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Mário Henrique Cardoso Caixeta* ASPECTOS CRIMINOLÓGICOS DO DESVIO POLICIAL E O CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO CRIMINOLOGICAL ASPECTS OF POLICE DEVIETION AND EXTERNAL CONTROL OF POLICE ACTIVITY BY THE PROSECUTOR ASPECTOS CRIMINOLÓGICOS DEL DESVIACIÓN POLICIAL Y EL CONTROL EXTERNO DE LA ACTIVIDAD POLICIAL POR EL FISCAL

Resumo: Os desvios policiais não podem ser explicados apenas sob perspectiva individual. Razões organizacionais, fundadas na cultura policial, explicam, com mais propriedade, o envolvimento de agentes policiais em desvios. Essas razões são descortinadas com o auxílio da criminologia e conhecê-las é essencial para provocar mudanças nas organizações policiais, aproximando-as do Estado Democrático de Direito. É nesse contexto que deve o Ministério Público atuar, ao exercer o controle externo da atividade policial. Foram estudadas as ferramentas usuais de que se vale o Ministério Público para o exercício do controle externo da atividade policial e as características organizacionais do desvio policial, traçando-se a conexão entre as duas, a fim de munir o Ministério Público de novas ferramentas para o exercício dessa atribuição. Abstract: The police deviations can not be explained only in individual perspective. Organizational reasons, based on police culture, explain, more properly, the involvement of police officers in deviations. These reasons are unveiled with the help of criminology and knowing them is essential to bring about change in police organizations, bringing them closer to the democratic rule of law. In this context, the prosecutor * Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC-GO. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Promotor de Justiça do MP-GO.

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must act, to exercise external control of police activity. The usual tools that are worth the prosecutor to exercise the external control of police activity and the organizational characteristics of police diversion, by drawing the connection between the two were studied in order to equip the prosecution of new tools for exercise of this assignment. Resumen: Las desviaciones de la policía no pueden explicarse sólo en la perspectiva individual. Razones de organización, basado en la cultura policial, explica, más propiamente, la participación de los agentes de policía en las desviaciones. Estas razones se dio a conocer con la ayuda de la criminología y sabiendo ellos es esencial para lograr un cambio en las organizaciones policiales, acercándolos al Estado democrático de derecho. En este contexto, el fiscal debe actuar, para ejercer el control externo de la actividad policial. Las herramientas habituales que vale la pena el fiscal para el ejercicio del control externo de la actividad policial y las características organizativas de la desviación de la policía, dibujando la conexión entre los dos fueron estudiados con el fin de dotar a la persecución de nuevas herramientas para ejercicio de esta tarea. Palavras-chave: Ministério Público, criminologia, desvio policial. Keywords: Public Ministry, criminology, police devietion. Palabras clave: Ministerio Publico, criminología, desviación policial.

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INTRODUÇÃO É inegável que o Ministério Público brasileiro saiu fortalecido das manifestações sociais ocorridas em meados do ano de 2013. Esse fortalecimento pode ser representado pela não aprovação, graças à pressão popular, da Proposta de Emenda Constitucional n. 37 (PEC 37), de autoria do Deputado Federal Lourival Mendes, que estabelecia a exclusividade da Polícia Judiciária para a investigação criminal, alijando o Ministério Público dessa importante atribuição. Os embates que antecederam a rejeição da PEC 37, travados em meio à comoção social, também demonstraram que a polícia brasileira, especialmente a Polícia Judiciária (dos Estados e Federal), é refratária a qualquer tipo de controle e pretende a exclusividade da investigação criminal. Isso há muito já era conhecido, como demonstra Machado1, em pesquisa realizada no Distrito Federal: No survey realizado com os Delegados de Polícia (Polícia Civil) em 2002, 94% dos entrevistados rejeitaram a interferência do MP na atividade policial e 84,6% posicionaram-se contrários à criação de grupos de investigação dentro do próprio MP (SADEK, 2003: 24). No espaço aberto para que os Delegados pudessem acrescentar comentários à pesquisa, o MP foi a instituição mais criticada. Os Delegados ressentem-se tanto da intervenção "indevida" na investigação e no inquérito policial, quanto das maiores garantias e do poder conferidos a promotores e procuradores (CAVALCANTI, 2003: 149-52). Enfraquecidos com a engenharia institucional consolidada após a Constituição Federal de 1988, pesquisas realizadas com Delegados de Polícia revelam que esses profissionais apontam a perda de força e a imagem negativa da categoria, desprestigiada perante a sociedade (BONELLI, 2002: 289). A prerrogativa de presidir o inquérito policial, fundamento da autoridade do delegado de polícia, constitui-se, também, em importante ponto de tensão com o MP.

