Amanhã não será outro dia

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Os bastidores da cobertura jornalĂ­stica de crimes de repercussĂŁo Erick Gimenes | Gesli Franco

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Todos os direitos reservados aos autores. Maringá, 2011. Edição Rosane Verdegay de Barros Editoração Ricardo Aranda Ilustração Rafael Camargo Capa Rafael Camargo Ricardo Aranda

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Às famílias Constantino, Coalio e Bernardi, as maiores vítimas dessas tragédias. 6


AGRADECIMENTOS Aos nossos familiares, pelo apoio antes e durante este trabalho, e pela compreensão de sua importância. À orientadora Rosane, pela cumplicidade, pela troca de ideias e por todos os riscos em nossos textos, fundamentais desde o primeiro ano. Às famílias e amigos das vítimas, que foram receptivas e solidárias em todos os momentos em que os procuramos. E pelas lições de vida que nos transmitiram. Aos jornalistas entrevistados, que também nos receberam com confiança e respeito e, de fato, “compraram” nossa ideia. Ao jornalista Antônio Roberto de Paula, pelo imenso carinho e atenção com que nos tratou. E pelas belas palavras do prefácio. Ao jornalista Thiago Ramari, por ter nos emprestado experiências no jornalismo e nos indicado caminhos. Ao jornalista Percival de Souza, por nos ter recebido em sua casa, em São Paulo, com cordialidade única e humildade digna de um dos grandes profissionais do jornalismo policial brasileiro. E à sua mulher, Yeda, pelo café, bolachinhas e simpatia. À amiga Geni A. Mauloni Sugawara, que nos ajudou com a obtenção dos processos criminais dos casos envolvidos. À amiga Anna Luiza Dassie, que obteve os exemplares dos jornais que precisávamos em Curitiba.

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Neste momento de tanta angústia o livro torna-se a tábua possível de resistir ao naufrágio e comandar marés. Cabe a ele a missão de povoar solidões. Paulo Bomfim 8


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SUMÁRIO

PREFÁCIO - ANTÔNIO ROBERTO DE PAULA

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APRESENTAÇÃO - PERCIVAL DE SOUZA

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MÁRCIA 53 FABÍULA 95 CLEUDISSON 131

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PREFÁCIO Quando recebi o livro de Erick Gimenes e Gesli Franco fiquei imaginando o que levou os dois jovens estudantes a escrever sobre três crônicas policiais tão marcantes da vida maringaense e da região. O que os impeliu a remexer nessas histórias? Talvez nem eles mesmos saibam a verdadeira razão. Um soco no estômago. Pensei em vários termos para definir o meu sentimento ao ler a pesquisa, tão cuidadosamente preparada, escrita de forma a “tirar” os personagens das folhas dos jornais após as tragédias e fazê-los retornar a uma rotina tão comum a todos nós. A desconstrução mítica remete o leitor a uma proximidade intrigante e assustadora com os casos. Um soco no estômago. Para conduzir o leitor a essas tristemente famosas histórias da crônica policial, Erick e Gesli oscilaram entre a sensibilidade e a crueza, destinando doses equilibradas ao texto, procurando fugir do folhetim e do relato policial pura e simplesmente. A responsabilidade foi maior porque os casos são por demais conhecidos e uma aventura como essa, se não tivesse embasamento, correria o sério risco de naufragar a elogiável iniciativa. No fim, as três histórias descritas pelos jovens criaram um ambiente harmônico, na boa convivência das pinceladas de folhetim, tão necessárias, com as tintas fortes do real. Para a obtenção deste resultado foi fundamental o suporte de Roberto Silva, Josi Costa e Antônio Carlos Moretti. Os jornalistas que fizeram a cobertura dos crimes deram a Erick e Gesli a medida certa das histórias, uma profundidade muito além do que escreveram em seus jornais. Eles trouxeram à tona mundos estanques e ao mesmo tempo tão ligados pela tragédia. O sentimento que dominou esses profissionais, e que permanece até hoje, foi apresentado sem rodeios e barreiras. Os depoimentos dos jornalistas, com suas análises sobre as coberturas policiais, a relação imprensa-polícia e o papel social do profissional, foram esclarecedores e de relevância, principalmente para quem começa a enveredar no jornalismo diário em que a investigação bem apurada precisa caminhar com velocidade. A apresentação do consagrado jornalista Percival de Souza soou como um recado de Erick e Gesli. Como a dizer: “Olha, estamos realizando um trabalho sério, de respeito. Para comprovar isso, fomos atrás de um ícone do jornalismo policial”. A ansiedade juvenil no trajeto para chegar ao ilustre entrevistado, a óbvia tensão ao encontrálo e a preocupação em se colocar na posição de aprendiz resultaram numa clássica aula em que a profissão foi desglamurizada em cada 12


linha para ressaltar a paixão e a obstinação. Os trágicos episódios pessoais ou os de repercussão, aqueles que causam grande comoção, nunca são esquecidos. Eles ficam comportados em um canto da memória e às vezes surgem do nada como a nos cobrar por uma dívida que deve ser distribuída por fazermos parte da humanidade. É o ônus de ser humano, o quinhão às avessas por estar vivo. Os casos de Márcia, Fabíula e Cleudisson incomodaram, entristeceram, revoltaram e reforçaram a compreensão, do modo mais terrível, do alto grau de nossa impotência. Transformamos esses mártires em nossos filhos, irmãos, sobrinhos. Entramos no mundo desses pais e familiares rasgando de dor nossos corações. A violência contra a criança tem uma ação devastadora em qualquer pessoa, por mais distante e fria que seja. Há uma reunião da dor atravessando quintais de ricos e pobres, de gente de todas as idades, de todas as linhas ideológicas, de todas as religiões e credos e até de gente que em nada crê. Há um lamento, explícito ou não, uma vergonha, uma ira, um desalento. Há uma mistura de sentimentos que torna os acontecimentos que ceifaram Márcia, Fabíula e Cleudisson amargamente inesquecíveis. Entre algumas explicações que afloraram enquanto eu batia os dedos sobre a mesa, na busca de palavras que julgava certeiras para comentar sobre o trabalho, arrisco dizer que Erick e Gesli têm aquilo que chamamos de espírito de jornalista para definir quem é realmente do ramo, o que definimos para separar o profissional apaixonado – sim, eles existem – do mero profissional. Entendo que uma monografia de final de curso de Jornalismo é uma ótima oportunidade para mostrar o grau de conhecimento adquirido, apresentar o nome para o mercado de trabalho e demonstrar a criatividade e a aptidão para atuar na imprensa. É o encerramento de um ciclo com a abertura de possibilidades para outro. Com esse trabalho de pesquisa, Erick e Gesli fecham com brilho uma etapa e ganham confiança e experiência para as próximas. As histórias de Márcia, Fabíula e Cleudisson jamais serão sepultadas. A interrupção de vidas em tão tenra idade e a maneira com que foram ceifadas tornam suas histórias marcas indeléveis, atravessando gerações. Nervos expostos, sempre de prontidão, como a avisar da intenção humana de praticar o mal. Ao contar sobre os bastidores da cobertura jornalística em homicídios contra as três crianças, Erick e Gesli nos dão o “soco no estômago”. Foi este o termo mais forte, o mais contundente, o que pode representar melhor o meu sentimento em relação a este trabalho. 13


A insegurança latente, o medo do imponderável, a impotência que se expande. Somos, seja lá onde estivermos e como estivermos, uma só família ansiando tão somente pela mais prosaica das rotinas: sair, voltar sempre para casa, crescer, viver, enfim. Mais nada é preciso. Que Deus nos proteja. Antonio Roberto de Paula

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APRESENTAÇÃO – PERCIVAL DE SOUZA O retrato de São Paulo é pintado com personagens reais. O correcorre, o frenesi, a buzina, tudo isso completa o quadro onde um homem de várias histórias se resguarda – Percival de Souza. Na casa onde vive, num bairro da zona norte, ele nos recebe todo vestido de preto, como que em luto pelas centenas de casos de morte que cobriu ao longo de décadas no jornalismo. Senta-se ao lado de uma estátua, um soldado de ferro em postura imponente, para dar-nos uma aula de jornalismo policial. A tarde, chuvosa, guardaria relatos surpreendentes de casos que, ainda hoje, estão gravados na memória dos brasileiros. Repleta com os ensinamentos de um mestre com vigor de menino. *** Olho vivo para os detalhes Narrar fatos, simplesmente por narrar, não diferencia, não torna um profissional de jornalismo um jornalista policial ou investigativo. A percepção, o faro, a sensibilidade diante de um detalhe, de uma fala, pode direcionar investigações, validar conclusões e, muitas vezes, desvendar um caso. A ingenuidade pode ser fatal para a boa cobertura. Aceitar uma declaração sem questioná-la pode tornar o repórter refém da própria notícia. A intuição pode até somar pontos numa investigação, mas estar atento às minúcias é o que expande o feeling do repórter. Muitos coleguinhas acreditam em Papai Noel, cegonha, Monstro do Lago Ness. Com o jornalismo criminal, você perde um pouco a ingenuidade que, filosoficamente, não é bom. Filosoficamente. Você não se deixa enganar, não se deixa ludibriar. Cobrindo polícia, o jornalista conhece bem as pessoas, desenvolve uma psicologia. Com o tempo, você conversa com alguém e consegue perceber se ela [a pessoa] está sendo sincera, autêntica, convicta. Consegue perceber se titubeia, se vacila. Percebe se está falando a verdade. E numa outra área isso já é mais difícil, acaba sendo meio frugal. É uma percepção diferenciada. É uma boa escola. Fazendo a área criminal, cotidianamente, você acompanha os casos, conhece as personagens, conhece como se trabalha numa investigação criminal. Você aprende isso. Com o passar do tempo, o jornalista fica exigente na qualidade da investigação. Ele próprio pensa: faltou ouvir isso, esse detalhe aqui foi 16


desprezado, isso aqui é importante. Essa pessoa aqui não me convence, está mentindo, esse aqui está escondendo alguma coisa. É quando o profissional pode desenvolver o próprio método de investigação. Você vai desenvolvendo isso, aprimorando. Eu já fiz isso. Às vezes, acompanhando até numa certa parceria com quem está investigando o caso na polícia. Também vai conhecendo os policiais. Tem policiais que são excelentes investigadores, ótimos. Você aprende muito com eles. Depois, claro, você vai conhecer os policiais mais fracos, os que não sabem investigar. *** Bons exemplos, boas histórias Percival de Souza gosta de trabalhar com exemplos. Com tantos casos investigados, nada mais justo que usá-los para evidenciar as potencialidades da percepção do jornalista. Para exemplificar essa ideia, ele conta, de maneira quase didática, sobre o caso que lhe rendeu o primeiro Prêmio Esso de Jornalismo. A sensibilidade foi crucial para que ele concluísse, antes mesmo da polícia, o final da história. O primeiro transplante de coração no Brasil ocorreu aqui em São Paulo. Eu estava no Jornal da Tarde, e o jornal conseguiu exclusividade para a cobertura do transplante. Evidentemente, esse dia do transplante era um mistério, porque dependia do doador. De maneira, vamos dizer, inesperada, no domingo, um homem foi atropelado, morto e tornou-se o doador. Detalhe: ele não tinha identificação. Automaticamente, esse doador se transformou no cara que era a matéria. Quem era o doador? Jornalisticamente, para a sociedade, era interessante saber. Quem era o cara? Me avisaram sobre o caso no domingo, umas dez da noite. Eu fui para o local do atropelamento. Cheguei lá a meia-noite e pouco. Eu não tinha uma grande bagagem ainda, mas já sabia alguma coisa de polícia. Eu cheguei no local e pensei: ninguém sabe quem é esse cara. A polícia, burocraticamente, vai começar a ver isso amanhã. Desse lugar aqui que eu estou tem que sair alguma coisa. Isso foi o que eu já havia aprendido acompanhando investigação: havia alguma coisa ali e eu precisava descobrir. Eu não tinha bola de cristal, não tinha nada, precisava trabalhar com a percepção. Eu fiquei lá olhando, sozinho com o fotógrafo. Vi que tinha um pé de sapato. Pegaram o cara, socorreram e tinha um pé de sapato jogado. Sabe aquelas coisas que você fica ruminando sozinho? Pensei: esse cara do sapato, evidentemente, estava andando por aqui, deve morar por aqui, porque estava andando por aqui. Foi atropelado aqui, 17


mora por aqui. Não há dúvida quanto a isso porque aqui está o sapato. Tinha um maço de cigarros de palha, um pacotinho pela metade. A essa altura, já era uma e meia, duas horas da manhã, eu levei para dentro do carro do jornal o pé de sapato e o cigarro de palha. Só havia isso lá, mais nada. Coloquei no carro e fiquei olhando. Tentei dormir um pouco, mas não consegui, fiquei matutando. ‘O cara do cigarro de palha é o mesmo do sapato. Se ele estava de sapato, andava, não mora num raio muito grande. Fumava esse cigarro. Como anda por aqui, mora por aqui. Comprava esse maço de cigarros em algum lugar daqui’. Esse era o meu raciocínio. Era o que eu tinha e eu sabia que não adiantava ir à polícia, porque o que eles poderiam saber era o que eu já estava sabendo. Logo pela manhã, fui a mercearias, botecos, barzinhos. Fiquei gastando sola de sapato praticamente o dia todo. No fim da tarde, eu estava exausto e nada. Foi quando parei numa uma última birosca e perguntei sobre o homem. O dono do local falou: - Ó, tem um rapaz aqui que só fuma esse cigarro. Nesse momento meu coração estava a mil por hora. - Qual o nome dele? - perguntei. - João. Nem sei o sobrenome dele, só sei que é João. - João... e onde mora o João? - indaguei. Ele explicou onde era a rua e disse que era uma casa pintada de verde e amarelo. Fui lá, uma casa simples, nem campainha tinha. Bati palmas, saiu uma senhora. Eu perguntei para ela: - É aqui que mora o João? - É meu filho - ela respondeu. - Ele está? - Não, eu não sei o que aconteceu, ele saiu ontem e não voltou mais para casa. Quando ela respondeu isso, eu senti que tinha localizado. Foi uma emoção muito forte. Até falei para mim mesmo: acho que estou com o Prêmio Esso em minhas mãos. Eu sabia da importância daquilo. Fiquei ali, fazendo perguntas. Eu não tive coragem de dizer que o cara tinha sido atropelado. Fui aos poucos fazendo o perfil indireto do cara, por meio da mãe. Estava com o fotógrafo, ele fez algumas fotos. Havia algumas fotos do rapaz lá na sala. Ele registrou. Ela até ficou curiosa querendo saber o porquê de eu estar atrás do João. Eu disse que tinha um amigo que era amigo dele e tinha sabido que ele estava procurando trabalho. Eu chutei isso. Falei que até uma foto iria ajudar. Na verdade, era foto que eu precisava. Eu saí da casa, à noite, com a identificação do cara. Saí com o Prêmio Esso nas mãos. 18


