TEORIA X PRÁTICA: A CORRUPÇÃO FINALÍSTICA DO ESTADO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

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Alline Neves de Assis * TEORIA X PRÁTICA: A CORRUPÇÃO FINALÍSTICA DO ESTADO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO THEORY X PRACTICE: THE PURPOSIVE CORRUPTION OF CONTEMPORARY BRAZILIAN STATE TEORÍA X PRÁCTICA: LA CORRUPCIÓN FINALÍSTICA DEL ESTADO CONTEMPORÁNEO BRASILEÑO

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar como a lacuna existente entre o que determina a teoria e o que acontece na prática possibilita a corrupção da finalidade do Estado brasileiro contemporâneo, colocando em segundo plano a promoção da dignidade da pessoa humana e priorizando fatores de ordem econômica ou política. Todo esse processo é catalisado por um déficit interpretativo, intencional ou não, por parte dos administradores públicos e não observados nos processos de controle, permitindo que os direitos básicos de grande parte da população sejam desrespeitados. Abstract: This article aims to analyze how the gap between what determines the theory and what happens in practice enables the corruption of the purpose of contemporary Brazilian state, putting in second place the promotion of human dignity and prioritizing of an economic factors or policy. This entire process is catalysed by an interpretative deficit, intentional or not, by public administrators and not observed in control processes, allowing basic rights of much of the population are not respected. Resumen: En este artículo se pretende analizar cómo la brecha entre lo que determina la teoría y lo que sucede en la práctica permite a la corrupción Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Servidora do TCM-GO.

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de la finalidad del estado brasileño contemporáneo, poniendo en segundo lugar, la promoción de la dignidad humana y la priorización de una o factores económicos política. Todo este proceso es catalizado por un déficit interpretativa, intencional o no, por los administradores públicos y no se observa en los procesos de control, permitiendo que los derechos básicos de gran parte de la población no son respetados. Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana; interpretação;controle. Keywords: Dignity of human person; interpretation, control. Palabras clave: La dignidad humana; interpretación, control.

INTRODUÇÃO Há um ditado popular que diz que “política não se discute”. Não sei quem foi o “filósofo” responsável por essa “lição de vida”, mas, em uma época dominada pelas redes sociais, em que qualquer pessoa pode falar sobre qualquer assunto usando qualquer argumento, subentende-se que tal pensamento não se sustenta. Afinal, nossas timelines estão sobrecarregadas de opiniões e discussões acirradas sobre os mais variados assuntos, inclusive, política. Certo? Bem, mais ou menos. Sim, política se tornou um dos assuntos mais comentados das redes sociais. Mas, analisando o conteúdo desses comentários, percebe-se que, mesmo com um amplo rol de possibilidades argumentativas, os discursos virtuais diários se resumem em “golpe”, “impeachment” e algumas palavras de baixo calão soltas no meio do texto. Ou seja, nada de relevante. Continuamos sem discutir política. Mas, afinal, o que é política? O termo ganhou relevância com a obra intitulada “Política”, escrita por Aristóteles. De acordo com o filósofo grego, o homem pode ser definido como um animal político, haja vista que “na polis 118


grega, o cidadão, em si, é reconhecido como tal a partir de sua inserção no grupo, na comunidade política” (CACHICHI, 2011). Conceituar política é uma tarefa árdua, por demandar valores e princípios de uma determinada sociedade em uma determinada época. O que se pode dizer é que, para existir política, deve-se existir uma sociedade. De acordo com Dalmo de Abreu Dallari (2001), três elementos são necessários para que um agrupamento humano possa ser considerado uma sociedade: uma finalidade ou valor social, manifestações de conjunto ordenadas e o poder social. A finalidade social pode ser definida como um ato de escolha, um objetivo conscientemente estabelecido mediante uma ação livre. Em uma sociedade, formada por diversos grupos sociais, a finalidade deve ser estabelecida de acordo com as necessidades fundamentais e com os valores consagrados por todos, visando ao bem comum, que pode ser genericamente definido como o “conjunto de condições, incluindo a ordem jurídica e a garantia de possibilidades que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana” (DALLARI 2001, p. 24). As manifestações de conjunto ordenadas consistem na necessidade de participação conjunta e harmônica dos agrupamentos de pessoas visando à consecução do objetivo almejado. E, para tanto, tais manifestações devem atender três requisitos principais e cumulativos: reiteração, ordem e adequação. E, por fim, o poder social, considerado por muitos como o principal no estudo de uma sociedade, está intrinsecamente relacionado com os aspectos culturais e sociais do momento a ser analisado e, portanto, é um instituto de difícil definição. Mesmo assim, Dallari aponta algumas características gerais, necessárias para que se chegue a uma leve noção do fenômeno. Segundo ele: A primeira característica a ser estabelecida é a socialidade, significando que o poder é um fenômeno social, jamais podendo ser explicado pela simples consideração de fatores individuais. Outra importante característica é a bilateralidade, indicando que o poder é sempre a correlação de duas ou mais vontades, havendo uma que predomina. É importante que se tenha em conta que o poder, para existir, necessita da existência de vontades submetidas. Além disso, é possível considerar-se o poder sob dois aspectos: ou como relação, quando se procede ao isolamento artificial de um fenômeno, para efeito de análise, verificando-se qual a posição dos que nele intervêm; ou como processo, quando se estuda a dinâmica do poder (2001, p. 34).