Sabe-se, porém, que as Polícias Judiciárias, além de vinculadas à chefia do Poder Executivo – logo, sem independência funcional –, estão mal aparelhadas e, não raras vezes, não conseguem, apesar dos esforços, realizar uma investigação criminal a contento, apta a fornecer ao membro do Ministério Público elementos de convicção suficientes para formação da opinio delicti. MACHADO, Bruno Amaral. Representações sociais sobre o Controle Externo da atividade policial: cultura organizacional e relações institucionais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 88, jan. 2011, DTR 2011/1162. p. 273.

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Outros problemas que se divisam com certa frequência na atuação policial consistem, por exemplo, no uso imoderado da força pela polícia brasileira, marcada pela altíssima letalidade2; no surgimento de grupos de extermínio e milícias; no mal atendimento dispensado aos usuários dos serviços policiais e na prática comum de atos de corrupção. É nesse contexto, frequentemente desnudado pelos meios de comunicação social, marcado pela ineficiência do trabalho policial e pelos constantes desvios de conduta praticados por agentes das forças policiais, que a sociedade brasileira expressamente declarou confiar no Ministério Público e que deve ser realizado o controle externo da atividade policial (art. 129, inciso VII, da Constituição Federal). Exige-se, pois, que o Ministério Público esteja, tanto sob a perspectiva normativa, como também materialmente, preparado para o exercício dessa grave função, sem dubiedades que fragilizem a atuação. Além disso, é inegável que a manutenção das conquistas amealhadas pelo Ministério Público brasileiro de 1988 até o presente, aí incluídas as garantias e prerrogativas – alvo de ataques permanentes –, dependerá da eficiência da atuação ministerial, hoje vista e fiscalizada por todos, da sociedade e das mais diversas instituições. Ao estabelecer o texto constitucional, que compete ao Ministério Público realizar o controle externo da atividade policial, para se desincumbir dessa importante missão, não basta o simples acompanhamento da atividade policial. Exige-se mais, muito mais! Adverte Camanho3 que (...) fala-se em controle pelo Ministério Público, pois o mero acompanhamento não seria suficiente, tendo em vista que o corpo policial age fora dos autos e repercute diretamente nas liberdades individuais. A leitura correta é a que traduz o controle externo como um instrumento de trabalho cooperativo entre as instituições, o que, por sua vez, satisfaz a sociedade, na medida em que permite a fruição integral do estatuto constitucional da plena cidadania. 2GARCIA, Janaína. Polícias brasileiras matam quatro vezes mais que a dos EUA. 2013. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/11/05/policiasbrasileiras-mataram-126-vezes-mais-que-a-do-reino-unido-em-2012-diz-estudo.htm>. Acesso em: 11 dez. de 2014. 3ASSIS, Alexandre Camanho. O Ministério Público e o Controle Externo. In: CHEKER, Monique; DALLAGNOL, Deltan Martinazzo; SALGADO, Daniel de Resende (coord.). Controle Externo da Atividade Policial pelo Ministério Público. 1. ed. Salvador: JusPodivm, 2013.

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Assim, não basta para o desempenho dessa atribuição que o Ministério Público realize a análise dos autos de inquéritos policiais que lhe chegam às mãos; ou que o Ministério Público exare opinio delicti em procedimentos administrativos oriundos das corregedorias das polícias civil e militar, envolvendo desvio de conduta atribuído a policiais. O conteúdo da norma constitucional, que atribui ao Ministério Público o controle externo da atividade policial, é muito mais profundo e denso. Com efeito, ao incumbir o Ministério Público da defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, inseridos nesse contexto as liberdades e garantias constitucionais (entre elas, a segurança pública) e, ao mesmo tempo, ao lhe atribuir o controle externo da atividade policial, o constituinte deixou nas mãos desta instituição o poder-dever de coibir abusos e arbitrariedades praticados por aqueles que podem, legitimamente, dispor da força pública – e da força física –, e de exigir eficiência na entrega do serviço de segurança pelo Estado. Compete-lhe, nessa senda de ideais, aferir a eficiência da atividade policial como um todo, atentando, como sinaliza Frischeisen4, para (...) as linhas gerais da atividade policial, na forma como ela é exercida em um conjunto de ações e investigações e como são realizadas as atividades administrativas da polícia necessária à realização de sua atividade de investigação, cumprimento de requisições do Ministério Público e de ordens judiciais.

