Trilogia da palavra dos sons

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Trilogia da Palavra dos Sons

Edson Estevo Lubacheski Ferraz


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Título: "TRILOGIA DA PALAVRA DOS SONS" EDSON ESTEVO LUBACHESKI FERRAZ

Registro EDA (Fundação Biblioteca Nacional): 265973, em 15/08/2002

Gênero:Teatro


3 Índice NÃO VIRAM DÚVIDAS UMA VEZ MORTOS SOB AS ASAS DO ANJO NEGRO......................................................... 4 O ESPELHO ............................................................................................................................................................................ 4 O BAR...................................................................................................................................................................................... 5 O ABRIGO ............................................................................................................................................................................... 7 O TEMPO ................................................................................................................................................................................ 8 O BAR.................................................................................................................................................................................... 10 O QUARTO ............................................................................................................................................................................ 12 O SILÊNCIO .......................................................................................................................................................................... 15 VISCERAL .................................................................................................................................................................... 16 O RUMO ................................................................................................................................................................................ 16 O RUMO ................................................................................................................................................................................ 16 O RUMOR.............................................................................................................................................................................. 20 O SENTIDO ........................................................................................................................................................................... 24 O ELO .................................................................................................................................................................................... 25 QUEDA SILENCIOSA PARA CIMA .............................................................................................................................. 27 O VENTO ............................................................................................................................................................................... 27 O TETO ................................................................................................................................................................................. 30 A QUEDA ............................................................................................................................................................................... 33 O TREM ................................................................................................................................................................................. 36 OS OLHOS ............................................................................................................................................................................ 39 O SILÊNCIO .......................................................................................................................................................................... 41


4 NÃO VIRAM DÚVIDAS UMA VEZ MORTOS SOB AS ASAS DO ANJO NEGRO O ESPELHO Mulher e homem, cada um em seu ambiente. Olham-se em espelhos. Reorganizam-se, readaptam-se, reeenfeitam-se. Perdem-se e acham-se. BLECAUTE


5 O BAR A mulher está sentada à mesa, sobre a mesa uma garrafa de conhaque e dois copos, um cheio. Entra o homem e dirige-se até a mesa. HOMEM- Posso me sentar...? A mulher balança a cabeça afirmativamente. O homem senta-se, esbarrando na garrafa, derrubando-a. O homem ergue a garrafa. MULHER- É... O tempo... HOMEM- É... O tempo... O homem levanta-se. A mulher o puxa, fazendo-o sentar-se. MULHER- Não! (Pausa. Tímida) Fique mais um pouco! Toma! Pegue este copo! Eu estava esperando por você! O homem é servido de conhaque. HOMEM- Qual o seu nome? MULHER- Não sei! Já foram tantos! HOMEM- É... O tempo... MULHER- Tantos... (Pausa longa) Cris! HOMEM- O quê? MULHER- Apenas um nome! HOMEM- Ah! Falam juntos. MULHER- Você... HOMEM- Estevo... A mulher acende um cigarro. HOMEM- (Murmurando) Cris... MULHER- O quê você faz aqui? HOMEM- (Grave) Talvez sonhando com algo, ou com alguém! MULHER- (Distraída) Estevo... HOMEM- E você? MULHER- O quê? HOMEM- E você? O quê você faz aqui? MULHER- Olhando! HOMEM- (Procurando) O quê? MULHER- Algo que está tão perto, mas, ao mesmo tempo distante... HOMEM- É... O tempo... MULHER- Chega!!! (Delicada) Me desculpe! (Pausa) Quem é você? HOMEM- Eu? Eu... Ninguém nunca havia me perguntado isso! A mulher levanta-se e dança sensualmente. O homem a observa. MULHER- Vem! Aproveita este momento! Ele pode ser o último! HOMEM- Ou talvez o primeiro!


6 Dançam. Beijam-se. A mulher empurra o homem bruscamente. Sentam-se à mesa. MULHER- É... (Pausa longa) Isso já foi dito antes! Ou não? HOMEM- Tenho a impressão que sim... Talvez seja apenas impressão! (Pausa longa) Que horas devem ser? MULHER- Talvez ainda seja noite! HOMEM- Estamos chegando a um momento insuportável! Levanta-se. A mulher segura sua mão. MULHER- Não! (Pausa. Tímida) Fique mais um pouco! Eu preciso... HOMEM- Tenho a impressão que sim, talvez seja apenas impressão! (Pausa longa. Sentando-se) Eu também preciso... MULHER- (Eufórica) Então foi bom termos nos encontrado! HOMEM- (Em tom pesado) Numa situação tão adversa! MULHER- (Angustiada) E num momento insuportavelmente apropriado! HOMEM- E o silêncio? MULHER- Talvez o começo! HOMEM- De uma tempestade? MULHER- (Em pânico) Tenho medo de tempestades! HOMEM- Ela destrói... E depois... MULHER- Reconstruir, reformular! HOMEM- Sobre o tempo? MULHER- É... O tempo! HOMEM- Nosso temor! MULHER- Nossa dúvida! HOMEM- (Sedutor) Nossa tentativa! MULHER- A tempestade... Beijam-se. HOMEM- Vamos sair daqui! Levantam-se. A mulher se dirige para um lado, o homem para outro. A VOZ- DIREÇÕES QUE SE OPÕEM; SOBRE O CAOS A TENTATIVA DE REORGANIZAR; DOIS CORPOS, DUAS HISTÓRIAS SE FUNDEM NO TEMPO; TEMPORAL; AS HORAS, OS DIAS, OS MESES PARAM; VÍCIOS, VICISSITUDES; REFORMULAR O TEMPO SOBRE O TEMPO; ARRASTAR O SILÊNCIO PELAS ÁGUAS DA TEMPESTADE, TRANSFORMANDO TUDO EM PALAVRAS, DERRUBANDO-AS NO VAGO; SENTINDO SEM SENTIDO. BLECAUTE


7 O ABRIGO O casal está no abrigo da mulher: um porão. Paredes nuas, garrafas espalhadas pelo chão, uma cadeira velha com uma faca em seu assento, uma banheira e sobre ela um cano pingando, um colchonete rodeado por velas apagadas, uma bacia de alumínio e um espelho antigo junto ao colchonete compõem o ambiente. MULHER- Vamos beber para comemorar! HOMEM- Claro! Tire essa faca daqui! Pode ser perigoso! MULHER- Jogue-a naquele canto! (Pausa) Um brinde! .HOMEM- À tempestade! O homem senta-se. Brindam e bebem num gole só. O homem pega o espelho. HOMEM- Este espelho está partido! MULHER- Nós estamos partidos! A mulher senta-se sobre o homem. MULHER- À tempestade! A mulher joga sobre seus corpos nus conhaque. A VOZ- LÍNGUAS QUE SE ENROSCAM; SALIVA; MOVIMENTO DE CORPOS NUS; PEITOS, BUNDAS, CU, BUCETA E CARALHO; GEMIDOS, PRAZER; FECHAR OS OLHOS E GOZAR... GOZAR... GOZAR... HOMEM- Temporal! MULHER- Como é bom gozar! Sentir prazer! HOMEM- Quando o tempo não nos priva disto! MULHER- Pegue o espelho! HOMEM- Veja! Ficamos desfigurados! MULHER- É! Partidos ao meio... HOMEM- Você já reparou que nos tornamos indiferentes ao tempo? MULHER- Os relógios pararam! HOMEM- É dia ou noite? MULHER- Noite eterna... O homem levanta-se e pega a mulher em seus braços, carregando-a até o colchonete. Sons de tempestade. A VOZ- (Ritmado).. TEMPO... TEMPO... TEMPO... LOUCURA; SÓIS ELUAS; ATEMPESTADE PRECISA PARAR! REESTABELECER O TEMPO; AS HORAS, OS DIAS, OS MESES; MAS COMO? COMO QUERER DOMINAR A TEMPESTADE TRANSFORMANDO-A EM BRISA SUAVE? CEDER, RENUNCIAR? ACATAR A ORDEM NATURAL DAS COISAS? MULHER- Você é meu! Cessam os sons de tempestade. BLECAUTE


8 O TEMPO O homem está em pé, encostado na parede, apenas de calças. A mulher, sentada no colchonete, cobre-se com um lençol vermelho. HOMEM- Estamos presos aqui há dias, talvez meses! MULHER- Ou somente horas, minutos! HOMEM- Perdemos toda e qualquer noção das coisas! MULHER- Do tempo? HOMEM- Da vida... MULHER- Mas estamos vivendo! HOMEM- Presos!? MULHER- Juntos! A mulher acocora-se sobre a bacia e mija. HOMEM- Estamos chegando a um momento insuportável! MULHER- Nada que não seja contornável! Sons de goteira aumentando gradativamente. HOMEM- A tempestade precisa acabar! A goteira torna-se uma torrente. Sons de tempestade. MULHER- (Em pânico) Não! Não diga isso! HOMEM- Preciso ir! A mulher dirige-se ao homem e joga toda a urina em sua cara. Solta a bacia e começa a socá-lo. MULHER- Você é meu! HOMEM- Porra! Por que você fez isso? A torrente torna-se uma goteira. MULHER- Você é meu! HOMEM- Olha o que você fez! MULHER- (Delicada) Me desculpe! Eu preciso... Cessam os sons de goteira e de tempestade. HOMEM- Precisamos nos acalmar! MULHER- (Suplicante) Preciso de você! HOMEM- Preciso ir! MULHER- Você jura que volta? HOMEM- Eu também preciso... MULHER- E se não voltar? HOMEM- Eu volto! MULHER- (Melancólica) A tempestade! HOMEM- Nosso temor! MULHER- Nossa dúvida! HOMEM- Nossa tentativa! MULHER- Meu vício! HOMEM- Nosso... Eu volto!