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Dallari ainda afirma que o Estado seria, portanto, uma sociedade política - ou seja, que “visa criar condições para a consecução dos fins particulares de seus membros, ocupando-se da totalidade das ações humanas, coordenando-as em função de um fim comum” (2001, p. 48) - com alguns elementos essenciais característicos, quais sejam: o território, o povo, a soberania e a finalidade. Norberto Bobbio (1998, p. 954-955) defende a ideia de que política é “a atividade ou conjunto de atividades que, de alguma maneira, têm como termo de referência a pólis, ou seja, o Estado” e está intimamente ligada ao conceito de poder, definido como “consistente nos meios adequados à obtenção de qualquer vantagem”, ou como “conjunto dos meios que permitem alcançar os efeitos desejados”. Segundo ele, o poder se exterioriza em três maneiras: o poder econômico, o poder intelectual e o poder político. “O poder mais relevante na sociedade é o poder político, pois detém, privativamente, a força para manutenção da ordem. Impõe, nos limites da lei, a vontade de quem o exerce, atuando em nome do povo” (apud PINTO, 2010, p. 207). Paulo Bonavides entende que o poder pode ser definido como um “elemento essencial constitutivo do Estado” e representa “aquela energia básica que anima a existência de uma comunidade humana, num determinado território, conservando-a unida, coesa e solidária”. Para ele, com o poder se entrelaçam a força e a competência, ou seja, a legitimidade oriunda do consentimento. A principal característica do Estado moderno seria a prevalência da legitimidade sobre a força, caracterizada por um processo de despersonalização do poder, marcado pela “passagem de um poder de pessoa a um poder de instituições, de poder imposto pela força a um poder fundado na aprovação do grupo, de um poder de fato a um poder de direito” (2011, p. 115). Portanto, nos Estados Modernos o poder tem por fundamento a legalidade e a legitimidade, em que a legalidade exprime, basicamente, a observância das leis e do Direito e a legitimidade engloba crenças de determinada época, que presidem à manifestação do consentimento e da obediência (BONAVIDES, 2014). Percebe-se, dessa maneira, que o Direito possui um papel fundamental na caracterização do poder estatal e na maneira com que ele se manifesta, não sendo possível classificá-lo exclusivamente como poder político. Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2006, p. 3) 120


considera poder e Direito como os “dois grandes instrumentos do progresso e da civilização: o poder - a energia que move os homens e as sociedades para a realização de seus objetivos, e o direito - a técnica social criada para a disciplina e a contenção do poder”. Assim, o poder do Estado hodiernamente se manifesta obedecendo ao mandamento constitucional do Estado Democrático de Direito, previsto no artigo 1º da Constituição Federal. E, para uma melhor compreensão do tema, é necessário analisar três aspectos fundamentais do poder: o Estado, como poder instituído; a democracia, como meio de se atingir o consenso, considerando o povo como “dono” do poder; e o Direito, como um instrumento de limitação do poder. Entretanto, para fins desse estudo, serão analisados somente o Estado e o Direito, tendo por base a Constituição Federal de 1988. É claro que a separação aqui demonstrada é apenas para fins didáticos, visto que os institutos mencionados não são construções atemporais e independentes, sendo impossível, empiricamente, fazer uma separação rígida entre eles. ESTADO O Estado moderno, formado no século XV, é caracterizado pela busca da unidade, que “se concretizaria com a afirmação de um poder soberano, no sentido de supremo, reconhecido como o mais alto de todos dentro de uma precisa delimitação territorial” (DALLARI, 2001, p. 70). Apesar dos vários entendimentos no que se refere ao tema, Dallari elenca quatro elementos fundamentais do Estado moderno: a soberania, o território, o povo e a finalidade, sendo, esta última, o foco deste estudo. É impossível compreender a dinâmica estatal sem ter a consciência de seus fins. Diversas teorias já foram criadas no decorrer da história para justificar a existência do Estado, e esta é uma questão que remonta à Antiguidade clássica, com filósofos como Platão e Aristóteles. Com objetivos didáticos, será utilizada a classificação das teorias relativas à finalidade estatal de Dallari, em sua obra “Elementos da Teoria Geral do Estado”, de 2001. De acordo com o referido autor, a primeira classificação a ser feita é a dos fins objetivos e dos fins subjetivos do Estado. 121


Os fins objetivos compreendem “o papel representado pelo Estado no desenvolvimento da história da Humanidade”. Para alguns autores, como Platão e Aristóteles, existem fins universais objetivos, comuns a todos os Estados de todos os tempos. Outros autores, entretanto, não admitem esse pensamento, defendendo a ideia de que o Estado é um fim em si mesmo (teoria organicista); de que não existe uma finalidade específica para o Estado, visto que a vida social não pode ser controlada e dominada (teoria mecanicista); ou que, na verdade, o que existem são fins particulares objetivos, e não fins universais objetivos, como defendido, levando-se em consideração o fato de cada Estado ter seus fins particulares, “que resultam das circunstâncias em que eles surgiram e se desenvolveram e que são condicionantes de sua história” (2001, p. 104). Já os fins subjetivos se referem à conjugação entre os fins do Estado e os fins individuais. “O Estado é sempre uma unidade de fim, ou seja, é uma unidade conseguida pelo desejo de realização de inúmeros fins particulares, sendo importante localizar os fins que conduzem à unificação” (DALLARI, 2001, p. 104). Outra classificação importante é a que diferencia os fins do Estado segundo o ponto de vista do relacionamento do Estado com os indivíduos, quais sejam: fins expansivos, fins limitados e fins relativos. Um Estado com fins expansivos atua desmesuradamente em todas as áreas da vida social, interferindo diretamente em todas elas. Dallari elenca como subdivisões dessa classificação as teorias utilitárias, segundo as quais o “bem supremo máximo é o desenvolvimento material, mesmo que isso se obtenha com o sacrifício da liberdade e de outros valores fundamentais da pessoa humana” (2001, p. 104-105); e as teorias éticas, que “preconizam a absoluta supremacia de fins éticos, sendo este o fundamento da ideia do Estado ético” (2001, p. 105). Um exemplo desse tipo de Estado seria o Estado de bem-estar. Um Estado com fins limitados ocupa a “posição de mero vigilante da ordem social, não admitindo que ele tome iniciativas, sobretudo em matéria econômica”. Dentre os exemplos desse tipo de Estado encontram-se o Estado de polícia, em que só há uma atuação estatal para “proteger a segurança dos indivíduos, 122