Essa, que é a segunda forma de exercício do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, é denominada controle concentrado, conforme estabelece o artigo 3º, inciso II, da Resolução n. 20 do Conselho Nacional do Ministério Público. É no viés do controle externo concentrado da atividade policial que tem cabimento, sem muito divagar, a apreensão de informações fornecidas pela criminologia, a fim de garantir maior eficiência no desempenho dessa atribuição. Com efeito, atuar no controle externo da atividade policial, sob a forma concentrada, implica o reconhecimento FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Controle Externo da Atividade Policial no Ministério Público Federal e o Papel Indutor do Grupo de Trabalho da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão. In: CHEKER et al., op. cit.

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de que a segurança é um direito difuso, afeto a um número indeterminado de pessoas, de sorte que a eficiência desse serviço deve ser o mote principal da atuação; implica, também, a necessidade de o Ministério Público protagonizar a investigação de crimes praticados com desvio de poder, quando os envolvidos forem agentes oriundos das forças policiais, seja conduzindo diretamente a investigação, seja acompanhando e fiscalizando a atuação dos órgãos policias incumbidos de tal mister. E a eficiência desse serviço, bastante sensível, pois sempre afeta direitos e garantias fundamentais, implica a necessidade – ou obrigatoriedade – de se cotejarem as mais diversas variáveis, inclusive, aquelas identificadas e estudadas pela criminologia. As ferramentas dispostas pela criminologia, pelas mais diversas escolas, são imprescindíveis para orientar o Ministério Público na realização de ações concretas, no exercício do controle externo da atividade policial. Dentre as mais variadas teorias criminológicas, a que melhor reflete o desvio policial, como sintoma organizacional, é a teoria das subculturas. De acordo com Baratta5, (...) só aparentemente está à disposição do sujeito escolher o sistema de valores ao qual adere. Em realidade, condições sociais, estruturas e mecanismos de comunicação e de aprendizagem determinam a pertença de indivíduos a subgrupos ou subculturas, e a transmissão aos indivíduos de valores, normas, modelos de comportamento e técnicas mesmo ilegítimos.

No que pertine ao desvio policial, revelado em atos de corrupção e violência praticados por agentes policiais, percebe-se que a identificação das características criminológicas que o perpassam, superando o viés individualista na apreciação desse desvio e prestigiando a perspectiva organizacional, fornece ao Ministério Público ferramental importantíssimo no enfrentamento da matéria, pois apenas conhecendo as origens dos desvios, inerentes à organização, será possível a atuação com eficiência nessa seara. Para tanto, identificados os mecanismos tradicionais de atuação do Ministério Público no controle externo da atividade policial, este estudo tem por objetivo apresentar alguns contornos organizacionais da atividade policial que estimulam o desvio de conduta dos BARATTA, Alessandro. Criminologia e crítica do Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 74.

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respectivos agentes, possibilitando, conhecidos esses contornos, uma reflexão acerca da atuação do Ministério Público nesse contexto. ESTRATÉGIAS TRADICIONAIS PARA O EXERCÍCIO DO CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO As formas tradicionais de exercício do controle externo da atividade policial de que pode lançar mão o Ministério Público estão previstos, fundamentalmente, na Lei Complementar n. 75, de 20 de maio de 1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União. Essa norma, replicada nos Ministérios Públicos dos Estados (conforme art. 80 da Lei 8.625/1993), estabelece, praticamente de forma exauriente, que o controle externo da atividade policial é desempenhado por meio de medidas judiciais e extrajudiciais, podendo o Ministério Público: Art. 9º. (…) I - ter livre ingresso em estabelecimentos policiais ou prisionais; II - ter acesso a quaisquer documentos relativos à atividade-fim policial; III - representar à autoridade competente pela adoção de providências para sanar a omissão indevida, ou para prevenir ou corrigir ilegalidade ou abuso de poder; IV - requisitar à autoridade competente para instauração de inquérito policial sobre a omissão ou fato ilícito ocorrido no exercício da atividade policial; V - promover a ação penal por abuso de poder.