O homem de bigodes grisalhos enfatiza, com orgulho, que aprendeu a investigar, e que isso só foi possível convivendo com pessoas experientes e observando como são feitas as investigações. O que eu estou contando é um exemplo do que você aprende. Eu sempre tive, por causa disso, uma ligação muito próxima com os policiais que investigam homicídios, assassinatos e outros crimes desconhecidos. Foi onde [sic] eu conheci caras incríveis. Claro que eu aprendi muito com eles. Aprendo muitíssimo. O que várias vezes me colocou em posição de superioridade técnica, em matéria de investigação com policiais de outras áreas. Eu adquiri aquele know how [conhecimento de como executar uma tarefa] da investigação. Nesse caso que eu citei, por exemplo, como que eu iria começar a trabalhar se eu não tinha nenhuma informação, além do sapato e do cigarro? Eu cheguei lá e havia um cadáver. Havia um corpo inerte e uma ponte partida que me exigia usar a cabeça, o raciocínio, a inteligência, o bom senso, o tirocínio, tudo isso. Quando eu cobri esse caso do rapaz do cigarro de palha, eu já tinha conhecido um investigador de homicídios que trabalhou num caso que me impressionou muito, não como matéria, exatamente, mas como forma de investigação. Era um local de crime: havia um cara morto, sem documento nenhum, nada. Ao lado do corpo estava um cachorro que não arredava pé do lugar - o amigo fiel. Esse investigador pegou o cachorro, pôs em uma coleira e ficou andando dois dias pelo bairro. Estou lhes contando isso, mas parece coisa de filme, né? Parece filme, mas não é ficção, é verdade. Aliás, têm colegas que, para isso aqui que eu estou contando, não demonstrariam 1% do interesse que vocês estão demonstrando. Falariam: ‘É, legal. Valeu’. Não têm percepção. Nem para isso, nem para ouvir ou ler uma narrativa. No segundo dia, o cachorro parou em frente de um portão e começou a latir. Pronto. Estava identificado o cara. Esse caso, entre outros, me levaram a ter essa percepção que eu aplicaria no caso do rapaz do cigarro de palha. Por isso, eu prefiro ficar com o aprimoramento buscado, cultivado, alimentado. O jornalista desenvolve isso. *** Indignação reportada em livro Com as experiências que viveu ao longo das mais de quatro décadas de cobertura policial, Percival de Souza passou a trabalhar nas 19


páginas de livros. Aliando realidade e ficção, o jornalista reproduziu cenários, diálogos e situações desconhecidas do público em 17 obras. Descobriu, recentemente, o prazer pelo romance ficcional, nas 90 páginas do livro O crime quase perfeito, um misto de ficção e histórias que ele já viveu. Em outras obras, evidenciou detalhes das histórias que marcaram sua vida pessoal e jornalística. Uma delas, em especial, a do jornalista e amigo Tim Lopes, assassinado em 2 de junho de 2002, por traficantes do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, após uma série de reportagens sobre exploração sexual de adolescentes e venda de drogas naquela comunidade. Tomado por um sentimento de indignação, ele pesquisou, investigou e escreveu tudo que pode sobre aquele crime. O resultado é o livro Narcoditadura: o caso Tim Lopes, crime organizado e jornalismo investigativo no Brasil. O livro O crime quase perfeito é ficção, cá entre nós, apenas em partes. Na verdade, se eu fosse fazer uma confissão, esse trabalho seria um alterego. Aquele personagem Percy [o repórter investigativo que vai desvendar o crime quase perfeito: um suicídio ocorrido dentro de uma delegacia de polícia com a arma do escrivão] sou eu, aliás. Está na cara. É ele que liga as pontas de um negócio que a polícia queria negar – que era o suicídio, no qual ninguém nunca vai acreditar que alguém se matou no banheiro da delegacia. Aquilo era o ponto de partida para esclarecer uma tentativa de homicídio. Uma coisa incrível, que eu vivi intensamente. Aqueles diálogos que são apresentados no livro são praticamente os diálogos reais do delegado comigo. Eu queria escrever aquilo há muito tempo, mas como era em formato de ficção, e eu nunca havia feito ficção antes, usei um fato real para desenvolver. Apenas ficção de algumas coisas, para pressionar a canalhice do personagem, já que o jornalismo comum não permite tal feito. No livro do Tim Lopes, uma pessoa colocou na internet que eu era um inventor, um ficcionista, por causa daqueles diálogos do Ratinho [Cláudio Orlando do Nascimento, um dos acusados da morte do jornalista] em que ele acendia o cigarro nas brasas do corpo do Tim. Mas a pessoa que criticou não sabe que eu usei ali uma soma de know how. Além disso, usei também o problema do policial do Rio de Janeiro que estava investigando o caso, Daniel Lopes. Ele caiu em desgraça e foi até afastado do cargo por decisão da governadora da época [Benedita da Silva], porque a Globo fez um editorial no Jornal Nacional - algo que é raro - acabando com ele. Porque no relatório da investigação, ele [Daniel Lopes] concluiu que Tim havia se deixado dominar mais pela emoção do que pela razão. Isso era um parágrafo dentro de um relatório de 600 páginas. Foi quando eu me perguntei: primeiro, quem de nós, numa longa matéria, não 20


dá uma pisada na jaca num parágrafo ou numa frase? Quem de nós? Quem pode jogar a pedra? Segundo: ele [Tim Lopes] não se deixou mesmo dominar pela emoção? Difícil responder isso, né? Terceiro: o que ele [Daniel Lopes] tinha feito para a Globo ficar tão furiosa assim com um modesto policial da delegacia da Penha, no Rio de Janeiro, a ponto de execrá-lo no editorial do Jornal Nacional? Foi então que eu descobri que o cara tinha investigado o incêndio no Xuxa Park [ocorrido em 2001, no programa apresentado por Xuxa Meneghel, em que sete pessoas ficaram feridas] e responsabilizou a Globo pela falta de segurança. A Globo ficou louca da vida. Então, deu o troco. Por isso o tom do editorial, que dizia que ‘segundo a polícia, o responsável pela morte do Tim havia sido ele mesmo’. Eu fui ler o que o Daniel Lopes escreveu e não era aquilo que a Globo havia dito. Ele não escreveu aquilo nas 600 páginas, não era isso que estava lá. ‘O Tim matou-se’. Não era esse o tom. Eu vi isso tudo, na época. Não conhecia o cara. Procurei saber no Rio de Janeiro quem era esse policial. Descobri que era um cara sério, dedicado, responsável, com a reputação ilibada. Nenhuma dúvida quanto ao caráter ou honestidade dele. Eu repito: eu não conhecia o cara. Me informei e o procurei. Falei que estava fazendo um livro, expliquei tudo e disse que se ele me convencesse de que havia sido vítima de uma marotagem, podia ter certeza que eu lavaria a sua honra, mas que, para isso, eu precisava estar inteiramente convencido e precisava saber de tudo. Durante as investigações, ele prendeu todos os autores do crime contra o Tim, com exceção do Elias Maluco, que era o cabeça de tudo. Quando ele terminou essa investigação, lançou o relatório sem o Elias Maluco. Os caras que ele havia prendido ficaram à minha disposição. Então, foi feita uma longa preliminar [no inquérito policial] após a prisão desses caras e eu estava lá, ouvindo tudo. Esse detalhe do Ratinho acender um cigarro com o corpo do Tim em brasas eu ouvi. Eu acho isso inacreditável, mas isso não está no depoimento. Todo aquele detalhamento eu ouvi. Coloquei no livro. Eu lavei a alma do Daniel Lopes, mas eu não puxo o saco dele no livro. É uma lavagem em função do que o cara é e em função do que o cara fez. Estou dando os ingredientes pessoais, da psicologia do policial, para vocês entenderem o mecanismo que, juntando tudo isso, te coloca em vantagem. Em resumo, nada é impossível. Nada! Você precisa ter garra, fibra, determinação, um pouco de coragem e um pouco de sorte, que não faz mal a ninguém. Se você for um burocrata, não vai fazer isso nunca. Você precisa ter a noção de até aonde ir. O cara que fez a crítica ao livro, logicamente, não quis nem saber de nada. Se eu estava lá, se não estava, como eu soube, como eu apurei. Pensou: 21


‘Ele chutou, não estava lá, como é que ele vai saber disso aí?’ Mas isso é imbecil. Como diria o Nelson Rodrigues: os idiotas perderam a modéstia. Eu não vou ficar me preocupando com idiotas. Vou dar satisfação para idiota para quê? E tem um detalhe: aquela ideia de ir ao morro de qualquer jeito, camuflado, com uma camionete, foi dele, do Tim. Eu não contei isso, estou contando aqui para vocês. A ideia foi dele. Eu coloquei toda a fé naquilo. Foi um ato de muita confiança porque você não deixa de pensar: ‘Pode acontecer comigo o que aconteceu com o Tim. Se aconteceu com o Tim, por que não pode acontecer comigo? Eu sou melhor que o Tim no quê? Eu vou ao mesmo lugar que o Tim? Vou. E se os caras se tocam e descobrem? Estou morto? Estou. Eu conheci o Tim muito bem. Ele tinha um currículo profissional fantástico, fez muitas coisas impossíveis. Mas, depois de pensar muito sobre isso, eu conclui que ele confiou demais numa fonte. Acho também que outro fator foi porque ele tinha ganho um Prêmio Esso no ano anterior. A cara dele era um enigma, ninguém via o Tim. Quando ele ganhou o Esso, que é o nosso Nobel, aconteceu a cerimônia de premiação, e nem eu me atentei a esse detalhe na época da premiação. Depois falei: “Puts, a cara dele lá.” Ele fez uma matéria que deixou os caras furiosos, aquela “Feira das drogas”. Na premiação tinha a cara dele. Estava de bermuda e camisa estampada. Ele era perfeccionista. Vou te contar uma coisa: provavelmente qualquer um de nós aqui, na mesma situação dele, com o material que ele já tinha nas mãos, se daria por satisfeito. Ele já tinha feito duas incursões naquele lugar e achou que precisava de mais uma, um arremate. Foi a terceira vez [quando ele foi morto]. No trigésimo terceiro dia após a morte, ele foi identificado por um pedaço de osso. Os colegas do Rio pretendiam fazer uma homenagem no local, um memorial. Os traficantes proibiram. Eu fiquei possesso de ódio. Falei: - Agora traficante decide o que eu faço, o que eu não faço, o que eu posso, o que eu não posso, aonde eu vou, aonde eu não vou? Eu me recuso a isso, eu vou fazer algo pra homenageá-lo. E fiz. *** O distanciamento da fonte Questionamos Percival de Souza sobre o envolvimento do jornalista com a fonte, já que ele havia citado alguns casos em que se tornou amigo do entrevistado. Mais uma vez, ele usou alguns exemplos para deixar a resposta mais clara e nos surpreendeu com o posicionamento que tem em relação ao tratamento jornalista/fonte. A fonte é o nosso patrimônio. E entre essas fontes não tem só freira. A fonte pode ser a polícia, que é um universo muito amplo. Polícia é genérico: tem 22


a Civil, a Militar, a Federal. Você pode ter o Ministério Público, o Judiciário. No presídio, o agente penitenciário, o advogado. A nossa matéria-prima é exatamente a mesma matéria-prima de outros profissionais que, muitas vezes, ficam com status profissional superior ao nosso. Por exemplo, o advogado. Ele tem uma auréola. Qual é a matéria-prima dele diferente da nossa? O que tem de diferente? Quem matou? Quem roubou? Quem é o estelionatário? A diferença é a relação cliente/patrão. O juiz que tem o papel de julgar, a matéria-prima dele é diferente da nossa? Não! O promotor, idem. A rigor, nós temos que superar esse nosso complexo de inferioridade e entender que aquilo que a polícia chama de testemunha, elo, parte vital, chave do enigma, ou seja lá o que for, para nós, é uma fonte de informação. Mas é o mesmo personagem. Agora, a maneira de você trabalhar com esse personagem, evidentemente, são maneiras diferentes, mas ele continua sendo o mesmo cara. E aí você vai desenvolvendo todo o seu know how para chegar num ponto que você considere vital para a investigação. Para vocês verem como são as coisas, no livro do PCC [O Sindicato do Crime – PCC e outros grupos], eu conto uma história que aconteceu da seguinte forma: eu estava passando um fim de semana, um sábado e um domingo inteiros, na casa daquele juiz ameaçado por traficantes, o Odilon de Oliveira [magistrado sul-matogrossense que diz receber ameaças há 20 anos], no Mato Grosso do Sul. No domingo, ele fez um churrasco. Eu quis saber, justamente, como era um cara acuado por traficantes. Queria sentir aquilo, o drama, ver como era terrível. Fiz matéria para a televisão sobre esse caso, mas o livro é insuperável nisso. Na televisão, a grande matéria são alguns minutos. No churrasco de domingo, com vários policiais federais na segurança dele, às vezes eu ia à mesa pegar um pedaço de carne, puxavam um cano de metralhadora, algo assustador. No meio disso tudo, eu ouvi um ‘tira’ [policial] contando, meio de leve, a história daquela execução [cena narrada no livro] na qual os traficantes fizeram uma recepção, havia um traidor entre eles, e acabaram descobrindo. O cara foi responsável por uma grande apreensão de drogas. O cabeça do grupo resolveu executá-lo lentamente na frente de todo mundo para ficar de lição. Eu já estava com o livro do PCC na cabeça para escrever. Naquele momento ali eu pensei: isso aqui é a abertura do livro. Na hora já veio. ‘Esse caso é a abertura do livro.’ Um cara amarrado num tronco e um cara matando aos poucos. A turma continuou bebendo uísque, comendo carne. Falei: - Pô, isso nem o Don Corleone [personagem chefe da máfia italiana no livro O Poderoso Chefão, de Mario Puzo] teria uma ideia assim. Acontece que eu não vi ali ninguém que conhecesse a história por inteiro. Quando o ‘tira’ mencionou isso, ele sabia só isso e não tinha detalhe 23


algum, mais nada. O juiz disse que soube disso, não sabia detalhes, mas que era interessante ir à fonte. Uma boa fonte você cuida dela como um jardineiro cuida de um jardim. Você rega, aduba, se lembra dela, você conversa com a planta. Tenho um amigo que cultiva flor, tem uma estufa. Na estufa, você ouve tocar Mozart, Beethoven e Bach. Segundo ele, fazem muito bem para as plantas. Cuida-se da fonte assim. E esse juiz, essa turma, eu já tinha feito matérias com eles. Tínhamos uma relação. Temos uma relação muito próxima, forte, até de amizade. - Doutor, eu preciso saber dessa história - eu disse. - Tem um cara que estava nessa festa em que houve a execução. Ele está preso em Dourados [a 228 quilômetros de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul] trabalhava com o Fernandinho Beira-Mar [Luiz Fernando da Costa, considerado um dos maiores traficantes da América Latina], foi preso num avião com 300 quilos de cocaína. Eu que o condenei. Vou falar com o colega da vara de execuções da cidade para ver o que é possível. Dias depois, o juiz me apresentou o cara. Enquanto eu me encaminhava até Fórum de Dourados, pensava: ‘Um pouco de sorte não faz mal a ninguém, né?’ Esse juiz, antes de entrar na magistratura, tinha sido jornalista no Rio Grande do Sul. Então ele compreendeu perfeitamente o que eu queria, o que eu pretendia. Sorte um. Sorte dois: esse traficante estava com obesidade mórbida e esse juiz em Dourados autorizou o cara fazer uma cirurgia numa clínica particular. Depois, permitiu que ele ficasse num lugar diferenciado, não na penitenciária de segurança máxima, mas num local próximo, mais calmo, até ele se restabelecer fisicamente, com uma dieta especial. Me trouxeram o cara, tiraram ele da cela. Ficamos numa sala. O traficante que estava nessa festa, o juiz que autorizou a cirurgia e eu. A minha ideia maquiavélica era a seguinte: esse traficante deve para esse juiz que lhe deu a chance de sair de um presídio de segurança máxima para fazer uma cirurgia, coisa que, provavelmente, nenhum outro juiz faria. O juiz não é obrigado a fazer isso. Esse juiz é uma figura, um cara que toca violão em restaurante, uma peça. O cara deve uma coisa para ele que não tem como retribuir. Isso tudo eu estava pensando. O juiz falou para o cara: - Esse aqui é um jornalista de São Paulo. É o seguinte: ele quer saber sobre aquela festa lá em Capitán Bado [cidade paraguaia que faz divisa com o Brasil, a 426 quilômetros da capital Assunção], que mataram fulano e o estriparam devagarzinho. Vocês ficaram dando risada, olhando. Eu sei de tudo, mas ele não sabe. Ele vai fazer um trabalho, quer contar aquilo lá, e já vou garantir para você: eu estou te falando, você não vai aparecer em nada, não vai te prejudicar em nada, não vai afetar nada. Aliás, você é um bandido, safado, 24


sem vergonha, com 500 anos de cadeia. Você não faz diferença nenhuma, mas não vai aparecer em nada, tá? E aí? O cara olhou e disse: - Doutor, eu não posso negar nada para o senhor. Eu, na porta, igual a cena da casa da mãe do cara do cigarro de palha que foi atropelado. Estava gritando por dentro [Percival grita]. Eu lá, contido, mas com uma euforia. O juiz saiu, ficamos nós dois lá e o cara contou tudo o que se vê na abertura do livro. O maior elogio que eu recebi desse texto de abertura foi quando um rapaz me perguntou: ‘Você estava lá?’ Quer dizer, ele achou tão pormenorizado que só se eu estivesse lá. Para mim foi um grande elogio. É uma reconstituição. A fonte é isso aí, além do burocrático, é uma convivência, é uma interação de confiança. Muitas vezes, você precisa confiar totalmente nessa fonte e a fonte precisa confiar totalmente em você. Ela precisa confiar em você também. Se a fonte der uma vacilada, você pode ficar numa enrascada e vice-versa. Acho que esse tema nem é dominado pela maioria dos colegas. Muitos falam que é preciso manter distância, que se você se aproxima muito a relação é promíscua. A relação com a fonte pode sim chegar a uma relação de amizade. Eu não tenho nenhuma dúvida quanto a isso. Suponhamos que vocês sejam duas grandes fontes de uma matéria e nós estejamos aqui. Acabou a entrevista, eu falo: ‘valeu, até nunca mais ou até sei lá quando.’ Isso são modos de você se relacionar com alguém que está revelando uma coisa super importante para você?! Uma coisa mecânica, burocrática, dura. Só aquele tempo de contato e mais nada, querendo a pessoa longe de mim? Você, fonte, se relacionaria com alguém que só se interessa por você na hora de uma matéria e não interessa mais nada? Ninguém aprecia isso, nenhum ser humano aprecia isso. Tanto que eu tenho, talvez, meu estilo pessoal. Muito costumeiramente, eu vou a reuniões, nem que seja para ficar meia hora. Um aniversário, uma dependência policial, militar ou federal. A nossa tendência no jornalismo é achar uma chatice. Mas estão todos lá, os caras ficam contentes que você vá até lá. Ficam felizes da vida, se sentem prestigiados. O que custa você ir lá? Qual problema que tem? Não existe problema. Aliás, eu até desafio se vocês conhecem alguém que pensa isso, se tem alguma boa fonte, se deu grandes furos, se fez grandes matérias. Veja se vocês conhecem alguém. Evidentemente, Percival de Souza busca saber os limites que essa relação precisa ter. Ele tem plena consciência de que o envolvimento que extrapola as barreiras da ética acaba, em algum momento, prejudicando o trabalho jornalístico. 25