nos casos de ameaça externa ou de grave perturbação interna”; e o Estado-liberal, inspirado em John Locke, o qual possui exclusivamente a “função de proteger a liberdade individual, emprestando um sentido muito amplo ao termo liberdade, não admitindo que qualquer indivíduo sofra a mínima restrição em favor de outro indivíduo, da coletividade ou do Estado” (2001, p. 105). Já um Estado com fins relativos baseia-se na ideia de solidariedade. “Trata-se de uma nova posição, que leva em conta a necessidade de uma atitude nova dos indivíduos no seu relacionamento recíproco, bem como nas relações entre o Estado e os indivíduos” (DALLARI, 2001, p. 106). Dallari ainda complementa, afirmando que nesse tipo de Estado, as categorias de tarefas estatais se resumem em conservar, ordenar e ajudar. Existe uma última classificação que divide os fins do Estado em: fins exclusivos ou essenciais, que são aqueles que pertencem originariamente ao Estado e compreendem a segurança, externa e interna; e fins concorrentes, complementares ou integrativos, os quais “não exigem que o Estado trate deles com exclusividade, achando-se, no todo ou em parte, identificados com os fins de outras sociedades” (DALLARI, 2001, p. 107). Sintetizando todas as ideias apresentadas, Dallari afirma que o Estado, como sociedade política, possui um fim geral, constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais sociedades possam atingir seus respectivos fins particulares. No Estado moderno, pode-se afirmar que o fim do Estado é o bem comum, definido como o “conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”, as quais precisam ser verificadas no contexto do Estado, em função das peculiaridades de cada povo (DALLARI, 2001, p. 107). Vale ressaltar, ainda, o ensinamento do referido autor segundo o qual, na consecução de seus objetivos, os Estados devem levar em conta três dualismos fundamentais em suas decisões: necessidade e possibilidade, indivíduos e coletividade, e liberdade e autoridade, agindo da forma que melhor atenda aos anseios sociais.

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ESTADO CONTEMPORÂNEO Pode-se considerar que o Estado contemporâneo é uma continuação do Estado moderno? É possível importar conceitos e elementos de um Estado formado no século XV e aplicá-los ao Estado que conhecemos nos dias atuais? Tais características se mantiveram com o decorrer dos anos ou houve alguma mudança significativa na essência estatal? Inicialmente, faz-se necessário delimitar o conceito de Estado contemporâneo. E, para tanto, será feito um pequeno aparato histórico desde a formação do Estado moderno até os dias atuais. É claro que os conceitos aqui trabalhados seguem uma linha de raciocínio que tem por escopo corroborar a ideia defendida neste trabalho, não possuindo nenhuma pretensão de esgotar o tema ou classificar algum pensamento como correto ou incorreto. Segundo Dalmo de Abreu Dallari, o Estado pode ser conceituado como “a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território” (2001, p. 118). Já Paulo Bonavides compartilha do mesmo entendimento de Jellinek, segundo o qual “o Estado é a corporação de um povo, assentada num determinado território e dotada de um poder originário de mando” (2014, p. 71). Em ambos os conceitos, os elementos formadores do Estado fazem-se presentes, quais sejam: o elemento humano, o território e o poder político. Para Luciano Gruppi, o Estado Moderno, considerado como o “Estado unitário dotado de um poder próprio independente de quaisquer outros poderes”, originou-se na França, na Inglaterra e na Espanha durante a segunda metade do século XV, e possui como características a autonomia, a distinção entre o Estado e a sociedade civil e a identificação absoluta entre o Estado e o monarca, que representa a soberania estatal (apud STRECK; MORAIS, 2004). A primeira versão do Estado Moderno foi o Estado absolutista, fundamental para assegurar a unidade territorial das nações e para os propósitos da burguesia na origem do capitalismo, visto que “esta, por razões econômicas, ‘abriu mão’ do poder político, delegando-o ao soberano, concretizando-se [...] aquilo que Hobbes sustentou no Leviatã” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 46). 124


A base de sustentação do poder monárquico era a ideia de que o poder dos reis derivava de algo divino, transcendental, o que significava a completa autonomia do monarca e a impossibilidade de controle ou limitação por nenhum outro poder ou instituição. A segunda versão do Estado moderno foi o Estado liberal, inaugurado com a Revolução Francesa em 1789, que surgiu da luta burguesa contra o absolutismo e caracterizava-se por “uma ideologia de princípios individualistas, que defendia garantias contra os poderes arbitrários, direitos humanos, liberdade, mobilidade social e, principalmente, a limitação da área de ingerência do Estado, entre outras ideias” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 49). Definir o liberalismo é uma tarefa difícil, mas Streck e Morais, utilizando a divisão formulada por Roy Macridis, identificam alguns núcleos distintos - moral, político e econômico -, que se mantiveram em todas as fases de seu desenvolvimento. No núcleo moral, encontram-se as liberdades pessoais, fundadas na garantia de proteção individual contra o governo, e sociais, que correspondem às denominadas oportunidades de mobilidade social, “sendo que todos têm a possibilidade de alcançar uma posição na sociedade compatível com suas potencialidades” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 53). O núcleo político apresenta-se sob quatro aspectos: 1) consentimento individual, fonte da autoridade política e dos poderes do Estado; 2) representação, em que os competentes para decidir eram eleitos pelo povo, conforme determinados requisitos pré-estabelecidos; 3) constitucionalismo, definido como o respeito a um documento fundamental que delimitasse o poder político e orientasse a atividade estatal; 4) soberania popular, em que a fonte do poder político é a vontade geral, normalmente externada por meio de representantes eleitos. E, por fim, o núcleo econômico pode ser relacionado com o modelo de economia liberal, cujos pilares são a propriedade privada e o mercado livre de controles estatais, e se relaciona com “a ideia dos direitos econômicos e de propriedade, individualismo econômico ou sistema de livre empresa ou capitalismo” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 55). No final do século XIX, impulsionada pelo crescimento das cidades e surgimento do proletariado urbano, houve uma 125


