e Cascavelletes, Flávio Basso, 42 anos, é a alma dos anos 1980 pura rebeldia. “Estou cansado. Foram anos de muita loucura”, explica. Flávio, que hoje é conhecido por Júpiter Maçã, relembra os tempos que todas as bandas de Porto Alegre se uniam para fazer a sua música. Quem passa por ele, sereno, completamente careca, mal reconhece a figura errante que se aventurava pelas alamedas de Porto Alegre nos últimos anos. Ele que é constantemente citado por artistas de renome nacional e internacional como referência de rockeiro dos tempos áureos da música. Sua essência criativa é imprevisível, instigante, magnética, elegante, vanguardista e genuinamente “sem fronteiras”. Mosaico de imagens mil, um pesquisador gaúcho-inglês, um retirante poético. “Minha influência vem de misturas como Mutantes, Tom Zé, Rolling Stones. Daí a gente viaja. Vejo Beatles, penso na MPB. O rock de todo mundo segue por influências assim. Não vejo esse paradoxo que aqui somos diferentes. De repente encontro coincidências entre nossos sons. Muita cachaça entrando nas letras, amizade. Eram bons tempos. Porto Alegre nos abrigou muito bem quando as bandas que estavam tentando colocar seu som nos ouvidos dos jovens eram tão inexperientes quanto verdadeiras. Às vezes quero ser Beatle George, mas não me sinto completamente preparado”, admite Flávio. A imagem do rockeiro atordoado no palco, sem referenciais e incompreendido pelo público, não é estranha e Júpiter sabe disso. Arnaldo Baptista, Syd Barret e Charly García são exemplos clássicos da oposição entre genialidade artística e derrocada moral. A dificuldade de se manter sóbrio e de se comunicar de forma clara pode explicar outra característica comum entre esses artistas: o apelo sexual. “Se for analisar do ponto de vista da canção, muito bela por sinal, na verdade é um choro que nós, artistas, temos pelas nossas inspirações. Em Porto Alegre temos um pensamento muito parecido, som parecido. É daí que vem o imaginário do povo”, complementa Flávio, convicto. “Sobre essa associação ao território, juntando o pessoal do sul com o imaginário do nosso rock, considero um paradoxo individual. Porto Alegre e sua vibração é perfeita. É impressionante a força que esse lugar exerce em mim. Sou um cara que se encontra viajando, sem estar fixado em algum lugar, na verdade é quase uma exigência da minha existência, parece que não tenho o que se poderia chamar de ponto de referência. Às vezes sou carente disso, do cantinho único, daquilo que as pessoas chamam de porto seguro. A aventura transcende o que se entende por limites estabelecidos”, esclarece. Com melodias de fácil assimilação e letras de pouco ou nenhum conteúdo, o rock passa paulatinamente a ser encarado como bem de consumo. Esse fenômeno, que afeta diretamente o apuro formal e a sofisticação da musica gaudéria, também é verificado com o rock no restante do país.

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PERFIL: JUPITER MAÇÃ

EDUARDO KOLODY

“Eu olho pra trás, vejo tudo que passei com todas as minhas bandas e acho super bacana, mas, por outro lado, esse espírito que pode ser considerado um passo além do aventureiro, um aventureiro nato, também fica à flor da pele, é preciso saber lidar com isso para obter resultados precisos, lúcidos.” Um aspecto que se pode destacar a essa altura é o recurso encontrado para representar o cenário da canção rock. A cidade deixa de ser concreta e se transfigura num espaço idealizado que se presta ao olhar subjetivo do autor. No entanto, os logradouros, as características climáticas e a história da cidade não são desprezados. O espaço urbano é simbólico, para onde o sujeito regressa em busca de si mesmo.

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MULHERES

SUPREMACIA DA BELEZA GAÚCHA

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conceito de beleza foi interpretado de várias formas em diversas épocas. Se o padrão de beleza já foi a mulher ser corpulenta e forte, hoje elas devem ser mirradas e magras. Alguns filósofos antigos como Platão, Aristóteles e Plotino consideravam a estética uma matéria fundida com a lógica e a ética. O belo, o bom e o verdadeiro formavam uma unidade com a obra. A essência do belo seria alcançada identificando-o com o bom, tendo em conta os valores morais. Especialmente para Platão, somente a partir do ideal de beleza suprema é que seria possível emitir um juízo estético, portanto definir o que era ou não belo, ou o que conteria maior ou menor beleza.

Na modernidade, a beleza encontra-se muito menos ligada ao conceito de perfeição e sim atrelada à ideia suprema de expressão. O filósofo Gabriel Bandeira explica que quando falamos sobre beleza, antes de qualquer coisa estamos falando de sensações causadas pelos nossos sentidos. “A beleza tem gosto, pode ser vista, ouvida, cheirada e tocada. Assim como aprendemos a ler e a escrever, também aprendemos a sentir aquilo que é bonito e o que é feio”, afirma. Assim, Bandeira considera que o mais importante para ser afirmado sobre a beleza é que ela é algo construído e não há uma essência para isso. “Desde crianças somos educados a exaltar a beleza e rejeitar a feiúra. Existem concursos de

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MULHERES beleza para crianças em que elas são obrigadas a serem bonitas, sem saber o porquê’, explica. Se o conceito de beleza é difícil de ser definido, como pontuar que uma mulher é mais bela do que outra? E ainda mais, como afirmar que as mulheres de uma região do país são mais belas do que as de outra? E por fim, é possível afirmar que as mulheres gaúchas são mais bonitas? O padrão que se tem hoje de beleza, segundo o filósofo, surgiu no século 20 com o lançamento da boneca Barbie. Quanto mais parecida uma mulher for com essa boneca, mais bonita ela é. Essa afirmação traz indícios de que as gaúchas, por terem a tez mais clara e muitas possuírem cabelos loiros, se enquadram mais no padrão Barbie de ser. Alguns indícios para se chegar a uma possível conclusão é a análise das ganhadoras de concursos como Miss Universo e Miss Brasil. Das duas brasileiras que ganharam o Miss Universo, uma era gaúcha. Ieda Maria Vargas ganhou o concurso em 1963, tendo 19 anos na época, e marcou o ideal sulista de beleza. No Miss Brasil, a supremacia das gaúchas continua: 10 vitórias, sendo o estado que mais ganhou o concurso. Evandro Hazzi, um dos maiores especialistas em beleza feminina no país, acredita que as mulheres gaúchas realmente se destacam das outras, tanto na vida pessoal quanto na profissional. “Aqui no Rio Grande do Sul acontece uma grande miscigenação de raças. As ascendências alemã e italiana são importantes porque às vezes as etnias se cruzam e casais de diferentes ascendências se casam e nascem filhos miscigenados perfeitos”, acredita. Segundo Hazzi, a parte da miscigenação é muito importante para a criação deste padrão de estética, embora não seja a única. “No Estado elas