9 O homem sai decidido. BLECAUTE Sons de goteira aumentando gradativamente até tornar-se uma torrente. Um grito. As luzes acendem-se. A mulher segura a faca com ambas as mãos. Exausta solta a faca e chora. A torrente diminui gradativamente até cessar por completo. MULHER- Minha imagem está desfigurada! Os relógios permanecem parados! A ordem natural das coisas foi arrastada pela tempestade! Não consigo pensar, nem sequer mover minhas pernas! O que está além desta porta me assusta! Tenho medo de tempestades, mas quando estou em uma, não sei, não existe medo nem coragem, nada! Somente prossigo! Talvez ela acabe, talvez permaneça! E mesmo ela acabando ou permanecendo eu continuaria prosseguindo. Prosseguir! Mas porra! Pra onde? Continuar na guerra? Não! Preciso de alguma droga! Qualquer droga! O que ele estará fazendo? Sonhando com algo? (Pausa) Alguém? Eu preciso dele! E se ele não voltar? Preciso de alguma droga! Qualquer droga! (Eufórica) Então foi bom termos nos encontrado? Ouve-se a voz do homem ao fundo. Uma voz distante. HOMEM- (Em tom pesado) Numa situação tão adversa! MULHER- (Angustiada) E num momento insuportavelmente apropriado! HOMEM- E o silêncio? MULHER- Talvez o começo! HOMEM- De uma tempestade? MULHER- Tenho medo de tempestades! HOMEM- Ela destrói... E depois... MULHER- Reconstruir, reformular! HOMEM- Sobre o tempo? MULHER- É... O tempo... HOMEM- Nosso temor! MULHER- Nossa dúvida! HOMEM- Nossa tentativa! MULHER- A tempestade! (Irada) Ele teme a tempestade! Usa uma grande e maravilhosa máscara! Pega o espelho e observa o seu reflexo. Passa a mão no rosto como se quisesse arrancá-lo. MULHER- Como eu preciso dele! Sons de goteira. Levanta o lençol até a cintura e masturba-se. MULHER- A tempestade precisa acalmar! Levanta-se e vai até as velas, apagando-as. A VOZ- A TEMPESTADE PERMANECE; NÁUFRAGOS, NUM ROMPANTE DE FORÇA DÃO O ÚLTIMO SUSPIRO; NA ÚLTIMA HORA, NO ÚLTIMO DIA, NO ÚLTIMO MÊS TENTAM SALVAR-SE; NÃO HÁ FUGA! A LOUCURA É IMINENTE! Cessam os sons de goteira. BLECAUTE


10 O BAR Uma nova mulher sentada à mesa. “Um” copo e uma garrafa de conhaque. Entra o homem trazendo consigo um copo. HOMEM- Posso me sentar? MULHER2- Quem é você? O que foi? Não sabe que é você? Vejo que você precisa beber algo! Vamos, me dê seu copinho! O homem senta-se esbarrando na garrafa, derrubando-a. A mulher2 ergue a garrafa e serve ao homem. HOMEM- À tempestade! MULHER2- O que você está falando? HOMEM- Não há fuga! MULHER2- É claro que há! Tenha calma! Nenhuma tempestade é eterna! Ela sempre volta ao lugar de onde veio! HOMEM- Não, não é assim! MULHER2- Tudo bem! Calma! HOMEM- Qual a hora em seu relógio? MULHER2- .............! (Hora real) HOMEM- Então o tempo voltou a correr? MULHER2- Por quê? Ele havia parado? HOMEM- Durante a tempestade... MULHER2- Ah, sim! A tempestade! Mas não há nem sinal de tempestade! Você está tentando filosofar sobre a chuva! HOMEM- Pra você tudo está bem! Vive em total estado de esquecimento! Fardada de unanimidades, alegre, neste lugar alegre! A guardiã da verossimilhança! MULHER2- O que você faz aqui? HOMEM- Tenho a impressão de já ter escutado isto hoje! Ou foi ontem? Talvez seja só impressão! MULHER2- Então! O que faz aqui? HOMEM- Não sei! Talvez, sonhando! Tentando lembrar de alguém, fugindo! Mas não adianta, é inútil! MULHER2- Calma! Respire fundo! Deve haver alguma explicação! Vamos, beba e diga-me tudo! Que tempestade é esta que tanto o assusta? Ela tem nome? HOMEM- (Inaudível) Cris... MULHER2- O quê? HOMEM- Apenas um nome! MULHER2- Eu sei! Mas fale alto! HOMEM- Cris! MULHER2- E o seu? HOMEM- Estevo! MULHER2- E é dela que você foge Estevo? HOMEM- Não... Será?... Sim! Não... O tempo! MULHER2- Seja mais claro! Mais realista! Apenas neste momento, para que possamos reconhecê-los, você e Cris, na tempestade e no tempo! HOMEM- O tempo é... Assustador! Nos carrega até que sejam consumidas todas as nossas forças! Eu e ela... Eu e ela tentamos reconstruir nossas vidas, reformular o presente, esquecer o passado, nos entender, nos explicar! Mas o que fazer com as palavras quando todas já foram gastas? Nossas vidas são feitas de fragmentos e nós não conseguimos reuni-los! MULHER2- E a tempestade? Onde ela entra nessa história? HOMEM- Veja! Estamos sentados nesta mesa de bar, eu falo e você me olha e escuta esperando que minhas palavras tenham algum peso, algum significado! Não! O significado não está na palavra! Olhe bem para estes copos! Pega os copos e enche-os de conhaque. HOMEM- Eu...


11 Joga o copo cheio para trás. HOMEM-Ela... Joga o outro copo cheio para trás. HOMEM- O tempo! Pega dois outros copos. HOMEM- Palavras! Enche os copos. HOMEM- Eu... Ela... Ergue os copos e movimenta-os circularmente. HOMEM- Tempo... Joga o conteúdo dos copos para cima. HOMEM- Tempestade... Coloca os copos vazios sobre a mesa e olha-os. HOMEM- Eu e ela... Olha para os pingos no chão. HOMEM- Palavras! O tempo e a tempestade! MULHER2- Você tem uma chance, uma saída! A mulher enche um copo e dirige-o à boca do homem. O homem bebe. HOMEM- Não! A história terminaria aqui! Não consigo fugir, nem sequer mover as minhas pernas! MULHER2- Tudo bem! Preciso ir, já é tarde! HOMEM- Um momento! Beija a mulher . HOMEM- Não adianta! É inútil! Adeus! A mulher sai. Engatinhando o homem tenta reunir o líquido espalhado pelo chão. Exausto, senta-se e passa a mão no rosto como se quisesse arrancá-lo. BLECAUTE