Para viabilizar o exercício do controle externo da atividade policial, ao regulamentar o art. 9º da referida lei complementar, estabeleceu o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), na Resolução n. 20, de 28 de maio de 2007, que Art. 4º. (...) § 1º. Incumbe, ainda, aos órgãos do Ministério Público, havendo fundada necessidade e conveniência, instaurar procedimento investigatório referente a ilícito penal ocorrido no exercício da atividade policial; §2º. O Ministério Público poderá instaurar procedimento administrativo visando sanar as deficiências ou irregularidades detectadas no exercício do controle externo da atividade policial, bem como apurar as responsabilidades decorrentes do descumprimento injustificado das requisições pertinentes.

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Assim, no exercício do controle externo da atividade policial, poderá o Ministério Público ter acesso a estabelecimentos prisionais e policiais e a documentos relacionados à atividadefim; requisitar providências a autoridades diversas, para sanar irregularidades (tem-se, como providências mais comuns, a requisição de instauração de procedimento administrativo disciplinar em face de agentes policias envolvidos em desvio de conduta, a requisição de instauração de inquérito policial); instaurar procedimento de investigação criminal ou procedimento administrativo para sanar deficiência ou irregularidades detectadas ou para apurar responsabilidades. Por óbvio, verificada a prática de crime e havendo justa causa, caberá ao Ministério Público propor a ação penal correlata. Não obstante a amplitude das ferramentas dispostas ao Ministério Público para a realização do controle externo da atividade policial, o conteúdo que lhe subjazerá é indefinido. É certo que, antes da deflagração de qualquer procedimento apuratório – procedimento de investigação criminal, procedimento preparatório ou inquérito civil público –, tem-se o fato a ser apurado (uma falta funcional, um crime ou uma situação de ineficiência de algum serviço policial), todavia, o desvelar a contento desse fato é sempre um desafio! Por exemplo, a escolha de qual a estratégia mais eficiente para a apuração do desvio de conduta atribuído a um agente policial, objeto de um procedimento de investigação criminal, demandará, além de conhecimentos que transcendem o mundo jurídico, as mais variadas circunstâncias e técnicas de investigação. Com efeito, quando um agente policial incumbido da preservação da ordem pública ou da investigação criminal se envolve em crimes de corrupção ou em atos de violência ilegítima, os desafios e obstáculos à investigação são muito mais robustos, quando comparados à investigação de crimes cometidos por cidadãos comuns. Há, sem prejuízo de outros obstáculos, as seguintes dificuldades na investigação dos desvios de conduta atribuídos a agentes de forças policiais: pacto de silêncio entre os membros da corporação, desqualificação de testemunhas, muitas vezes também envolvidas em atos ilícitos, corporativismo dos órgãos de controle interno (corregedorias), dissimulação de provas etc. 224


Como mitigar essas dificuldades na investigação do desvio policial é o desafio a ser encarado e vencido pelo Ministério Público. Identificá-las é o primeiro passo para superá-las. Essa identificação deve passar, necessariamente, pela criminologia, ciência que se ocupa “(...) do estudo do delito, do delinquente, da vítima e do controle social do delito e, para tanto, lança mão de objeto empírico e interdisciplinar”6. ASPECTOS CRIMINOLÓGICOS ORGANIZACIONAIS DO DESVIO POLICIAL Parece paradoxal que aqueles agentes incumbidos da realização da segurança pública, conforme mandamento constitucional (art. 144 da Constituição Federal), muito frequentemente se veem envolvidos em atos de corrupção e violência. Esse envolvimento não pode ser creditado, exclusivamente, à predisposição individual do agente ao desvio, pois, se assim o fosse, bastaria a eliminação desse agente das fileiras das corporações e estaria resolvido o problema. Logo, não serve à explicação do fenômeno a teoria das maçãs podres, largamente utilizada para justificar algum desvio policial. Não se descarta, porém, a existência de outras causas para o desvio policial, tais como a predisposição individual de alguns agentes policiais. O enfoque, porém, não é esse. Busca-se a identificação das condições organizacionais para a eclosão do desvio policial, a fim de possibilitar ao Ministério Público, no exercício do controle externo da atividade policial, a atuação nessas condições. Muito recentemente, o GAECO – Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e outros órgãos da Secretaria de Segurança Pública daquele Estado desarticularam uma organização criminosa integrada por vários policiais militares, os quais exigiam vantagem indevida de comerciantes e outros para tolerar a prática de crimes na cidade do Rio de Janeiro. Dentre esses 6

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 4.