Aqui em São Paulo tem um jornal que é muito bom e nem todo mundo percebe que é muito bom. Chama-se Valor Econômico. Às sextas-feiras, o jornal publica uma espécie de revista que é de altíssima qualidade - não estou dizendo que o jornal não seja, eu leio diariamente. Para a pergunta de vocês, acho que esse caso é emblemático. É em cima do livro “A jornalista e o assassino”, de Janet Malcolm, em que um médico do Exército foi acusado de assassinar a mulher e as duas filhas, nos Estados Unidos. A autora do livro convenceu o acusado a se abrir com ela, disse que iria fazer um livro, contar todos os detalhes. Mas fez um livro meio que, digamos, direcionado como peça de defesa, o que mereceu inúmeras críticas pesadas, contundentes. Aí perdeu o prumo. Esse caso é um caso famoso, bom para ser exemplificado. Mas o livro do Truman Capote, A Sangue Frio, não é diferente, embora seja um trabalho de investigação exemplar. É uma obra de arte. Eu sou admirador dele. Eu li A Sangue Frio nos anos 60. Aliás, foi nessa época que eu comecei a cobrir polícia. Quando me apaixonei pelo trabalho do Capote, meu lance era a capacidade dele memorizar sem fazer anotações. Isso eu sempre admirei e passei a cultivar nos meus trabalhos. Essa entrevista com o preso de Dourados, por exemplo, eu não escrevi nada. Saí de lá, fui correndo para o hotel, igual ao Capote, marcando todos os pontos essenciais. No filme Capote, que mostra como o livro foi feito, tem uma cena que faz qualquer um de nós morrer de inveja em matéria de bom texto. É quando ele se exibe em um teatro em Nova York para fazer a leitura da abertura do livro, e tem uma plateia que lota o teatro e todo mundo lá, de boca aberta. Quando acaba [aplausos]. É de morrer de inveja isso. Truman Capote era emblemático. Ele teve um envolvimento emocional com um dos caras. Aí você esbarra na questão ética, porque ele se apaixonou pelo cara e talvez tenha acenado com a perspectiva de conseguir uma complacência maior da corte superior americana, o que não aconteceu, principalmente quando se decidiu aplicar a pena capital. Você pode reparar. O Capote “morreu” naquele dia que o cara foi enforcado. Ele morreu junto. Pode reparar: nunca mais escreveu nada. É uma coisa para se pensar também. Aprofundando essa questão no Brasil, mas puxando para a política. Você pega a política brasileira nesse exato momento em que estamos, em que os caras discutem faxina ou não faxina, precisa conversar antes, precisa me avisar primeiro, eu também quero cargo. Isso é de uma excrescência moral absurda. Mas de modo geral, a classe política engole vários caras que têm a militância política. Por isso eu ouso dizer que o jornalista não deve ter militância política partidária. Porque, se ele tiver, sempre irá existir um totem que vai ser ‘P’ não sei o que, ‘P’ não sei das quantas, ‘PQP’, ou sei lá o que [o jornalista 26


faz alusão às siglas de partidos]. O totem falou, o totem mandou e eu lá: ‘Amém!’ É ou não é? Então ele tem que ser uma peça da engrenagem. E onde fica a ética? O distanciamento político? E se o seu partido cometer uma falcatrua? Você não vai denunciar? Vai fechar os olhos? *** Confiança é o ingrediente principal É um estilo meramente pessoal. Eu catalogo as minhas fontes. Fonte A, ponho a mão no fogo. Posso estar no ar, na tevê, se me avisarem dez minutos antes: ‘Percival é isso, isso e isso.’ Eu sei que eu posso falar lá, ao vivo, que não terá erro algum. Eu sei quem é esse cara, isso acontece várias vezes. A fonte B já é um pouco diferente. O que a pessoa está contando é até real, verdadeiro, mas vai haver um interesse num lado da questão. É preciso saber peneirar isso. Não que seja falso, mas a pessoa está interessada em algo. Eu preciso distinguir e saber que tem uma nuvem de fumaça naquilo. É delicado isso tudo, mas como o patrimônio do repórter é esse, ele precisa saber trabalhar com isso, e assim vai ampliando suas fontes. O que eu falei é profundamente sincero, não existe relacionamento cronometrado com a fonte. Acabou, você não me interessa mais, vai cuidar da sua vida. Não é assim. As pessoas, de modo geral, nos imaginam como uma tomada de partida, de posição. Raramente nos veem na perspectiva da neutralidade. Ou eu vou atacar, ou defender e, na verdade, nós vamos procurar mostrar o que é. Nisso, às vezes, há decepções. Percival de Souza já teve problemas com fontes, não nega isso. Faz questão de mostrar os limites da amizade e do profissionalismo. Teve um caso famoso aqui em São Paulo, o caso da Favela Naval. Os policiais militares espancaram uns jovens num determinado ponto em Diadema [região metropolitana de São Paulo], diziam que era ponto de tráfico. Deram uma surra incrível, porém, não desconfiavam que houvesse uma câmera oculta fazendo uma filmagem e que capturaria todas as cenas que, em seguida, seriam veiculadas. As imagens foram constrangedoras, foi um espancamento brutal, do nada. Pararam e desceram o cassetete. No fim, mandaram todos saírem correndo. Um policial deu um tiro e acabou acertando um desses caras, matando-o dentro do carro. Uma coisa super estúpida. No dia seguinte, após a veiculação dessas imagens, eu estava no quartel general da Polícia Militar. Tinha um relacionamento muito forte com o 27


comandante-geral, chefe da Policia Militar, e, nesse dia, tinha um grupo de oficiais lá. Alguém comentou lá no QG [Quartel General] que eles estavam sendo cobrados, até mesmo pela própria família dos comandantes. Era uma vergonha, uma nódoa. Eu participava desses encontros. Ia até o QG conversar, com muita frequência e naturalidade. Após o ocorrido, eu fiz uma matéria contando sobre o caso. Eles ficaram enfurecidos. Naquele dia, minha amizade com o comandante, sub-comandante, vários deles, acabou. Eles acharam que eu tinha traído a confiança. Até um capitão me ligou e eu disse que naquela tarde iria lá, queria ouvir cara a cara que eu era traidor da confiança. Se eu fosse um traidor de confiança mesmo, adeus QG. Eu queria ouvir isso na cara. Eu fui até lá. Cheguei e disse: - Vocês deveriam absorver esse sentimento que a família de vocês passou, com muita sensibilidade. Se sentem envergonhados de ter familiares na Polícia Militar. A família conta isso para vocês, nem assim vocês se tocam. O que a família de vocês falou é aquilo que a sociedade inteira está pensando, está falando. Vocês me conhecem “há 500 anos”, sabem que eu me importo pela lisura, independência, honestidade, caráter. Vocês já me viram em um milhão de situações, agora vocês vão fazer biquinho comigo por causa disso aí? E tem mais: eu não fui mais longe nessa história. Dá para ir mais longe, hein? Porque tem várias coisas erradas aí, vocês sabem que eu conheço a Polícia Militar. Quem comandava esses soldados que agrediram era um aspirante. Eu estava tão nervoso que soltei a verborragia. - CPA, Comando do Policiamento de Área, que tem tenente, coronel, major e mesmo assim vocês mandam um aspirante a oficial lá? Vocês permitem um negócio desses e acham a coisa mais normal do mundo? Isso é um absurdo! O coronel da área informou sobre esse caso para o escalão superior dele, cadê as providências? Esse biquinho de vocês chega a ser ridículo. Os caras não abriram a boca, mas a cara deles estava aborrecida, aí eu saí. Para vocês terem ideia disso, uma das medalhas que eu ganhei na vida - eu tenho um quadro com algumas em casa - é a mais alta condecoração da Polícia Militar, a medalha Tobias Aguiar. Depois desse caso, eu soube que eles estavam tão furiosos que queriam cassar minha medalha. Isso é um ato extremo. Nunca vi alguém que tenha tido a medalha cassada. Eu falei para o capitão: - Ô capitão, fala para os coronéis que essa medalha está na minha casa. Quero ver, nesse QG inteiro, quem vai ter peito de ir até a minha casa e confiscar essa medalha, eu quero ver quem vai ter peito. Porque vai depender da hora, eu vou resistir, vou segurar minha medalha, vão ter que me algemar, me prender, dar porrada. Vai ser uma merda desgraçada. Eu quero ver quem 28


vai ter peito para fazer isso aí. Não tem sentido isso, mas vira e mexe você pode se deparar com alguma situação assim ou alguém que você tenha uma relação próxima e, num determinado momento, você faz uma matéria e a pessoa fala: ‘Nunca imaginei que você fosse fazer isso.’ Então, quer dizer, ‘fazer isso’ é contar o que aconteceu. Nesse sentido você pode até ter uma ruptura como já me aconteceu, mas te garanto que isso aí são exceções. Eu sempre digo: o jornalismo, de alguma maneira, é a história do cotidiano, do dia a dia. Deus me colocou no caminho e é a história, não posso negar a história. Do jeito que você está vendo a coisa, se eu maneirar para um lado vai ficar óbvio que é uma badalação. Para mim, principalmente. O essencial é: eu menti? O que eu escrevi ou disse está equivocado, errado? Se eu estiver equivocado, eu tenho a obrigação moral, profissional, de fazer o reparo. Se eu me recusar a isso, você tem um instrumento legal para exigir, na forma da lei, o direito de resposta. Agora, se o que eu escrevi ou disse é o correto, sinto muito! Não tem o que discutir. Mas de modo geral, a fonte A nem questiona isso. Agora a fonte B e a fonte C, sim! *** Coração de jornalista também sofre Apesar de se manter firme na maioria dos casos que cobriu, Percival de Souza desmoronou algumas vezes. Casos que mexeram com o emocional, que o abalaram psicologicamente e marcaram para sempre a carreira do profissional. Existem casos que mexem com a gente, balança, você sonha com aquilo ou tem pesadelo, aquilo entra na sua cabeça. No meu caso, um exemplo recente é da Isabella Nardoni. Não tem como não mexer, era uma criança de cinco anos. Eu tinha uma neta que naquele ano tinha essa idade. Eu não tinha como não imaginar, desvincular minha neta daquela menina. Para vocês verem o que é a vida, né? Nós estamos falando de fonte e eu falei do jardineiro. O delegado do caso Isabella é filho de um escrivão de polícia já falecido, que eu conheci e tinha uma relação muito próxima. Era o chefe dos escrivães na zona leste. E ele, o filho, entrou na polícia sabendo disso. Quando estourou o caso Isabella, ele era o delegado do caso. Resumo da ópera: para mim não havia segredo nenhum, sabe o que é nenhum? Nenhum. Esse caso aí foi incrível. E, nessa situação, ter o delegado como fonte era importantíssimo. Do mesmo modo, eu tinha fonte no mesmo padrão no IML e no Instituto de Criminalística. Então, para mim, foi um show de bola, dei sorte em tudo. Mas por cultivar as minhas fontes. 29


Tanto é que, quando terminou o caso, todos os peritos fizeram um jantar de confraternização no Terraço Itália, um prédio aqui em São Paulo, que tem um restaurante bonito. O restaurante é no quadragésimo quarto andar. Numa noite limpa, você tem a visão da cidade, é muito bonito. Então, estavam todos os legistas, todos os peritos criminais e o delegado. Eles convidaram um jornalista. Adivinha quem? Fui jantar com a minha mulher. Além de tudo aquilo que eu já sabia, tinha os offs [informação dada em segredo]. O delegado me contou um negócio, isso é interessante para nós. Tem coisas que são muito importantes na nossa percepção, na nossa avaliação, no nosso faro. O cara que tem a informação [polícia] não tem a nossa avaliação, a nossa perspectiva. Ele não imagina que tem um tesouro de informação nas mãos. O delegado contou que, na noite do fato, ele foi ao local, viu a ‘Isabellinha’ lá e depois chamou o pai na delegacia para tentar saber de alguma coisa, porque ninguém sabia de nada ainda. Ele, delegado de polícia, diante do cara, começou a chorar. O delegado chorava. Lembrava até a hora. Era mais ou menos uma hora e quarenta da manhã. O delegado estava chorando e o cara [Alexandre Nardoni, olhando para o relógio] disse assim: - Doutor, o senhor precisa de mim para mais alguma coisa? É que eu estou a fim de ir para casa tomar uma ducha. Isso é interessante pelo seguinte: isso, objetivamente, em termos de provas não quer dizer nada, mas, subjetivamente, quer dizer muito ou tudo. Você já tem uma ideia do caráter do cara, quem é o cara, da insensibilidade ou sensibilidade do cara, da preocupação do cara. Tinha um delegado chorando e o cara querendo ir tomar banho. Pô, é um absurdo isso. Eu esperei dois anos para contar esse detalhe, ao vivo, na televisão, no dia do julgamento. Entrei no Jornal da Record com a Ana Paula Padrão perguntando qual era a perspectiva. Falei: - Dificilmente não serão condenados, porque os jurados vão ser informados dos detalhes, muitas provas técnicas. Eu, pessoalmente, não tenho dúvidas - foi quando contei esse fato. Percival de Souza demonstra nas expressões como fica surpreso quando um caso é resolvido pela ajuda do acaso. Segundo ele, algumas histórias são desvendadas de maneira tão fascinante que merecem ser contadas para serem matutadas e admiradas por todos. Houve um caso, em 1998, de um promotor, Igor Ferreira da Silva, que matou a mulher grávida [Patrícia Aggio Longo], num condomínio pertinho da capital, em Atibaia [a 68 quilômetros de São Paulo]. Naquele dia, o delegado foi ao local e descobriu que o vigia do condomínio, que andava de 30


moto, tinha visto o cara que tinha matado. Ninguém sabia quem era. O vigia viu, porque ele [o assassino] desceu do carro e foi andando. Por conta desse descuido, o vigia que estava passando de moto cruzou com ele e o farol bateu no rosto. Dessa forma, ele conseguiu ver o rosto do cara. É incrível isso! Era um detalhe aquele farol. O vigia foi chamado para depor na delegacia. Os policiais foram buscálo e, nisso, o delegado estava lá na delegacia com o promotor [o assassino], que era o marido da mulher. Ele não tinha a menor ideia. Agora vejam o que é a vida. O promotor [assassino] estava na delegacia, porque o delegado queria saber de algum detalhe. O promotor e o delegado eram contemporâneos de faculdade. Ele estava lá, batendo papo, quando chegou o vigia da moto. Ele e o delegado estavam na sala, conversando, quando o vigia entrou. Ao olhar para o rosto do promotor, ele gritou: - É ele, é ele, é ele! Inacreditável isso. O delegado mandou colocar o vigia numa sala, ficou do lado do promotor, os dois contemporâneos de faculdade. Um era o delegado do caso, o outro, se saberia depois, o assassino. O delegado olhou para ele e falou assim: - Que merda que você fez, hein? O cara abaixou a cabeça. De novo, isso é subjetivo, não é prova, mas te ajuda a formar um juízo de convicção de uma maneira incrível. Só que isso não está nos autos, não está no processo. Está escrito isso? Não, mas é exatamente aí que você aprende. Esse é um ponto interessantíssimo de análise. Novamente o caso Isabella serve de exemplo, agora para falar, mais um vez, da importância que uma fonte tem na investigação jornalística. No dia que entregaram os laudos do IML do caso Isabella, laudo de gotas de sangue na garagem, no elevador, eu fiquei sabendo. Como quem cuidava do caso era esse delegado, filho do escrivão, eu liguei para ele e falei: - Calixto, eu preciso conhecer os laudos. Ele disse: - Para você não tem segredos, o problema é: como você vai ver isso? A preocupação dele era porque havia uns 500 milhões de coleguinhas lá na delegacia, dia e noite, de madrugada, uma coisa absurda, ininterruptamente. Eu respondi: - Pô, precisamos ver um jeito. A grande questão era que se eu entrasse lá, viriam todos atrás. ‘O Percival entrou, por que eu não entro também?’, aquelas coisas. Ele então teve uma ideia: - Vamos dar um jeito. Você vem, para quatro quarteirões na rua de trás, 31