12 O QUARTO A mulher, coberta com o lençol vermelho está sentada na cadeira segurando em uma das mãos o espelho e na outra um relógio quebrado. O homem entra. Em sua mão uma sacola com bebidas. HOMEM- A porta estava aberta... Sons de tempestade. Beijam-se, ficam nus e caem sobre o colchonete. O homem acende as velas. HOMEM- Espere um pouco! Cessam os sons de tempestade. MULHER- Não! Não vá! HOMEM- Eu não irei! Vai até a sacola e retira dela uma garrafa de conhaque. Sons de tempestade. A mulher bebe com fúria, o homem também. O homem deita-se, a mulher senta-se sobre ele segurando a garrafa, bebendo e jogando em seus corpos. Sobre os sons de tempestade, sons de goteira aumentando gradativamente até tornar-se uma torrente, coincidindo com o gozo do casal. Gozo, a tempestade e a torrente cessam. O homem cobre-se com o lençol, levanta-se e acende um cigarro. MULHER- Por que você demorou tanto a voltar? HOMEM Nem tanto! MULHER- O suficiente para me fazer imaginar coisas! HOMEM- Pensar? MULHER- Não! HOMEM- Então imaginar que tipo de coisas? MULHER- Coisas ruins! HOMEM- Ao nosso respeito? MULHER- Ao seu! HOMEM- Bobagens aposto! MULHER- Talvez! A mulher toma grandes goles. HOMEM- Vá com calma! MULHER- Pra quê? HOMEM- Apenas para manter o equilíbrio! A mulher levanta-se com a garrafa nas mãos e dança sensualmente. MULHER- Manter??? HOMEM- Talvez encontrar! É preciso encontrar o equilíbrio! MULHER- Numa atmosfera instável? HOMEM- O tempo é apropriado! MULHER- O equilíbrio é instável enquanto o tempo corre! HOMEM- Então precisamos pará-lo! MULHER- A tempestade então permanecerá? HOMEM- Como manter o equilíbrio sem que o tempo pare e a tempestade permaneça? MULHER- Você é meu! Não há fuga! Guie-se pelos seus ventos! HOMEM- Eu posso me afogar...


13 O homem abre outra garrafa, toma um gole e derrama o restante na banheira, afunda sua cabeça na água, permanecendo submerso até que a mulher aproxima-se dele e beija-o pelo corpo todo. Sons de goteira aumentando gradativamente até tornar-se uma torrente. Sons de tempestade coincidindo com o gozo. MULHER- Não tenha medo! Eu cuido de você! HOMEM- Sim!!! A torrente e a tempestade cessam. HOMEM- Ah, essa maldita tempestade! MULHER- O que tem ela? HOMEM- Já ultrapassamos todos os limites! MULHER- Da normalidade? HOMEM- Da sensatez! MULHER- Você sempre querendo um certo grau de equilíbrio, sensatez normalidade! HOMEM- Não! Não é isso! É você que tenta filosofar sobre a chuva! (Pausa. Pensativo) Onde eu ouvi isso? MULHER- (Delicada) A tempestade destrói! HOMEM- Não! Nós nos destruímos! Toma a garrafa das mãos da mulher e bebe em grandes goles. A mulher abraça as pernas do homem. MULHER- Você precisa de mim! (Melosa) Eu preciso de você! O homem a empurra e ela cai sentada. HOMEM- Não faça isso com você! MULHER- (Em delírio) Você e eu... Um anjo... Isso, você é um anjo! No meio do mar... Tempestade... Não sei para onde ir! O que fazer! De repente... Vôo suave, asas brancas, rasgando o céu cinza com sua luz! Meu anjo! Me leve pra descansar sobre as nuvens! Me beija, me acaricia! HOMEM- Não sou nenhum anjo! MULHER- É sim! Meu anjo! Você me pertence! HOMEM- (Bebendo em grandes goles) Não! A mulher pega o espelho e busca o reflexo do homem. MULHER- Veja! Suas asas! HOMEM- Vamos, pare com isso! A mulher puxa o homem pelas mãos fazendo-o ajoelhar-se. MULHER- Vamos! Sinta a suavidade de suas asas! Há um grande equilíbrio nelas! Olhe! Você e suas asas! Leva o rosto do homem até o espelho. HOMEM- Chega!!! O homem levanta-se com o espelho em mãos e atira-o longe. Engatinhando, a mulher reúne os estilhaços do espelho. Olhando seu reflexo em um estilhaço. MULHER- Você quebrou as suas asas! Não vejo mais meu rosto! Procura o reflexo do homem. MULHER- Não vejo mais você! Não vejo mais nada! O homem esbofeteia a cara da mulher.


14 HOMEM- Pare com isso! Não existe anjo algum! MULHER- Você é meu anjo! A mulher vai até as garrafas, pega uma e bebe com fúria. O homem a abraça. MULHER- Você veio! Veio me salvar da tempestade! O homem levanta-se e começa a vestir a sua roupa. Sons de goteira aumentando gradativamente até tornar-se uma torrente. Sons de tempestade. BLECAUTE Um grito. Sons de tempestade cessam. A torrente torna-se uma goteira. MULHER- (Voz fundo) Você é meu! BLECAUTE


15 O SILÊNCIO O homem, desacordado, está nu sentado na cadeira, o corpo ensangüentado; A mulher está vestida com suas calças. Ajoelhada ao seu lado a mulher lambe um estilhaço ensangüentado do espelho. A mulher limpa o ferimento do homem com um pano que embebe em conhaque. Acende um cigarro e continua limpando. MULHER- Quer um trago? Agora você não precisa temer mais nada, eu estou aqui! (Leva o cigarro até a boca do homem) Ah, você não quer fumar! Por que não me disse antes? Então tome um gole! (Derrama conhaque em sua boca) Finalmente alcançamos o equilíbrio, a normalidade, a sensatez! O quê? Ah, eu também te amo!!! Você é meu! Não tentaremos explicar mais nada! A mulher senta-se ao seu lado e coloca a cabeça sobre as suas pernas. Fumando e bebendo olha para o infinito com ar de felicidade, leveza. Sons de goteira diminuindo gradativamente até cessar.


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VISCERAL

O RUMO No início não haverá cenário algum, sendo este formado no decorrer da peça e/ou sugestionado através de sons. A Mulher está encolhida respirando ofegante. MULHER- Rumo? Rumo? Rumo? Rumo... ? O Homem entra apalpando o vazio. Guia-se como um cego pela voz da mulher; tropeça em seu corpo e cai. MULHER- É preciso dizer alguma coisa! HOMEM- O momento não permite! Tudo que dissermos poderá ser jogado no vazio! MULHER- Necessitamos de um significado! HOMEM- O vazio e o silêncio são plenos de significados! MULHER- Eles nos conduzirão para onde? HOMEM- Há alguma escolha? MULHER- Não há nada! A única coisa que possuímos é... HOMEM- Não! A única coisa que possuímos é... MULHER- Precisamos de algum vínculo que nos uma! Algo que possamos ver e tocar! Levantam-se. A Mulher retira do bolso uma enorme corrente e se acorrenta ao Homem. MULHER- É palpável e visível! HOMEM- E agora? A Mulher beija-lhe a face. O homem sorri bestialmente. MULHER- Já gastamos todas as possibilidades! HOMEM- O que faremos? MULHER- Experimentar a palavra!? HOMEM- (Grave) Significativa... MULHER- Preciso pensar! O Homem senta-se e limpa os dedos de seus pés. HOMEM- A sujeira se acumulou! MULHER- (Pausadamente) Significado... HOMEM- E então? MULHER- Quero sentar! O Homem posta-se de quatro. A Mulher senta-se sobre suas pernas , utilizando-se da bunda como encosto. MULHER- Uma palavra... Significativa... É interrompida pelo barulho estrondoso do peido do Homem. Levanta-se. MULHER- Porra! Que cheiro insuportável! HOMEM- Não tive como controlar! Agora é a minha vez! Deixe-me pensar! O Homem esforça-se para pensar. Novamente peida.


