A POSSIBILIDADE DE MANIFESTAÇÃO OU RECURSO MINISTERIAL EM SENTIDO OPOSTO A PARECER OU PEDIDO ANTERIO

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Augusto César Borges Souza* A POSSIBILIDADE DE MANIFESTAÇÃO OU RECURSO MINISTERIAL EM SENTIDO OPOSTO A PARECER OU PEDIDO ANTERIORMENTE FORMULADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NO MESMO PROCESSO E SEUS LIMITES THE POSSIBILITY OF MANIFESTATION OR MINISTERIAL RESOURCE IN THE OPPOSITE DIRECTION OF OPINION OR REQUEST PREVIOUSLY MADE BY PUBLIC MINISTRY IN SAME PROCEDURE AND ITS LIMITS LA POSIBILIDAD DE MANIFESTACIÓN O DE RECURSOS EN LA DIRECCIÓN OPUESTA A LA OPINIÓN O LA PETICIÓN HECHA PREVIAMENTE POR EL MINISTERIO PÚBLICO EN LA MISMA RELACIÓN PROCESAL Y SUS LÍMITES

Resumo: A prática de ato processual em sentido contrário ao realizado anteriormente pelo mesmo ou por outro membro do Ministério Público, fundado no princípio da independência funcional, não representa necessariamente violação ao princípio da unidade. Os referidos princípios institucionais devem ser compreendidos sob uma ótica funcionalista, de modo a coexistirem pacificamente e permitirem o pleno exercício das atribuições conferidas constitucionalmente ao Ministério Público. Contudo, invocações genéricas de tais princípios não podem servir de amparo ou óbice à atuação conflitante de membros do Ministério Público no mesmo processo. O que se pretende com o presente trabalho é rechaçar os principais argumentos contrários à possibilidade de manifestação ou recurso ministerial em sentido oposto a parecer ou pedido anteriormente formulado pela instituição, demonstrando os limites da atuação conflitante de membros do Ministério Público numa mesma relação jurídico-processual. Abstract: The practice of procedural act in the opposite direction of previous act carried out by the same or another member of the Public Ministry, based on the principle of functional independence does not necessarily * Especialista em Direito do Estado pelo JusPodivm (Faculdade Baiana de Direito) e graduado em Direito pela UFBA. Promotor de Justiça do MP-GO.

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represent violation of the principle of unity. These institutional principles must be understood from a functionalist perspective in order to coexist peacefully and enable the full exercise of the duties conferred constitutionally to Public Ministry. However, generic invocations of such principles cannot serve as a support or obstacle to conflicting role of prosecutors in the same process. This article intends to reject the main arguments against the possibility of manifestation or ministerial resource in the opposite direction of opinion or request previously made by the institution, showing the limits of conflicting performance of prosecutors in the same procedural relationship. Resumen: La práctica del acto procesal en la dirección opuesta a la llevada a cabo con anterioridad por el mismo u otro miembro del Ministerio Público, fundado en el principio de independencia funcional no representa necesariamente la violación del principio de unidad. Estos principios institucionales deben ser entendidos desde una perspectiva funcionalista, a fin de coexistir pacíficamente y permitir el pleno ejercicio de las facultades conferidas por la Constitución a los fiscales. Sin embargo, las invocaciones genéricas de dichos principios no pueden servir de apoyo o un obstáculo para el rendimiento contradictorio de los fiscales en el mismo proceso. El objetivo de este estudio es rechazar los principales argumentos en contra de la posibilidad de manifestación o de recursos en la dirección opuesta a la opinión o la petición hecha previamente por la institución, clarificando los límites de la actuación contradictoria de los fiscales en la misma relación procesal. Palavras-chave: Ministério Público, atuação conflitante, princípios institucionais, fundamentação. Keywords: Public Ministry, conflicting performance, institutional principles, grounding. Palabras clave: Ministerio Público, actuación conflictiva, principios institucionales, motivación. 190