mudança significativa no pensamento liberal, com a substituição de um minimalismo estatal, atuante apenas para a segurança individual, por uma visão mais abrangente, em que o Estado teria o papel de remover os obstáculos “para o autodesenvolvimento dos homens, pois com um maior número de indivíduos podendo usufruir das mais altas liberdades, estar-se-ia garantindo efetivamente o cerne liberal, qual seja: a liberdade individual” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 57). Assim, surge a ideia de justiça social, na qual se preconiza a igualdade de oportunidades e a solidariedade, e uma terceira versão do Estado entra em cena: o Welfare State ou Estado de bem-estar social. De acordo com Maximiliano Martin Vicente (2009), o Estado de bem-estar social, estabelecido entre 1940-1960, período conhecido como “era dourada do capitalismo”, visava recuperar “o vigor e a capacidade de expansão dos países capitalistas após a tensão social, econômica e política do período entre guerras”. Por certo tempo, o objetivo foi alcançado, propiciando, através do desenvolvimento econômico, das garantias sociais e do oferecimento de emprego para a maioria da população nos países mais desenvolvidos, o crescimento econômico industrial e a implementação das políticas sociais por meio da participação de diferentes setores da sociedade. Certo é que o Estado, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, passou de figura passiva na ordem social, interferindo apenas quando era estritamente necessário, para uma figura ativa, com a obrigação não apenas de garantir direitos, como também de provê-los. Por isso, Streck e Morais caracterizam o Estado de bem-estar social como “aquele que garante tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como direito político” (2004, p. 71). Entretanto, o momento dourado do Estado de bem-estar social começou a sucumbir em meados de 1970, principalmente com as crises do petróleo de 1973 e 1979. A alta do preço do petróleo e do gás natural interferiu diretamente nas indústrias dos países capitalistas e representou “uma das jogadas do bloco soviético para estrangular o abastecimento de combustíveis da potência norteamericana” (VICENTE, 2009), haja vista a ex-União Soviética ter 126


sido uma potência na produção dos referidos combustíveis. Nesse contexto, ganha força a ideologia neoliberal, cujas ideias começaram a se consolidar na década de 1940, na cidade de Mont Pèlerin, em que um grupo de intelectuais, liderados por Friederich Hayek, se reuniam anualmente. Para os neoliberais, “os problemas enfrentados pelos países ocidentais provinham das pressões do operariado por melhores salários, o que resultava em despesas excessivas por parte do Estado”. Assim, o Estado de bem-estar social adquiriu a imagem de mau administrador da economia, com a consequente desmoralização e a acusação de ser inoperante, constituindo um empecilho para o progresso econômico. Concomitantemente, defendiam-se a livre iniciativa e a valorização das organizações econômicas, uma vez que elas detinham as condições para dinamizar a economia diante do fracasso do Estado1.

Dessa maneira, o neoliberalismo surge como a melhor opção para a crise que acontecia nos países mais desenvolvidos, principalmente nos Estados Unidos, por possibilitar um avanço do capitalismo durante o auge da Guerra Fria. Nas palavras de Maximiliano Martin Vicente (2009): O novo liberalismo (neoliberalismo) preza o mercado livre global. Nele ‘as empresas, corporações e conglomerados transnacionais adquiriram preeminência sobre as economias nacionais’. Dando sustentação ao processo, uma nova divisão internacional do trabalho e a flexibilização dos processos produtivos surgiram, entre outras manifestações do capitalismo, sempre em escala mundial. ‘Intensificou-se e generalizou-se o processo de dispersão geográfica da produção, ou das formas produtivas [...] tudo isso amplamente agilizado e generalizado com base nas técnicas eletrônicas [...] Globalizaram-se as instituições, os princípios jurídicos-políticos, os padrões socioculturais e os ideais que constituem as condições e produtos civilizatórios do capitalismo’2.

Portanto, as políticas neoliberais começaram a ser implantadas e surge, nesse momento, a principal diferença entre o Estado contemporâneo e o Estado moderno clássico, em minha Disponível em: http://books.scielo.org/id/b3rzk/pdf/vicente-978859860596808.pdf. Acesso em: 15 jan 2016. 2 Disponível em: http://books.scielo.org/id/b3rzk/pdf/vicente-978859860596808.pdf. Acesso em: 15 jan 2016. 1

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opinião: a globalização. Houve, portanto, uma redefinição do papel do Estado, provocada pela “formação de blocos políticos e econômicos, pela perda de densidade do conceito de soberania e pelo aparente esvaziamento do poder diante da globalização” (BARROSO, 2011, p. 91). Mas isso não significa que o Estado tenha perdido o protagonismo nas relações sociais e nem que está em vias de desaparecer. No entendimento de Luís Roberto Barroso: O Estado ainda é a grande instituição do mundo moderno. Mesmo quando se fala em centralidade dos direitos fundamentais, o que está em questão são os deveres de abstenção ou de atuação promocional do Poder Público. Superados os preconceitos liberais, a doutrina publicista reconhece o papel indispensável do estado na entrega de prestações positivas e na proteção diante da atuação abusiva dos particulares (2011, p. 92).

Vale ressaltar ainda o ensinamento de Ignacio Ramonet, segundo o qual a globalização tem por fundamento dois pilares ou paradigmas inabaláveis: a comunicação e o mercado. Colocando dessa maneira, pode-se passar a impressão de que o Estado contemporâneo é comandado, de maneira ilimitada, pela mídia e pelo mercado. Entretanto, há uma questão a ser acrescida: desde a Revolução Francesa, há um enaltecimento dos direitos humanos, principalmente como uma proteção contra o Estado opressor ou Estado Leviatã. Porém, com a Segunda Guerra Mundial e seu festival de atrocidades, escancarou-se um problema que existia na efetivação dos direitos humanos: a necessidade de existir uma vontade política por parte do Estado. O pós-guerra foi marcado por uma proliferação de enunciados normativos provenientes de organismos internacionais protetores dos direitos fundamentais. Assim, com a globalização, não só a economia, a moda, a tecnologia e a mídia ditam as regras, mas também os direitos humanos. E é na junção desses diferentes campos sociais que surge o maior dilema do Estado contemporâneo: conciliar a ideia de ordem, “no sentido de situação estabelecida, com o intenso dinamismo social, que ele deve assegurar e promover e que implica a ocorrência de uma constante mutação” (DALLARI, 2001, p. 139). 128