17 MULHER- Chega! Precisamos evoluir! O Homem engatinha até a Mulher. Surge do alto, descendo lentamente, uma caixa retangular com a base menor apontando para o chão. MULHER- Levante-se! Estamos sem significados! Pra lavrar! HOMEM- Lavras pra’s larvas! O seco é que prevalece! O dia é seco! O anterior e o porvir! MULHER- Um significado... Resumido... Cheio de plenitude... É importante dizer com palavras! Dar algum significado! Lavrar com palavras! HOMEM- Não estou preocupado com palavras! Eu apenas quero vomitar! Tudo! MULHER- Pra lavrar molha-se o chão seco e duro... Que não podemos ver! HOMEM- Vamos sair! Procuraremos algo fora daqui! Fora de nós! MULHER- Daqui a visão é melhor e o som é audível! Sair não é bom! Há olhos que vêem e bocas que vomitam sempre as coisas certas... Que me mutilam! Não quero pisar lá! Corro perigo! Aqui podemos criar certezas, as palavras estão sempre ao alcance e o chão não foge de nossos pés! A PALAVRA É MOLHADA! HOMEM- Não há nada ao redor ! Precisamos vomitar o momento e sucumbir ao perigo! Não há como forjar, esse chão é oco! A palavra é seca! O SENTIMENTO É MOLHADO! Conclui-se a descida da caixa retangular, colocada centralmente, com a base menor junto ao chão. Em seu interior um punhado de terra e um saco plástico com água. MULHER- Ficaremos próximos e seguros! HOMEM- Limitados... MULHER- Não! Esse é o nosso altar! Tudo faz sentido! Ou não!? HOMEM- É... MULHER- Poderemos lavrar! HOMEM- A terra está seca! MULHER- Mas há o molhado! HOMEM- É... Mulher e Homem postam-se lado a lado dentro da caixa altar. A Mulher derrama gotas do molhado sobre a terra. HOMEM- Estamos dentro ou fora? MULHER- De quê? HOMEM- Dos limites! MULHER- Dentro, se considerarmos os limites de onde estamos! Mas se sob a perspectiva de onde estamos considerarmos o vazio, teremos que admitir que estamos fora! Fora de qualquer coisa! HOMEM- Mas permanecemos dentro dos limites do vazio! MULHER- O vazio não tem limites! Estamos eternamente fora das coisas! O vazio não está dentro nem fora, ele apenas e unicamente está! Em tudo! Contém e está contido! HOMEM- Então carregamos em nós o vazio? MULHER- Nas costas e nas vísceras! O Homem olha para o infinito. A Mulher, alucinada, continua derramando o molhado sobre a terra. HOMEM- Não está surtindo efeito! Dê-me uma chance! Eu preciso do molhado! As larvas já começam a brotar da terra! Depois, serão insetos nos atormentando! MULHER- Não há como as larvas proliferarem no vácuo! As lavras sim! HOMEM- Mas não estamos no vácuo! Estamos apenas limitados neste universo vazio! Sons de insetos.


18 HOMEM- Não! Eles brotaram! Saiam daqui! Eu não preciso de vocês... Nós não precisamos de vocês! A Mulher derrama todo o molhado sobre a terra. MULHER- Nosso universo precisa ser ampliado! Caindo violentamente surge outra caixa retangular, com a base maior junto ao chão. As duas caixas são colocadas lado a lado formando um grande “L” . HOMEM- Esse é o nosso ataúde... O meu ataúde! Dirige-se a caixa ataúde e deita-se. MULHER- É... A Mulher torce o saco plástico fazendo cair as últimas gotas do molhado. MULHER- Não! Minha lavra... Nossa lavra! HOMEM- O que está fazendo? Arrasta-se até o punha do de terra e o lambe. HOMEM- É... (Engasga-se) A Mulher pega o rosto do Homem e lhe empresta um pouco de saliva. HOMEM- Terrivelmente seca! Retorna a caixa ataúde. MULHER- Palavras pra lavrar... Cessam os sons de insetos. A Mulher ameaça dizer alguma coisa. Suspira. Bate suavemente na divisa das duas caixas. Silêncio. Bate novamente com mais força. HOMEM- ÃÃÃÃÃÃ... MULHER- (Em pânico) Psssss... HOMEM- O que... Sons de insetos. O Homem se debate. MULHER- ÑÑÑÑÑÑ... Psssssssss... Cessam os sons de insetos. Mulher e Homem colocam suas cabeças para fora das caixas. A Mulher lambe os lábios do Homem. MULHER- Vamos? Procuraremos algo fora daqui... Fora de nós... O Homem balança a cabeça afirmativamente. Saem das caixas. MULHER- Precisamos de uma parcela de segurança! O Homem arrasta a caixa ataúde.


19 A caixa altar é erguida. MULHER- (Gaguejando) Rumo... O Homem encolhe-se, cobrindo o rosto com as mãos. MULHER- (Desconfiada) Rumo... Ainda encolhido o Homem descobre a visão. MULHER- (Confiante) Rumo! O Homem olha ao redor. MULHER- (Gritando e pulando) RUUUMMMMOOOOOOO! RUMO! RUMO! RUMO! (Desequilibra-se) RUMO? RUMOR... HOMEM- Os insetos silenciaram! Beijam-se. Ao fundo ouve-se uma gargalhada. Mulher e Homem saltam para dentro da caixa ataúde. Entra uma figura hermética fazendo reverências. GUARDIÃO- Ah, o rumor! Num pestanejar de olhos invade o vazio, aniquilando todos os limites, toda a segurança! Não tenham medo! Não posso lhes fazer mal algum... Lamentavelmente o bem também não! Vou me apresentar... Senhora... Senhor... Eu sou o Guardião! O Guardião da Verossimilhança! Eu mantenho tudo e todos em ordem! Reparem em suas expressões felizes, comodamente felizes! Buscam sempre fora o que está dentro! Procuram a chave na luz, mesmo sabendo que ela está na escuridão! Justificam, classificam, hierarquizam toda mediocridade latente! (Pausa) A mediocridade não é uma questão de... (Dramático) Ser ou não ser! É uma questão de grau! Estou cansado! Minha cota diária de palavras foi gasta! Ah, ia me esquecendo... Vocês estão cuidando bem de meus queridos insetos? O Guardião gargalha. Mulher e Homem saltam da caixa ataúde e arrastando-a saem vagarosamente. GUARDIÃO- (Olhando-os partir) “O peso é positivo”! O peso do vício! Lança-se no vazio e tirano exige que seja carregado num ato de fé, até que consumidas todas as forças, numa sarcástica indulgência, implora que seja eliminado. “O leve é negativo”! Possui existência própria! Não pede, não exige, não transforma! É vazio! Sai acompanhado por uma voz. VOZ FUNDO- Falar o que não sente, sentir o que não fala. Palavras pra sentir, sentir com palavras. O sentimento é molhado pra lavrar sentindo. A palavra é molhada pra sentir lavrando. Lavrar o amor larvado de ódio. Palavras sentidas. Uns e outros. Um sente o que o outro não fala, o outro fala o que um não sente. Um significado... Será preciso explicitar? Alguém já viu o amor? O ódio? Os sentimentos e pensamentos horríveis a que estamos sujeitos quando menos esperamos? O que é uma visão no meio de tantas outras? Apenas uma visão? O que meus olhos vêem é a mesma coisa que seus olhos vêem? O que sinto é a mesma coisa que vocês sentem? Chega! Meus olhos estão cansados! Vejam, sintam e falem o que quiserem! Não vejam, sintam ou falem nada! Vejam, sintam e falem pela metade! Que importância tem tudo isso? BLECAUTE


20 O RUMOR Mulher e Homem estão sentados nas bordas da caixa ataúde olhando o infinito. HOMEM- Estou seco! MULHER- Devemos continuar? Olham-se com fervor, abraçam-se, pulam para dentro da caixa e mecanicamente se amam. Um rumor fraco de ondas ao fundo. MULHER- Escute! O rumor de ondas aumenta paulatinamente. HOMEM- O quê? MULHER- Um rumor! Abraçam-se em fúria protetora. Sons de maremoto. MULHER- (Gritando) Mantenha-se em equilíbrio! Equilibram-se. Os sons de maremoto diminuem paulatinamente até tornar-se um rumor de ondas. Sobre o rumor de ondas, sons de insetos. HOMEM- (Eufórico) Puta que o pariu! E agora? MULHER- Beba! HOMEM- Mas... É muito! MULHER- Aos poucos porra! HOMEM- Sim! Também pra lavrar! MULHER- Poderemos evoluir! Mas... Os insetos... HOMEM- Serão aniquilados! Pela umidade! (Joga o molhado sobre os insetos) Tudo é favorável! O Homem inclina-se e bebe. HOMEM- (Cospe) É salgado! A Mulher também bebe. MULHER- (Chora) É terrivelmente salgado! HOMEM- Não temos mais saídas! Não temos mais nada! MULHER- Nenhuma palavra! Erguem juntos a corrente. MULHER- Temos algo comprometedor! HOMEM- Onde está a chave? MULHER- No escuro! O Homem ameaça saltar da caixa. MULHER- Não faça isso com você... Conosco... Comigo! (Pausa) E se remássemos?