INTRODUÇÃO Todo promotor ou procurador de justiça provavelmente já se deparou alguma vez com a desconfortável situação de ter que proferir parecer ou manifestação processual em viés distinto (ou até mesmo oposto) a anterior posicionamento do membro do Ministério Público que oficiara naquele mesmo processo. Situação ainda mais desafiadora é ter que recorrer contra uma sentença que acolheu o pedido formulado pelo presentante ministerial que atuou em momento precedente naquela relação processual. O problema consiste em saber se, mais do que o simples desconforto de discordar, às vezes de forma radical, de seu colega que já se manifestou naquele processo, o confronto de entendimentos entre membros do Ministério Público no transcorrer de uma mesma demanda é aceitável do ponto de vista jurídico-processual. Afinal, se a divergência instaurada pelo promotor subsequente encontra amparo no princípio da independência funcional, tal comportamento contraditório não representaria nítida violação aos princípios da unidade e da indivisibilidade institucional? A POSIÇÃO CONFLITANTE DE MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO OFICIANTES NUMA MESMA RELAÇÃO JURÍDICOPROCESSUAL À LUZ DOS PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS Enquanto o princípio da independência funcional consagra a autonomia de convicção do membro do Ministério Público, assegurando-lhe plena liberdade para atuar de acordo com seu próprio entendimento, sem qualquer ingerência de órgãos superiores da própria ou de outra instituição, o princípio da unidade, em sua acepção original, indica que o Ministério Público está sujeito a um comando único, dele defluindo o princípio da indivisibilidade, segundo o qual cada um de seus agentes personifica a instituição em sua integralidade, pois não se manifesta em nome próprio, e sim em nome da instituição que presenta, pouco importando o membro que atuou.

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Consoante a doutrina majoritária, o princípio da unidade, contemplado no art. 127, § 1º, da Constituição da República, indica que o Ministério Público constitui uma instituição única, o que gera reflexos na atuação de seus membros, que não devem ser concebidos em sua indivisibilidade, mas como presentantes e integrantes de um só organismo, em nome do qual atuam. Ainda que os membros do Ministério Público assumam posições divergentes em relação ao mesmo fato, tal, à luz do princípio da independência funcional, em nada afetará a unidade da instituição1.

Obviamente, o princípio da unidade, como concebido originalmente na França, não traduz com exatidão o conteúdo desse postulado normativo, o qual não pode querer afirmar tão somente a unidade orgânica do Ministério Público (que resta fragilizada no modelo adotado pelo Brasil), devendo ser compreendido sob uma ótica funcional, representando a atuação integrada de seus órgãos de forma ajustada às funções institucionais que lhe foram constitucionalmente atribuídas. Assim, sob esse enfoque, já se evidencia que os princípios da independência funcional e da unidade são plenamente conciliáveis, desde que apreendidos numa perspectiva funcionalista, emprestando-se-lhes um sentido voltado ao efetivo alcance das funções constitucionalmente outorgadas ao Ministério Público. Vale dizer, se os princípios institucionais possuem caráter instrumental, na medida em que se constituem como postulados normativos erigidos pela Constituição para assegurar os meios necessários à consecução das atividades finalísticas do Ministério Público, seus contornos devem ser justamente aqueles que permitam, de forma harmoniosa, a plena realização das funções institucionais. Por isso, pode-se afirmar que a assunção de posicionamento contrário àquele adotado pelo membro do Ministério Público no decorrer da mesma demanda não encontra óbice no princípio da unidade, pois tal preceito jamais pode ser interpretado de maneira a engessar a atividade-fim da instituição. Nesse sentido, é a lição de Eugênio Pacelli de Oliveira:

GARCIA, Emerson. Ministério Público: organização, atribuições e regime jurídico. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 54-55.

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Dissemos já que o princípio da unidade não guarda relação de prejudicialidade insuperável com este, da independência funcional, é dizer: embora a noção de unidade possa indicar a uniformidade, não significa que todos os membros do Ministério Público devam atuar de uma única e mesma maneira, para o fim de preservar essa suposta unidade. Precisamente, a independência funcional o impediria. Independência no que respeita à liberdade de convencimento, de fato e de direito, sobre qualquer matéria a ele atribuída e quanto às consequências jurídicas a serem extraídas e efetivadas em relação a ela2.