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também são bem cuidadas, e isso faz diferença no mercado”, considera. Assim, não são apenas os traços de europeus que caracterizam a beleza da gaúcha e sim, todo um cuidado de pele, alimentação e uma predisposição genética para serem altas e magras. A ideia de que apenas as loiras têm espaço também foi desmanchada com a vitória de Deise Nunes, no Miss Brasil. “Eu acho que tem espaço para todas as etnias, a mulher sendo bonita ela consegue lugar no mercado. A Deise Nunes já foi uma grande top, porque tem traços perfeitos, uma negra europeia com nariz fino, lábios grossos e corpo esguio”, define Hazzi. Por fim, Evandro Hazzi sustenta seu argumento com uma lista peso-pesado de tops: “As melhores modelos no mundo são gaúchas. Temos a Gisele Bundchen, a Alessandra Ambrósio, a Shirley Mallmann , a Letícia Birkheuer e muitas outras”. A perfeição, entretanto, não vem sempre do berço. Segundo o cirurgião plástico Denis Valente, a mesma ascendência que as faz belas, leva algumas ao consultório. “As que possuem traços italianos normalmente vem até aqui para corrigir o tamanho do nariz, já as de traços alemães apresentam mais orelhas de abano que as outras”, observa. O cirurgião acredita que as gaúchas procuram mais as clínicas para tratarem o rosto, ao contrário de outras partes do país, onde se investe prioritariamente no corpo.“As gaúchas apresentam sim esse diferencial de beleza, muito se deve à menor exposição ao sol, por terem a pele clara, e pelo clima mais frio”, afirma. Mesmo o conceito de beleza sendo tão discutível, no imaginário estabelecido no estado, a mulher gaúcha ainda carrega a fama e os títulos de mais bela.

“A beleza tem gosto, pode ser vista, ouvida, cheirada e tocada.” Gabriel Bandeira


PERFIL: DEISE NUNES

UMA REPRESENTANTE DA BELEZA

E “As gaúchas causam grande expectativa entre as concorrentes, chegam para incomodar”, revela Deise.

m 1986, quando Deise Nunes era candidata a miss Brasil, as pessoas se surpreenderam com o fato de a representante do Rio Grande do Sul ser negra. Em um Estado conhecido por suas mulheres de traços europeus, loiras, de pele e olhos claros, ela admirou a todos. Natural de Porto Alegre, Deise foi a primeira e única negra a conquistar o título em 56 anos de concurso. Rompeu preconceitos, uma batalha importante para os negros. As gaúchas são conhecidas nacionalmente pela beleza. Esse destaque é comprovado por estatísticas: das duas brasileiras que receberam a faixa de miss Universo, uma é gaúcha; no concurso de beleza mais importante do país, as rio-grandenses foram as que venceram mais vezes, totalizando dez vitórias. A ex-modelo acredita que o povo gaúcho compreende que possui as mais belas e que isso ocorre por serem orgulhosos da terra, do sangue e da sua história. Dentro e fora do Estado, a ex-miss Brasil reconhece que as gaúchas são lembradas como sinônimo das mais bonitas. Deise atribui essa ocorrência à miscigenação, à mistura de várias etnias. “Em concursos, as gaúchas causam grande expectativa entre as concorrentes, chegam para incomodar. Isso ocorre porque elas realmente possuem potenciais”, afirma. Deise entrou no mundo da moda aos 14 anos, em 1982, realizando desfiles para marcas como Malhas Elaine, X&C e Milka. Aos 16 anos, venceu 78 concorrentes no concurso Rainha das Piscinas, ao representar o Sport Club Internacional. O tradicional concurso era relevante no Estado, equivalendo hoje ao Garota Verão. Após vencê-lo, soube através de um dos jurados, mais tarde seu amigo, que foi alvo de preconceito. Os próprios avaliadores do evento, ao contabilizarem os pontos da vencedora, espantaramse com o resultado e resolveram calcular novamente. Com a confirmação, e como já estavam atrasando o anúncio da nova rainha, declararam Deise ganhadora. Muitos não gostaram. Dias após o ocorrido, Deise flagrou a conversa de um casal desconhecido que caminhava à sua frente pelo centro de Porto Alegre. Eles expressavam o descontentamento pelo fato de uma negra ter conquistado o título. Ela se sentiu muito mal. “Foi como se tivessem me dado um soco no rosto”, compara. Então decidiu abandonar os concursos. “Eu não era obrigada a ouvir piadinhas e a ser discriminada pela minha cor, não queria mais aquilo.” A mãe de Deise insistiu para que a filha continuasse nas passarelas, inscrevendo-a no Miss Rio Grande do Sul, sem que ela soubesse. Apesar do receio, aceitou o incentivo da mãe e participou. Aos 18 anos, conquistou não apenas mais esse título, como também, no mesmo ano, o de miss Brasil. Depois de 1986, nenhuma outra negra venceu o miss Brasil. Deise atribui esse fato ao medo que as meninas sentem em ser discriminadas, assim como ela na época. Outra questão que a ex-miss relata é a financeira. Não foi simples chegar ao título. Além de obter trajes emprestados de lojas, precisou contar com a ajuda de muitas pessoas. Ela acredita que o Rio Grande do Sul já foi muito racista, lá pela década de 1970. Hoje, crê que as pessoas não estão mais preocupadas como o racismo. Acredita que se o Estado fosse tão preconceituoso como dizem, não teria elegido Alceu Collares para governador, em 1991.