eu vou mandar o camburão, insulfilmado [sic], você entra no carro da polícia, todo escurecido, o carro entra na delegacia, ninguém vai se tocar. Vai lá para o fundo, você desce, depois você sai do mesmo jeito e tudo bem. Eu disse: - Valeu! Parei lá atrás, na rua, encostou o carro, entrei no banco de trás, deitei no banco, tudo preto. Aquilo lá não era nem insulfilmado, era preto. Eu vi todo mundo na porta da delegacia. O carro entrou, desci lá no fundão, entrei pela escada de trás. Vi todos os laudos. Sabe quando você está ali, alimentado jornalisticamente por uma semana, no mínimo? Era isso. Era um tesouro que meio mundo queria estar no meu lugar. De novo, o negócio da fonte. Com o decorrer do tempo, essa classificação imaginária de A, B e C se torna muito sólida para você, muito segura. Normalmente, esse negócio da fonte forte, da fonte A, são muitas histórias, muitas matérias, muitos casos para você construir essa solidez. Não é assim: ‘eu fui com a sua cara e gostei de você’. Você tem uma trajetória. Não tem furo de nenhum dos lados. Eu já fiz matéria que os caras fizeram de tudo para eu dizer quem era fonte. Eu sei também que a fonte tinha certeza absoluta que eu não ia dizer. Tem cara que procura te ludibriar, te enganar, mas você perde a ingenuidade, porque você vai aprimorando, desenvolvendo os passos. Como esse cara que me colocou no camburão, por exemplo. Eu conheço o cara há anos. Sei que ele nunca vai aprontar nada. É uma pessoa decente, digna. Isso eu nunca contei, senão os caras também vão cair de pau nele. ‘Ah, por que só o Percival?’ E aí vira aquele troço, informações privilegiadas e tal. Na verdade, informação privilegiada é um elogio que se faz. De novo, nada é impossível. *** Experiência absorvida Se hoje ele ensina foi porque um dia teve a humildade de perguntar, de querer aprender, de aprimorar os conhecimentos. Percival de Souza diz que sente falta dessa curiosidade nos profissionais de hoje. Para ele, o bom profissional precisa trabalhar com a mente aberta, sedento por aprender com o outro. A troca de informações, de conhecimento, de confiança, só reforçam e melhoram o trabalho jornalístico. Eu penso do seguinte modo: eu tenho, hoje, quatro décadas dentro da área criminal. Acho que um colega, com o mínimo de sensatez, vai ponderar que brigar comigo vai ser meio complicado. Não estou dizendo que eu seja melhor que os outros, mas, pô, 40 anos de praia é uma coisa muito forte. 32


No meu tempo, quando eu via alguém mais experiente dominando a área, fazia de tudo para desfrutar da companhia dessa pessoa o máximo possível. Conversar, estar junto, ouvir histórias. Aliás, eu tive um mestre na polícia, que era de outro jornal. Era editorchefe do Notícias Populares - Ramon Gomes Porton. Ele sabia tudo sobre polícia. Quando eu comecei, ele já tinha mais ou menos o que eu tenho hoje, quarenta anos de estrada, e sabia tudo. Tornei-me amigo dele, me ensinou mil coisas, me explicou mil coisas. Tirava dúvidas com ele. Ficamos muito amigos. O fato de eu trabalhar num jornal e ele em outro era irrelevante. Hoje, percebo que isso é raro. Eu falei do Tim, da amizade com ele. Era comum: eu no Rio, meio perdidão numa situação, ele ia e mostrava o caminho das pedras. E eu aqui, vice-versa, em São Paulo. Há situações, por exemplo, que é melhor que vá uma jornalista, mulher, conversar com determinada pessoa, por uma série de razões. Parece mais meiga, mais suave, mais simpática, mais cativante, mais dialogável, mais frágil. Você tem que administrar isso aí. Não estou entrando no mérito dessas definições, estou dizendo que isso acontece. Existem pessoas que ficam muito mais à vontade conversando com uma mulher do que comigo. Portanto, nada impede que uma colega minha, devidamente preparada e instruída, treinada, vá e cumpra determinada missão. Tem várias meninas na Record que faço isso. E elas fazem isso muito bem, tem excelentes repórteres lá. Você dá o fio da meada e ela vai lá e se vira. Como eu não posso estar em todos os lugares ao mesmo tempo, já que eu sou prisioneiro, preciso ficar no estúdio, elas viram uma espécie de representantes minhas nos lugares. Se a reação for de idiossincrasia, porque eu faço um trabalho melhor e as pessoas ficam aborrecidas justamente por isso, porque tem gente na polícia, na Justiça, no Ministério Público ou nos presídios que prefere falar comigo, eu sinto muito, isso não é problema meu. Eu cultivei isso, agora eu vou ser cobrado por fazer meu trabalho? Quando alguém ousa falar alguma coisa, eu ridicularizo. Essa é a nova fase do jornalismo contemporâneo. Eu preciso explicar por que eu dou furo, eu tenho que me justificar porque eu ‘cometi o crime’ de dar uma matéria sozinho. ‘Onde já se viu, Percival de Souza? Você está maluco de dar uma notícia sozinho?’ Tenha dó, pô! Eu vou ter que me explicar? Isso é um atestado de incompetência incrível. Deveria ser o contrário. Eu acho muito bom quando os colegas conversam. Vou te dar um exemplo: no Rio de Janeiro, no jornal O Globo, tem, entre outros, um colega que é um dos melhores repórteres brasileiros, o Chico Otávio. Eu fiz um livro sobre aquele cabo Anselmo [Eu, cabo Anselmo], na época da repressão. Um dia, apareceu um cara morto num hotel do Rio de Janeiro e havia a suspeita de que ele fosse o cabo Anselmo. O grande buchicho 33


no Rio era sobre isso. Como eu convivi com o Anselmo durante 15 dias - nos encontramos no Nordeste, Sergipe, depois fomos para Pernambuco -, eu sabia e sei qual é a identidade que ele usava - esse exemplo me remete a uma pergunta que vocês fizeram lá atrás, da ética. Meio mundo já me perguntou, quis saber, se interessou por essa identidade do Anselmo, mas foi um compromisso que eu assumi de não revelar isso, um compromisso ético. Você pode até falar: ‘Mas o cara é um canalha, conspirou para a morte da própria mulher grávida, não merece nada’. Eu, Percival, prometi, dei a minha palavra. Pois bem. Com todo esse burburinho do corpo encontrado, o Chico Otávio me ligou do Rio: - Estou a fim de investir dias de trabalho nessa história, eu só preciso saber se vale a pena. Então eu disse: - Faz o seguinte, você vê a identidade que foi encontrada com o morto e me fala, aí eu te digo se vale a pena ou não. Ele me ligou horas depois. - É fulano de tal. Eu disse: - Desiste, esquece, não tem nada a ver. Ele só disse obrigado e nem questionou. É mais um exemplo da tal da fonte A. Anos atrás, aqui, em São Paulo, o governador do Estado era o Laudo Natel e tinha um cara muito amigo da mulher dele, dona Zilda, que tinha sido decorador do Palácio do Governo. Um rapaz que tinha um namorado que era um negro, alto, forte, cujo significativo apelido era “Fita Isolante”. Um dia prenderam o “Fita Isolante” para averiguação. Meteram ele numa carcerária aqui da delegacia dos Perdizes [zona oeste de São Paulo]. O “Fita Isolante” conseguiu ligar para o namorado, que falou com a dona Zilda, que falou com o marido - o governador de São Paulo, que foi pessoalmente à delegacia de madrugada. Chegou lá, acompanhado do capitão ajudante de ordem, que ficou esperando no carro. O governador entrou na delegacia, não tinha ninguém. Na época, as delegacias estavam experimentando um sistema de atendimento diferenciado. A delegacia que tinha menor ocorrência ou menor movimento fechava de madrugada. Essa aí ficava fechada de madrugada e era justamente lá que estava o “Fita Isolante”. O governador entrou no local onde ele estava, na carceragem. E, no momento, só havia o carcereiro, mais ninguém. A hora que o carcereiro viu o governador de São Paulo, abriu a porta. O cara ficou tão nervoso que bateu a porta e, sei lá o que aconteceu, a travou. O governador ficou trancado lá dentro com o “Fita Isolante”. Passaram-se uns 10 minutos, o capitão viu que o governador não 34


aparecia, saiu do carro de metralhadora na mão. Chegou lá dentro e estava o Laudo [governador] na cela junto com o “Fita Isolante”. Ele colocou o cano da metralhadora entre as grades e falou: - Governador de um lado, bandido do outro! Essa história era sensacional, mas eu ouvi só por cima, e ninguém tinha esse detalhe do “Fita Isolante”. A polícia inteira negava de pés juntos que esse fato tivesse acontecido. Eu tive um lance de sorte. Funcionava lá uma delegacia de atendimento de menores, que era uma delegacia de castigo a policiais - que é quando você tira um cara de um cargo bom e mete ele lá na delegacia de menores e esquece o cara lá, como forma de puni-lo por algum ato que ele cometeu que tenha desagradado os superiores. Esse delegado de menores tinha ido para lá, dias atrás. O cara era diretor de polícia, foi rebaixado, puseram ele lá. Me relacionava bem com ele, liguei para ele e falei: - Doutor, o senhor vai ser repórter por um dia. Ele disse que estava sabendo, então falei: - Preciso que você me levante isso tudo, minuciosamente. Você conhece meu jeito de trabalhar, tudo, tudo, tudo. Depois você me dá um alô quando estiver tudo pronto e a gente se encontra num lugar que não vai ser na delegacia, longe daí. Ninguém vai nos ver junto, você não falou nada, eu não ouvi nada, nós nunca nos vimos na vida antes, tá legal? - Deixa comigo – ele disse. Ele estava puto da vida com a administração superior da Segurança Pública, porque estava lá de castigo, mas estava no mesmo prédio. O cara fez um levantamento perfeito, inclusive essas coisas que eu falei do “Fita Isolante”, o apelido do carcereiro, o negócio do capitão, governador para um lado, bandido para o outro, tudo, tudo, tudo. Fiz uma página para o Jornal da Tarde, uma bomba. Eu preservei esse cara, porque ninguém nos viu lá. Os outros policiais perguntaram: - O Percival esteve aqui? O delegado: - Não! - Conversou com alguém daqui? - Não! - Esteve na esquina da delegacia? -Não! -Tem uma mosca que fala para ele? Isso é um negócio legal porque você usa o seu raciocínio. Às vezes, identifica pessoas. No caso, o cara tinha uma justa ira de estar lá de castigo e fez o melhor que ele pode, o resultado foi ótimo. 35


*** A fórmula Viver assombrado pela vigarice humana causa um desgaste psicológico indescritível. Os casos marcam, muitas vezes, ficam registrados por toda a vida. Apagá-los da memória é um ato impossível, mas Percival de Souza tem uma receita simples para apaziguar os males que cada história deixa na vida do jornalista. Desligar é meio difícil. A minha receita de administrar o clima pesado que fica após uma cobertura criminal é o fim de semana. Pelo menos um por mês, eu e minha mulher saímos da cidade. Eu tenho um guia de roteiros até 200 km de distância. Isso é o máximo que permitam que eu saia num sábado cedo e volte no domingo à noite. A gente vai e encontra natureza, árvores, rio, passarinhos, borboletas. Isso é necessário. Agora, esses choques térmicos são inevitáveis, você tem que aprender a dominar isso. Embora a Isabella seja trágico, tem outras coisas trágicas, muito difíceis. Vou dar dois exemplos recentes. Um é daquela menina que o namorado acabou matando, a Eloá [Cristina Pimentel, 15, sequestrada e morta em 13 de outubro de 2008 pelo ex-namorado Lindemberg Fernandes Alves, 22, em Santo André]. Aquele dia, nós estávamos ao vivo e na casa da Eloá havia um promotor designado pelo Ministério Publico para acompanhar o desenrolar. Ele estava lá em reunião com os caras da Polícia Militar para combinar a forma do cara sair e se entregar. Entraram as imagens da casa feitas por um helicóptero. De repente, um barulho lá: “tum, tum”. Um barulho forte. Eu estava com o Gottino [Reinado Gottino, apresentador do jornal à época]. Na hora, eu falei: ‘Gottino, parece que foi um tiro’. Automaticamente, instintivamente. Os policiais todos correndo. Pouco tempo depois, saem os caras com ela [Eloá] numa maca. Eu falei: foi baleada, a polícia invadiu. Mais alguns minutos sai o cara [Lindemberg]. Foi de repente, foi um choque que marcou e ficou. Outro exemplo também recente é o encontro do corpo daquela moça japonesa, a Mércia Nakashima, assassinada pelo ex-PM Mizael Bispo [em 23 de maio de 2010]. Quando acharam o corpo dela, novamente nós estávamos ao vivo. Aquele saco plástico sendo puxado, o irmão ajoelhado. Aquela época eu estava com a Luciana Livieiro [apresentadora da Rede Record]. Ela falou: - Percival, estou chorando. E eu respondi: - Vamos em frente, porque eu também estou. O curioso é que uns dois dias depois, eu fiquei sabendo que o corpo só foi encontrado porque um pescador que morava lá insistiu em procurar e achou. 36


Primeiro o carro, depois o corpo. E depois de encontrado o corpo, eu lamentei profundamente de não ter sabido disso antes. O pai da Mércia, um ‘japonesão’, sabendo que tinha esse cara pescador lá, foi falar com o cara, viu que o cara era nissei. Eles conversaram em japonês. E em japonês, ele pediu: - Por favor, ajude a encontrar minha filha. O cara ficou três dias diretos e achou. Eu acho esse diálogo um diálogo cinematográfico. Lamentei não saber disso antes, é um detalhe incrível. A tradição japonesa é fortíssima, a relação entre eles é uma coisa impressionante. Esses fatos são muito marcantes. No meu caso, eu sou homem que anda pela cidade e, por muitos lugares dessa cidade de São Paulo, fico me lembrando: aqui teve esse caso, aqui teve esse, aqui o cara foi encontrado morto. Avenida Rio Branco, Avenida Aurora, Terraço Itália, eu vou lembrando dos casos que me marcam mais, que estão na minha memória, não tem como esquecer. O prédio do Chico Picadinho [Francisco Costa Rocha], o esquartejador, é perto do Departamento de Homicídios, na Rua Aurora. Tem uma garagem da polícia. Sempre passo ali e me lembro. Só que depois, de alguma maneira, você convive com isso, até porque vão surgindo outros casos. Um novo caso supera o antigo. Mas você acaba tendo, vamos dizer, um sentimento prazeroso que é o êxito numa apuração. Para nós, o êxito se transforma numa grande matéria. Para o policial, o êxito é a identificação e a prisão do cara. São dois prazeres diferentes. Se você tem algumas fontes, como eu tenho na Divisão de Homicídios, é interessante conversar sempre com eles. É um lugar que eu gosto de ir de vez em sempre. Eles se reúnem e, todos os dias, tomam um uísque antes de irem embora, conversam sobre casos passados. E vários desses policiais fazem o que eu estava falando do jornalista que não fala com macaco velho. Eu vejo sempre o mais novo perguntando para o cara mais experiente se ele achava que ele tinha esquecido de ver alguma coisa, o que ele faria no lugar dele. Eu acho tão bonito isso. Você convivendo com tudo isso, o seu know how fica cada vez mais forte, porque vai chegar uma hora em que você vai ter a oportunidade de exercitar aquelas coisas em vários momentos, em varias situações. É isso que te torna diferenciado. Você vai conhecendo a magia, o significado de um laudo necroscópico, uma perícia, por que aquilo é importante, por que não se deve mexer nunca numa cena de crime. São detalhes impressionantes quando você tem um cara que sabe trabalhar com isso. Por exemplo, tem um caso lá em Goiânia de uma mulher que sequestrou uma menina na maternidade. Quando desconfiaram disso, a menina já era adulta, vinte e tantos anos. A sequestradora negava que tivesse feito isso e a menina adorava a mulher como mãe biológica. O delegado a chamou para uma 37


conversa. Evidentemente, ela negou tudo. O delegado reparou que ela fumava muito, um cigarro atrás do outro. Ele recolheu umas bitucas, fez um DNA comparando com o da menina. Negativo, não era mãe. Olha o cara: com uma bituca de cigarro. Olha o meu cigarro de palha lá. O cara que não manja nada disso vai perguntar: ‘O que esse cara quer com um cigarro?’ Mas ele não sabe, não tem a menor ideia e às vezes é um detalhe. *** Nem tudo é descoberto Engana-se quem pensa que o repórter não guarda frustrações da carreira. Há mais de 30 anos, um caso tirou o sono do jornalista e, ainda hoje, causa tristeza por não ter sido solucionado. Acontece também de você ter a sua quase que fixação pessoal. Eu tenho um caso do começo dos anos 1970 não esclarecido. Esse eu não tiro da cabeça. Uma professora, no bairro da Mooca, foi morta com uma facada nas costas saindo da escola. Nunca foi esclarecido isso, eu não esqueço esse caso. Maria Luiza Pinho, Rua da Mooca, 1.074, Colégio MMDC. Já está prescrito [quando o Estado perde o direito de punir pelo transcurso do tempo], já era, não tem mais jeito. Às vezes, tem histórias que nem são uma matéria para jornal, televisão, tipo essa do O crime quase perfeito. Se você for tentar explicar o crime quase perfeito para alguém, a pessoa vai falar: suicídio. E, na verdade, não era bem isso. *** O livro bate à porta Mais uma vez o acaso, aliado ao profissionalismo, sugere boas histórias. Percival de Souza, por sorte ou por acúmulo de excelentes investigações, recebeu alguns presentes ao longo dos anos – o tema de um provável livro foi um deles. Tem um caso que está na minha lista de prováveis livros. Quando aconteceu, um juiz corregedor que era muito próximo a mim, daquelas fontes A, me falou o seguinte: - Tem um cara que é investigador de polícia, está internado no hospital, com câncer na cabeça e antes de morrer quer fazer uma confissão. 38