Outro não é o entendimento de Hugo Nigro Mazzilli, que, de forma bastante lógica, reconhece a possibilidade de atuação do membro do Ministério Público em sentido contrário ao seu antecessor: O princípio da unidade da instituição não impede que cada membro do Ministério Público atue com plena liberdade de convicção em razão da independência funcional; assim, outro membro poderá apelar, mesmo que seu antecessor tenha emitido parecer acolhido pela sentença. Se o princípio da unidade da instituição impedisse que o segundo membro discorde do primeiro, então, por absurdo, também impediria que este contrariasse o pedido inicial feito pela própria instituição3.

Há de se pontuar, por oportuno, que a atuação conflitante de membros do Ministério Público não causa a mesma estranheza quando decorre da presença de interesses inconciliáveis numa mesma demanda, cuja tutela é desempenhada por agentes diversos, como, por exemplo, numa ação civil pública por danos ambientais em que, além da tutela ambiental, haja interesse de parte incapaz em polo oposto da ação. Nesse caso, de forma ainda mais clara, a divergência de interesses e a consequente atuação antagônica de membros do Ministério Público na mesma relação jurídico-processual não coloca em xeque o princípio da unidade institucional. Também não se questiona a possibilidade de o membro do Ministério Público oficiante na segunda instância proferir parecer em sentido contrário às razões ou contrarrazões recursais subscritas pelo promotor que atuou em primeiro grau de jurisdição. OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 458. 3 MAZZILLI, Hugo Nigro. A tutela dos interesses transindividuais em juízo. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 402. 2

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Se o princípio da unidade tivesse o condão de impor a atuação uniforme de membros do Ministério Público que venham a atuar no mesmo processo, restaria engessada a função do procurador de justiça. O que se coloca como fundamental para a compreensão do problema é que a admissibilidade de prática de ato processual com teor manifestamente contrário ao adotado pelo membro do Ministério Público que oficiara anteriormente no mesmo processo deve ser justificada pelo agente que instaurou a divergência, em uma perspectiva dialética e democrática, considerando as particularidades do caso concreto. Em uma visão mais otimista, porém, essa tensão (que deverá existir) entre os coprincípios originários e institucionais da unidade e independência em relação de equiprimordialidade ou de conjugação equilibrada obrigará a observância do direito, mas de uma maneira crítica-reflexiva e problematizante diante da necessidade de uma hermenêutica construtiva permanente e fundamentada à luz do sistema jurídico e das circunstâncias do caso concreto, o que permitirá ao Ministério Público justificar, adotar, abandonar e reavaliar certas práticas4.

Com efeito, a unidade institucional relaciona-se à noção de segurança jurídica, enquanto a independência funcional encontra-se mais vinculada à ideia de democracia. Contudo, apesar de atrelados a valores diferentes, não há qualquer incompatibilidade entre tais princípios institucionais. Como se pôde constatar acima, o conflito entre a independência funcional e o princípio da unidade não implica a sobreposição de um em relação ao outro, sendo necessária uma interpretação que permita a coexistência harmoniosa de ambos. Assim, a tensão entre tais princípios institucionais não deve, por si só, representar entrave à adoção de posicionamento contrário àquele adotado por outro membro do Ministério Público que atuou em fase anterior do processo.

COURA, Alexandre de Castro; FONSECA, Bruno Gomes Borges da. Ministério público brasileiro: entre unidade e independência. São Paulo: LTr, 2015. p. 140.