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policiais, estava o terceiro mais importante policial militar na cadeia de comando da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro7. Outro exemplo recente foi a deflagração da “Operação Malavita”, na cidade de Anápolis/GO, que resultou na prisão de vários policiais militares suspeitos de integrarem grupo de extermínio8. Esses exemplos, infelizmente, não são incomuns. Apesar disso, ainda se desconhece a real dimensão do comprometimento dos organismos policiais decorrente do envolvimento de seus respectivos agentes em condutas desviantes. A observação de Cheker, Dallagnol e Salgado9 é bastante interessante: Pode-se afirmar, contudo, que diferentemente do que ocorre em relação a outros crimes, não há taxas seguras de corrupção policial. Peculiaridades específicas desse crime constituem obstáculos que impedem que sejam reportados pelo cidadão ou por colegas policiais, tais como: a) o acordo de silêncio existente entre o corruptor e corrompido, aos quais interesse não apenas não reportar mas ocultar o crime; b) o medo do cidadão de represálias, especialmente de violência física, por parte dos agentes corruptores que, além de fazerem parte do braço armado do Estado, já deram evidência de que estão dispostos a ultrapassar barreiras morais e legais para cometer crimes que lhes sejam proveitosos; c) a ausência ou mesmo impossibilidade de supervisão sistemática e contínua das atividades policiais operacionais; d) a falta de fé na adoção de providências por parte da corporação policial, em razão da mancha que o comportamento desviado lança sobre ela, e da possibilidade de um corporativismo; e) e o código de silêncio que vige entre colegas policiais.

Tem-se, nessa ordem de ideais, que os desvios policiais divulgados pela imprensa ou que chegam aos tribunais são um pífio fragmento do imenso iceberg que é a prática de delitos cometidos por policiais. Todavia, a percepção dessa realidade foi espelhada em pesquisa realizada pelo Datafolha, encomendada VEJA. OPERAÇÃO contra quadrilha de PMs prende 22 no RJ. 2014. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/operacao-contra-quadrilha-de-pmsprendedezenove-no-rj>. Acesso em: 11 dez. 2014. 8 G1. FAMÍLIA crê que rapaz foi assassinado por policiais em Anápolis. 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/goias/noticia/2014/11/familia-cre-que-rapaz-foi-assassinadopor-policiais-em-anapolis-veja-video.html>. Acesso em: 11 dez. 2014. 9 CHEKER, et al., op. cit., p. 240. 7

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pelo Ministério da Justiça e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento10. De acordo com dados dessa pesquisa, o Rio de Janeiro é líder em corrupção da Polícia Militar no Brasil, aponta a Pesquisa Nacional de Vitimização, que teve uma prévia divulgada nesta segunda-feira. Das 8.550 pessoas entrevistadas no estado, 7,2% (619) afirmaram já ter sido vítimas de extorsão ou tiveram de pagar propina a algum PM. Acima da média nacional, de 2,6%, ainda estão os estados de Amapá (5,3%), Pará (5,3%), Rio Grande do Norte (5%), Amazonas (4,8%), Alagoas (3,8%), Pernambuco (3,6%), Goiás (3,5%) e Mato Grosso (3,1%).

Se há significativo envolvimento de agentes policiais em comportamentos desviantes, por óbvio, esse comportamento não pode ser, como já anunciado, creditado à propensão individual de seus respectivos agentes em praticá-los, embora, em alguns casos, possam sê-lo. Nuances organizacionais atreladas ao exercício da função policial, bem como a lassidão e ineficiência dos órgãos de controle, o baixo índice de responsabilização, respondem, significativamente, pelo incremento dos comportamentos desviantes. Em breve resumo, destaca Dallagnol11 que as condições organizacionais que facilitam ou fomentam a corrupção policial são: doutrina da burocracia paramilitar, que se caracteriza pela organização hierárquica, permeada por normas claras de autoridade e que visa à luta contra o crime. Esse modelo, de luta do “bem” contra o “mal”, atribui à polícia a incumbência de gerir os cidadãos, dominando-os. Outrossim, a inevitabilidade de cumprimento de todas as regras e a ampla discricionariedade dos policiais de escala hierárquica inferior pervertem a hierarquia, tornando-se lugar comum o desrespeito às normas, já que esse desrespeito é comum a vários agentes; comportamento complacente, ou mesmo cúmplice, dos chefes de corporações, com o desvio de conduta; alocação insuficiente de recursos no recrutamento de agentes e na estruturação de órgãos internos de controle (de direção e de VEJA. POLÍCIA Militar do Rio é a campeã de corrupção no Brasil. 2013. Disponível em:<http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/policia-militar-do-rio-e-acampea-decorrupcao-no-brasil>. Acesso em: 11 dez. 2014. 11 DALLAGNOL et al., op. cit., p. 262-277. 10