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PERFIL: DEISE NUNES

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CANIBAIS PORTO-ALEGRENSES DANIELA GRIMBERG

OS CRIMES DA RUA DO ARVOREDO

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mas era boa aquela linguiça! É o que falam por aí”. Já o açougueiro do outro lado da rua diz que tudo ocorreu no prédio amarelo da esquina, e se defende: “As pessoas acham que é aqui, mas não é não. É ali do lado do hotel. Diz que o alçapão existe até hoje. Aqui só tem linguiça animal”. O dono do Bar do Português, no prédio amarelo, explica: “Ninguém sabe ao certo, mas era atrás da Cúria Metropolitana. Às vezes alguém relembra esse crime, como quando a Globo fez um especial no programa Linha Direta. Aí todo mundo desenterrou a história”. Porto Alegre não era a capital que se conhece hoje: o município tinha menos de 20 mil habitantes, entre eles açorianos colonizadores, imigrantes alemães recém chegados e escravos africanos. Na Rua do Arvoredo, situava-se o açougue de

xiste uma linha tênue entre realidade e ficção. Fatos históricos provêm dos relatos de um povo, dos documentos que restaram, das evidências que permaneceram. Mas este povo possui um imaginário que vai além disso tudo e faz com que a história seja enfeitada com obras de valor ficcional e artístico que ora seduz, ora faz temer. É o caso do famoso crime ocorrido em 1864 na Rua Fernando Machado, antes conhecida como Rua do Arvoredo, que chocou a população de Porto Alegre. O caso se perpetua até hoje, despertando interesse entre os porto-alegrenses e, inclusive, inspirando livros e filmes. Pouco se sabe sobre o que realmente aconteceu, mas todos têm palpites a respeito. O verdureiro da rua, quando questionado sobre o local dos crimes, responde: “Eu não sei,

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CANIBAIS PORTO-ALEGRENSES tidas como perdidas. Décio reproduz, no livro O maior crime da Terra: o açougue humano da Rua do Arvoredo, o depoimento de Catarina relatado à polícia, enquanto cumpria pena, dizendo que a carne era realmente humana. A figura da mulher que atraía as vítimas ao açougue não é menos importante, pois também mexe com o imaginário popular. Por isso, Coimbra transpôs o ideário da femme fatalle para a personagem no livro. A Srta. Palse do livro via os homens como fracos e vulneráveis, demonstrando desprezo pelas vítimas. Na vida real, Catarina viveu o drama da guerra. De origem muito pobre, teve sua família dizimada e foi estuprada por soldados alemães. Mais tarde teria imigrado ao Brasil junto com o marido, que se enforcou durante a viagem. Muito se especula acerca do poder de atração de Catarina, que para o ideário era de uma mulher vistosa e atraente. No entanto, Freitas narra em seu livro as memórias de Jean Pierre Caillois, que a contemplou no tribunal, “... é inteiramente desprovida de dotes físicos e mal se pode acreditar que exerce atração. Baixa e obesa só têm de belos, os longos cabelos loiros e os olhos muito azuis”. Coimbra defende que “historiadores não se prendem aos personagens, enquanto que os jornalistas exploram muito as pessoas envolvidas na história”. Mesmo assim, o jornalista ratifica que Canibais: paixão e morte na Rua do Arvoredo é uma obra de ficção, baseada no seu próprio imaginário em torno do crime de 1864. Seja por meio deste livro ou de tantos outros tipos de representação, este crime acaba sempre por voltar à memória e assim, vai deixando seu legado à história, com todo o imaginário que o envolve. Não há quem não se impressione ao saber que um dia porto-alegrenses podem ter sido canibais.

José Ramos, onde era possível adquirir as linguiças mais gostosas da cidade. Ramos era alto e forte, um ex-sargento interessado em teatro e música clássica. Sua mulher, Catarina Palse, era descendente de imigrantes húngaros, loira, alta e incrivelmente sedutora. Os dois não eram casados formalmente e Catarina levava má fama por não apresentar boa conduta. Certo dia, a polícia foi até o açougue para investigar o desaparecimento de três homens que foram vistos pela última vez no estabelecimento de José Ramos. Na porta do açougue, permanecia insistentemente o cachorro da vítima, que não parava de latir. De acordo com os autos do processo, no pavimento inferior da casa foi descoberta uma cova rasa onde jaziam ossos humanos e um cadáver em avançado estado de putrefação, que depois se descobriu ser do antigo dono do estabelecimento, o alemão Claussner. Os restos mortais das vítimas desaparecidas foram encontrados mutilados em um alçapão no quintal. E para o horror da população, ali também encontraram morto o pobre cachorro, que uivava em busca do dono, à porta do açougue. Apesar de não constar no processo nenhuma referência de que as tão famosas linguiças eram feitas de carne humana, essa foi a conclusão a que todos chegaram. Uma hipótese defende que esta lenda só não aparece no documento por uma precaução da polícia da época, que não queria conferir à população o título de canibal. A história com ares de ficção fez com que o jornalista David Coimbra aproveitasse os fatos para escrever o romance intitulado Canibais: paixão e morte na Rua do Arvoredo. A ideia do livro surgiu ao ouvir os relatos contados por seu avô. Outra fonte foi Décio Freitas, historiador e jornalista gaúcho que pesquisou os crimes e teve acesso a partes do processo nos anos 1940, hoje

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“Historiadores não se prendem aos personagens, enquanto que os jornalistas exploram muito as pessoas envolvidas na história.” David Coimbra


FATOS DESMENTIDOS

P “Décio declara que seu objetivo é separar a lenda dos fatos, mas o que ele acaba consagrando é uma versão ficional.”