Eu nem sabia quem era o cara. Cheguei lá, acabei descobrindo que era um investigador de homicídios que eu conhecia. Estava com um tumor na cabeça, iria fazer cirurgia e achava que não escapava. Ouvi a confissão de um caso já arquivado, de um menino de 16 anos, morto a tiros pelas costas. Esse caso passou pelas mãos dele, mas ele sofreu uma pressão violenta na polícia porque o autor do assassinato era um investigador da polícia que havia acabado de passar num concurso para delegado. Ele foi obrigado a deixar o caso de lado. O caso foi arquivado. Voltei para o Fórum, o juiz já reabriu o caso. Dias depois, abre-se a cabeça do cara para fazer a cirurgia, tumor benigno. Benigno! Esse cara se transformou no cara mais odiado da polícia, é um personagem incrível para um livro. Para você escrever um livro, eu acho que, primeiro, é necessário se sentir em condições de escrever. Quer dizer, eu sou capaz de escrever um livro? Eu tenho um texto mais ou menos? Você precisa ter essa certeza, tem de saber descrever bem a situação, descobrir se você dá para isso, se funciona ou não, se precisa aprimorar. Aquele livro que eu fiz sobre o Fleury, o Autópsia do Medo, foi um best-seller adotado num monte de faculdade, inclusive, em estudos avançados da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]. Mas eu tenho uma grande frustração. Eu gostaria de ter feito esse livro no estilo daquele Memórias de Adriano [autobiografia imaginária sobre a vida e a morte do imperador romano Adriano, escrito por Marguerite Yourcenar], na primeira pessoa do singular, mas não tenho talento, competência e arte para isso. Gostaria. Porém, acho que está compensado de outras maneiras, na investigação, fatos revelados pela primeira vez, depoimento difícil. *** Processo de criação do livro Hoje, pelas circunstâncias profissionais do momento, fico impossibilitado de fazer o que eu gosto, que é me dedicar exclusivamente ao livro. De tirar um tempo para o livro, pelo menos para escrevê-lo, me isolar e escrever. Faço uma bagunça que só eu entendo. Anotações para tudo quanto é lado, papel no chão, mas eu sei onde está aquilo que eu procuro. Gosto muito disso. O crime quase perfeito é minha ficção, os outros são realidade. Embora “O crime quase perfeito” seja pelo menos metade realidade, é uma realidade disfarçada. Do Fleury [Autópsia do medo] é muita pesquisa, do Anselmo [Eu, cabo Anselmo] muita pesquisa, do PCC [PCC e outros grupos] também. O livro do PCC, o que eu fiz com esse delegado da delegacia de menores, 39


eu fiz com vários caras de presídio. Disse: - Eu quero o molho desses caras na cadeia! Vocês percebem que no livro tem coisas da cadeia. Eu tenho um cara que é uma fonte A, que é meu amigo, foi diretor de presídio, está aposentado, e como ele tem uma liderança grande no sistema, a casa dele é um ponto de encontro dos caras da velha guarda e muitos da atual guarda. O atual secretário de Segurança Pública de São Paulo [Antônio Ferreira Pinto] foi secretário adjunto da administração prisional e é amigo desse cara - até nos encontramos na casa dele. Eu estava fazendo o livro do PCC [Primeiro Comando da Capital] e a turma reunida. Eu, mais uma vez, fiz aquele ritual de: ‘quero transformá-los em repórteres, é uma contribuição para a história, o que aconteceu em São Paulo com o PCC precisa ser contado detalhadamente. Isso é uma lição para a polícia de hoje, para a polícia do futuro, para os juízes, para os promotores, para todo mundo e só será possível se vocês me ajudarem. Eu quero saber os detalhes desses caras, como eram. Vou ser super chato, porque eu preciso disso e ainda vou dar um deadline [fechamento do material] lá’. Os caras foram muitos bons. Tanto que nesse livro, entre outras coisas, o cara que dirigiu o Deic [Departamento de Investigações sobre Crime Organizado], que é um departamento forte da polícia, tinha tido um diálogo áspero com o secretário de Segurança na época. Até achou que seria demitido, e eu explico a história no livro. Ele contou que estava na lista para ser morto, que um dia o neto deixou ele chorando meia hora sem parar, colocou uns bonequinhos à sua frente e começou a atirar, enquanto falava: - Eu não vou deixar nenhum bandido pegar você, vovô. O menino dizia isso, enquanto puxava um boneco que seria ele, o avô. Ele mesmo me contou isso. De fato, é uma cena incrível. Depois disso, ele deu um xeque-mate no alvo dos ataques. O Marcola [Marcos Willians Herbas Camacho], que era o líder do PCC, estava preso na carceragem. O delegado mandou trazer o cara para a sala dele. Marcola - chefe do PCC - e o delegado - chefe do Deic. Ele resolveu amansar o cara, mandou vir comida de fora, Coca-Cola, relaxou o cara e depois de tudo isso falou: - Tem dois homens aqui. Um na frente do outro. Eu sou o chefe da polícia e você é o chefe dos bandidos - e o pau comendo na cidade. - O que você quer? O chefe da polícia quer ouvir o chefe dos bandidos, o que você quer? - Ah, doutor, foi suspenso o dia da visita, o Dia das Mães - eu conto isso no livro detalhadamente. O delegado do Deic, surpreso, perguntou: - Só isso? - para nossa cabeça em liberdade, essa ideia não entra, não se cogita um troço desses. Mas no presídio é sagrado a visita da mãe. O cara que não sabe o que é isso nem sonha. Era importantíssimo, inclusive, para a liderança dele [Marcola] com os companheiros, porque ele é órfão de mãe. 40


O delegado disse ao Marcola que isso ele garantia. Só que o secretário prisional não permitiu. Ele cobrou o secretário de Segurança, mandou o secretário ir tomar naquele lugar. Na hora que eu estava ouvindo isso, eu disse: - Eu não sei se vou escrever tudo o que você falou. No mínimo, vai dar um rebu desgraçado, capaz de nós dois irmos para a cadeia. Sei lá o que pode acontecer, é muito forte. Mas, mesmo assim, eu quero saber de tudo, o que pode se contar ou não. Eu vou ser legal com você. Ele virou para mim e disse: - Faça o que você quiser. Eu tenho total confiança em você. Faça do jeito que achar melhor. - Obrigado pela confiança - respondi. Então, contei tudo, inclusive isso. Foi uma bomba desgraçada. De novo: nada é impossível. No Fleury, para escrever a história, eu usei uma tática. Falei para várias pessoas que era a história batendo à porta. ‘Quis o destino que eu representasse a história batendo à porta’. Você pode reagir de duas maneiras: abre a porta e me convida para entrar ou mete a porta na minha cara. O cara dizia: “Você é bom de papo, hein?” Inclusive, eu acho que foi um grande elogio quando um cara me contou coisas inacreditáveis. A hora que eu terminei de tomar o depoimento, o cara começou assim: - Você é um filho da puta, você é um grande filho da puta! E eu estático. - Mas você é um grande filho da puta! - Mas o que aconteceu? - eu perguntei. - Você arrancou de mim coisas que nem a minha terapeuta conseguiu! Para mim foi um elogio incrível. *** Saudosismo Percival de Souza ajudou a moldar o que viria a ser, à época, um dos grandes referenciais do jornal impresso no Brasil, o Jornal da Tarde. Trabalhou no veículo por mais de 30 anos. Hoje, olha para trás e vê como a qualidade do fazer jornalismo foi se deteriorando ao longo do tempo. A instantaneidade, na opinião dele, abocanhou o texto e a qualidade da apuração. Quando eu comecei a cobrir polícia, existiam jornais muito fortes na área criminal, Última Hora, Diário da Noite, O Dia. E quando eu comecei a 41


cobrir polícia no Jornal da Tarde, até hoje eu não sei por que eu fui escolhido para fazer isso aí se eu nunca tinha entrado numa delegacia de polícia, nem isso eu tinha feito. Então eu me perguntava: por que eu? Eles, do Jornal da Tarde, queriam tudo novo em todas as editorias. Novo estilo, nova linguagem, nova diagramação, tudo ousado. Era um jornal revista, como se classificava. Eu comecei fazendo uma coluna. Pelo menos os títulos da Agatha Christie [romancista policial britânica] eu usava. “O caso do grande assalto”, “o caso”, “o caso”, “o caso”. Para um jornal, cujo irmão mais velho era o Estadão [O Estado de S. Paulo], que só dava noticiário internacional na primeira página, o nosso era ousado, mas de modo refinado, até sofisticado, já que o negócio era polícia. Era o filhote do Estadão nascendo. Começou timidamente e foi ganhando espaço. Tudo que envolvia e envolve emoção, mistério, angústia, sofrimento, paixão, morte, tudo isso necessita aprofundamento. O ser humano que se interessa por isso lê livro, lê jornal, vê TV. Desde aquela época até hoje ele se interessa. O que eu noto atualmente é o seguinte: o jornalista que domina a área criminal, hoje, se tornou um pouco avis rara [termo para designar pessoa difícil de ser encontrada]. Eu vejo essa avis rara no jornal O Globo. Todos os dias, eu vejo pelo menos quatro jornais: O Globo, O Estadão, Folha de S. Paulo e Valor Econômico, sem deixar de dar uma folheada rápida no Agora e no Jornal da Tarde, que eu vejo com certa dor, porque para mim é um filho morto. Não é o meu jornal, não é o jornal em que eu passei 35 anos. É doloroso para mim. O jornal que eu ajudei a trazer à luz minguando para mim é difícil. Nesses lugares, isoladamente, você vê a cobertura diluída numa Redação que denomina a área policial de Geral ou de Cidades ou de Metrópole. Nessas editorias, todo repórter faz algo policial, que faz parte do cotidiano. Se você tem um caso de maior repercussão, naturalmente, até se mobilizam mais repórteres para escrever esse caso. Nem todos são enfronhados com a área. Acontece que quem é da área acaba sendo um coordenador ou explicando as coisas para a matéria. Agora, se você pegar, por exemplo, o caso do assassinato da juíza Patrícia Acioli [ocorrido no em 11 de agosto de 2011, quando ela chegava à sua residência, em Piratininga, Niterói] lá, no Rio de Janeiro. Indiscutivelmente, e, mais uma vez, a melhor cobertura foi do O Globo, coisa que pouca gente sabe que é a melhor. O crime foi de quinta para sexta-feira. Dias à frente, eles deram oito páginas. Tudo. Parece-me que isso derruba o mito de que brasileiro não gosta de ler. Nos dias subsequentes também houve uma cobertura robusta e os outros jornais ficaram meio tímidos, como se não tivessem ao alcance da dimensão da gravidade do caso. A manifestação do Conselho Nacional de Justiça, que é o órgão de controle externo do Judiciário, que forma uma comissão, foi 42


acompanhar a investigação, o presidente da mais alta corte de Justiça do país, presidente do Supremo Tribunal Federal se manifestou e, mais uma vez, O Globo fez o detalhamento. Na minha opinião, jornalista não deve acreditar no mito de que brasileiro não gosta de ler. Tem acontecido uma rapidez, quase que instantânea, e tem uma superficialidade também instantânea. Você tem coisa absolutamente irresponsável na internet, por exemplo, que chega a ser desqualificada. Tudo bem, isso pode acontecer na internet, mas o sentimento da sociedade, pelo menos a expectativa, é que o impresso tenha um detalhamento. Pelo menos é essa a expectativa, o que, aliás, é a obrigação do impresso, que nem sempre cumpre com o esperado. Entre outros, o caso da juíza tem um detalhe. Foram 21 tiros, ponto 45, a maioria no rosto e alguns no tórax. Na cara! As pessoas muitas vezes não prestam atenção em detalhes. Na cara! Foi na cara dela: “Tum”, “tum”, “tum”, “tum”, “tum”. Foi para desfigurar, acabar com a imagem, com a memória. Eles queriam detonála, eles a odiavam, ela era ameaçada constantemente. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que é a mais alta corte da Justiça estadual, tem uma Diretoria de Segurança Institucional - ó que nome bonito -, chefiada pelo oficial da Polícia Militar. Ela, Patrícia, já chegou a ter três seguranças. Isso saiu no O Globo. Essa diretoria reduziu os seguranças para um, para nenhum, e depois para um de novo. E ela continuava a ser ameaçada. O Globo reproduziu um fac-símile de um documento que ela mandou para o tribunal reclamando e que apresentava que esse único segurança devia usar o próprio carro pessoal ou o carro da juíza. Essa era a segurança dela. Pô, o que é isso? Isso é brincadeira? Juíza ameaçada de morte, milícia, grupo de extermínio, máfia das vans. Ela estava fuçando até com cara que roubava petróleo de navio, combustível de navio para revender em outros lugares. O fato é que o tribunal negligenciou a segurança dela. Esse assunto é desagradável, mas é verdade. Mas, pô, por que só O Globo deu isso? Porque os outros são incompetentes. Não é que não querem dar. Simplesmente, porque são incompetentes. Não sabem trabalhar, não sabem fazer, preferem o “lerolero”. Oito páginas. Só O Globo foi cobrir duas missas pela Patrícia. Os coleguinhas da maioria dos lugares diziam: - Missa? - torcendo o nariz. Na missa estão os familiares, tem juiz do país inteiro, estão todos lá e você acha que isso é uma merda? Pô, onde você está com a cabeça? Durante a missa, as pessoas diziam que o tribunal tinha que pedir perdão para a família. Tem uma matéria do O Globo com essa frase, com um 43