21 O Homem espanta os insetos. MULHER- Como poderíamos imaginar que era salgado? HOMEM- Um blefe! A vida é um blefe! MULHER- (Idiotizada) Vamos filosofar sobre a chuva? Sobre a utilidade do cinzeiro? A Mulher rema sem sair do lugar. HOMEM- Se pelo menos tivéssemos uma oportunidade, uma alternativa, uma saída! Será realmente que somos tão responsáveis assim? MULHER- E se nos matássemos? HOMEM- (Assopra um inseto da testa) De que modo? MULHER- Afogados! HOMEM- Poderíamos desistir e começaríamos a nadar! Não é viável! MULHER- E se batêssemos nossas cabeças nas quinas do ataúde? Até a morte! HOMEM- É possível! MULHER- Então? HOMEM- (Espanta os insetos da cabeça da Mulher) Juntos! Um não deve sofrer mais que o outro! MULHER- Contamos até cinco e... HOMEM- Cinco cabeçadas devem ser suficientes! MULHER- Vamos? JUNTOS- Um... Dois... Três... Param. HOMEM- O que vem depois do três? MULHER- Não acredito que você não saiba!? HOMEM- Se você sabe, por que não continuou contando quando eu parei? MULHER- Não é que eu não saiba! Eu apenas não me lembro! Silêncio. HOMEM- Vamos direto para o cinco! MULHER- Não! Não podemos! Se formos direto para o cinco, na realidade ainda estaremos no... No... HOMEM- No quê? MULHER- (Chora) Não me lembro! Espantam os insetos. HOMEM- Poderemos inventar uma palavra... ou número! MULHER- É isso! JUNTOS- Um.. Dois... Três... Daco... HOMEM- Cinco! Dá a primeira cabeçada. MULHER- Não dá! HOMEM- Ai! O que foi? MULHER- É importantíssimo que mantenhamos a coerência neste momento crucial! HOMEM- Mas há coerência! A seqüência está certa! Modificamos apenas um número... ou palavra! MULHER- Mesmo com apenas uma palavra... ou número... precisamos ser coerentes! E se não sabemos que número... ou palavra... está entre o três e o cinco, na realidade não temos certeza nenhuma se esta palavra... ou número... está no local


22 certo! Ela também pode estar entre o um e os dois ou totalmente livre, flutuando! Não temos certeza alguma sobre a seqüência! HOMEM- Então o desconhecido não nos permite saber a seqüência exata? MULHER- Exatamente! HOMEM- Mas que importância tem a seqüência... a coerência... a eloquência... frente à grandeza do instante? MULHER- Muita, já que estipulamos que nossa atitude depende invariavelmente de palavras... ou números... dentre as quais não sabemos uma ! Por causa desta uma, desconhecida, o instante perderia a sincronia e nos perderíamos! HOMEM- (Resmunga) Mas já estamos perdidos! (Pausa) Aaaahh! E se contássemos até três? MULHER- Impossível! A ordem foi subvertida! HOMEM- Precisamos encontrar o desconhecido! Contam com os dedos. O Homem mantém o polegar erguido; a Mulher o dedo médio. MULHER- Desisto! HOMEM- Não! Insiste. Sobre o indicador erguido, abaixa e levanta o polegar. HOMEM- (Olhando o formato de sua mão) Se pelo menos possuíssemos algum objeto apropriado! Silêncio. MULHER- Estou vendo algo! O Homem olha para o lado oposto ao que a Mulher indicava. HOMEM- O quê? A Mulher vira violentamente a cabeça do Homem para a direção certa. MULHER- Aí não! Aqui! HOMEM- Onde? Onde? Forma um antolho sobre a cabeça do Homem. MULHER- Ali! HOMEM- Aaaaaahhhhh! Está se movendo! Em nossa direção! MULHER- É... Um objeto! HOMEM- Seria bastante útil! MULHER- Parece uma... HOMEM- Não seria útil! MULHER- Veja! Está cheia! HOMEM- Do quê? MULHER- Parece... Molhado! HOMEM- Vamos beber! MULHER- Está fechada! HOMEM- Abra! A Mulher abre a garrafa e dá ao Homem que bebe vorazmente. HOMEM- (Engasga) É... Forte! Extremamente forte! MULHER- Deixe-me experimentar! (Dá uma bebericada) Adocicado! (Toma grandes goles) HOMEM- O chão parece fugir de meus pés!


23 Tomam mais alguns goles e fecham a garrafa. HOMEM- Estou sentindo uma imensa alegria! Gargalham. Em meio às gargalhadas tentam fazer uso das palavras. HOMEM- Estamos sem saídas! MULHER- Sem uma palavra... Significativa! HOMEM- Esses insetos... MULHER- Fazem cócegas! HOMEM- Estamos em queda! Vomitam. Olham-se com fervor. JUNTOS- Eu te amo! (Beijam-se e desmaiam). BLECAUTE.


24 O SENTIDO Despertam. JUNTOS- O que aconteceu? MULHER- Não me lembro! HOMEM- Minha boca está terrivelmente seca! MULHER- O que é isso? HOMEM- Não tenho idéia! MULHER- Veja! Está cheia! HOMEM- Do quê? MULHER- Parece... Molhado! HOMEM- Vamos beber! MULHER- Está fechada! HOMEM- Abra! A Mulher abre a garrafa e dá ao Homem que bebe vorazmente. HOMEM- É suave! MULHER- Deixe-me experimentar! (Dá uma bebericada) Insípido! (Toma grandes goles, faz bochechos, devolve a garrafa ao Homem) HOMEM- Ah! O molhado! MULHER- Em pequenas porções! O Homem dá o último gole. HOMEM- Merda! A Mulher arranca a garrafa das mãos do Homem e suga as últimas gotas do molhado. Soca a cara do Homem. MULHER- Seu porra! Você bebeu tudo! HOMEM- (Revida os socos) Sua puta nojenta! Egoísta! MULHER- Covarde miserável acomodado! Cospe na cara do Homem e atira a garrafa longe. HOMEM- Maldita filha da puta! Pega a Mulher pelos cabelos e puxa-os para trás, fazendo seu corpo arquear. Aproxima seu rosto junto ao dela. HOMEM- Imbecil! Sempre me fiz de submisso (espanta um inseto da cara) para que você, com suas palavras imaginasse ser a senhora onipotente! A única coisa que você me deu foi a esperança de uma palavra! MULHER- (Cospe) E você me deu a esperança de um amor! (Beijam-se apaixonadamente. Entregam-se ao momento. Desfalecem em gozo). BLECAUTE.


25 O ELO Despertam. JUNTOS- O que aconteceu? HOMEM- Estou com um gosto estranho na boca! MULHER- Amargo! HOMEM- Ácido! Olham-se com estranheza. Silêncio. HOMEM- Como sair de onde entramos? MULHER- Como entrar onde saímos? Não há uma rota, um rumo, uma lembrança! HOMEM- Há um rumor! Rema. MULHER- Esbarramos em algo! Parece... Sólido! HOMEM- Sustentável? MULHER- Desça! Com a ponta do pé, o Homem procura o chão. MULHER- Mantenha o equilíbrio! HOMEM- (Apóia com firmeza o pé no chão) É sustentável e seguro! Saltam da caixa ataúde sobre um punhado de terra colocada na forma de uma circunferência cheia; uma ilha. HOMEM- A solidez! MULHER- Palpável! HOMEM- Oca! MULHER- (Aflita) Veja! O Homem senta-se. A caixa ataúde afasta-se lentamente. Cessam os sons de inseto. A caixa altar desce lentamente. HOMEM- Separamo-nos de nossos repugnantes insetos! Tudo que tínhamos como suposto significado! MULHER- Nossa sensação de segurança! HOMEM- Permanecemos na partida! MULHER- Este momento é crucial! HOMEM- A posse é nossa meta! MULHER- Teremos que ser drásticos! A Mulher arranca os olhos do Homem com a s unhas. Abre a corrente e lhe dá a chave. Coloca a língua para fora da boca, o Homem fecha a mão sobre ela. HOMEM- É molhada! Com a chave arranca a língua da Mulher. O Homem bebe o sangue que escorria pela boca da Mulher. O mesmo faz a Mulher, bebendo o sangue dos olhos do Homem. HOMEM- Finalmente! Em termos definitivos agora somos apenas um! Infinitamente grandes!


26 Conclui-se a descida da caixa altar. Cessam os sons de ondas. No interior da caixa uma rosa vermelha. A Mulher recolhe a rosa, tomba a caixa altar e deposita em seu interior a língua e os olhos, jogando sobre estes um punhado de terra e a rosa vermelha. Sentam-se ao lado da caixa. HOMEM- Eu te amo! A Mulher descobre os seios e leva-os à boca do Homem. HOMEM- O que você está vendo? O que você está vendo? O que você está vendo? O que você está vendo...?