E a pergunta que não quer calar: onde aparece o Brasil nessa história? Alguns autores afirmam que o Estado de bem-estar social nunca chegou a ser implantado no Brasil. A meu ver, nem o Estado liberal, com seus ideias de liberdade do indivíduo e não intervenção estatal, teve um desenvolvimento completo. Como visto, o contexto histórico brasileiro sempre foi deslocado da história das civilizações ocidentais centrais, o que leva Streck e de Morais (2004) a afirmarem que a modernidade brasileira é tardia e arcaica, necessitando de uma atenção específica ao analisálo e compará-lo com o de outros países. O que torna, dessa maneira, a responsabilidade do Estado brasileiro maior ainda, visto que “em países como o Brasil, em que o Estado Social não existiu, o agente principal de toda a política social deve ser o Estado” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 78). É curioso estabelecer um papel tão importante para o Estado em um momento em que as ideias neoliberais ganham força, principalmente pela ineficiência estatal na consecução de seus deveres fundamentais e pela atual crise político-econômica, que necessita de medidas de austeridade para ser controlada (se ainda for possível controlá-la). Assim, as desigualdades sociais se agigantam. Como conciliar esses dois cenários? Streck e Morais defendem a ideia de que o responsável por essa conciliação seria o Direito, enquanto “legado da modernidade [...] e como um campo necessário de luta para a implantação das promessas modernas” (2004, p. 79). Assim, o parágrafo 1º da Constituição cumpre um papel social importantíssimo, ao estabelecer que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Isso significa que o Estado brasileiro tem como finalidade e como limite à sua atuação a promoção dos direitos humano-fundamentais. Entretanto, empiricamente, o problema que surge é a inefetividade dos dispositivos da Constituição, o que causa uma crise de legalidade, e a irresponsabilidade dos governantes em suas decisões, perpetuada pela ineficácia dos órgãos de controle e a quase inexistência do controle social. Existe ainda um agravante nessa história: o Estado poiético. Joaquim Carlos Salgado divide o Estado, desde a sua formação, em 129


duas categorias – o ético e o poiético. O Estado ético seria a conjugação entre liberdade e poder, sendo classificado como imediato, que abrange o período greco-romano até a Idade Média; técnico, que surgiu no século XVII; e, o mediato ou Estado de Direito, que teve como marco inicial a Revolução Francesa. O Estado ético imediato caracteriza-se por sua dimensão ética, é um “Estado para”, “que se justifica por uma finalidade; o poder é para realizar alguma coisa, não é em si mesmo. E o que o justifica é ético: o bem para o indivíduo, enquanto existente em uma comunidade” (SALGADO, 2002). No Estado ético mediato ou Estado de Direito existe uma preocupação com relação à legitimidade. “O Estado ou o poder político legitima-se ou justifica-se pela sua origem, pela técnica com que o poder se exerce e pela finalidade” (SALGADO, 2002). O Estado poiético, por sua vez, seria a ruptura do Estado ético contemporâneo ou Estado de Direito, ou seja, o indivíduo, considerado como um ser livre, deixa de ser um fim em si mesmo e passa a ser um instrumento para algo ou alguém. Segundo Joaquim Carlos Salgado (2002), na sociedade contemporânea, existe um grupo que domina a técnica através do econômico, transformando em mercadoria a força de trabalho e considerando o trabalhador apenas em sua capacidade de fazer, impondo-lhe o regime da oferta e da procura, expulsando-o da estrutura essencial da unidade de produção, ou seja, a empresa. No Estado poiético, o produto do fazer é o econômico, que nenhum compromisso tem com o ético, visto que não se dirige a realizar os direitos sociais, e procura, com a aparência de cientificidade, subjugar o político, o jurídico e o social. Essa cisão do Estado causa graves consequências sociais. De acordo com Salgado, essas consequências podem ser resumidas em três grupos: um grupo de natureza moral, um de natureza política e um de natureza jurídica. A consequência moral se refere ao surgimento de uma corrupção da República, não apenas de indivíduos, em que a burotecnocracia age como um instrumento de usurpação da legitimidade democrática do poder. A consequência política resume-se à sua incompatibilidade com a democracia, haja vista o aumento do poder burocrata e a diminuição do poder exercido mediante a vontade popular. “O 130


Estado poiético é uma das formas de usurpação ou alienação do poder, operando uma cisão profunda entre a potestas ou titulação do poder e a auctoritas ou exercício” (SALGADO, 2002). E, por fim, a consequência jurídica é vista no caráter a-ético ou a-jurídico desse tipo de Estado, que busca justificar-se pela própria técnica ou aparência de técnica que o define, causando uma insegurança jurídica generalizada, catalisada por uma anarquia legislativa, repleta de medidas provisórias, que nem sempre são necessárias ou urgentes, e emendas à Constituição, como soluções para qualquer dificuldade encontrada pelo administrador. Conclui-se, portanto, que apesar do aparato teórico existir, a realidade da sociedade brasileira é muito diferente do que deveria ou poderia ser. Mesmo que a defesa da dignidade da pessoa humana seja expressamente uma finalidade do Estado, com proteção constitucional, por muitas vezes, argumentos políticos, econômicos ou tecnológicos se sobrepõem. Enquanto isso, o Brasil continua em um ciclo vicioso interminável, no qual se dividem dois tipos de pessoas: “o sobreintegrado ou sobrecidadão, que dispõe do sistema, mas a ele não se subordina, e o subintegrado ou subcidadão, que depende do sistema, mas a ele não tem acesso” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 80).

ESTADO DE DIREITO O Estado de Direito emergiu junto com os princípios do liberalismo, caracterizando-se como uma possibilidade de limitação jurídica do Estado, utilizando principalmente a ideia da legalidade, ou seja, a submissão das atividades estatais à lei, da divisão de poderes e da garantia dos direitos individuais. Conforme dito, o Brasil se autodenomina Estado Democrático de Direito, que tem como princípios: a) constitucionalidade; b) organização social democrática; c) sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos; d) justiça social como fundamento de mecanismos corretivos das desigualdades; e) igualdade formal e material entre os cidadãos; f) divisão dos poderes e funções; g) o princípio da legalidade como medida do direito, 131


