Ssshhh o novo culto do silêncio

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O novo culto do silêncio

Retiros, jantares e até encontros amorosos, tudo em silêncio. Lara Williams escreve no The Guardian, sobre este novo culto. O silêncio está em alta.

A

quilo que antes estava reservado aos retiros monásticos e aos mais comprometidos com as práticas meditativas, o apelo pelo ‘simplesmente em silêncio’ tem vindo a crescer. Há toda uma nova gama de negócios que tem vindo a despontar para responder a esta procura por ‘momentos de quietude’: escapadas de fim-de-semana em silêncio, jantares em silêncio, encontros de leitura em silêncio e até namorar em silêncio. Tendo estreado em outubro último nos Estados Unidos, o documentário “In Persuit of Silence” (Em busca do silêncio), um ‘filme meditativo’ sobre a forma como nós nos relacionamos com o ruído, foi promovido com um subtil e delicado trailer de dois minutos onde nem uma palavra é pronunciada. Tal como atesta o filme, o silêncio pode significar diferentes coisas para diferentes pessoas. Tanto pode ser um espaço de quietude e reflexão como um estado tremendamente desconfortável. Existe uma certa intimidade inerente ao estar em silêncio com outras pessoas - normalmente só o fazemos com aqueles que nos são mais próximos. Há, portanto, algo de quase radical nesta recente tendência para ‘saborear’ o silêncio com estranhos. Há um ano, Mariel Symeonidou começou a organizar encontros de leitura em silêncio em Dundee, Escócia, num momento de “extroversão incaracterística”. As pessoas traziam os seus livros e encontravam-se num bar, onde liam juntas em silêncio durante uma ou duas horas, para depois colocarem a leitura de lado, conversarem entre si e tomarem um copo. Este conceito nasceu nos cafés e bares de ambiente retro de Seattle, EUA. Concebidos como pontos de encontro literários para os que não apreciam serões de palavras faladas ou discussões em grupo, a premissa à partida era simples: aparece, cala-te e lê. A tendência alastrou depois a Nova Iorque e, a partir daí, a Londres, Edinburgh e Dundee. “Quando a leitura começa, todos se calam”, explica Symeonidou. “É um pouco surrealista, principalmente porque se trata de bares normalmente muito movimentados. No entanto, há alguma coisa de muito especial em partilhar o silêncio com os outros, oferece uma oportunidade de escapismo. No dia a dia, as pessoas estão


normalmente muito aterefadas, com o trabalho e as tecnologias permanentemente presentes. Um evento como este dá-lhes a oportunidade de escapar a essas coisas durante um tempo”. Embora estes encontros de leitura sejam atualmente tranquilos e relaxantes, Mariel reconhece que, no início, a situação era um pouco embaraçosa. Mas é precisamente neste desconforto que reside o poder radical do silêncio, diz Matthew Adams, professor de psicologia na Universidade de Brighton. “O silêncio é muitas vezes uma coisa que sentimos como desconfortável, como uma ruptura no tecido social, um embaraço que queremos cobrir com o som da nossa voz”. Há muito que Adams mantém um interesse sobre o significado social, cultural e psicológico do silêncio, particularmente na opção pela sua partilha. “O silêncio colectivo diz respeito à interconexão com o outro para lá das convenções sociais. Confronta-nos com o que é sentir a presença física de outro ser humano sem truques, jogos ou estratégias e boas ou más interpretações sobre as suas intenções. Trata-se de uma suspensão temporária da nossa confiança no poder da palavra”. Mas a ausência de conversação pode ter as suas vantagens sociais. A Shhh!, uma agência de encontros rápidos em silêncio, com sede em Londres, afirma que as pessoas são “instintivamente melhores a comunicar e a escolher os melhores parceiros quando têm a oportunidade de colocar de lado as palavras e se verem como são na realidade”. A Shhh! organiza regularmente sessões de encontros, caracterizadas como “jogos não verbais de flirt” e de “olhar nos olhos”. Reivindicandose preferida entre “os profissionais criativos na casa dos 20-30 anos”, esta agência gaba-se de ter uma agenda bem preenchida de eventos para os próximos meses. As sessões começam com brincadeiras destinadas a ‘quebrar o gelo’, tais como andar aos pulos à frente de um potencial parceiro ou fazer “ruídos do paleolítico”. Seguem-se as ‘clássicas’ entrevistas rápidas entre candidatos, onde estes vão sendo ‘acasalados’ durante um determinado tempo, e onde apenas podem comunicar por gestos, seguindo-se um minuto de envolvente e intenso contacto visual. Após esta fase, é-nos fornecido os detalhes sobre os que se mostraram interessados e, se tivermos a sorte de sermos escolhidos para um segundo encontro, podemos manter o embargo estabelecido à ‘conversa fiada’, através de um convite para um sedutor jantar em silêncio ou uma ida muda ao cinema.