ouca novidade se esperava do caso dos crimes da Rua do Arvoredo depois de pouco mais de 140 anos e da grande notoriedade que o fato adquiriu devido ao sadismo dos assassinos José Ramos e Catarina Palse. No entanto, a falta de evidências sobre os elementos fantásticos da história, como as linguiças feitas de carne humana, foi o que motivou o historiador e professor da Unisinos Cláudio Pereira Elmir a investigar o que fez com que o incidente viesse a se tornar uma espécie de lenda urbana porto-alegrense. O primeiro contato com os fatos relacionados aos crimes resultou em sua dissertação de mestrado, apresentada em 1996 na UFRGS, posteriormente evoluindo para a tese de doutorado, defendida em 2003 na mesma universidade. A escolha do tema para ambos os trabalhos, bem como a utilidade dos estudos, foram questionadas por alguns conhecidos do historiador. “Eu precisava lidar com o paradoxo de abordar práticas sociais condenáveis e dar a elas dignidade epistemológica”, justificou Elmir à época. “A fama de que se revestem os crimes da Rua do Arvoredo deve autorizar ou interditar uma abordagem historiográfica, como a que eu pretendia empreender? Vê-se, com isso, que não se tratava apenas de um problema epistemológico, mas também de uma questão ética.” Durante os anos de estudo, o historiador pesquisou o caso nos jornais Diário de Notícias e Última Hora, bem como os processos criminais arquivados, e concluiu que grande parte da ficcionalização dos crimes foi causada, justamente, pelos registros do também historiador Décio Freitas. Após escrever sobre a história em um folhetim para o jornal Diário de Notícias, em 1948, no qual chegou até mesmo a desmentir a questão das linguiças e do canibalismo, Freitas resolveu produzir um livro de cunho histórico sobre o caso. No entanto, o objetivo não ficcional da obra continha todos os elementos fantásticos que antes havia desconsiderado – e que Elmir não conseguiu comprovar pela inexistência de evidências. “O que critico é o ensaio histórico do Décio, pois ele declara, no início do livro, que seu objetivo é separar a lenda dos fatos, mas o que ele acaba consagrando é uma versão ficcional. Inventa documentos que não se encontram nos arquivos, como um processo criminal de outras seis mortes, justamente as que teriam originado as tais linguiças, e dois livros de memórias de pessoas que teriam contado sobre o julgamento desses outros assassinatos. Como nunca localizei esses dois livros nem o processo, parti da ideia de que ele inventou as provas, para tornar a história interessante”, aponta. Assim, o objetivo da tese de doutorado foi discutir as diferentes versões que foram passadas adiante sobre os crimes, a partir do fato de que as evidências encontradas mostravam uma história bem menos atraente do que veio a se tornar. “Eu quis explicar que não haveria interesse histórico em relação aos crimes não fosse a ficcionalização, o que é um paradoxo: o enredo foi se sofisticando, mais elementos se agregaram à história, e isso acabou se firmando como senso comum na cultura dos porto-alegrenses, como vemos até hoje”, explica. O que se descobriu foi que, apesar de todos os detalhes fictícios que se incorporaram aos crimes, estes não passaram de acontecimentos relativamente banais, até comuns para a época. Segundo Elmir,

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PERFIL: CLÁUDIO PEREIRA ELMIR o perfil de assassinos na Porto Alegre de 1860 era justamente o de José Ramos e Catarina Palse: pertencentes às camadas populares, sem emprego definido e na faixa etária de 20 a 40 anos. Enquanto isso, as reais vítimas dos dois – os comerciantes Claussner, Januário e José Inácio – possuíam condições econômicas mais elevadas, o que leva a crer que a principal causa do crime foi mesmo latrocínio. “O José Ramos nem mesmo era açougueiro, e sim o Claussner que, após ser morto, teve seu estabelecimento ocupado pelo assassino”, explica. À polícia, Ramos afirmou que Claussner teria transferido o açougue para o seu nome e forjou uma espécie de recibo com a assinatura da vítima. A farsa foi descoberta a partir da comparação da assinatura apresentada com a que constava em seu passaporte. A suposta atração sexual que Catarina provocava nas vítimas, por sua vez, é posta em dúvida por Elmir. “Na verdade, os dois se acusavam mutuamente, tentando se esquivar dos crimes, mas ambos foram julgados como réus e ficaram presos por 13 ou 14 anos”, conta o historiador. Após o término das duas pesquisas, Elmir acredita não ter mais o que dizer sobre os crimes da Rua do Arvoredo. “O livro [Odiosos crimes: o Processo 5616 e os crimes da Rua do Arvoredo, Oikos Editora/Editora Unisinos, escrito com Paulo Roberto Moreira], que publicamos em 2010 se deu pelo surgimento de um novo processo que se descobriu há pouco sobre o caso, que consta no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Mas minha participação nessa obra está mais voltada aos restos da minha tese de doutorado”, justifica ele, que desconsidera realizar futuros estudos sobre o caso. “Acho que isso era tudo. Não tenho mais o que dizer sobre os crimes.”

Lançado em 2010, o livro “Odiosos Homicídios: O processo 5616 e os crimes da Rua do Arvoredo” (Editora Oikos/ Unisinos), dos professores Claudio Pereira Elmir e Paulo Roberto Staudt Moreira, traz um novo processo sobre o caso.

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O BARÁ DO MERCADO FOTOS PROGRAMA DE PESQUISA EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DA UFRGS

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O MISTÉRIO DO BARÁ DO MERCADO

bará do Mercado Público desperta curiosidade dos porto-alegrenses. Entidade reverenciada pelos adeptos das religiões de matriz africana, ele teria sido assentado na região central do Mercado quando este estava em construção. Mas qual seria a sua forma? O que, na verdade, está escondido em suas mais profundas galerias? O que realmente encontrase enterrado naquele prédio histórico de Porto Alegre não é fácil de definir. Bará é o diminutivo de Elybará, da língua Jeje, e representa o exu, que é o nome dado ao orixá dono dos caminhos e das encruzilhadas. Por isso a escolha de colocá-lo justamente no centro do principal ponto comercial da Capital, onde eram vendidas as mercadorias que chegavam direta-

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mente do porto, pode significar um intuito de trazer maior movimento ao Mercado. Que forma tem o bará? Essa é uma dúvida para a qual não existe apenas uma resposta. Para o pai de santo Mestre Borel, pode ser uma pedra, uma madeira, um metal ou qualquer objeto que represente aquele orixá. Porém, entre os anos de 1990 e 1997, quando foi feita uma grande reforma no Mercado, arqueólogos realizaram uma escavação no local para descobrir qual era o tal objeto. Após muita procura, nada foi encontrado. “Não encontraram nada porque o bará foi colocado ali na época da construção do Mercado, portanto está nas galerias mais profundas da estrutura”, afirma Mestre Borel. “Não foi achado porque não é interesse do bará que o encontrem.”


Mãe Maria de Oxum acredita que não foi possível encontrá-lo pois ele pode ser inclusive um elemento da natureza, como a terra. Além da incerteza sobre o formato, não existe consenso sobre quem o colocou no local. Uma das teorias é a de que os negros escravos que trabalhavam na construção do prédio teriam colocado-o na estrutura como uma forma de proteção. A segunda teoria aponta que o Príncipe Custódio, que entre 1901 e 1936 viveu em Porto Alegre, onde difundiu as práticas da religião africana, teria feito o assentamento do bará. A escolha do local é a única certeza: o Mercado Público por ser um local de grande circulação de negros. As certezas são poucas, mas restam afirmações de quem integra a Umbanda, a Quimbanda ou o Batuque sobre a força do bará. “Nós sabemos que ele está enterrado no Mercado pois podemos sentir a energia que ele emana”, sentencia o pai de santo Baba Diba. “Recebemos pelos pés a certeza de que está ali.” Ainda existem especulações sobre o assentamento de outros barás em Porto Alegre. Um estaria enterrado no Parque Farroupilha, outro possivelmente em algum lugar no bairro Cidade Baixa. Reza a lenda de que, ao todo, seriam sete, mas se sabe ainda menos sobre esses do que sobre o do Mercado.