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correição); ausência de regras claras acerca do que constitui comportamento desviado; ausência de treinamento e capacitação permanente; a cultura policial, caracterizada, dentre outros, pelo isolamento social de policiais; por um pensamento dicotômico acerca do mundo, dividindo-o entre “bem” e “mal”; pelo pragmatismo, de sorte que o conhecimento teórico é facilmente substituído pelos conhecimentos obtidos na rua e transmitidos pelos colegas mais antigos; pela forte pressão destes últimos para que compartilhem dos valores desviantes, sob pena de exclusão ou não aceitação dos honestos; pelo código de silêncio, que impõe a lealdade entre os agentes, de forma que a quebra desse código leva o delator ao ostracismo ou a outras consequências mais graves. Também constituem elementos organizacionais que estimulam o desvio: a ausência de responsabilização e de prestação de contas (accountability) e a debilidade do sistema de controle interno (corregedorias). Pois bem. A partir da identificação das principais condições de nível organizacional que propiciam, fomentam ou facilitam desvio policial, deve o Ministério Público, no exercício do controle externo da atividade policial, na modalidade controle concentrado, atentar para essas condições e atuar com o escopo de mitigá-las. As ferramentas dispostas ao Ministério Público para esse desiderato são mais que suficientes (procedimento de investigação criminal, procedimentos administrativos diversos, recomendações etc.), porém, o manejo de tais ferramentas exige do Ministério Público o conhecimento das estruturas policiais em que se pretende atuar, pois só com esse conhecimento será possível desvelar as condições que propiciam o desvio. Assim, não há se falar em exercício eficiente do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público sem que antes os agentes responsáveis por executá-lo conheçam as estruturas organizacionais das polícias, o que inclui saberes acerca dos recursos humanos e materiais das polícias; das normas de regulação interna; da pauta de valores que informam a formação policial e a atuação policial nas ruas; da estrutura dos órgãos de controle interno etc. A partir desse conhecimento, poderá o Ministério Público atuar, compelindo, fomentando ou fiscalizando, por 228


exemplo, o fortalecimento dos órgãos de controle interno das polícias (corregedorias); a formação, tanto inicial, como continuada, de policiais, privilegiando informações que visem à integridade e ao respeito aos direitos fundamentais; a criação de laços de solidariedade entre agentes policiais e comunidade, com o paulatino distanciamento dos valores que permeiam o militarismo; a criação de normas mais minuciosas, que estabeleçam padrões de comportamento diante de situações de conflito (tais como “procedimentos operacionais padrão”); a criação de mecanismos de prestação de contas e de responsabilização. Logicamente, ao voltar os olhos para a ampla gama de variáveis que podem influenciar o desvio policial, mormente aquelas de jaez organizacional, o Ministério Público se lança em seara muito mais complexa do que aquela tradicionalmente enfrentada, caracterizada pela responsabilização do desvio imputado individualmente ao agente policial. Atuar na seara organizacional, com vistas a mitigar as condições que propiciam, facilitam ou fomentam o desvio policial, prevenirá a ocorrência de desvios, o que repercutirá na aproximação do agir policial dos valores que informam o Estado Democrático de Direito. CONCLUSÃO A atuação policial está atrelada aos fundamentos da República Federativa do Brasil, dentre os quais se destaca a dignidade da pessoa humana. É inegável que a atuação policial é aquela atividade estatal que pode afetar significativamente direitos e garantias fundamentais, malferindo, sobremodo, a dignidade da pessoa humana. Com efeito, a atuação policial, tanto a ineficiente por omissão (deficiência na prestação do serviço de segurança), como também a ineficiente por excesso (abuso ou desvio de poder), violam direitos fundamentais insculpidos no art. 5º, incisos III, XLIX, LXI, entre outros, e art. 6º, caput, da Constituição Federal. Ao estabelecer que “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput, da Constituição 229