ou seja, “através de um meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência”; h) segurança e certeza jurídicas (STRECK; MORAIS, 2004, p. 99). Gustavo Binenbojm define Estado Democrático de Direito como a conjugação entre direitos fundamentais e democracia, “estruturado como conjunto de instituições jurídico-políticas erigidas sob o fundamento e para a finalidade de proteger e promover a dignidade da pessoa humana” (2014, p. 51). Segundo André Ramos Tavares, a principal característica de um Estado de Direito é a exigência de que a conduta dos detentores do poder se coadune com a lei, como expressão da vontade geral. A imposição da legalidade justifica-se pela exigência de legitimidade, segundo a qual “as leis hão de guardar correspondência com os anseios populares, consubstanciados no espírito constitucional” (2013, p. 518). Entretanto, a legalidade, entendida apenas como o respeito à lei, passou por uma crise, marcada pela insuficiência da lei em abranger uma complexidade de situações características das sociedades modernas e pela ineficácia dos enunciados normativos de uma maneira geral, favorecida pela ineficiência dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. André Ramos Tavares acrescenta ainda o abuso praticado pelos integrantes do Poder Legislativo, que decorria do “excesso de leis na regulamentação da vida social, de sua indesejada intromissão em setores anteriormente ressalvados, do emaranhado e dispersividade das leis, gerando a insegurança, bem como da falência qualitativa verificada como constante nas leis” (2013, p. 52). Dessa forma, ganha força a ideia de se ter um documento formal, hierarquicamente superior às leis e aos governantes e fundamento do ordenamento jurídico, que preveja não apenas as características basilares de um Estado, tal qual forma de governo e sistema de governo, mas que também cumpra o papel de limitação do poder. É claro que nem o constitucionalismo e nem a noção de limitação do poder são recentes, mas o que torna o constitucionalismo moderno tão peculiar é a centralização jurídica da Constituição (contribuição da teoria de Kelsen em 1934) e o caráter normativo dos princípios, instrumentos na necessária dinamicidade 132


jurídica e que serão analisados posteriormente. O constitucionalismo é um movimento que, embora de grande alcance jurídico, apresenta feições sociológicas inegáveis. O aspecto jurídico revela-se pela pregação de um sistema dotado de um corpo normativo máximo, que se encontra acima dos próprios governantes - a Constituição. O aspecto sociológico está na movimentação social que confere a base de sustentação dessa limitação do poder, impedindo que os governantes passem a fazer valer seus próprios interesses e regras na condução do Estado. O aspecto ideológico está no tom garantístico (como decorrência da limitação do ‘poder’) pregado pelo constitucionalismo. (TAVARES, 2013, p. 23).

Levando-se em consideração a importância das constituições modernas na definição do Estado e da sociedade contemporânea, André Ramos Tavares defende a ideia de que vivemos em um Estado Constitucional de Direito, em que a necessidade primordial é a defesa da Constituição, e não mais do Estado. CONSTITUCIONALISMO A Constituição pode ser definida como o conjunto de princípios e regras destinados a realizar os valores da sociedade, a despeito de se reconhecer nos valores uma dimensão suprapositiva ou de abertura, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central (BARROSO, 2013). A ideia de abertura se comunica com a Constituição e traduz a sua permeabilidade a elementos externos e a renúncia à pretensão de disciplinar, por meio de regras específicas, o infinito conjunto de possibilidades apresentadas pelo mundo real. Por ser o principal canal de comunicação entre o sistema de valores e o sistema jurídico, os princípios não comportam enumeração taxativa. Mas, naturalmente, existe um amplo espaço de consenso, onde têm lugar alguns dos protagonistas da discussão política, filosófica e jurídica do século que se encerrou: Estado de direito democrático, liberdade, igualdade, justiça (BARROSO, 2013, p. 127).

A novidade do constitucionalismo moderno, ou neoconstitucionalismo, é o caráter normativo dos princípios definidores 133


dos valores da sociedade, que passam a ter aplicabilidade direta e imediata, não necessitando da criação de uma lei posterior para que tenha efeitos jurídicos. Além disso, os princípios adquirem o status de referenciais interpretativos, ou seja, devem ser observados na aplicação das normas jurídicas, alcançando todos os ramos do direito. Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isto, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar a formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete. (BARROSO, 2013, p. 122).

A fundamentalidade da Constituição, portanto, não se concretiza apenas com relação às decisões que traz em si, “mas também nos procedimentos que institui para que elas sejam adequadamente tomadas pelos órgãos competentes, em bases democráticas” (2011, p. 69), o que alguns autores denominaram de filtragem constitucional. Nesse contexto, a dignidade da pessoa humana adquire um papel de destaque no ordenamento jurídico. Após a Segunda Guerra Mundial e as atrocidades cometidas com proteção legal, a dignidade tornou-se um dos grandes consensos éticos do mundo ocidental, sendo objeto de proteção em declarações de direitos, convenções internacionais e Constituições (BARROSO, 2013).Tendo como referência a Constituição brasileira de 1988, verifica-se que, em seu artigo 1º, há a expressa previsão de que a dignidade da pessoa humana é um fundamento da República Federativa do Brasil, ou seja, toda a atividade do Estado tem como objetivo a proteção e a promoção da dignidade humana. Mas o que é a dignidade da pessoa humana? Segundo Barroso, a dignidade da pessoa humana é um valor fundamental sob a forma de princípio. “Como valor e como 134


princípio, a dignidade humana funciona tanto como justificação moral quanto como fundamento normativo para os direitos fundamentais” (BARROSO, 2013, p. 43). Barroso ainda afirma que, em uma concepção minimalista, a dignidade da pessoa humana é composta por três elementos: valor intrínseco da pessoa humana, autonomia individual e valor comunitário. Qual seria, dessa maneira, a relação entre dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais? Segundo Barroso (2013), o conteúdo jurídico do princípio da dignidade humana vem associado aos direitos fundamentais e abrange aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. O elenco de prestações que compõem o mínimo existencial comporta variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que inclui: renda mínima, saúde básica e educação fundamental. Há, ainda, um elemento instrumental, que é o acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e efetivação dos direitos. (BARROSO, 2013, p. 129).