ex-cunhado dela. “Tribunal tem que ter coragem de pedir perdão pelo que fez à família dela”. Está lá, escrito. Mas por que você só lê isso no O Globo? Será que o cara falou isso escondido ou esbravejou para quem quisesse ouvir? Onde estavam os outros jornais? Eu acho que isso é uma mistura de insensibilidade, não saber fazer matérias que não sejam óbvias, não se preocupar com o diferencial e se intimidar a priori com as matérias naturalmente difíceis. A cobertura do caso Patrícia é difícil, mas tem mil maneiras de você descobrir aquilo lá. Eis que entra o sucessor dela em cena. Matéria digna, de novo, só no O Globo. O tribunal pegou um juiz que era presidente do Tribunal de Júri, no Rio, Fabio U. O cara assumiu a 4° Vara Criminal de São Gonçalo, onde estava a Patrícia. No primeiro dia, chegou com três seguranças, num carro blindado. Primeiro ato: mandou instalar detector de metais em todas as portas de entrada. Os jornais não percebem isso? Não sacam? Não se tocam? Pô, o que os jornais querem? Que vá alguém com megafone e diga: atenção jornalistas, o juiz chegou num carro blindado, atenção! É isso que eles querem? Acordem jornalistas! O que eu acho da minha geração é que naquela época existia uma consciência dos limites, dos vazios e se procurava preencher isso procurando quem sabia das coisas, quem tinha experiência, contatando os grandes repórteres do jornal. O que eles faziam, o que eles já fizeram, a história das matérias, o jeito de trabalhar. Isso era para o cara desfrutar, aprender o máximo que pudesse. Hoje se faz e pronto. Ainda existe isso, evidentemente, mas não é uma regra de comportamento. *** Receita De acordo com Percival de Souza, para conduzir um bom jornalismo não existe muito mistério. A receita é simples. Mas, antes, é necessário uma autoavaliação para que se enxergue, dentro de cada jornalista ou veículo, quais são as deficiências e a partir daí, saná-las com um trabalho árduo de aprendizagem. Aprender a questionar, aprender a ouvir, a respeitar, a estudar, a buscar aquilo que não se tem conhecimento e nunca se dar por satisfeito. Ir sempre além, buscando conhecimento. Eu tenho plena convicção de que o jornalismo deve olhar para si mesmo. Fazer uma introspecção. O que eu faço no meu veículo na área criminal? Olhe para você. Você conhece a polícia? Você domina a polícia? Você conhece a 44


estrutura da polícia? Você sabe como a polícia funciona? Você sabe o que é a Polícia Civil, a Polícia Militar? Você sabe o que é Polícia Ostensiva? O que é Polícia de Investigação? Você sabe o que é Polícia Judiciária? Você sabe o que é Polícia Federal, o que ela faz? Você sabe o que é o inquérito? Como se faz o inquérito? Você sabe o que é um processo? Sabe como começa um processo? Sabe qual a diferença entre processo e inquérito? Você sabe qual é o papel do promotor? Você sabe o que é o Ministério Publico? Você sabe exatamente o que um juiz faz? Você sabe qual é o papel do advogado? Você sabe, depois disso, onde vai parar, se parar? O que é a cadeia? Você sabe o que é [regime] aberto? Fechado? Semiaberto? Segurança máxima? Você sabe o que é isso? Se você não sabe, meu filho, você precisa saber, você tem que saber, você tem que aprender. Ah, eu não sei o que é DHPP. Precisa saber: Departamento de Homicídios de Proteção à Pessoa. Investiga todos os casos de assassinato de autoria desconhecida ou misteriosos. É um departamento muito importante. Ou eles funcionam ou o assassino não é descoberto, fica impune. Tem a Divisão de Crimes Contra o Patrimônio, sabe o que é isso aí? Tudo quanto é roubo e furto. Roubo – na mão grande -; furto – na mão leve. Você sabe onde desemboca isso? No presídio. Você sabe o quanto tem de ladrão no presídio? Entendeu o que é crime contra o patrimônio? Agora você aprendeu. Vamos para a outra lição e assim vai. Você tem que saber. Crimes contra a União, você sabe? Você sabe o que é União? Você sabe a diferença entre mandato e mandado? Você sabe o que é isso? Você vai escrever errado, vai ficar mal. Um cara com introspecção vai dizer: - Isso aqui eu não sei, preciso aprender, como eu vou aprender? Tem mil oportunidades. Curso para lá, curso para cá, semana de extensão cultural aqui e ali. Vai lá, estuda, aprende. Eu perdi a conta dos cursos de extensão cultural que eu fiz. Eu não sei se falta para o jornalista de hoje, acho que ele nem sabe o que eu estou falando aqui. Talvez nem saiba. Isso é curioso em termo institucional porque nós, imprensa, não temos a flexibilidade de outras instituições, inclusive a policial. Vou dar um exemplo: Esse caso da Eloá, que eu falei, demorou três dias. No fim, a amiga dela foi libertada. Depois, deixaram ela entrar de volta. Eu fiz uma crítica severa a isso, na TV, ao vivo, quando o coronel autorizou a menina a voltar. Nós entramos, estava com ele ao vivo numa entrevista, ele falou que, se fosse o filho dele, ele autorizava. Ele falou isso e eu falei: - Coronel, o senhor pediu a opinião da sua mulher para ver se ela concorda com o senhor? O senhor consultou o seu filho para ver se ele topava voltar? Porque eu imagino que numa decisão como essa deve consultar sua esposa e seu filho, né? - ele ficou quieto. Dias depois, fui numa solenidade da Polícia Militar, estava ele lá com a mulher. A mulher chegou para mim, na frente dele, e falou: 45


- Parabéns, Percival. Você falou aquilo que eu disse para ele. Eu não autorizava de jeito nenhum. Isso aconteceu no meio de meio mundo, na PM. Ele falou: - Pô, você me arrumou um problema lá em casa. *** A preguiça é um veneno Percival de Souza diz que para o bom jornalista não existem segredos. Se ele cumprir a tarefa, ao longo da vida, de preservar boas fontes, ele estará sempre munido de informações, e isso significa estar sempre um passo à frente da concorrência. Além disso, é preciso estar atento e não agir por pura obrigação. A falta de percepção e de ação numa apuração pode revelar o nível de um bom trabalho e de um trabalho feito com preguiça. Se você conseguir fazer o seu listão, A, B e C, dificilmente haverá mistérios para você. Essa agenda é sua, é seu trabalho pessoal. Não é aquela agenda que você carrega no meio da Redação, não. É uma que é apenas tua. ‘Ah, não tem ninguém lá hoje, já fechou o expediente’. Você tem o celular do cara e da casa dele. Você fala com o cara. Se você conseguiu, você merece confiança. Ele confia em você e você confia nele. Se está rolando um pepino e ninguém consegue falar com o cara que é o bam bam bam nessa situação, você fala. Pode ser sábado, domingo, feriado. Não existe isso, não tem matéria de sábado, domingo e feriado. Ou você usar o escapismo: ‘procurado, não foi encontrado’. Uma beleza isso! O cara é marginal, bandido, para não ser encontrado? Procurado e não encontrado. Parece um bandido foragido, Espera aí. Se você não soube encontrar, aí é outro papo. Às vezes, com as suas fontes, você consegue coisas que ninguém mais consegue. A reconstituição da Isabella [Nardoni] foi num domingo de manhã. Nós transmitimos ao vivo aquilo lá. É o tal negócio: você vê na hora a burocracia absoluta da maioria das Redações. Você vê o repórter de jornal, de rádio, outras TVs. Estão lendo a pauta que pegaram no domingo de manhã. Estão lá de gaiato, aquele troço todo rolando e eles lá. Eu sabia que ia ter no domingo. O que antecede o domingo? O sábado. Domingo está tudo fechado. Sábado está tudo fechado. Na sexta-feira, eu já combinei com o delegado dentro da delegacia. - É o seguinte: nós vamos entrar ao vivo e eu preciso saber dos detalhes. Eu vou estar ao vivo. À medida que a reconstituição for se desenrolando, nós 46


vamos trocar um fio por celular, você vai me falando. Tá aqui, está havendo isso, agora é isso. Não deu outra. ‘Agora, vão chegar no quinto andar, apartamento dos fatos, com uma boneca do mesmo tamanho e peso da Isabella.’ E eu lá: ‘agora vai acontecer isso, isso e isso.’ Dois segundos e pá: boneca na janela. Eu: ‘a boneca não vai ser jogada’. Os coleguinhas falavam: ‘vão jogar a boneca’. E eu: ‘não vão jogar a boneca’. Eu sabia, o delegado estava me passando tudo. A Record alugou o espaço de um colégio quase na frente do edifício. Fizemos um ‘andaimezinho’, ficamos ali. Meio mundo em volta, prestando atenção no que eu ia falar. Mas eu pensei nesse momento do domingo na sexta-feira. Do contrário, eu chegaria no local, no domingo, sem nada. Se eu fizesse isso, estaria aliando o trabalho a uma certa displicência ou má vontade. Acordaria só na hora para a importância do fato. Você precisa se preparar para isso. Como dito, eu vejo quatro jornais por dia, e, em alguns, em algumas linhas dentro de uma matéria, tem uma coisa legal que vai te ajudar a desenvolver algo. Até porque são tantas coisas acontecendo que você precisa ter um referencial. Há um tempo, eu tinha visto as estatísticas criminais recentes e mencionei num comentário, na TV, um detalhe: o automóvel estava se transformando no número um em quesito morte. O Diário de São Paulo, que é um tabloide - tirando Zero Hora de Porto Alegre, acho que é o único que funciona bem -, a partir desse meu comentário, fez uma matéria. Achei legal isso. Eles estavam antenados. Essas coisas de conteúdo de cidades raramente você vê na internet. Cabe bem com uma frase filosófica: “A alma não cabe na memória do computador”. Tem tudo na internet, tem muita coisa boa, mas tem tudo menos. *** Ainda é possível se surpreender Mesmo tendo vivido, visto e passado por experiências, muitas delas inimagináveis, o jornalista ainda se assombra diante das ações do ser humano. Na ânsia de acertar, por exemplo, muitos acabam errando de modo crasso. Uma vez fui até a Fundação Casa [Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente]. Na ocasião, uma comissão do Tribunal de Justiça visitava o local e eu fui acompanhar. Fiquei lá, curiosamente olhando 47


tudo. Passei por uma sala onde uma professora de matemática dava aula. Eu parei um pouco próximo à porta e ouvi ela dizendo assim: - Vocês precisam aprender a fazer contas, senão, quando vocês saírem daqui, como vocês vão dividir coisas que vocês vão roubar? Pensei comigo mesmo: meu Deus do céu, o que é isso? Compreender a realidade, viver o real, eu sou bem intencionado, eu quero mandar todo mundo para o céu para salvar do inferno, isso é coisa pedagogicamente que se diga? É um negócio absurdo. Dentro desse contexto, existiu o caso Liana Friedenbach e Felipe Caffé assassinados pelo “Pernambuco” e pelo menor “Champinha” [crime ocorrido em 5 de novembro de 2003, em Embu Guaçu, interior de São Paulo]. O “Champinha” que matou o casal de namoradinhos, naquela mata em Juquiti a menina era filha de um advogado. Foi um caso brutalíssimo. Logo em seguida soubemos e demos a matéria que contava que uma equipe social da Fundação o chamou [Champinha], mais ou menos em outubro, para ele preparar as coisas e ficar bonzinho, que ele ia passar o Natal em casa. Quando soube disso, eu sentei uma sessão de cacete nos caras do Centro Social, psiquiátrico. Pau geral. É o fim do mundo, porque, em termos formais, tem que ter uma equipe técnica interdisciplinar, com capacidade de avaliar a personalidade. E cadê essa equipe que não avaliou o que deveria? Ah, vá para o inferno. Um caso mais recente, inclusive, recebi há pouco dias o e-mail contado detalhadamente a história, no momento, eu estou furioso com essa história que é assim: houve uma rebelião na Fundação Casa e nessa rebelião uma assistente social foi até lá por amor à causa, que acreditava no ser humano, uma bem aventurada, idealista. Era ela! Os caras sabiam exatamente quem era ela, pois já trabalhava lá há algum tempo. Foi estuprada, por, no mínimo, 16 homens. Vocês sabem o que a Fundação fez? Mandou ela embora, foi a grande providência que eles tomaram. Ela era casada, o marido ficou com vergonha dela, saiu de casa. É uma situação horrorosa, um drama incrível. Não sei o que eu vou fazer ainda, se escreverei um livro, sei lá, porque é difícil, é delicado e ao mesmo tempo te deixa irritado. Eu fiz um livro chamado Meninos bandidos atacam: e nem sabemos o que fazer com eles, em que eu conto várias histórias dentro da Febem [Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, nomenclatura anterior à Fundação Casa], e uma delas é de uma menina de 16 anos que ficou um bom tempo dentro de uma quadrilha de adultos. Depois foi para a Febem e saiu para receber as tais medidas socioeducativas, que, na maioria dos casos, é uma piada de mau gosto. Quando saiu, ela ficou sabendo que havia um cara de 19 anos que disse que já tinha se relacionado sexualmente com ela. Após descobrir isso, ela foi 48


num baile em que ele estava - só que ela já era barra pesada, com 16 anos. No baile, todo mundo dançando, ela chegou com uma nove milímetros, no meio do salão. Puxou o cara, mandou ele se ajoelhar. Ele de joelhos, ela gritou: - Você disse que transou comigo? Eu jamais transaria com você, porque você é um merda. Ela falou alto, para todo mundo ouvir. O baile parou. - Você é um merda, um bosta. Agora pede perdão para mim. Enquanto falava, engatilhou a arma. - Pede perdão, fala alto: - Perdão. - Mais alto, grita! Pá! Um tiro, na cabeça do cara. Ela tinha apenas 16 anos. O universo do menor ou do infrator ou do adolescente, na minha opinião, é eufemismo semântico. “Ah, Percival, Não é crime, é ato infracional”. Isso é besteira. É um universo que você não tem muito conhecimento, até porque tem essa escala de valor moral, nesse caso da menina, acho que esse caso é emblemático, porque ela absorveu precocemente uma carga violenta de uma companhia adulta e sabe-se lá qual foi. É tudo muito complexo. Um outro caso que me chocou muito foi de um casal que estava parado num semáforo no bairro do Morumbi [região Sul de São Paulo], com um filho de seis anos no banco de trás - o menino Gabriel. Houve um assalto, os caras se aproximaram pela direita, onde estava a mulher, ela começou a gritar, o marido tentou descer, os caras atiraram. O cara atirou primeiro nela, deu a volta, atirou nele. Matou os dois, e o menino de seis anos atrás. Esse caso me emociona até hoje. A polícia foi até o apartamento onde o casal morava com o menino, eu fui junto. Chegando lá, eu vi um negócio que acabou comigo. Sabe o que é acabar com você? Te reduzir a frangalhos psicologicamente? Na porta do apartamento tinha uma placa de madeira pendurada e estava escrito: “Aqui mora uma família feliz”. Eu vi esse troço e me detonou. Eu ia fazer um link [entrada ao vivo] sobre esse caso duas horas depois. Eu entrei, falei pouco e fechei assim: - Estive aqui no apartamento onde mora uma família feliz, quer dizer, morava! - fim, só falei isso. Também nem conseguiria falar mais nada, foi muito forte esse caso. Passaram-se algumas semanas, o Departamento de Homicídios descobre o autor dos tiros, pega o cara. Então fui até ele esperando ver um monstro. O monstro tinha 14 anos, um moleque. Você não sabe nem o que pensar. *** 49