encontrar no silêncio a possibilidade radical da audição

Honi Ryan é uma artista plástica de Berlim que começou a organizar jantares-convívio em silêncio em 2006. Em tudo semelhante a um jantar comum, ainda que com uma ementa vegan chique (exemplo: almôndegas de soja e cogumelos no forno, acompanhadas de feijão libanês), as regras durante a refeição são: não falar, não usar a voz, não ler nem escrever, tentar fazer o mínimo de barulho possível, não utilizar aparelhos electrónicos e permanecer no local, no mínimo, durante duas horas. Ryan descreve estes jantares silenciosos como “esculturas sociais” comprometidas com “a mudança da natureza da comunicação e do espaço entre pessoas”. Até ao momento, esta berlinense já levou o seu projeto para o México, Estados Unidos, Austrália, Líbano e China. “É evidente que as ligações sociais que construímos à volta da comida não dependem das palavras. O silêncio cria o espaço a ser preenchido com aquilo que as pessoas e os lugares envolvidos entendam necessário. Trata-se de rasgar o nosso bem ensaiado comportamento social. Os retiros de silêncio são, talvez, as formas mais conhecidas de silêncio social. Variando no seu formato e propósitos, são mais populares do que se possa imaginar à primeira vista, tendo na sua maioria uma componente religiosa ou espiritual, com particular relevância às ligações ao budismo, cristianismo e catolicismo. A sua duração vai desde um par de dias até algumas semanas, e têm normalmente lugar em locais apropriados à atividade espiritual, como antigas quintas e solares rurais. Frequentador regular de retiros de silêncio, Peter Cadney descobriu pela primeira vez o poder do silêncio num curso de meditação vipassana de dez dias em silêncio, em 2013. Esta técnica realça o desenvolvimento da ligação ao silêncio como forma de alcançar a serenidade connosco. “Tem havido uma série de acontecimentos ao longo da minha vida com os quais não fui capaz de lidar muito bem; coisas como rompimentos amorosos e a morte de um amigo chegado. Passei anos a trabalhar ao computador, cheio de tensão muscular, ansiedade e stress. Senti-me atraído a procurar um local tranquilo onde me pudesse sentar para procurar paz comigo mesmo”. Cadney afirma que a meditação em silêncio o ajudou a melhorar tanto a sua saúde física como mental. “A primeira vez que me sentei em silêncio, senti uma enorme paz. Comecei a notar a quantidade de


Imagem do filme “The Persuit of Silence”, à esq.

Shhh!, encontros em silêncio, à dir.

pensamentos que iam e vinham à minha mente, era como se nunca tivesse havido espaço para o silêncio”. Desde então, Cadney deixou o seu emprego de escritório, trabalhando agora como terapeuta holístico. “Mal me sentei naquele salão de meditação pensei para comigo: ‘é aqui que eu quero estar’”. Também a artista suíça Salome Voegelin encontrou um propósito no silêncio. Mas em vez de encontrar nele algo calmante ou até quase desprovido de existência, o seu achado abriu-lhe a mente para “a possibilidade radical da audição”. A artista descreve o silêncio, não como uma ausência de som, mas como o início do processo de escutar, embora ela mostre algumas reservas sobre as “tendências egocêntricas” atuais relativamente às ‘escapadas’ de silêncio. “Embora se tratem de eventos contemplativos e absolutamente respeitáveis, pergunto-me até que ponto esse escutar do silêncio não é despendido numa obsessão com o próprio silêncio pessoal em vez de se escutar os silêncios dos outros e do meio ambiente”, disse.

O livro de Voeglin, “Listening to Noise and Silence: Towards a Philosophy of Sound Art”, reclama o silêncio e o ruído não como opostos mas como diferentes fins do mesmo espectro. “Não existe um verdadeiro silêncio. Trata-se de um estado que me permite ouvir a minha respiração conjugada com a de outros, o barulho do meu estômago ou o borbulhar da água do radiador. Fornece um time out, uma interrupção. E é aí que nos começamos a ouvir uns aos outros”. O silêncio assume um novo significado numa era onde consumimos informação e conversamos de modo infindável, sem nunca sequer abrir a boca. Podemos assistir a “The Pursuit of Silence” e apreciar a ausência do som, mas quantos de nós não são tentados, durante a sua projeção, a fazer um comentário sobre o filme no facebook ou no twitter ou a checar o email? Embora até possamos achar agradáveis estes raros e abençoados momentos de paz e tranquilidade, até que ponto somos nós capazes de exercer o nosso autodomínio quando estamos perante o silêncio e a quietude?


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