Janeiro, segundo colocado, seguido de Bahia, de Pernambuco e do Maranhão. O espanto tem origens na auto-afirmação que gera a produção de uma imagem do Rio Grande do Sul como um estado branco, cristão, colonizado e habitado por imigrantes europeus, ofuscando índios e negros. Estima-se que existam 30 mil terreiros no Estado, sendo 1,2 mil apenas em Porto Alegre e na Região Metropolitana. Entre os fatores de crescimento das religiões africanas nos últimos tempos está a forte participação de brancos, cujo envolvimento cresceu 35% nos últimos dez anos, conforme dados da Federação da Religião Afrobrasileira (Afrobras). Uma das principais motivações para a elevação do número de adeptos é a busca de cura para enfermidades e de solução para problemas financeiros ou sentimentais.

Mercado Público no início do século 20 (página esquerda). Ao lado, a foto indica

RELIGIÃO AFRO NO ESTADO

forte presença de

De acordo com o censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2000, o estado mais afro-religioso do Brasil é o Rio Grande do Sul, ao contrário do que o imaginário indica: 1,62% da população se declarou praticante, e a estatística cai para 0,3% quando se refere aos brasileiros. A maior surpresa foi os gaúchos estarem à frente de estados como Rio de

negros em seus arredores.

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PERFIL: ANA LUIZA CARVALHO DA ROCHA

PATRIMÔNIO IMATERIAL DO POVO NEGRO

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CLAREANA KUNZLER FERREIRA

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mistério que envolve o bará do Mercado não se restringe ao imaginário popular. Ele também chama a atenção de estudiosos que tentam contextualizar e caracterizar essa tradição. A coordenadora do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRGS, Ana Luiza Carvalho da Rocha, dedicou-se durante um ano de 2008 a ouvir os narradores dessa história que foram a base para o documentário etnográfico Os caminhos invisíveis do negro em Porto Alegre: a tradição do bará do Mercado, o qual assina a direção. O resultado procurou, por meio do bará, mostrar a importância do Mercado Público nas religiões de matriz africana. A antropóloga conta que o primeiro passo para narrar a tradição do bará do Mercado em Porto Alegre foi compreender essa religião como parte do contexto urbano da cidade. Perceber o Mercado também como um território negro e não vinculado apenas às tradições européias. “Nosso engajamento neste processo se deu a partir do compromisso de evocar os simbolismos do bará para o Batuque afirmando, junto com aos pais e mães de santo, sua importância enquanto patrimônio imaterial do povo negro”, conta. Para o documentário, era importante mostrar a pluralidade de vozes do mito do bará, tecendo a visão de cada pai e mãe de santo. “Para a ciência, existe uma realidade que deve ser única. Já na antropologia, tanto o que é real, quanto o que é mito, têm o mesmo valor. E nós sabemos que um mito se torna mais forte quanto mais versões ele tiver”, explica. Ana não é estudiosa das religiões afro, então ela deixou a escolha dos personagens que contariam a história a cargo de integrantes da Congregação em Defesa das Religiões Afro-brasileiras do Rio Grande do Sul (Cedrab-RS). Foram selecionados dez nomes, entre eles dois dos mais antigos pais de santo de Porto Alegre, que se negaram a testemunhar sobre o bará. Ana Luiza disse que, a partir das entrevistas, ficou claro que o bará do Mercado é um mistério também para as pessoas que fazem parte das religiões, e não somente para os leigos. “Durante as conversas, cada um dava a sua opinião sobre a origem do bará e o que realmente seria o assentamento. O único consenso era o seu significado”, aponta. A pesquisadora destaca que o imaginário dos adeptos da religião se torna semelhante ao da população em geral. Ambos tendem sempre a tentar “adivinhar” o que, afinal, significa o bará. Dentro da religião, porém, temos uma única resposta consensual: de que ele é uma energia forte o suficiente para que não se possa duvidar de sua existência. Ao longo das filmagens, Ana coletou entrevistas e imagens de cada um dos personagens separadamente. Uma das únicas vezes em que todos estiveram reunidos foi na exibição da prévia do documentário. Naquela ocasião, eles


PERFIL: ANA LUIZA CARVALHO DA ROCHA admitiram terem se surpreendido com o resultado, que parecia mostrá-los a dialogar entre si. “Os participantes perceberam que, mesmo com opiniões divergentes, os depoimentos reunidos formavam uma unidade sobre a sua crença”, conta. O único momento de tensão foi na gravação de um culto ao bará, em plena região central do Mercado, que serviu de abertura para o documentário. Naquele dia, os cerca de cem participantes do evento trajavam vestimentas características e geraram protestos por parte dos evangélicos que se encontravam no local. “As duas religiões estão presentes dentro do Mercado e em constante rixa”, explica Ana. Além disso, entre os próprios afro-religiosos havia divergência entre a necessidade de ter uma pessoa que representasse a entidade ou se apenas os cantos o evocariam sua energia. Essa discussão diz respeito à constante dúvida sobre a materialidade do bará. “As pessoas tentam encontrar o objeto que foi assentado, que represente fisicamente o bará, mas ele é uma carga intangível e imaterial”, contextualiza Ana. “O importante não é definir o que ele é, mas compreender o espaço que ele tem como patrimônio imaterial das religiões africanas, e por isso deve ser tombado.” No entanto, a falta de percepção dessa importância por parte dos não adeptos faz com que, por exemplo, exista um policial responsável pela guarda do Mercado, de pé, em cima do local. “Uma das propostas dos religiosos é criar uma urna para coletar as oferendas, que hoje são atiradas aos pés do guarda”, conta. Diariamente, são deixadas moedas e até mesmo comidas como “presente” para o orixá. Ana Luiza finaliza dizendo quanto foi gratificante participar do projeto: “Eu entendia muito pouco sobre a religião quando comecei esse trabalho. Aliás, ainda não sei quase nada.”, brinca ela. Segundo ela, é importante perceber a diferença intrínseca da religião afro, quando comparada ao catolicismo. Para esta, há uma entidade maior, que já habitou a Terra e que voltará algum dia. Já para os afroreligiosos os orixás estão sempre presentes e podem ser encarnados em rituais. “É uma religião de muitos mistérios, só estando dentro para entender o que aqueles ancestrais significam para eles”, conclui Ana.