Uma matéria ensinada Percival de Souza não se cansa em chamar a atenção dos jovens jornalistas para ouvirem os mais experientes. Entre as tantas matérias que escreveu em sua vida, ele se recorda de uma em que o olhar apurado do diretor de Redação lhe rendeu uma grande matéria e mais uma página de ensinamentos. No Jornal da Tarde, uma vez, eu vi na cidade um bando de moleque praticando furto. Eu liguei para o jornal, pedi um fotógrafo. Mandaram um excelente. Ficamos por ali um bom tempo, conversei com vários meninos e voltei para o jornal. O diretor da Redação era o Mino Carta, um diretor que se interessava por tudo, o que é raro hoje, já que a maioria deles conversa com os editores e olhe lá, se fecha numa sala que tem um vidro, e só. O Mino me chamou. - Como que é esse caso aí? Eu expliquei, ele falou: - Você já leu o livro “Oliver Twist”, do Charles Dickens? Eu falei que não. Ele continuou: - Escreve essa matéria amanhã. Compra esse livro, vai para casa, vem e escreve amanhã. Fui na livraria, comprei o livro e fui para casa. Meninos, pequenos ladrões em Londres, final do século XIX. Era igualzinho o que eu tinha visto. Um adulto comandando pequenos ladrões. No outro dia eu cheguei na Redação. Ele falou: - Leu? Eu disse que sim. Ele perguntou: - A matéria não vai ficar melhor? - E como! - eu falei. Ele sugeriu que eu fizesse um box, com um resuminho do livro para situar o leitor. Isso é uma coisa que praticamente não existe. Você precisa ler isso, precisa ler aquilo, melhor você ler isso aqui. Os jornalistas não se interessam em perguntar, em querer saber. *** A vaga existe, cadê o jornalista? Percival de Souza diz que enxerga boas oportunidades no 50


jornalismo policial, mas que, para isso, o profissional precisa se dedicar de forma especial, precisa saber abnegar de algumas coisas, deixar a inocência e a fragilidade de lado e, antes de tudo, repensar, questionar e se auto avaliar. Essa área é fértil. Nos veículos principais de comunicação você tem uma equipe de assuntos especiais, não é nem falar jornalismo investigativo. Na Record nós temos um, que, para nós, é Núcleo de Reportagens Especiais. Ali tem várias coisas que você decide psicologicamente, o que eu conto no livro do Tim. Por exemplo: usar um carro blindado. Você decide isso. Ninguém pode decidir isso por você, você resolve e é meio fantasmagórico ser preciso um carro blindado. Colete a prova de bala, eu preciso? Só você pode decidir, mais ninguém. Se eu sou seu chefe e você está na fronteira com o Paraguai, você me liga e pergunta: - Ô, Percival, atravesso ou não? É você quem decide! É uma área do jornalismo muito carente. Faltam profissionais com garra. Mas essa é uma coisa pessoal muito forte, você desligar de tudo na sua vida, se meter lá não sei onde. Não é mole você ficar cinco dias fora, uma semana, dez dias fora, desligar dos seus vínculos afetivos. Quando o pessoal vê a matéria: “pô, legal”, mas ninguém quer saber como você fez, ninguém. Tirando um ou outro na própria Redação. O resultado final é legal, mas ninguém se importa com o seu padecimento. Na verdade essa área é meticulosa, cuidadosa, planejada, elaborada. Eu acho que é um espaço meio garantido para quem se dispõe a fazer, quer dizer, que tenha condição de fazer, tem que saber fazer. Tem uns coleguinhas sem noção. Uma vez, eu estava fazendo uma reportagem para o Estadão sobre tráfico de drogas. Estávamos em Dourados e seguiríamos para o Paraguai. Eu iria encontrar o fotógrafo no café para sairmos. Eu, vestido o mais normal possível, o cara surge com aqueles coletes de fotógrafo, cheio de coisa com uma imprensa estampada no peito. Olhei para ele e falei: - Meu filho, nós vamos para a Disneylândia? Para onde você está pensando que vai? Pra Disney, para Orlando? Nós vamos para o Paraguai, meu filho, que palhaçada é essa? Quer tomar um tiro? Tem coleguinha que é assim. Uma vez uma repórter saiu com um fotógrafo desse tipo, lá no Pará, numa balsa, num rio cheio de contrabandista. De noite, o cara levanta no meio da balsa com uma máquina fotográfica com flash, do outro lado: pum, na perna da repórter. Tomou um tiro. Pelo amor de Deus, que irresponsabilidade, você precisa saber dos limites, não é assim. Claro que nem toda matéria investigativa é isso. Evidentemente que não, mas você precisa estar preparado para agir 51


nessas situações. De modo geral, tem um período de adaptação no veículo para você se familiarizar, saber como é, entender que te ensinaram algumas coisas que nem sempre são assim, tem muito disso também. Mas é preciso encarar com garra, com fibra. Saber abnegar muitas coisas. Isso tudo para a gente pensar: jornalista domingo à noite, hum, jornalista no Natal, hum, jornalista no Ano Novo, hum, jornalista no feriado, hum, jornalista e namorada apaixonada, hum, jornalista e o noivo, hum. Você vai? Porque é fácil ficar falando sou jornalista, sou jornalista. Você vai? Vai abrir mão dessas coisas? Esse é o lance. O que me remete a uma provocação para vocês, porque hoje existem muitas deficiências nas Redações, mas vocês mesmos têm que responder. Tem gente naquela Redação para fazer aquilo que você gostaria que fosse feito? Tem alguém lá? Você escolhe, conhece alguém? Conhece alguém com sensibilidade, competência até para pautar essa matéria? Eis a questão!

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CAPÍTULO UM MÁRCIA

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Erva daninha O sol escaldante o viu preparar a terra. No milharal, juntou as palhas e jogou o que tinha às mãos entre os ramos do cereal, como se fosse também palha. Atirou líquido inflamável. Riscou o fósforo e ateou fogo, como se queimasse ervas daninhas para eliminar a praga do meio da plantação. Fitou o fazer de cinzas por alguns instantes até deixar o local a passos calmos. O serviço do dia estava feito. *** Arrependimento Na sacada do prédio, o silêncio e a cadeira de área azul sustentavam Nelir, que abraçava Mércia ao colo. As duas olhavam para o nada, fixamente. Mesmo sem piscar, os olhos pareciam bastante hidratados pelas lágrimas que secavam sobre os dois rostos. A mãe sentia-se na obrigação de oferecer conforto à pequena, por mais que nem mesmo ela o tivesse. Mércia estava arrependida, queria nova chance para reparar um ato falho com a irmã, morta havia dois dias. A inocência dos quatro anos insistia em não respondê-la: - Por que eu não emprestei meu estojo de maquiagem para a Márcia? *** A música não tocou As panelas batiam, o rádio murmurava e Nelir o acompanhava com assobios. Estava radiante, pois, há pouco, soubera que seu sonho estava para se realizar. Uma menina estava em seu ventre, encomendada a vir ao mundo. Pote de ouro para quem tinha somente um garoto, gerado há sete anos, de nome Marcos André. Nelir era mulher de sorriso aberto e fala fácil. Os traços do rosto pareciam feitos sob encomenda para alguém que não escondia as gargalhadas – disparadas constantemente, dia ou noite. Alguém que não tinha vergonha alguma das rugas que a felicidade traz, por mais que, em alguns momentos, tenha sido interrompida pelas dificuldades de uma vida de poucas regalias. Os tempos eram de vacas magras. A casa, localizada no município de Sarandi, vizinho a Maringá, tinha poucos móveis e nada de pintura. 55


Carro, só os que prestavam carona. A humildade sempre esteve sob o mesmo teto de Nelir. A casa era seu shopping. A cozinha, seu parque de diversões. Era nela que a dona de casa preparava o jantar para o marido que logo chegaria do trabalho. O arroz dividia a atenção com as músicas que se misturavam ao cantarolar da mulher de cor mulata. Quando feliz, ela subia ao palco, era cantora renomada entre as paredes úmidas da casa. A voz era mais bonita quando tinha de atravessar um sorriso sincero. A mão controlava a colher, mas mal sabia o que estava fazendo ali. Nelir mexia o alimento sem perceber. Estava nas nuvens do céu que é ser mãe de uma menina. Com um sorriso empalhado, a dona de casa enfiou os dedos na casca do ovo e largou-o na frigideira com pressa, para aumentar o som do rádio, que resmungava baixo. Aproveitou para trocar a estação – pôs na Rede Melodia, onde a voz de Claudemir Beltran anunciava as atrações do programa Força Jovem. Nelir voltou ao fogão e passou a jogar o óleo por cima do ovo - Marcos, o marido, gostava de gema firme. Os assobios também recobriram a música, que logo acabaria. Do outro lado dos alto-falantes a voz levantou-se, mas a mulher só ouviu silêncio. Os olhos se perdiam janela afora; procuravam um nome para a nova diversão da casa. Naquele lar era tradição: os filhos tinham nomes com as mesmas letras e, de lambuja, parecidos foneticamente com o que o pai ganhara. O primogênito era a condenação, prova cabal do gosto da mãe, que, para ele, nem se deu ao trabalho de pensar em outro nome que não fosse o mesmo do amor de sua vida, Marcos. No entanto, ainda havia um vão quando se pensava em como chamar a menina. Desde que soube o sexo da criança, Nelir tirava todas as manhãs para pensar em um nome. Também usava as tardes, quase sempre. Descansava as noites, que eram usadas para imaginar como seria o rostinho da filha – que sempre aparecia aos gargalhos. Nelir debruçou o braço na janela, enquanto observava o borbulhar do feijão. Levou a mão à barriga e a acariciou. Vendo-se distante, sentiuse tola, mas acusou um sorriso de canto de boca. Quem é que não queria ser tolo feito ela? Voltou à realidade das panelas e decidiu abrir os ouvidos para o rádio. - Olá, olá! Bom fim de tarde a você ligadinho na Rede Melodia! Agora são dezenove e trinta e dois, e faz bastante calor aqui na Cidade Canção. Temos um ouvinte na linha? – questionou o locutor. Três segundos de silêncio. - Olá, temos alguém? Com quem eu falo? 56


- Márcia – balbuciou a tímida voz. - Márcia? - Isso. - Márcia do que? - Márcia Andréia. Nelir teve um estalo. Mumificou-se, largou a colher na panela e buscou a cadeira mais próxima para se segurar. Sentou-se, ou cairia. Já havia esquecido a função das pernas. - Olá, irmã. Seja bem-vinda à nossa rádio. Você fala de onde? - De Maringá mesmo. - Olhe só! Daqui mesmo! Qual igreja? - Sou da IPR. - Presbiteriana Renovada, né? - Isso. A mãe permaneceu em estado petrificado. A colher queimava junto à comida, que já cheirava a carvão. Marcos reclamaria da refeição mais tarde. - Qual música você vai pedir, Márcia? A música não tocou para Nelir. Havia ganhado na loteria. O locutor lhe entregou o prêmio: o nome da filha. Ela se chamaria Márcia Andréia. *** O despertar Os grandes pastos da estrada ficavam para trás. Pela janela do carro, um Chevette 1978, Nelir e Marcos observavam os gados aos montes. Iam a Presidente Prudente, interior de São Paulo, rever familiares. A barriga da mulher quase encostava no porta-luvas. Grávida, já havia esperado por oito meses. Antes da viagem, perguntara ao médico se podia passear por uns dias. Foi liberada. “Se você está confortável, ela vai demorar umas duas, três semanas ainda pela frente”, garantiu o obstetra. Mesmo assim, Nelir se preveniu. A Lua estava trocando de fase – o que, para muitos, propicia o nascimento de bebês. Em uma sacola, organizou roupas para o hospital e pijamas, caso acontecesse a alegria do parto por lá. “É bom levar, não é, meu amor? Já estou bem gorda, né?”, perguntou ao marido. Marcos concordou, fazendo piada. “Está mesmo.” O balançar do carro lhe provocava enjoos. Nelir fingia estar tudo bem. Marcos já estava mais preocupado. Trocava olhares com a estrada e com Nelir, alternadamente. A viagem não era longa, mas, com a atenção 57


do motorista redobrada, demorava mais que o previsto. - Amor, estou começando a sentir a barriga apertar. Será que é a nossa menininha vindo aí? Nelir não sabia que eram contrações de trabalho de parto. Não havia tido com o primeiro filho. O carro apontava em Taciba, cidade paulista interiorana, próxima a Presidente Prudente. Marcos procurou ajuda rapidamente. Estacionou no hospital mais próximo que encontrou e avisou sobre as contrações. Nelir foi posta em uma ambulância e encaminhada a Presidente Prudente. Assim que chegou, viu as portas do centro cirúrgico se abrirem para escancararem um médico que já estava a postos. Brincou com ele. Avisou sobre a previsão do outro doutor, que acabava de cair por terra, de duas a três semanas, e disse que estava pronta para aquele momento. Entre as muitas dores, conseguiu achar uma gargalhada. Marcos esperou, aflito, segurando um jornal que mal lia. Nelir não viu mais nada. Fechou os olhos, para que Márcia Andréia abrisse os seus para o mundo. *** O canto da princesa Nelir buscava o tom. Balbuciava a música, fazendo da voz um ioiô. Márcia, de apenas três meses, estava no colo, quietinha, cabeça no ombro da mãe que cozinhava. A casa estava sem ninguém. Os talheres, já ajeitados sobre a mesa, só ouviam o cantarolar de Nelir e o eco. A sensação era de castelo vazio. Com ópera. E com princesa. O vento tremelicava a janela frouxa. A vibração da voz de Nelir, abafada pela boca cerrada, também a fazia mexer, mesmo que imperceptivelmente. O espetáculo era bonito, bem ensaiado. O público, se houvesse, com toda certeza o aplaudiria de pé. Por ora, só Márcia e seus olhos atentos acompanhavam o dueto. Às vezes, o som da lata da panela dava compasso à música. Nelir balançava sobre os pés, gangorreava de um lado a outro. A menina a acompanhava, sem um murmúrio sequer. Estava quieta, mal sabia a mãe, preparando o número principal do dia. Mais duas canções se arrastaram até Nelir sentir um vento quente tocar seu ouvido, acusado pelo janela semi-aberta. Deve ser os ventos de verão – que, aliás, sempre vinham acompanhados pela poeira marrom da cidade –, deduziu. Deixou o fogão com Márcia no colo, caminhou até a janela e a fechou. Voltou às panelas, deixando o rastro do cantarolar. Mais uma vez o 58


sopro quente a estapeou as costas. Não era possível. Vinha de onde? A casa nunca havia liberado a entrada de ventos de fora. Nelir quis pegar o ar com a boca na botija. Resistiu, incomodou-se, mas fez silêncio. Na cabeça, a música ainda tocava forte, quase estourava os tímpanos. O ar vinha de perto. Vinha com som também. - Huhuhuuum – bem baixinho. Uma pausa. - Huhuuum. A mãe demorou a acreditar quando notou o improvável. Com ar de quem dissimula a travessura, Márcia resmungava em ritmo, como a mãe fazia momentos antes. Encantava. Nelir teve de prender o ar e o riso para ouvir mais atenciosamente a voz que nascia. Queria apreciar, mas não se continha por dentro. Fingiu-se de pedra, mesmo com o interior esperneando de alegria. - Ai, meu Deus! Não acredito! – pensava, com voz chorosa. Márcia abria a boca ao máximo, buscava o oxigênio que mal conhecia para poder continuar a surpresa. Não foi preciso muito tempo nem muitas sílabas a mais para que Nelir já estivesse entregando o ouro. Coagida, rendeu-se a sua joia. Molhou o sorriso com as lágrimas e passou a cantar, em baixo volume, com a filha. A refeição fora esquecida. As duas se alimentavam de si mesmas. Ficaram ali por mais algum tempo – que, para elas, não existia. Sublime apresentação, coroada com um abraço apertado da mãe na filha; e uma certeza. - É a coisa mais linda que já vi – garantiu Nelir a si mesma. *** A irmã caçula Foram quatro anos de vida para que Márcia ouvisse um choro parecido com o que entoou quando nasceu. Para que visse um rostinho, ainda enrugado, que lembrava em quase tudo o seu. Para que ganhasse a melhor amiga que podia ter. Nascia, em março de 2001, Mércia Andressa, sua irmã caçula. Márcia não se continha. Olhava o bebê e sentia-se mais amiga, mais adulta, mais mãe até. Sentia no peito a obrigação de oferecer carinho àquela menininha, tão pequena quanto as bonecas que dividiam quarto com ela. Alguns dias se passaram desde que a nova moradora havia chegado à casa. Nelir estava na cozinha. Márcia, no quarto do bebê, observando o conteúdo do berço fundo. Para a mãe, era impossível que uma criança de quatro anos conseguisse alcançar a mais nova no berço. 59


Não passaria de pôr os braços entre as fendas de madeira, no máximo. O longo corredor mostrou a surpresa. Márcia apontou, cambaleante, com a irmã no colo, sorridente que só. - Mãe, mãe! Eu peguei! Peguei sozinha! As pernas de Nelir bambearam. Espantaria Márcia se soltasse alguma palavra enérgica naquele momento. Fez de conta que adorou a ideia. - Ah, você pegou? Que legal, Márcia. Dê ela aqui à mamãe, dê. Márcia estendeu a criança. - Como você pegou ela, meu amor? – perguntou, ressabiada, a mãe. A menina levou-a ao quarto e explicou a estratégia. - Fiz bem assim, mãe. Fiz bem assim. Teatralizando, a menina refez a cena. Alinhou a banqueta que a mãe havia esquecido no quarto ao berço, ajoelhou-se, abaixou-se ao máximo e fez o gesto de pegar o neném pelos vãos. Ainda na banqueta, ergueu Mércia, até tê-la segura no colo. Sentiu-se eufórica, responsável o bastante para criar uma filha. Nelir quis repreendê-la, mas desistiu, vendo tamanha alegria. - Filhinha, quando você quiser, peça pra mamãe que eu te dou o neném. Não pegue ele sem eu ver não, tá? Márcia concordou com a cabeça. O dia estava ganho: teve em seus braços a pessoa mais parecida com ela em todo o mundo. *** Diva de Nelir No banheiro, Márcia era a diva. Quando empunhava o microfone, a mangueira do chuveiro, e soltava a voz, molhava os olhos da mãe - de lágrimas, que ela sempre empurrava de volta para dentro ou dizia ser “água do chuveiro”. Jogada entre os azulejos, nenhuma gota sequer arriscaria duvidar que aquilo era mesmo dom. Não existiria outro jeito de entoar as músicas daquela maneira; era coisa de quem ensaiava desde a barriga da mãe. A menina já sabia dividir os tipos de voz – barítono, grave ou baixo. A mãe foi quem ensinou. E sempre ali, no mesmo lugar de sempre: o banheiro, o conservatório da estrela Márcia. Nelir sabia do talento de sua cria. Cobrava empenho, mantinha o rigor, sempre disfarçado com paciência. Didática de mestre. Todos os banhos seguiam a mesma linha: a mãe erguia sua voz madura antes; a aprendiza a acompanhava e, depois, tentava sozinha. Os deslizes apagavam tudo. Bastava um, e elas começavam do zero mais uma vez. 60