27

QUEDA SILENCIOSA PARA CIMA

O VENTO Luzes fracas. Paredes em ruínas. Ao fundo uma pequena janela com persianas velhas fechadas; à direita da janela, na parede, estão cabeças penduradas como se fossem retratos; à esquerda, no chão, um guarda-chuva furado aberto cobrindo uma garrafa cheia até a boca e na parede, penduradas, duas máscaras sorridentes. Folhas secas pelo chão. A mulher em pé, o homem deitado. Estão nus. Sons de trem passando. MULHER- O último! HOMEM- É! Passou... A noite está tão clara! Por um instante jurei estar vendo seus olhos! MULHER- (Desconfiada) O vento está tão forte... HOMEM- Sempre ventou! MULHER- Não como hoje! Faz tempo que não venta assim! HOMEM- (Senta-se) Tudo está tão quieto! Tão silencioso! Schhh! Ouça! (Pausa) Por um instante jurei estar ouvindo meu coração batendo! MULHER- (Olha para cima) Não temos um teto! HOMEM- (Levanta-se) Pra que um teto? MULHER- Precisamos de um teto! HOMEM- Preciso é de seus olhos! MULHER- (De costas para o homem) O vento pode ser perigoso! Ele pode trazer coisas! Pode nos levar para onde sempre queríamos estar mas tínhamos medo! O homem dirige-se até a mulher e coloca as mãos sobre seus ombros. HOMEM- Há tanto tempo não os vejo! Sopra um vento forte. Folhas secas caem no chão. HOMEM- Preciso vê-los! MULHER- (Desvencilha-se do homem) Não se deixe levar pelo vento! HOMEM- Eu preciso tanto vê-los! (Pausa) Às vezes eu... (Envergonhado) Eu... (Corre até a mulher, vira-a de frente, olha-a muito próximo forçando a vista e passa os dedos sem toca-la pelos contornos de sua face) Às vezes eu esqueço! A mulher corre até as cabeças penduradas (retratos). MULHER- Os retratos! RETRATOS- (Junto com a mulher) Os retratos! HOMEM- Preciso ver seus olhos... Lembrar! Mostre-me! Eu quero ver! Amanhã... Durante o dia! Enquanto os trens passam! MULHER- (Procura alucinada por algo) Esqueça! Tanto tempo juntos! Não sou a mesma! Esqueça! HOMEM- Não quero esquecer! Por que nos escondemos? MULHER- (Pega a garrafa) É melhor assim! (Coloca a garrafa na boca do homem e a vira) Beba! Vamos! Beba! Esqueça! HOMEM- (Engasga-se) Só quero ver seus olhos! Quero lembrar! Ver meus olhos dentro dos seus! MULHER- Mas você pode estar dentro de mim! A mulher fica de quatro com a garrafa na mão. MULHER- (Sedutora) Vem! Fique dentro de mim!


28 O homem levanta a mulher. Ergue os braços para abraça-la. Pára. Abaixa os braços. Fica de costas para a mulher. HOMEM- Ah, esse vento... Esse silêncio... São ensurdecedores! MULHER- (Doce) Fique dentro de mim! HOMEM- Quero mais do que o instante! MULHER- Tenho medo! Somos... Seremos os mesmos? Nossos retratos? HOMEM- Tanto tempo... Para onde o vento nos levará? MULHER- (Bebe assustada) Onde sempre queríamos estar! HOMEM- (Constrangido) Tenho medo! JUNTOS- Ah, esse vento! RETRATOS- (Junto com o casal) Ah, esse desejo! HOMEM- Esse vento me deixa confuso! MULHER- (Bebe) Ah, esse desejo! Esses desejos! Sopra um vento forte. Folhas secas caem no chão. A mulher se contrai, o homem abre os braços. HOMEM- (Murmura) Esses desejos... MULHER- Sermos levados pelo vento ou ficarmos protegidos pelo teto? HOMEM- Não sei... Não sei... MULHER- Entrarmos na sombra de nossos olhos ou ficarmos no instante procurando-os na escuridão, esquecendo? O homem senta-se contraído. HOMEM- Tenho medo... MULHER- Precisamos de um teto... Protegidos! HOMEM- Na escuridão? MULHER- Precisamos de um teto igual a todos os tetos! É como deve ser! É mais seguro! HOMEM- Um teto... MULHER- Igual a todos! HOMEM- Igual! MULHER- Durante o dia colocaremos! Enquanto os trens passam! HOMEM- Durante o dia! MULHER- (Bebe) Olhando nossos retratos! HOMEM- (Pega a garrafa e bebe) É... Deitam-se. Luzes aumentando. RETRATOS- DE TANTO OLHAR, ESQUECER. DE TANTO ESQUECER, LEMBRAR. LEMBRAR DO QUE FOI ESQUECIDO PARA PODER OLHAR. OLHAR SEM PENSAR NO QUE FOI DEIXADO, NO QUE FOI MUDADO, NO QUE SERÁ. MAS E O DESEJO? ESSE VENTO QUE SOPRA FORTE SOBRE NOSSAS COSTAS ARQUEADAS. SOBRE NOSSAS BOCAS ABERTAS DE ESPANTO. QUE ENGASGA.


29 QUE ATORDOA. QUE CONFUNDE. QUEM É O OUTRO? CONHECIDO? ESTRANHO? AH, O VENTO! VENTO QUE ORIENTA, DESORIENTADO. VENTO QUE PARTE AO MEIO E ENCAIXA. VENTO QUE ERGUE NUMA QUEDA SILENCIOSA. Sons de trem passando. Luzes.


30 O TETO Sons de trem passando. Luzes. A mulher levanta-se, veste-se e põe a máscara. MULHER- (De costas para o homem) Acorde! Já é dia! Pegue a sua máscara! Aproxima-se do homem de costas e dá a outra máscara. O homem a pega; a mulher afasta-se. MULHER- Os trens passam! O homem coloca a máscara, levanta-se e veste-se. A mulher vira-se, vai até o homem com os braços erguidos para abraça-lo, pára, abaixa os braços. MULHER- O vento está fraco! Ficará fácil pormos o teto! HOMEM- (Olha para o chão) Sua sombra... A mulher fica de costas para o homem. HOMEM- (Ajoelha-se e acaricia a sombra da mulher) Seus olhos... A mulher pega a garrafa e dá ao homem. O homem levanta-se e bebe. HOMEM- Precisamos colocar o teto! MULHER- Não podemos perder tempo! HOMEM- (Murmurando) Perder tempo... O homem coloca a garrafa no chão. HOMEM- (Olha para cima) Um teto... (Olha para a mulher) Poderíamos... MULHER- É perigoso! HOMEM- Mas... A mulher vira-se de costas. HOMEM- Já volto! O homem abre a janela e a pula. A mulher olha-o sair, fecha a janela e dirige-se aos retratos. MULHER- (Acaricia uma das cabeças) E se nos víssemos somente por alguns instantes? (Tira a máscara) Ainda somos os mesmos!!! Mas já faz tanto tempo! Nos olhar... Entrar nas sombras de nossos olhos, na escuridão de nossos olhos... (A mulher acaricia o corpo) Ele dentro de mim, eu dentro dele! (Os retratos têm as mesmas expressões que a mulher) Olho no olho... Juntos! Nos olhando... Nos sentindo... (Geme) Nos achando... (Sopra um vento forte. Folhas secas caem no chão) Nos perdendo... (Pára de acariciar o corpo; angustiada) Nos estranhando... Nos afastando... (Corre, pega a garrafa e bebe desesperada) Não! Não quero! Não posso! Já não somos os mesmos! Já não sou a mesma! Não quero estragar tudo! (Põe a máscara e segurando a garrafa caminha até o guarda-chuva, ergue-o sobre a cabeça e senta-se encolhida) Assim o vento chega mais fraco! Esse silêncio me incomoda! Os trens não passam!? Estou me sentindo só! Que droga! Ele está demorando! (Sopra um vento forte. Folhas secas caem no chão) Esse silêncio me incomoda! (A mulher bebe em grandes goles) E se eu cantasse? É! Poderia cantar! (Canta num ritmo melancólico) Vento forte que traz; folhas secas e mais; traz junto o meu amor; Vento forte demais; que me confunde; e me faz querer mais; sempre mais e mais e mais do meu amor. (Pára de cantar e coloca o guarda-chuva ao seu lado) Quero mais e mais e mais o meu amor!