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A ATUAÇÃO ANTAGÔNICA DE MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO SOB A ÓTICA PROCESSUAL: LIMITES E POSSIBILIDADES Ultrapassada a discussão referente ao suposto conflito entre princípios institucionais, convém o seguinte questionamento: existiria algum óbice processual ao ato de o membro do Ministério Público recorrer contra a sentença que acolheu parecer ou manifestação exarada pelo seu antecessor? Há quem entenda falecer interesse recursal à parte que pretenda impugnar decisão que acolheu pedido formulado por ela própria em fase precedente do processo. Não me parece correto tal posicionamento. Isso porque o interesse em impugnar uma sentença deve ser aferido levandose em conta o pedido inicial, que é o que delimita a prestação jurisdicional pretendida pela parte que deflagrou a ação. Assim, o interesse recursal decorre do não acolhimento (integral ou parcial) da pretensão deduzida em juízo. Ademais, não se pode negar que o interesse recursal pode sofrer variações em conformidade com o entendimento dos membros do Ministério Público oficiantes no processo, sem que isso desnature a unidade da instituição5. Contudo, embora a formulação de pedido, no curso do processo, em sentido contrário à própria pretensão que se busca obter não retire o interesse da parte em impugnar a sentença, eventual recurso interposto contra essa decisão poderia, eventualmente, não ser conhecido não por falta de interesse recursal, mas sim em face da preclusão lógica. De fato, afigura-se como requisito negativo de admissibilidade recursal a prática anterior de ato de que diretamente haja resultado a decisão desfavorável àquele que, posteriormente, deseja impugná-la: É o caso da preclusão lógica, que consiste na perda de um direito ou faculdade processual por quem tenha realizado atividade incompatível com o respectivo exercício. Trata-se de regra que diz respeito ao princípio da confiança, que orienta a lealdade processual (proibição do venire contra factum proprium)6.

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GARCIA, 2008, p. 81. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Meios de impugnação

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O instituto da preclusão lógica, com efeito, constitui-se em importante fator limitador ao exercício abusivo de faculdades processuais, decorrente da boa-fé objetiva, visando evitar comportamentos desleais pelos sujeitos do processo. Nesse contexto, insere-se a proibição de comportamentos contraditórios (venire contra factum proprium), para garantir a tutela da confiança nas relações jurídico-processuais. Tal princípio objetiva evitar a frustração da legítima confiança depositada em uma das partes pelo comportamento anterior de seu adversário. Embora se reconheça a necessidade de o Ministério Público atuar sempre de forma leal, já que, como ente público, não pode comportar-se de maneira leviana, a incidência do efeito limitador da boa-fé objetiva não pode comprometer a tutela jurídica de interesses igualmente importantes. Se, por um lado, a divergência entre membros do Ministério Público no curso de um processo judicial pode frustrar a legítima confiança gerada na parte adversária, restringir a possibilidade de o agente que atue em fase subsequente adotar os meios cabíveis para salvaguardar os direitos cuja tutela foi prejudicada pela atuação desidiosa ou equivocada do membro que oficiou anteriormente significaria renegar a segundo plano interesses da mais alta relevância. Não se pode desprezar, a propósito, o novo perfil institucional atribuído ao Ministério Público pela Constituição de 1988, ao adjudicar-lhe a relevante missão de salvaguardar a ordem jurídica, o regime democrático, os direitos sociais e os individuais indisponíveis. A própria natureza dos interesses tutelados pelo Ministério Público no processo judicial, seja na qualidade de parte, seja como fiscal da lei, justifica o tratamento diferenciado que a legislação processual confere à instituição. Pode-se afirmar, com tranquilidade, que grande parte dos interesses defendidos pelo Ministério Público estão compreendidos no conceito de ordem pública em sua acepção mais moderna7 (direitos da criança e do adolescente, direitos do idoso, às decisões judiciais e processo nos tribunais. 6. ed. Salvador: JusPODIVM, 2008, v. 3. p. 52. 7 Diogo de Figueiredo Moreira Neto conceitua ordem pública em sentido formal (ou normativo)