As mercadorias chegavam ao porto para serem comercializadas no Mercado Público

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“Para a ciência existe uma realidade, que deve ser única. Já na antropologia tanto o que é real, quanto o que é mito, têm o mesmo valor. E nós sabemos que um mito se torna mais forte quanto mais versões ele tiver.”


ARQUIVO/PMPA

CORES E CHEIROS

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CIDADE DE CORES, CHEIROS E MEMÓRIAS

capacidade de imaginar se torna essencial para a construção da realidade. Por meio das cores, cheiros e sabores é possível tomar consciência do mundo e, especialmente, sentir aquilo que o entorno oferece. No entanto, essas sensações também carregam lembranças, que se perdem na imaginação, como se fossem histórias de um livro: quase sempre verdadeiras, mas com detalhes por vezes inventados. As cores que Nóia Kern vê, quando pensa na cidade em que vive, se perdem no lilás dos jacarandás que a acompanham há tantos anos em suas jornadas de trabalho na organização da Feira do Livro de Porto Alegre. “Na primeira vez que pisei na Praça da Alfândega, eu ainda era uma professora em começo de carreira, assustada diante de tanta cor e tanto livro. Variedade de ver-

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de, muita pedra, casarões amarelos e um cheiro adocicado de pipoca que ficava no ar. Por vezes, penso que minha memória me trai: será que era assim mesmo?”, questiona-se. E, como num filme, Nóia vê pessoas passando pra lá e pra cá, imagina o frescor da chuva, o calor do sol, mas não esquece aquela cor lilás. Aliás, o lilás dos jacarandás também habita as memórias de Jussara Haubert Rodrigues, assessoraexecutiva da Câmara Rio-Grandense do Livro. “A explosão dos jacarandás, da Praça da Alfândega e da minha Rua da República, decreta a chegada da primavera e libera os porto-alegrenses da hibernação do inverno. O lilás, misturado ao verde que circunda a feira, dá adeus aos tons cinzentos dos nossos invernos molhados”, emociona-se. E se a primavera se mostra lilás, como seus jacarandás,


ARQUIVO/ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DA GONÇALO DE CARVALHO

o outono ganha tons avermelhados, como o pôrdo-sol da estação. Já o verde da Rua Gonçalo de Carvalho é a grande paixão do arquiteto Flávio Lembert, que tem seu escritório na região conhecida como “túnel verde” de Porto Alegre. “É uma rua bastante especial, pois segue um projeto urbanístico interessante: uma sequência de plantas da mesma espécie, o que garante a mesma cor e o mesmo porte”. As árvores que cobrem a rua são da espécie Tipuana tipu, que se adapta muito bem ao clima subtropical de Porto Alegre e também ao intenso movimento dos centros urbanos. Para Lembert, o verde caracteriza não só a rua onde trabalha, mas também a cidade de Porto Alegre de maneira geral. “Ou pelo menos para quem, assim como eu, circula mais por aqui do que entre os prédios do Centro da cidade”, constata. Foi com o cinza, a sujeira e o cheiro de xixi do Centro que o publicitário Renato Ortiz se deparou logo que desembarcou de Uruguaiana, cidade do interior do Rio Grande do Sul em que se criou. E o choque foi grande: até os cinco anos, Ortiz

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e sua família viveram em Porto Alegre. Depois, fizeram as malas para Uruguaiana, mas ficaram as lembranças da infância de quando passeava em sua bicicletinha pelas ruas próximas à Avenida Independência. Após uma temporada na cidade de Santa Maria, onde cursou a universidade, Ortiz voltou para Porto Alegre em busca de oportunidades profissionais. “Não guardei na memória esse cheiro ruim que têm as ruas daqui. Acho surpreendente que a capital do Estado seja menos civilizada que as cidades do Interior em que estive”, protesta. Na Porto Alegre dos anos 80, o cheiro de xixi era comum nas noites do Bom Fim, onde ficava o Bar do João, que reunia todo o tipo de gente, a fim de beber e, alguns, se drogar. O bar fechou e, nos anos 2000, a noite de Porto Alegre e seu cheiro de boemia se mudaram para a Cidade Baixa, que concentra atualmente o maior número de bares e casas noturnas da cidade. O cheiro em Porto Alegre já foi muito pior. Quem costumava circular na Zona Sul sentia a presença da Borregaard, fábrica de celulose que se instalou na cidade de Guaíba, às margens do Rio, no início da década de 1970. Nesta época, o corretor de imóveis Luis Fernando Luce frequentava o Clube Jangadeiros, onde se encontrava com os amigos para velejar, enquanto, comumente, eram acompanhados pelo fedor da Borregaard. “Quando batia o vento oeste, aquele cheiro de ovo podre se espalhava por toda a cidade. Aquela sensação marcou minha infância, me remete a muitas lembranças”, garante. Em Porto Alegre, cores e cheiros se misturam e marcam momentos. São diferentes para cada pessoa que vive a cidade. São as marcas sensoriais que ficam na memória e se transformam em imaginação.

O lilás dos jacarandás nas ruas de Porto Alegre (página esquerda). Ao lado, o verde da Rua Gonçalo de Carvalho.