Federal), e ao atribuir ao Ministério Público o controle externo da atividade policial (art. 129, inciso VII, da Constituição Federal), o constituinte originário incumbiu o Ministério Público de zelar pela compatibilidade entre o uso repressivo da força pelo Estado e o respeito aos valores que informam o Estado Democrático de Direito. Essa compatibilidade deve ser aferida, como já anunciado, tanto na prestação de um serviço de segurança eficiente, como também no exercício da força policial com respeito aos direitos e garantias fundamentais. Salta aos olhos, nesse contexto, o quão vasta e complexa é essa atribuição ministerial, tanto pela ineficiência do serviço de segurança que vem sendo prestado, desde sempre, pelo Estado brasileiro, como também pela constante prática de violação de direitos pelas forças policiais. Não há controle que se possa executar sem se conhecer a origem dos desvios – ou da ineficiência – que marcam a atuação das forças policiais. Afinal, se o mote da atuação do Ministério Público, no exercício do controle externo da atividade policial, é a busca da eficiência do agir policial, a correção de rumos deve partir da identificação das deficiências. Estas últimas não se desvelam em desvios individuais, imputados a agentes. Há toda uma estrutura organizacional capaz de replicar as más práticas, estimulando-as ou impedindo que sejam elas reprimidas. O estudo dessa estrutura organizacional, com a identificação dos valores que a pautam, é essencial para a atuação eficiente do Ministério Público no exercício do controle externo da atividade policial. A partir da identificação desses valores, pode-se exigir ou se adotar medidas de mitigação das condições que propiciam os desvios, que acarretam a ineficiência da atuação policial. Medidas que busquem, por exemplo, o fortalecimento dos órgãos de controle interno das agências policiais, ou a boa formação dos agentes recrutados, podem acarretar significativa melhoria no serviço prestado. Nesse contexto, a busca de explicações criminológicas para o fenômeno do desvio policial pode abastecer o Ministério Público de informações essenciais para o bom desempenho dessa atribuição. Aliadas às ferramentas tradicionais, tais como o exercício de ação penal em face do agente público autor de crime praticado com desvio ou abuso de poder, as ferramentas colhidas com o suporte na criminologia organizacional – com especial atenção 230


às subculturas – têm o condão de desvelar a origem de vários dos recorrentes problemas detectados nessa seara estatal, propiciando ao Ministério Público uma atuação muito mais eficiente, capaz de aproximar o agir policial dos direitos e garantias fundamentais. REFERÊNCIAS BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1997. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. BRASIL. Lei Complementar n. 75, de 20 de maio de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp 75.htm>. Acesso em: 11 nov. 2014. BRASIL. Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8625.htm>. Acesso em: 11 nov. 2014. CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. 4. ed. Niterói: Impetus, 2009. CHEKER, Monique; DALLAGNOL, Deltan Martinazzo; SALGADO, Daniel de Resende (coord.). Controle Externo da Atividade Policial pelo Ministério Público. 1. ed. Salvador: JusPodivm, 2013. CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Resolução n. 20, de 28 de maio de 2007. Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/ portal/filtro-normas/?t=131>. Acesso em 11 nov. 2014. CONSELHO NACIONAL DOS PROCURADORES-GERAIS DOS MINISTÉRIOS PÚBLICOS DOS ESTADOS E DA UNIÃO - Grupo Nacional de Efetivação do Controle Externo da Atividade Policial. Manual Nacional do controle externo da atividade policial - o Ministério Público olhando pela Sociedade. . 2. ed. - Brasília: 2012. 231


LIMA. Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 2. ed., Salvador: JusPodivm, 2014. MACHADO, Bruno Amaral. Representações sociais sobre o Controle Externo da atividade policial cultura organizacional e relações institucionais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 88, p. 273, jan. 2011, DTR 2011/1162. MOLINA, Antonio Garcia-Pablos, de; GOMES, Luiz Flávio. GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 6. ed. São Paulo: RT, 2012. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. SOUZA, Luís Antônio Francisco de; MAGALHÃES, Bóris Ribeiro de; SABATINE, Thiago Teixeira (org.). Desafios à segurança pública: controle social, democracia e gênero – Marília: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas.Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

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