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direitos do consumidor, improbidade administrativa etc.), sendo consabido que as matérias de ordem pública não estão sujeitas à preclusão. Ademais, como expendido alhures, a proibição do venire contra factum proprium, corolário do princípio da confiança, jamais pode limitar a atuação judicial do órgão ministerial de forma a inviabilizar a efetiva tutela dos direitos defendidos em juízo pelo parquet, sobretudo se considerado o grau de indisponibilidade e/ou a alta relevância social de que se revestem tais interesses. Por tudo isso, deve-se rechaçar a tese de que o recurso interposto contra sentença que acolheu pedido anteriormente formulado por outro membro do Ministério Público não deveria ser conhecido, em face do instituto da preclusão lógica, mormente quando a mudança de entendimento ocorrer justamente para conferir uma tutela mais efetiva ao direito que justifica a atuação da instituição no processo. Vale destacar que a adoção de entendimento contrário ao manifestado anteriormente pode ocorrer até mesmo em relação a um único membro do Ministério Público, sendo-lhe permitido adotar, em fase posterior do processo, posicionamento oposto ao que havia abraçado, sempre visando obter uma tutela efetiva e integral do interesse que lhe incumbe defender em juízo. Como desdobramento desse entendimento, alicerçado no princípio da independência funcional e na incessante busca do bem comum, móvel indissociável da atuação do Ministério Público, nos parece legítimo que o próprio agente melhor reflita sobre seus atos e venha a assumir, em atos posteriores, posição diametralmente oposta àquela por ele defendida em suas manifestações pretéritas. Isto, aliás, já é feito com frequência, sendo comum que o agente subscritor da denúncia direcione a sua manifestação, em sede de alegações finais, para a absolvição do réu. Além disso, somente é possível falar em preclusão lógica como “um conjunto de valores, de princípios e de normas que se pretendem devam ser observados numa sociedade, impondo uma disposição ideal dos elementos que nela interagem, de modo a permitir-lhe um funcionamento regular e estável, assecuratório da liberdade de cada um.” Segundo ele, “esse conjunto de princípios delinearia como que uma fronteira entre o campo do interesse individual, disponível, e o campo do interesse coletivo, indisponível, protegendo a este dos excessos e dos abusos antissociais das liberdades individuais.” E, reportando-se ao conceito de ordem pública em sentido formal na concepção de Guillermo Cabanellas, aduz ser o “conjunto de normas e instituições cujo objetivo consiste em manter em um país um bom funcionamento dos serviços públicos, a segurança e a moralidade das relações entre os particulares”.

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sob a ótica de determinada fase processual, não em relação a atos que se sucedem em fases distintas. Nesse último caso, quando muito, seria possível suscitar a ausência de interesse processual, nunca o advento da preclusão lógica”8.

Até mesmo no processo penal, no qual ao exercício do jus puniendi estatal confronta-se outro valor de alta relevância (a liberdade), a divergência de membros do Ministério Público no curso da ação não necessariamente configura comportamento desleal nem contrário ao princípio da boa-fé. Da mesma forma que o Ministério Público pode, em sede de alegações finais, postular a absolvição do acusado (sem que isso prejudique a pretensão punitiva, já que o juiz está adstrito à denúncia, sem vincular-se ao entendimento manifestado, no curso do processo, pelo membro do Ministério Público acerca do mérito da ação penal), é possível que o agente, revendo o seu posicionamento, recorra contra a sentença absolutória proferida em conformidade ao pedido de absolvição formulado pelo parquet em alegações finais por ele próprio ou por outro membro que oficiou no processo. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em consonância com a posição ora esposada, reconheceu, em diversas oportunidades, a possibilidade de interposição de recurso contra sentença que acolheu pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público em sede de alegações finais. Nesse sentido, convém transcrever a ementa do acórdão exarado no julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n.1322990: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL PENAL. ALEGAÇÕES FINAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO, PUGNANDO PELA ABSOLVIÇÃO. POSTERIOR INTERPOSIÇÃO DE APELAÇÃO PELO PARQUET. NÃO OCORRÊNCIA DE VINCULAÇÃO DOS PRONUNCIAMENTOS DE SEUS MEMBROS. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. ‘O princípio da unidade e da indivisibilidade do Ministério Público não implica vinculação de pronunciamentos de seus agentes no processo, de modo a obrigar que um promotor que substitui outro observe obrigatoriamente a linha de pensamento de seu antecessor.’ (RHC 8

GARCIA, 2008, p. 75.