PERFIL: LEOPOLDINO SUBELDIA MONTEIRO

QUEM NÃO VÊ, IMAGINA

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Quem nunca viu, imagina e constrói signos fascinantes e únicos, baseados em outras sensações. Imagens mentais e lembranças que reproduzem o imaginário de muitos porto-alegrenses representam um vazio para quem nunca pôde enxergá-las. A história de Leopoldino Subeldia Monteiro não poderia ser vista por ele num filme ou num livro. Caso contrário, o protagonista não se reconheceria. Leo, como gosta de ser chamado pelos amigos, nasceu com catarata – doença que impede que os raios de luz cheguem à retina, prejudicando a visão e, algumas vezes, levando à cegueira. Aos 20 anos, deixou de ver as poucas imagens turvas que enxergava. Apesar de cego, possui uma representação mental de Porto Alegre, que não é formada por aquilo que ele viu, mas por aquilo que sentiu. Aos 54 anos, Leo dá aulas de História na escola Colégio Estadual Cônego de Nadal e é vice-presidente da União dos Cegos do Rio Grande do Sul (Ucergs). Nascido em Alegrete, interior do estado, Leo veio para Porto Alegre com nove anos. Sem nenhum familiar por perto, morou no Colégio Santa Luzia, um internato na Zona Sul. Em boa parte da infância e da adolescência, morou na região. Dizem que quem perde um dos sentidos aprimora os outros. A nitidez das memórias que Leo guarda do cheiro da Borregaard não deixa mentir. “Tenho lembranças muito boas dessa época na Zona Sul. No entanto, o cheiro da Borregaard era algo tão insuportavelmente forte na década de 1970, que se tornou memorável. Se eu sentisse esse odor nos dias de hoje, imediatamente diria bem alto ‘Viva Jesus’, que era o ‘grito de guerra’ que as freiras nos mandavam dizer sempre que o cheiro chegava”, conta o professor em meio a uma enorme gargalhada. Na época, os internos atribuíam aquele cheiro aos esgotos do bairro Cidade de Deus, que ficava ao lado da escola. Depois de algum tempo, um dos professores explicou que o odor era da Borregaard. “Era um peso gigantesco que pairava sobre a cidade. Apesar de tudo, não tinha ainda a noção do mal que a Borregaard causava ao ambiente. Acho que, por isso, as lembranças boas da Zona Sul prevalecem”, disse. Para Leopoldino, o Mercado Público é sinônimo de sensação de liberdade, descobertas e desafios. O local sempre foi um ponto de partida para Leo se aventurar por Porto Alegre. Diariamente, atravessava a cidade para fazer um curso de eletricista no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). “Muitas vezes me perdia no Centro. O cheiro de peixe podre do Mercado Público era minha referência para reencontrar o caminho. Nesta época, eu comecei a sentir também o peso e as dificuldades da realidade: sair dos muros do Colégio Santa Luzia e enfrentar a vida como realmente ela é. Tive que aprender a lidar com as dificuldades impostas pela cegueira, os preconceitos e a ignorância“, relembrou. A Feira do Livro, que acontece todo o ano no Centro da cidade, tem um sabor especial para o professor: sabedoria. Ouvir as pessoas falando sobre os livros, seus conteúdos e, até mesmo, comentando sobre o modo de escrever dos autores, faz com que o historiador prove o gosto de estar inserido naquele meio, mostrando que nenhuma limitação física o tornaria menos merecedor de estar ali. “Como eu leio muito,

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MATEUS FRIZZO

ARQUIVO/PMPA

PERFIL: LEOPOLDINO SUBELDIA MONTEIRO

sempre procurei aguçar os ouvidos para escutar os comentários, principalmente quando falavam de algum livro que eu já tinha lido. Acho que, intimamente, ficava fantasiando que as pessoas que enxergam entendem mais os filmes. Eu entendo mais os livros, porque não têm imagens, e eu, quando leio, vivo o que é descrito”, comenta. Entre tantos locais que produziram lembranças inesquecíveis, o Parque Farroupilha, que fica entre os bairros da Cidade Baixa e Bom Fim é reverenciado pelo educador como o local mais diversificado da capital. “A Redenção tem um cheiro geral, um cheiro que reflete um pouco de tudo, mas o que predomina é o cheiro de gente. É como se todas as tribos resolvessem se encontrar em um só lugar”, ressaltou. Sentir a cidade e saborear suas sensações, mesmo sem ver suas imagens, faz parte do cotidiano de qualquer um que vive Porto Alegre. Desta forma, criamos um imaginário – seja ele coletivo ou individual – e desenhamos a nossa história.

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PÔR-DO-SOL

SABRINA RIBAS

O CAIR DA TARDE

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s porto-alegrenses são acostumados com o pôr-do-sol do Guaíba. Eles conversam sobre assuntos que, vez que outra, citam esse fenômeno da natureza que acontece no mundo inteiro. Mas, em Porto Alegre, os moradores pensam que é diferente – e ai de quem duvidar. Na capital do Rio Grande do Sul, o sol baixa e some em uma linha do horizonte delimitada pela água do lago – que até alguns anos era chamado de rio. O céu alaranjado-amarelado e o brilho melancólico na água habitam no imaginário das pessoas como uma imagem que deve ser guardada e lembrada. Tente perguntar a um gaúcho de Porto Alegre o

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que lhe vem à cabeça quando se fala em pôr-dosol. A resposta será a descrição da imagem que cada um criou ou lembrou de algum momento em que assistiu ao espetáculo na beira do rio. Ou lago. Porto Alegre abriga exposições de inúmeros fotógrafos que captaram diferentes poses do sol se pondo. Na internet, há milhares de vídeos do pôr-do-sol do Guaíba. Pintores da cidade se orgulham de vender seus quadros na Praça da Alfândega e no Brique da Redenção por serem as únicas representações reais do grande evento que acontece no fim da tarde. O pôr-do-sol está no povo e ninguém tira. Ninguém quer tirar.


Quem vem de fora é recepcionado pelo simpático porto-alegrense com as mais variadas informações turísticas: hotéis, shoppings, parques, passeios. Mas, no fim da tarde, vá até a Usina do Gasômetro ou a Ipanema para ver o pôr-do-sol. É imperdível. Além de toda a bagagem cultural que envolve a mudança de cores no céu de Porto Alegre, a vida cotidiana daqueles que vivem na cidade também é pautada por lugares que remetem ao cair da tarde. A localização próxima do Guaíba é valorizada em sites de serviço e em anúncios imobiliários: l De frente para o Guaíba: restaurantes para assistir ao pôr-do-sol de Porto Alegre. Conheça locais onde você pode apreciar o mais célebre espetáculo da capital dos gaúchos. Um cartão postal, um presente aos porto-alegrenses e, por que não, um vislumbre de beleza para quem vem de fora. É assim que o espetáculo do pôr-do-sol de Porto Alegre, uma das grandes marcas da cida-