Binenbojm complementa, afirmando que “à centralidade moral da dignidade do homem, no plano dos valores, corresponde à centralidade jurídica dos direitos fundamentais, no plano do sistema normativo” (2014, p. 50). Os direitos fundamentais podem ser analisados sob dois aspectos: um subjetivo e outro objetivo. Os direitos fundamentais analisados subjetivamente podem ser direitos de defesa contra a intervenção do Poder Público; direitos a prestações positivas por parte do Poder Público, tanto de natureza concreta e material, como de natureza normativa; direitos à organização e ao procedimento, que dependem, na sua realização, tanto de providências estatais com vistas à criação e conformação de órgãos, entidades e repartições, como de outras, normalmente de índole normativa, destinadas a ordenar a fruição de determinados direitos e garantias Os direitos fundamentais analisados objetivamente extrapolam o âmbito individual e representam uma concretização 135


de valores em si, a serem protegidos e fomentados pelo Estado, pelo Direito e pela sociedade. Uma importante decorrência do reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é o surgimento dos chamados deveres de proteção do Estado, de quem se passa a exigir não apenas uma abstenção, mas também condutas positivas de proteção e promoção. [...] Não obstante, há que reconhecer uma certa margem de livre conformação de legisladores e administradores, na definição das medidas de proteção e promoção dos direitos fundamentais. O dever de agir do Estado não se configura como um dever de agir específico, o qual será definido pela lei ou pela própria Administração. (BINENBOJM, 2014, p. 75).

No mesmo sentido, André Ramos Tavares elenca algumas características dos direitos fundamentais. Uma delas é a denominada dupla natureza dos direitos fundamentais, que reconhece tanto a sua função de direitos subjetivos quanto a de princípios objetivos da ordem constitucional. As consequências dessa última função seriam a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, que “obriga que todo o ordenamento jurídico estatal seja condicionado pelo respeito e pela vivência dos direitos humanos”, e a teoria dos deveres estatais de proteção, que “pressupõe o Estado (Estadolegislador; Estado-administrador e Estado-juiz) como parceiro na realização dos direitos fundamentais” (TAVARES, 2013). Outra característica dos direitos fundamentais é sua “dimensão de abertura”, o que significa, sinteticamente, que as formas de tutela não são enumeradas de forma taxativa e “essa abertura dos direitos fundamentais fornece o espaço de conformação necessário à atividade criativa do legislador e do juiz” (TAVARES, 2013, p. 360). Assim, tão importante quanto o estudo da Constituição é o estudo dos métodos de fundamentação das decisões, analisando se a atividade inventiva dos administradores, legisladores e juízes, que é necessária ao se tratar de princípios, respeita, da melhor maneira possível, os valores sociais consagrados no texto constitucional.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS HUMANOFUNDAMENTAIS Já foi mencionada a existência no ordenamento jurídico de uma filtragem constitucional, ou seja, “toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados” (BARROSO, 2013, p. 133). Os valores sociais são formalmente expressos através dos princípios constitucionais, já definidos anteriormente e que necessitam de uma interpretação específica. Barroso (2013) afirma que, com relação aos princípios, não é possível uma interpretação baseada em uma atividade de mera revelação do conteúdo pré-existente da norma pelo intérprete, sem o desempenho de qualquer papel criativo em sua concretização. A nova interpretação constitucional assenta-se no exato oposto de tal proposição: as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto, principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido unívoco e objetivo que uma certa tradição exegética lhes pretende dar. O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido. (BARROSO, 2013, p. 142).

Norberto Bobbio indica a existência de três formas de fundar os valores: “deduzi-los de um dado objetivo constante, como, por exemplo, a natureza humana; considerá-los como verdades evidentes em si mesmas; e, finalmente, a descoberta de que, num dado período histórico, eles são geralmente aceitos (precisamente a prova do consenso)” (2004, p.17). No ordenamento jurídico atual, a forma que prevalece é o consenso, em que se substitui a prova da intersubjetividade pela prova da objetividade, considerada impossível ou extremamente incerta. “Trata-se, certamente, de um fundamento histórico e, como tal, não absoluto: mas esse fundamento histórico do consenso é o único que pode ser factualmente comprovado” (BOBBIO, 2004, p. 17-18). E como chegar a um consenso decisório em relação aos 137


direitos fundamentais? Habermas propõe a substituição da razão prática kantiana por uma razão comunicativa, ou seja, a maneira de conciliar facticidade e validade no campo do Direito é através da razão comunicativa, baseada no “uso da linguagem orientada pelo entendimento, através da qual os atores coordenam suas ações (agir comunicativo)” com implicações nas relações sociais. Ele trabalha com três elementos principais: quem age, quem sofre a ação e o que legitima a ação. Uma característica intrínseca nos elementos “quem age” e “quem sofre a ação” é a autonomia: com relação ao primeiro, subentende-se a autonomia em utilizar ou não sua liberdade argumentativa e, ao segundo, a autonomia em subordinar-se às regras que ele mesmo criou (soberania popular). No que se refere “ao que legitima a ação”, Habermas utiliza o princípio da teoria do discurso como pressuposto para um agir comunicativo válido. A teoria do discurso defendida por Habermas baseia-se em uma racionalidade procedimental, segundo a qual as qualidades constitutivas da validade de um juízo devem ser procuradas, não apenas na dimensão lógico-semântica da construção de argumentos e da ligação lógica entre proposições, mas também na dimensão pragmática do próprio processo de fundamentação (1997, p. 281). Os direitos humanos, nesse contexto, exerceriam a função de standards, ou seja, de parâmetros tanto na argumentação quanto na verificação da conformidade dessa argumentação com a realidade empírica. Assim, na perspectiva habermasiana, os direitos fundamentais do homem não são produto de uma revelação transcendente (como na doutrina jusnaturalista), nem de princípios morais racionalmente endossados pelos cidadãos (como propõem, kantianamente, Rawls e Dworkin), mas consequência da decisão recíproca de cidadãos livres e iguais de legitimamente regular as suas vidas por intermédio do direito positivo. O papel de tais direitos básicos é o de assegurar a autonomia pública e privada dos cidadãos para que estes possam deliberar num ambiente de liberdade e igualdade, no qual a única forma de coerção seja a do melhor argumento. (BINENBOJM, 2014, p. 56)

Alexy, assim como Habermas, defende a necessidade de uma teoria do discurso na formulação e aplicação do direito, 138


baseada em uma argumentação racional. Com relação aos direitos fundamentais, a argumentação tem um caráter primordial, visto que não são fundados em teorias materiais, mas em teorias de princípios. O discurso de direitos fundamentais é um procedimento argumentativo que se ocupa com o atingimento de resultados constitucionalmente corretos [...]. Como a argumentação no âmbito dos direitos fundamentais é determinada apenas de forma incompleta por sua base, a argumentação prática geral torna-se um elemento necessário do discurso nesse âmbito. Isso significa que o discurso no âmbito dos direitos fundamentais, como o discurso jurídico em geral, compartilha da insegurança quanto aos resultados, característica do discurso prático em geral. Por isso, a abertura do sistema jurídico, provocada pelos direitos fundamentais, é inevitável. Mas ela é uma abertura qualificada. Ela diz respeito não a uma abertura no sentido de arbitrariedade ou de mero decisionismo. A base aqui apresentada fornece à argumentação no âmbito dos direitos fundamentais uma certa estabilidade e, por meio das regras e formas da argumentação prática geral e da argumentação jurídica, a argumentação no âmbito dos direitos fundamentais que ocorre sobre essa base é racionalmente estruturada.