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8025/PR, 6.ª Turma, Rel. Min. VICENTE LEAL, DJ de 18/12/1998.) 2. A circunstância de o Promotor Público, com atuação no processo, na fase das alegações finais, ter formulado pedido de absolvição, o qual foi acolhido na sentença, não impede que um outro membro do Parquet interponha recurso pugnando para que se preserve a acusação inicial. 3. Agravo regimental desprovido.”9

Em diversos outros julgados, o referido tribunal superior adotou esse mesmo entendimento (HC n. 112.793/ES, HC n. 105.804/SP, HC n. 93.439/RJ, HC n. 243.676/SP). Trata-se de posição ajustada ao perfil institucional do Ministério Público, levando-se em consideração o caráter de indisponibilidade e a relevância dos interesses tutelados pela instituição nos processos civil e penal. No caso, v. g., de uma sentença terminativa que, acolhendo manifestação ministerial, extinga, sem exame do mérito, uma ação socioeducativa pelo fato de o adolescente haver alcançado dezoito anos no transcurso do processo, por perda superveniente do interesse de agir (segundo o entendimento do juiz e do promotor que oficiara no processo), poderia outro membro do Ministério Público, ao ser intimado da decisão, interpor recurso visando à sua reforma? A resposta só pode ser positiva. No exemplo acima, a decisão do juiz, ao encampar o posicionamento do promotor que atuou anteriormente, contraria expressa disposição legal, bem como a jurisprudência pacífica dos tribunais superiores (os quais entendem que o implemento da maioridade não constitui óbice à aplicação de medida socioeducativa, bastando que o ato tenha sido praticado antes de o adolescente completar dezoito anos e que a medida seja cumprida até atingir os vinte e um anos de idade). Assim, o recurso contra tal sentença terminativa impõe-se não para satisfazer eventual preciosismo do promotor que passou a oficiar no feito em fase subsequente, mas para que a tutela jurisdicional pretendida pelo Ministério Público ao deflagrar a ação socioeducativa seja devidamente alcançada, promovendo-se uma defesa dos interesses BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, AgRg no Ag 1322990/RJ, Relatora: Min. Laurita Vaz. Brasília, DF, 12 de abril de 2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&processo=1322990&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO>. Acesso em: 16 abr. 2015.

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em voga de forma compatível com as leis e com a jurisprudência consolidada nos tribunais superiores. Não se quer afirmar que a defesa dos direitos transindividuais, individuais indisponíveis ou do interesse público pelo Ministério Público (ou outro ente legitimado) deve ser feita a todo e qualquer custo, desprezando-se os legítimos interesses da parte adversa. O que se pretende asseverar é que a gama de interesses defendidos em juízo pelo Ministério Público, pela sua própria natureza, não pode restar prejudicada pela desídia do agente que oficiou em fase anterior do processo, sendo válida eventual divergência de posicionamentos entre membros que atuaram na mesma relação jurídico-processual, desde que suscitada para promover uma defesa séria e efetiva dos direitos afetos à instituição. Há de se reconhecer, como exposto alhures, que a adoção de entendimento oposto ao manifestado anteriormente pelo mesmo ou por outro membro do Ministério Público não deve causar uma surpreendente e intolerável violação à justa confiança gerada na parte ex adversa (efeito limitador da boa-fé objetiva). Ademais, tal atuação conflitante somente deve ser admitida se realizada oportunamente, considerando-se o estágio em que se encontra a marcha processual e, por óbvio, se compatível com a pretensão deduzida em juízo pelo Ministério Público ou com os interesses que justificam sua intervenção no processo. Aqui, vale esclarecer que, sempre quando oficia no processo na condição de custos legis, o Ministério Público não possui poder de impulso quando o teor de sua manifestação for desfavorável ao interesse por ele velado no processo10. Assim, e.g., eventual recurso interposto pelo Ministério Público contra sentença homologatória de acordo de alimentos referendado pelo próprio parquet não deve ser sequer conhecido caso não se demonstre o real benefício à parte incapaz, já que a legitimidade recursal do Ministério Público, nesse caso, encontra-se atrelada à tutela dos interesses que impõem a sua atuação na demanda. 10

MAZZILLI, 2012, p. 101.