31 HOMEM- (Em off) Abre aqui! A mulher abre a janela e o homem entra carregando madeiras velhas. HOMEM- Acho que são suficientes! A mulher deixa a garrafa no chão, levanta-se e corre para junto do homem de braços abertos. O homem solta as madeiras e abre os braços. A mulher pára de braços abertos a alguns passos do homem. Os retratos tentam se beijar. A distância os impede. MULHER- (Abaixa os braços e vira-se de costas) Você demorou! HOMEM- (Pega a garrafa e bebe) É! MULHER- (Delicada) Ventou... HOMEM- Forte? A mulher balança a cabeça afirmativamente. HOMEM- Hoje os trens estão atrasando! MULHER- Então é por isso!? O silêncio... HOMEM- Vamos acabar logo com isso! Você me ajuda? MULHER- Hoje eu fiz uma música! HOMEM- Eu subo e você me passa as madeiras! MULHER- Uma música bem bonita! Quer ouvir? O homem deixa a garrafa no chão, pula a janela e sobe na parede. HOMEM- (Em cima) Cante! MULHER- (Passa as madeiras cantarolando) Vento forte que traz... Você quer... Não quer... (Pára de cantarolar) Não! Não era assim! (Pausa) Você não vai pregar? HOMEM- Não temos pregos! MULHER- (Passa as madeiras) Como era mesmo? (Cantarola) Vento forte que faz... Não quero... Quero... Vento... Vento... (Pára de cantarolar) Ah, esqueci! HOMEM- Passe as madeiras! MULHER- Não há mais madeiras! HOMEM- Só cobri esse pedaço! MULHER- Busque mais! HOMEM- Não há mais! MULHER- Só metade? HOMEM- É! MULHER- E agora? E o vento? HOMEM- A metade deve ser suficiente! MULHER- O vento continua! HOMEM- Vamos acabar logo com isso! MULHER- Mas já fizemos o que tínhamos que fazer! HOMEM- Não! Não fizemos! O homem tenta retirar a máscara. A mulher o impede. MULHER- Não! Não faça isso! HOMEM- Veja! MULHER- (Afasta-se do homem) Não estamos prep... HOMEM- (Retira a máscara, joga-a no chão e aproxima-se da mulher) Olhe pra mim! Ainda sou o mesmo! MULHER- (Delicada) O próximo trem já vai passar!


32 HOMEM- Não quero saber! Olhe pra mim! MULHER- Não tenho certeza... Acho que o próximo trem vai passar! HOMEM- Olhe pra mim, se mostre pra mim! A mulher pega a garrafa, dirige-se aos retratos e os acaricia bebendo em grandes goles. MULHER- Não adianta! Não resistiríamos! E se tivermos mudado? E se não? E se mudarmos? HOMEM- (Dirige-se até a mulher) Vamos saber! MULHER- (Ergue a garrafa de costas) Você precisa de um gole! HOMEM- Olhe pra mim! MULHER- Não! HOMEM- Covarde!!! MULHER- Não! Não quero! Pare! Sons de trem passando. A mulher vira-se, avança sobre o homem de olhos fechados e quebra a garrafa em sua cabeça. O homem cai desacordado. A mulher dá as costas. Expressões de dor e ira nos retratos. Mulher- Quero esquecer... Fecha a janela. Luzes diminuindo. RETRATOS- TREM PASSA TEMPO PASSA OLHA O TREM PASSANDO LIGEIRO SOLTANDO FAÍSCA OLHA O TREM TRAZENDO TROVÃO E O RAIO QUE ILUMINA OLHA O TREM FAZENDO BARULHO TRUQUE TRAPAÇA (SONS DE TREM PASSANDO E DE BUZINA DE TREM) OLHA O TREM! OLHA O TREM! CUIDADO! CUIDADO! OLHA O TREM! ATROPELOU! Luzes fracas.


33 A QUEDA Luzes fracas. A mulher retira as roupas e a máscara. Aproxima-se do homem e retira suas roupas. Pega a máscara do homem no chão e a pendura junto à sua na parede à esquerda. Mulher em pé na parte coberta. Homem deitado na parte descoberta. HOMEM- (Senta-se) Porra! Tá doendo! MULHER- Era preciso! (Suave) Desculpe! Vem pra cá, vem! Fique dentro de mim! HOMEM- A noite está tão escura... O último trem já passou? MULHER- Ainda não! HOMEM- Tão escura... MULHER- (Alegre) Nem uma brisa suave! Vem pra cá! HOMEM –Parece que vai chover! Tudo está tão quieto! Tão silencioso! Schhhh! Ouça! (Pausa) Por um instante jurei estar ouvindo nossos corações batendo! MULHER- O trem! Sons de trem passando. MULHER- O último! O homem corre para a janela e a abre. HOMEM- Está tão vazio! (Pausa) Veja! Alguém está acenando! O homem acena timidamente. A mulher corre para junto da janela. MULHER- Onde? HOMEM- Passou... MULHER- Você pôde ver o rosto? HOMEM- Por um instante jurei estar vendo seus olhos! MULHER- Será que quem estava no trem viu o seu rosto? HOMEM- Acho que sim! Sopra um vento forte. Folhas secas caem no chão. MULHER- Queria estar naquele trem! A mulher corre, pega o guarda-chuva no canto descoberto e dá ao homem. MULHER- Parece que vai chover! Corre para o canto coberto. HOMEM- Ela estava sorrindo! MULHER- Ela? HOMEM- Sim! Ela! MULHER- Como era? HOMEM- Parecia você! MULHER- Eu? HOMEM- Acho que sim! MULHER- Tinha alguém com ela? HOMEM- Não sei exatamente! MULHER- Um homem? HOMEM- Acho que sim!


34 MULHER- Fale mais! HOMEM- Ele tem uns olhos tão vivos... Tão sedentos... Tão famintos... MULHER- (Murmura) Ainda são os mesmos! HOMEM- Será que passarão novamente? Quero vê-la! MULHER- Quero vê-lo! HOMEM- Não sei se a reconhecerei! MULHER- É! Pode ser que não reconheça! HOMEM- Talvez queira esquecer! Preciso de um gole! MULHER- (Envergonhada) Acabou! HOMEM- (Chuta os cacos) Só cacos de vidro... MULHER- (Sedutora) Vem pra cá! Fique dentro de mim! HOMEM- (Ergue o guarda-chuva sobre a cabeça) Parece que vai chover! A mulher deita-se com as pernas abertas. MULHER- (Chama com o dedo indicador) Vem! O homem solta o guarda-chuva, dirige-se à mulher e deita-se sobre ela. Transam. Sopra um vento forte. Folhas secas caem no chão. HOMEM- (Ofegante) Não quero esquecer! Não quero esquecer! MULHER- Vem! Vem! Fique dentro de mim! Trovões e raios. O homem olha assustado para cima; Levanta, corre, fecha a janela e pega o guarda-chuva e o ergue. A mulher senta-se encolhida. JUNTOS- Schhhh! Fique parado(a)! RETRATOS- (Junto ao homem e a mulher) Schhhh! Fiquem calados! Sopra o vento forte derrubando o teto e uma grande quantidade de folhas secas. Algumas madeiras caem sobre os retratos, cobrindo-os. A mulher corre para junto do homem, embaixo do guarda-chuva. As luzes dos raios iluminam por alguns instantes os rostos do homem e da mulher. Mulher e homem olham assustados para cima por sob o guarda-chuva. Distraídos cruzam os olhares. Voltam a olhar para cima. Olham-se nos olhos com espanto. JUNTOS- Você... RETRATOS- (Junto ao homem e a mulher) Vocês! A mulher corre para junto dos retratos e retira algumas madeiras que estavam sobre eles. HOMEM- (Joga o guarda-chuva, abre os braços e gira) Ela... Ela... Ela... Os raios iluminam os retratos. Expressões de terror e alegria. A mulher acaricia os retratos. Cessam os raios, trovões e o vento. Mulher e homem caem sentados. Luzes aumentando. RETRATOS- MULHER E HOMEM OU QUALQUER OUTRA COMBINAÇÃO POSSÍVEL UM E OUTRO UM A DESEJAR OUTRO A DESEJAR UM A DESEJAR O NÃO DESEJAR OUTRO A DESEJAR O NÃO DESEJAR


35 UM DESEJO MATANDO OUTRO DESEJO E MAIS OUTRO E MAIS OUTRO OUTRO DESEJO MATANDO UM DESEJO E MAIS UM E MAIS UM O QUE SOBRARÁ? AAAAHHHH, O DESEJO! Sons de trem passando. Luzes.