Nesse contexto, Barroso (2013) define três parâmetros de controle para a argumentação jurídica, considerando a verificação da correção ou validade de uma argumentação em relação ao caso concreto como seu principal problema. Em primeiro lugar, a argumentação jurídica deve ser capaz de apresentar fundamentos normativos (implícitos que sejam) que a apoiem e lhe deem sustentação, não sendo suficiente o bom-senso e o sentido de justiça pessoal; em segundo lugar, a argumentação jurídica, principalmente quando envolva a ponderação, diz respeito à possibilidade de universalização dos critérios adotados pela decisão; e um último parâmetro é formado por dois conjuntos de princípios: os princípios instrumentais ou específicos de interpretação constitucional e os princípios materiais propriamente ditos, que trazem em si a carga ideológica, axiológica e finalística da ordem constitucional. As teorias de Habermas e de Alexy visam fundar as decisões de uma forma mais objetiva e possuem o juiz, considerado este como o membro do Poder Judiciário e tradicionalmente definido como o responsável por aplicar a lei ao caso concreto, 139


como referência. Entretanto, analisando tudo o que foi exposto neste trabalho e relembrando que os direitos fundamentais têm a função de orientar as ações dos três poderes, acredito que não existe nenhum empecilho em aplicar as referidas teorias também às decisões dos administradores públicos, principalmente àquelas que se referem a uma atuação positiva do Estado. Nesse aspecto, o problema se agrava. Primeiro: na prática, as decisões dos administradores não são fundamentadas; segundo: quando existe, a fundamentação é baseada em conceitos abertos, como, por exemplo, o interesse público, que ninguém sabe ao certo o que significa; terceiro: a chamada “legal injustice”, ou seja, em um rol de soluções possíveis e legítimas, escolhe-se aquela que não resolve o problema concreto da melhor forma possível. Como controlar tais decisões? É evidente que o lindo discurso humanitário não é suficiente. André Ramos Tavares (2013, p. 438), citando a lição de Lewandowski, elucida que os meios formais de justificação dos direitos humanos existem, a dificuldade encontra-se em sua concretização, ou seja, é um problema político e não filosófico. [...] os problemas relativos à institucionalização dos direitos humanos não se encontram no plano de sua expressão formal, posto que, nesse campo, grandes avanços foram feitos desde o surgimento das primeiras declarações a partir do final do século XVIII. As dificuldades localizam-se precisamente no plano de sua realização concreta e no plano de sua exigibilidade”.

No entendimento de J. J. Gomes Canotilho, existe uma crise da teoria da Constituição, por se mostrar insuficiente na solução de problemas que podem ser divididos em dez categorias: problemas de inclusão, de referência, de reflexividade, de universalização, de materialização do direito, de reinvenção do território, de tragédia, de fundamentação, de simbolização e de referência. Com relação ao constitucionalismo pátrio, creio que existe um problema adicional. Como foi dito, a promulgação da Constituição Federal de 1988 coincidiu com o processo de redemocratização brasileira. Historicamente, e salvo algumas exceções, o Brasil não possui um histórico de lutas por direitos e nem o fomento a uma cultura de direitos humanos, o que faz com que 140


o discurso humanitário seja incorporado ao ordenamento jurídico com o status de dogma. Isso acaba refletindo no pensamento social contemporâneo, que pode se enveredar por dois caminhos opostos e igualmente prejudiciais. De um lado, existem aqueles que consideram os direitos humanos como instrumento de grupos minoritários que vivem à custa do governo e que servem exclusivamente para defendêlos e privilegiá-los. Nesse mesmo grupo também se encontram alguns que se consideram parte de um grupo minoritário e se apropriam do discurso dos direitos humanos, como se quem não fizesse parte do grupo em questão não possuísse legitimidade para questionar e defender questões sociais fundamentais. De outro lado, existem os que idealizam os direitos humanos como o único meio de salvar a humanidade. Também considero esse pensamento prejudicial pela incompatibilidade entre tal idealização e a realidade, ou seja, direitos humanos não podem ser vistos como algo transcendental, uma dádiva divina. É necessário ter em mente que é uma construção social, fruto de lutas históricas e, quanto menos for tratado como algo intangível e sem defeitos, mais fácil será sua concreta efetivação. CONCLUSÃO Conclui-se, assim, que para a efetivação dos direitos humanos é necessário analisar conjuntamente o Estado, a democracia e o Direito. O Estado, como dito, vive uma fase poiética, em que discursos econômicos se sobrepõem às suas finalidades precípuas; a democracia é problemática, principalmente considerando seu caráter aristocrático e/ou oligárquico; e o Direito possui os instrumentos formais, mas é deficiente no quesito efetividade. Essa lacuna entre teoria e prática demonstra que o problema da concretização dos direitos humanos é um problema moral. Faltam alteridade, solidariedade e vontade de transformar o mundo no melhor que ele pode ser; sobram ganância, egoísmo e vontade de manter tudo como está.

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Os mais desanimados poderiam dizer que a realidade só esteja sendo um instrumento para escancarar o fracasso prático do discurso dos direitos humanos. Eu não acredito nisso. Por mais que o cenário seja de pessimismo, os direitos humanos têm potencial para efetivamente transformar a sociedade. Ou, como diria Samuel Moyn, talvez acreditar nos direitos humanos seja a única opção, depois que todas as outras utopias fracassaram.

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