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Por fim, deve-se exigir que eventual mudança de posicionamento pelo Ministério Público no transcorrer de um processo seja fundamentada. O dever de fundamentação impõe-se a todo agente investido em função pública. Trata-se de exigência lógica decorrente do regime democrático, cuja tutela, vale lembrar, incumbe ao Ministério Público. Dessa forma, a motivação é requisito de validade dos atos processuais praticados pelo parquet, mormente quando em sentido contrário ao ato anterior. Assim, em nossa concepção, o STF somente poderá aceitar a atuação conflitante de membros do Ministério Público no mesmo processo se existirem justificativas interna e externa relacionadas às peculiaridades do caso concreto, sob pena de afrontar o princípio do devido processo constitucional. Alegações genéricas de violação ao princípio da independência ou de que o Parquet é defensor da ordem jurídica, a princípio, seriam insuficientes11.

Aliás, se a própria independência funcional vincula-se à ideia de democracia e de pretensão de justiça (por meio do juízo de convicção do membro do Ministério Público à luz do ordenamento jurídico e do caso concreto), nada mais coerente que a prática de ato fundado em tal princípio institucional (posto que contrário ao sentido extraído do ato que o antecedeu na mesma relação jurídico-processual) não desnature o ideal democrático que, por motivo lógico, deveria informá-lo. CONSIDERAÇÕES FINAIS A interposição de recurso em sentido contrário à manifestação ou parecer ministerial anterior não configura violação ao princípio da confiança nem ofende a unidade da instituição, sendo, na realidade, comportamento plenamente aceitável quando justificado, no caso concreto, pela necessidade de se conferir uma tutela mais efetiva aos valores zelados pelo Ministério Público.

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COURA; FONSECA, 2015, p. 141.

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As funções institucionais devem ser exercidas em conformidade com o perfil conferido ao Ministério Público pela Constituição de 1988, que destinou ao parquet a importante tarefa de zelar pelos interesses sociais da mais alta relevância. Assim, qualquer mudança de posicionamento que vise promover uma tutela efetiva e integral dos direitos constitucionalmente outorgados ao Ministério Público é salutar, haja vista que a defesa deficiente desses valores, além de incompatível com o importante papel que foi concedido pelo constituinte ao parquet, configura um desprezível menosprezo à relevante missão confiada à instituição, o que jamais pode ser consentido por seus membros. Contudo, a prática de ato processual em sentido anterior ao praticado pelo próprio Ministério Público na mesma relação processual não pode ser admitida tão somente mediante a invocação da independência funcional de seus membros, sendo imprescindível a observância do dever de fundamentação, como exigência do regime democrático, ao qual o referido princípio institucional encontra-se vinculado.

REFERÊNCIAS BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, AgRg no Ag 1322990/RJ, Relatora: Min. Laurita Vaz. Brasília, DF, 12 de abril de 2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp? tipo_visualizacao=null&processo=1322990&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO>. Acesso em: 16 abr. 2015. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, HC 112793/ES, Relator: Min. Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 06 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_ visualizacao=null&processo=112793&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO>. Acesso em: 16 abr. 2015. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, HC 105.804/SP, Relatora: Min. Maria Thereza de Assis Moura. Brasília, DF, 16 de setembro 202


de 2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&processo=105804&b=ACOR& thesaurus=JURIDICO>. Acesso em: 16 abr. 2015. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, HC 93.439/RJ, Relator: Min. Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 01 de setembro de 2009. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp? tipo_visualizacao=null&processo=93439&b=ACOR&thesaurus=J URIDICO>. Acesso em: 16 abr. 2015. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, HC 243.676/SP, Relator: Min. Sebastião Reis Júnior. Brasília, DF, 15 de outubro de 2013. Disponível em: < http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp? tipo_visualizacao=null&processo=243676&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO>. Acesso em: 16 abr. 2015. COURA, Alexandre de Castro; FONSECA, Bruno Gomes Borges da. Ministério público brasileiro: entre unidade e independência. São Paulo: LTr, 2015. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 6. ed. Salvador: JusPODIVM, 2008, v. 3. GARCIA, Emerson. Ministério Público: organização, atribuições e regime jurídico. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. ________. Ministério Público: essência e limites da independência funcional. In: RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Org.). Ministério Público: reflexões sobre princípios e funções institucionais. São Paulo: Atlas, 2010, p. 62-82. MAZZILLI, Hugo Nigro. A tutela dos interesses transindividuais em juízo. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. ________. Regime jurídico do ministério público. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

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