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de, é visto por muitos. l Exclusivo! Terreno com o pôr-do-sol no Guaíba! Maravilhoso terreno com 763,44m², sendo 19m de frente, na avenida Guaíba. Local privilegiado por ser área de interesse cultural. Pode construir residência ou pode ser para fins comerciais. Na beira do Guaíba e perto de todos os recursos da Zona Sul. Nas revistas de turismo, a indicação não é diferente quando a indicação são os atrativos de Porto Alegre. Uma delas, por exemplo, destaca o alaranjado céu sobre o lago como um dos principais lugares para conhecer na capital gaúcha: “Em Porto Alegre, dentre várias atrações para todos os tipos de público, a Usina do Gasômetro, o pôrdo-sol e o Parque da Redenção são os pontos de maior orgulho de seus habitantes”. Registrar momentos enquanto o sol se põe é um hobby bastante apreciado até mesmo por aqueles que moram em Porto Alegre. Em geral,

O pôr-do-sol em Porto Alegre é motivo de orgulho para os habitantes da cidade


PÔR-DO-SOL

casais, grupos de amigos ou famílias costumam passear na orla do lago e fotografar o cair da tarde. Muitos publicam fotos em redes sociais que, em geral, vêm acompanhadas de comentários: “Que lindo!”, “um show de cores, sensações, emoções que só estando ao vivo para entender”, “inesquecível”, “nossa, foi no último domingo?”, “bah, que tri”. Frequentador assíduo da cidade, o cantor e compositor do grupo de reggae maranhense Tribo de Jah, Fauzi Beydoun, mostra que o imaginário popular ultrapassa o limite do estado quando se fala no pôr-do-sol de Porto Alegre. Ele escreveu uma música em homenagem ao Rio Grande do Sul e nela está o famoso pôr-do-sol: “...a tarde caída no Guaíba, o pôr-do-sol de cores e outros tantos tons, porto de tantas vidas, idas e vindas, porto de um povo bom”. “A inspiração veio naturalmente, num período em que passamos uma temporada em Porto Alegre, talvez umas duas semanas, e acabei envolvido no cotidiano da cidade. Acho que eram dias de outono, o céu tinha uma coloração cristalina, de um azul límpido, e, ao cair da tarde, ia surgindo tons de rosa-púrpura com matizes variados. A menção do pôr-do-sol foi espontânea, muito mais pela observação natural do que pela recomendação de amigos. Foi a própria beleza desse cenário que me trouxe a inspiração.” Não há como negar: o pôr-do-sol está no imaginário popular como algo positivo, que traz felicidade àqueles que o apreciam. É considerado uma das belezas unânimes da cidade. Pelo povo local e por quem chega para conhecer, como Fauzi Beydoun: “o que é incontestável, realmente, é que, especialmente em certos dias, é um quadro de grande beleza!”.

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O MAIS LINDO MORRER DO SOL Sem dúvida você conhece alguém que quer ir para bem longe. Uma pessoa que tem uma imagem de determinado local, uma definição perfeita, como grande edifícios, uma praia enorme ou apenas verde por todos os lados, mesmo sem conhecê-lo. Ela fica imaginando, pensando se o lugar é exatamente como está no seu imaginário. Para um grupo de mulheres do interior do Rio Grande do Sul, essa visualização é de um simples, mas famoso, pôr-do-sol. Toda sexta-feira elas pegam o ônibus e viajam até a capital para conhecer a cidade e, principalmente, apreciar o Guaíba no final do dia. Não são as únicas. No último dia útil da semana, é comum haver dezenas de ônibus de turismo estacionados nas proximidades da Usina do Gasômetro. Os veículos vêm de todos os cantos do Estado trazendo pessoas para assistir o sol se pôr quase rente à água. A maioria já passou pelos shoppings de Porto Alegre e está finalizando o dia ali. Muitos nem se lembram mais de quantas vezes repetiram esse programa. Quando se passa pelo Gasômetro em uma final de tarde é comum ver mulheres de idade mais avançada descendo dos ônibus. Em um grupo de terceira idade de Bagé coordenado pela dona de casa Mara da Silva, 61 anos, sempre tem pelo menos uma novata. “Nós só marcamos uma nova viagem quando uma das gurias que nunca veio a Porto Alegre confirma. Tem casos que uma de fora do grupo quer vir conhecer, daí também serve”, conta Mara, que desde 2008 já organizou seis vindas à cidade.


PERFIL: QUEM VEM DE FORA

Rosinha Vieira, 68 anos, presente em todos os passeios e sempre alegre, fala que o primeiro foi o mais marcante. “Naquela vez vieram 35 senhoras e apenas oito ou nove conheciam a cidade, todas as outras só haviam visto na televisão. O sol lindo se pondo, e eu ficava imaginando se era exatamente como eu imaginava”, lembra. E era? “É ainda mais bonito, mais laranja, pena que dura pouquinho”, lamenta a componente mais alegre do grupo. Além de conhecer a cidade, fazer compras, passear e deixar o tempo passar na companhia das amigas, a ideia de juntar mulheres e vir à Capital foi instituída para que elas pudessem desconstruir a imagem, de como é uma cidade grande, que elas têm e conhecer de verdade os locais apenas imaginados. Muitas delas falam que “alguém falou que ouviu falar que era o pôr-do-sol mais lindo do mundo”, e que isso as faz querer ver com os próprios olhos esse momento. Maria Teresa Pereira, 78 anos, a mulher que motivou a sexta vinda das “meninas”, como gostam de ser chamadas, fala que tudo é maior do que ela pensava e que já havia estado na cidade. “Na verdade, eu já tinha vindo a Porto Alegre, tinha 12 anos e me lembro de passar pela ponte. Fui para um hotel e fiquei lá dentro durante dois dias, depois lembro da volta passando pela mesma ponte novamente”, descreve Maria Teresa. “Lembro que as coisas eram grandes, mas na verdade é tudo bem maior do que eu tinha na minha cabeça. Tem muita gente, muito carro, os prédios são enormes. Agora que já voltei aqui para ver tudo isso quero ir embora.” Mas segue com um elegio, “Esse pôr-do-sol. Ele é maravilhoso, lindo mesmo. Todas elas falavam que valia a pena ver e realmente vale”. Termina olhando para o resto das amigas e para água, onde o sol já não brilha mais. Algumas pessoas imaginam como seriam as pirâmides do Egito ou, quem sabe, a muralha da China, ou até mesmo o Gran Cânion no deserto americano. Outras delas têm em sua imaginação como é o pôr do sol do Guaíba em Porto Alegre, o mais bonito que alguém falou que alguém ouviu alguém dizer.

DENISE FRIZZO

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