36 O TREM Sons de trem passando. Luzes. Mulher e homem sentados. O homem olha para cima de costas para a mulher. A mulher acaricia os retratos olhando para o homem. Expressões de desconfiança nos retratos. HOMEM- (Levanta-se alegre) Os trens já estão passando! MULHER- Rápido! HOMEM- Será que aqueles passageiros virão hoje? MULHER- Agora não importa! O homem pega as máscaras penduradas na parede . HOMEM- Não estamos esquecendo algo? MULHER- Agora não importa! HOMEM- (Coloca a máscara) O que vimos foi pouco! MULHER- (Levanta-se) Não! Não foi! Foi muito e não vi nada! HOMEM- Tome! (Ergue a máscara de costas para a mulher) Coloque! (Sedutor) Vem! Fique dentro de mim! MULHER- Não podíamos! Olhei em seus olhos e ... Sons de trem passando. O homem corre para a janela e a abre. HOMEM- Será que estão neste? MULHER- Olhe pra mim! Os retratos olham em direções diferentes. MULHER- (Aproxima-se do homem) Olhe pra mim! Ainda sou a mesma! HOMEM- (Delicado) O próximo trem já vai passar! MULHER- Não quero saber! Olhe pra mim! HOMEM- Não tenho certeza... Acho que estarão no próximo! MULHER- Olhe pra mim! Se mostre pra mim! O homem dirige-se aos retratos. HOMEM- Colocarei o teto do outro lado! MULHER- Não adianta! Ele não resistirá! HOMEM- Você precisa de um gole! MULHER- (Chuta os cacos de vidro e dirige-se até o homem) Olhe pra mim! HOMEM- Não! MULHER- Covarde! HOMEM- Não! Não quero! Pare! O homem vira-se e avança sobre a mulher de olhos fechados desferindo socos. A mulher cai. O homem dá as costas. Expressões de dor e ira nos retratos. HOMEM- Quero esquecer... Sons de trens passando. O homem corre para a janela.


37 HOMEM- (Acena desesperado) Estão neste! Estão neste! Tenho certeza! Estão neste! MULHER- (No chão. Desafiadora) Onde? Me mostre! HOMEM- Não sei! Talvez no próximo... MULHER- Não viu nada... HOMEM- (Afasta-se da janela de costas para a mulher) Não consegui reconhecer! MULHER- Esquecemos! HOMEM- O trem passa rápido demais! A mulher levanta-se, olha para o homem que está de costas, olha para os retratos, olha para o homem novamente e pára o olhar na janela. MULHER- Queria estar nele! HOMEM- Eu tento lembrar mas não consigo! MULHER- Talvez no próximo! HOMEM- Quero esquecer... Não! Não quero! Não sei... Quero lembrar... Sopra o vento forte. Folhas secas caem no chão. HOMEM- Esse vento me deixa confuso! MULHER- Não! Não é o vento! Somos nós! Um desejo matando o outro! HOMEM- A maneira perfeita de nos tornarmos nada! Sopra o vento forte. Folhas secas caem no chão. As persianas abrem e fecham, batendo violentamente. Mulher e homem olham para a janela. MULHER- Schhhh! Ouça! O trem! Longe... Longe... Vindo... Vindo... HOMEM- Agora não importa! E agora? A mulher veste-se rapidamente. MULHER- Não deve ser tão rápido! HOMEM- Queria estar nele! A mulher corre e pula a janela. HOMEM- Aonde você vai? A mulher pára junto à janela, olha para o homem e sai. HOMEM- (Corre para a janela) Não! É rápido demais! Não vá! Retira a máscara e a joga no chão. HOMEM- Espere... (Diminuindo o volume da voz) Espere... Espere... Sons de trem passando. HOMEM- (Senta-se sob a janela) Não vá neste trem! Não me deixe! O homem olha ao redor. Pega o guarda-chuva e o ergue sobre a cabeça. Expressões de tristeza nos retratos. O homem dirige-se aos retratos e os acaricia.


38 HOMEM- Queria tanto olha-la nos olhos, falar tudo! Engasguei! O vento forte me fez engasgar! O desejo me fez engasgar! (Joga o guarda-chuva no chão) Quantas palavras? Quantas palavras seriam necessárias? Quantas palavras! E um desejo e mais um e mais um e mais um... Soprando, soprando, soprando... E nós? O que sobrou de nós? (Olha ao redor) Palavras? Retratos? Medo? Já não éramos mais os mesmos? Ainda éramos os mesmos? Mudamos! E agora? Preciso de um gole! (Olha para os cacos) Não! Não preciso! (Veste-se e olha lentamente ao redor) Não preciso mais de nada disso! O homem pula a janela e sai. Luzes diminuindo. RETRATOS- SCHHHH! NÃO DIGA MAIS NADA! APENAS VÁ! VENDO TUDO PASSANDO PELA JANELA ABERTA DO TREM OUVINDO TUDO PASSANDO PELA JANELA ABERTA DO TREM SENTINDO O VENTO ARREPIANDO O CORPO E DESMANCHANDO O PENTEADO SABOREANDO O GOSTO DO VENTO SECANDO A LÍNGUA DEIXANDO COM SEDE SEDE EXIGINDO SER SACIADA FICANDO NUM ESTADO CONSTANTE DE ARREBATAMENTO EXCITANDO OS SENTIDOS SUBLIMANDO O ATO ESQUECENDO AS PALAVRAS QUE DEVEM SER DITAS QUE DEVERIAM SER DITAS APENAS VÁ! NOS ESQUEÇA! Luzes fracas. BLECAUTE.


39 OS OLHOS Sons de trem passando. Luzes fracas. Trilhos do trem. A mulher está de lado junto aos trilhos do trem. Sopra um vento forte. Folhas secas movem-se no chão. Entra o homem e aproxima-se da mulher. HOMEM- Pensei que nunca mais... MULHER- Estava esperando você! HOMEM- A noite está tão clara... Tão quieta! MULHER- Foi o último... HOMEM- É... Passou... MULHER- Não consegui alcançar nenhum! Não queria! HOMEM- Está cansada? MULHER- Corri, corri, corri e caí! HOMEM- (Preocupado) Machucou? MULHER- Um pouco! HOMEM- É muito rápido! MULHER- Não! Não é tão rápido! Corri, mas não fazia sentido algum! Fiquei pra trás! HOMEM- Ficamos! Sopra um vento forte. Folhas secas movem-se no chão. A mulher fica de frente para o homem. HOMEM- O vento está... MULHER- Refrescante! HOMEM- É! Refrescante! O homem estende a mão; a mulher a segura. HOMEM- Vamos? MULHER- Vamos! Olhares distantes. HOMEM- O próximo trem já vai passar! MULHER- Daqui a pouco! HOMEM- Estaremos nele! MULHER- Vamos correr! Correr muito antes dele chegar! HOMEM- Não me deixe! MULHER- Correrei com você o tempo todo! HOMEM- Iremos para onde o trem nos levar! MULHER- Onde sempre queríamos estar! Sentam-se sobre os dormentes dos trilhos. HOMEM- Deixaremos abertas as janelas do trem! MULHER- E colocaremos as cabeças para fora! HOMEM- Sentindo o vento bater em nossos rostos! MULHER- Forte! Muito forte!


40 Deitam-se. BLECAUTE. Em off. RETRATOS- (Volume de voz muito alto) Schhhh... Schhhh... MULHER- Forte... HOMEM- Muito forte... Silêncio. HOMEM- Tenho que dizer algo! RETRATOS- (Alto) Schhhh... Schhhh... MULHER- Não precisamos dizer mais nada! RETRATOS- (Médio) Schhhh... Schhhh... HOMEM- É! Nem uma palavra! RETRATOS- (Baixo) Schhhh... Schhhh... MULHER- Esqueça-as! RETRATOS- (Muito baixo) Schhhh... Schhhh... Nem uma palavra! Nos esqueça!


41 O SILÊNCIO Sons distantes de trem aumentando gradativamente. Luzes. Mulher e homem deitados. Sentam-se alertas. O homem olha na direção em que vem o trem. A mulher olha para o homem. O homem levanta-se e dá a mão à mulher ajudando-lhe a levantar. O homem olha para a mulher e tenta dizer algo; a mulher o impede colocando o dedo indicador sobre sua boca. O homem passa os dedos pelos contornos da face da mulher. Sopra o vento forte. Folhas secas movem-se no chão. A mulher tenta dizer algo; o homem a impede beijando-a com fervor. Olham-se boquiabertos e extasiados. Olham na direção em que vem o trem. Olham-se. Olham na direção em que vai o trem. Olham-se com dúvidas. A mulher olha na direção em que vem o trem; o homem olha na direção em que vai o trem. Olham-se. Balançam a cabeça afirmativamente. Sons próximos de trem. Beijam-se e correm BLECAUTE. Sons de trem passando. Sons de vento forte.


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