“Vamos de novo, filhinha”, incentivava. Não demorou para que Márcia mostrasse o resultado das lições em público. Bom para igreja, presenteada com o talento temporão. *** Queixo aberto - Segura, Márcia! Segura! A bicicleta vermelha carregava Marcos André e a irmã, que rampeavam meio-fios, num domingo de manhã. - Uhuuul! Corre mais, Marcos! – se divertia Márcia, agarrada na garupa. Marcos obedecia. Acelerava as pernas nos pedais com força pouco imaginável para um menino de 14 anos. Os dois também venciam ladeiras. Arriscavam-se em descidas íngremes como dois experientes pilotos de bicicross. O vento no rosto era prazeroso, trazia consigo a sensação única de liberdade. Marcos tomou fôlego. - Vou rampar aquele meio-fio mais alto, Márcia. Segura firme. Pedalou com gosto. De repente, um estrondoso barulho. Um tombo. Márcia no chão. Desespero. - Acho que machuquei o queixo – avisou Márcia, estirada no chão. O irmão ignorou os ferimentos nele. Havia percebido o que a menina nem reparara: sangue, que escorria por seu maxilar. Desesperouse. Márcia percebeu que algo estava errado. Fez cara de dor e chorou, contidamente. Marcos André correu para casa. Foi empurrando a bicicleta, desesperado. A irmã ia correndo ao lado, impulsionada pelos gritos do mais velho. Chegou gritando pela mãe. Precisava de ajuda, pois Márcia, já quieta, continuava sangrando. Nelir veio correndo. - O que aconteceu?! - A gente caiu, mãe. - Como?! - Ah, eu fui pular o meio-fio, mas não consegui. - Ai, meu Deus. E agora? Estou sem carro. Como vou levar você, filha? Não teve outra maneira. Nelir ajeitou Mércia, ainda bebê, no carrinho, juntou os documentos e correu para o hospital municipal. O sol era castigador. Mas era menos que ver Márcia ferida. Entraram, 61


esperaram a grande fila de praxe acabar e, então, foram atendidas. Márcia havia parado de chorar havia pouco. O médico, experiente, convidou-a a brincar. - Vamos brincar de fantasma, mocinha? Convencida, ela aceitou. Os funcionários do hospital a embrulharam em faixas, prenderam os braços e pernas dela, para que a sutura fosse feita. Logo foi avisada. - Vamos ter que dar uma picadinha aí, tudo bem? Foram dois pontos. Os olhos se espremeram e a choradeira foi intensa, mesmo que Márcia fosse corajosa, sem manhas. A prova foi dada nas horas seguintes. Já estava correndo para todo o lado de novo. Em dois dias, arrancou os pontos com a mão, sem ajuda de ninguém. A cicatriz no queixo e o medo de subir na garupa da bicicleta vermelha ficaram. *** Gracejos Nelir estendia as roupas quando Márcia surgiu, resmungando. Andava com as pernas abertas e as bochechas cheias de ar. Olhando para o chão, a menina expressou-se com tom alterado. - Filha, não vá deixar suas amigas sozinhas, hein?! Todas são suas amigas! – exclamou, como se a si mesma. - Ah, menina! O que você está fazendo? Está me imitando, é? – questionou a mãe. - Claro que não, mãe. Estou falando sozinha. - Está falando sozinha, é? E quem é essa gordinha aí? Márcia não teve como responder. Acabou-se em gargalhadas, e correu. Ela imitava a mãe. Nelir, sem alternativa, também descambou a rir. Partiu atrás dela, fingindo repreendê-la com leves tapas no bumbum. A menina não tinha forças para correr. A mãe, nenhuma para alcançá-la. Gastavam toda a energia em risos. *** Boneca morena Esparramadas, as bonecas brincavam no chão cor de poeira da casinha improvisada de lajotas. Havia uma mais agitada. A mais bonita - morena, distinta. Não parava de rir. Mércia também era um dos 62


brinquedos para a irmã mais velha. Os olhos azuis das outras bonecas eram claros demais: escancaravam inveja. Fitavam Mércia, mas tinham de se resignar ao fato de serem feitas em série. Ficavam, é claro, jogadas de canto pela dona. As roupas que vestiam todas elas - inclusive Mércia - eram desenhadas por Nelir. Costurava-as à mão. A mãe também fizera a casinha, com direito a móveis e pia – que até água tinha. Os modelitos vestiam bem a filha mais nova. Márcia se esbaldava. Selecionava figurinos, promovia fashion weeks; obrigava a irmã a dar voltinhas em torno de si mesma para que analisasse as peças de roupa. Na passarela, desfilavam mais gargalhadas do que qualquer outra coisa. As duas não se aguentavam. Era de doer a barriga. Mércia corria para mostrar à mãe, que também caia no riso descontrolado. - Mamãe, tô bonita? Nelir gargalhava. - Está, sim, filhinha. Mércia logo saía correndo, misturando gritos a risadas. Nelir esperava esse momento para chamar Márcia de canto. - Filha, você não está judiando de sua irmãzinha não, né? - Claro que não, mãe. Ela gosta, você não está vendo? Até o brinquedo mais inerte veria. *** Os condôminos do pé de manga No quintal, o pé de manga descansava, exaurido. O dia fora cansativo. Foram poucos os momentos em que as crianças não estiveram dependuradas em seus braços, feitos frutos podres. Aliás, os frutos dessa mangueira sempre foram podres. O chão sempre foi o mesmo: mangas nascidiças, jogadas, apodrecidas e envoltas de mosquitos, os únicos a arriscarem por a boca na podridão. A árvore era infrutífera, mas nunca deixou de florescer a alegria dos pequenos, que ofereciam conforto à planta que nunca pôde ser mãe saudável. Se não existiam mangas, quartos tinham de sobra. Os galhos eram apartamentos de luxo. Os inquilinos, exigentes, cobravam boa vizinhança. Márcia era a síndica; tinha rigor e privilégios. Morava na cobertura. Duplex. Lá do alto, os olhos de falcão maltês não deixavam escapar nenhuma indisciplina. Ai de quem infringisse as leis vigentes no Condomínio Pé de Manga! O fez, logo era convocado à sala sindical de 63


reuniões. A bronca era sonora. Mas Márcia era mais mel que manga podre. Atenciosa, preocupava-se sempre com o bem-estar dos moradores, perguntava sobre a qualidade dos imóveis, atendia às constantes reclamações de falta luz – todos os dias, quando o sol se punha, os apartamentos tinham de ser abandonados. Não foram muitos problemas enquanto esteve à frente do condomínio. A síndica só se assustara com um acidente, quando, certa vez, um menino caiu do andar em que morava. Fôra a maior dor de cabeça. O sol já estava se guardando quando o morador do quarto andar se distraiu em sua sacada. Displicente, deslizou os pés no parapeito. Voou até o chão. Estupefatos, os outros moradores correram para ver. Alvoroçaram-se como pombas urbanas ao grão de milho. Tragédia, pobre menino. Teve de ser levado à casa de Nelir com ralões de terceiro grau de ardência. Márcia, vendo-se a maior autoridade no local, comandou a operação de resgate. Pediu a outro menino que o pegasse pelo tronco. Regeu outros dois para que se dividissem entre pernas e braços. O acidentado, de cinco anos, queixava-se das fortes dores no ralado do cotovelo. A remoção fôra eficiente. Ao chegar ao sofá, o menino choramingas viu Nelir misturar repreensão e carinho. Os descuidados dele eram sabidos por todos ali. Enquanto era tratado, teve de ouvir boas lições como receita médica. Mal prestou atenção. Já com poucas dores, estava mesmo era orgulhoso de ter alguém como Nelir para socorrê-lo. *** Daminha de honra A daminha de honra apontou por entre as duas grandes portas de madeira e, como quem pisa em ovos, deslizou, leve, sobre o tapete vermelho. As luzes brancas de câmeras incidiam sobre a menina formosa. A luz do olhar de Márcia, também. Com as duas mãos espalmadas sobre o banco, olhava, enfeitiçada, o caminhar de sua colega de escola dominical – as aulinhas bíblicas para crianças da igreja. Quis, numa inveja inocente, ser ela. Outros casamentos aconteceram e lá estava a mesma daminha, com a mesma elegância. Márcia se chateava, se diminuía. Questionou a mãe sobre o porquê de a escolhida ser sempre a mesma. - Mãe, por que é sempre ela? Ela é mais bonita? Nelir conversou consigo mesmo. - Meu Deus! Olhe o que essa criança está pensando! 64


Logo respondeu à filha. - Olhe, filhinha: ela não é mais linda que as meninas da igreja. Ela é tão linda quanto as meninas da igreja. Ela é chamada sempre porque a mãe dela não mede os gastos de jeito nenhum. A mãe dela gasta, investe nela. E a gente já não é assim, filha. Nós temos uma vida mais simples que eles. O pai dela ganha muito bem. O seu ganha o que dá para a gente comer, para se vestir. Aí as pessoas já nem procuram a gente achando que eu não posso. Claro que se eu pudesse eu investiria em você, meu amor. Com o olhar, Márcia respondeu com conformismo. Sentiu-se melhor. Não demorou para que viesse um convite. Surpresa para a menina e para a noiva, que ganharia uma Bíblia da mãe, amiga de Nelir. Ela seria uma daminha especial. Empolgou-se com a proposta. Pulava e cantarolava, não largava o sorriso do rosto. - Mãe, como eu tenho que andar? É assim? - Não, filha. Vai ter ensaio. Calma. - Mas vai demorar? - Não vai não, filhinha. Fique tranquila. Você vai ficar linda do mesmo jeito. Márcia contou nos dedos os dias que passaram desde o convite até o casamento. Quando o grande momento chegou, levantou-se cedo, deixou a cama entoando cantos. Esperou até que fosse, com a mãe, ao salão de beleza. Ao sentar-se na cadeira, sentiu-se rainha. A mais importante delas. Ganhou até uma coroa. E nem percebeu que os produtos não agiram com eficácia em seu cabelo enrolado. Nelir chateou-se, mas Márcia nem ligou. Cabelo faz alegria de criança? Posta a coroa de daminha, a mãe mesmo tratou de ajeitar, com uma amiga, os cachos que pareciam estar naturais. Antes de Márcia atravessar a porta da igreja, ouviu a orientação de Nelir. - Filha, entre sorrindo, tá? Seu sorriso é lindo. - Tá bom, mãe. A música fez as honras primeiras. Márcia surgiu, segurando uma bonita Bíblia, por entre as luzes. Todos aplaudiram. Era o seu dia de estar formosa. E como estava. Não diminuiu o sorriso em instante algum. Nelir deixava escorrer algumas lágrimas. O sorriso era mesmo lindo. E não havia cabelo algum que mudaria aquilo. ***

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Ester, a segunda mãe Márcia era o xodó de Ester. Aos dois anos, já andando, estendia os braços, pedindo para mamar em seu peito. A mulher, com uma filha da mesma idade, rendia-se àquele olhar, sem direito à resposta. Foi difícil fazer a menina deixar de mamar na melhor amiga de sua mãe. Os dias passavam e Márcia mantinha o carinho a quem, como a mãe, também a amamentou. Ia à casa de Ester quase todos os dias, depois da escola. E adorava. Se esparramava no sofá e deleitava-se assistindo a episódios do Pica-Pau na tevê. No quintal, os pneus de caminhões – seu marido era caminhoneiro - eram pisoteados pelos saltos das irmãs Márcia e Mércia. Como se fossem cama elástica, as duas se atiravam, faziam coreografias no ar, como dois golfinhos em alto mar. Ester sempre fazia as vontades de Márcia. Emprestava o estojo de maquiagem, sapatos para desfilar, fazia pão com queijo no micro-ondas. Não era à toa que sempre recebia um convite indiscreto. - Ester, quer ser minha mãe? - Mas e sua mãe? Como você vai fazer, Márcia? Ela vai ficar triste. - Ah, então eu fico com duas mães. *** Ajuda com o bolo O chantili caia dos dedos de Márcia, que os lambia. Escondidas, ela e Mércia se deliciavam com o agrado de Maria Alcântara, boleira, amiga de Nelir – que preferia evitar que as duas se esbaldassem em doces. Mas elas adoravam os bolos, brigadeiros, beijinhos e tudo que era feito com açúcar. A casa de Alcântara, como era chamada pelos conhecidos, era o paraíso para as duas irmãs. Certo dia, a boleira recebeu um pedido de docinhos para uma festa de noivado. Eram muitos. Geralmente, ela não aceitaria. Mas Nelir ofereceu-se para auxiliar na produção, e o trabalho foi pego. Márcia, claro, arranjou uma boquinha. Se dispôs a ajudar, queria recompensa. Caprichosa, foi aceita na equipe. Ganhou uma touca de cozinheira. Para a surpresa de todos, Márcia fôra a salvação da lavoura. Eram muitos docinhos a serem feitos – quase 1600. A menina organizara as bolinhas de brigadeiro e beijinhos nos pratinhos e as contou. Conferiu um por um, com responsabilidade. Até na entrega, lá estava ela, disposta a trabalhar duro. Bastante solícita, Márcia gostava de ajudar. Estava sempre pronta 66


para qualquer função. Fazia por gosto. E, vá lá, por um preço. - Alcântara, posso comer um pouco mais do chantili agora? *** Sábado de culto Um homem pacato, de aparência pacífica, manobrava os carros no estacionamento em que trabalhava. Os olhos claros eram contornados por sobrancelhas levemente arqueadas para cima, que denotavam paz, talvez certo receio. Piscavam lentamente. Ele tinha três filhos, 41 anos, era divorciado e ex-detento – condenado a 12 anos por estupro, cumpriu quase 4 e foi solto. Aparentemente, a prisão o recuperou para conviver em sociedade novamente. Já conseguia dar risadas. Seu nome: Natanael Búfalo. Morava sozinho, gostava de ir à igreja. Fazia parte do grupo de canto. Sempre estava por lá, cultuando, conversando, carregando caixas para lá e para cá e, o que mais gosta, ajudando a cuidar das crianças. Era sábado. Ele iria à igreja. Haveria festa. Estava empolgado. Alugou um carro, pela tarde. Comprou roupas novas. *** Sábado de culto II Nelir fôra trabalhar na casa da frente, cuidar das crianças da amiga e vizinha, que trabalhava fora. Pela janela grande, observava a própria casa. Havia pedido que, ao menos, pudesse ir dar almoço e arrumar suas duas filhas. Ficava atenta ao ruído do portão, para saber quando alguém entrasse ou saísse. Por lá passou o começo da tarde. Após o fim do trabalho, atravessou a rua, para, enfim, dedicar-se ao seu lar. Chegou de braços abertos, recebendo as duas meninas que corriam ao seu encontro. Convidou as filhas para um banho e, depois, passou creme nos cabelos de Márcia e Mércia. Em frente ao espelho, escovou os cachos com leveza, inventou penteados – o que fazia com frequência. Marcos elogiou os cabelos quando veio da igreja. Ele avisou que havia festa por lá e, com pressa, voltou para o templo. As meninas estavam com fome. Nelir havia feito um grande bolo recheado com sobras de ingredientes que a amiga Alcântara tinha dado a ela. Márcia comeu por quatro pessoas. - Posso comer todo o bolo? Alguém mais vai querer? – indagou. - Não, filha. Ninguém mais vai comer bolo. Pode comer. Você 67


quer um pão, um queijo, alguma coisa? A mãe faz. - Não, não. Quero esse bolo mesmo. Nada sobrou. - Ai, que delícia esse bolo! Ninguém ia comer mesmo, né? - Não, não, filha. Mas agora, também, se fosse... Com a boca ainda suja de creme, Márcia sentou-se no colo de Nelir. Ficou por muito tempo ali. Muito mais do que geralmente ficaria. Mércia andava ao redor, com olhos de quem também queria. A mãe e a filha conversavam, riam, brincavam de bater as mãos. O momento só foi interrompido pelo som do telefone que tocou. Era Ana, amiga de Nelir, que queria convidá-la para ir à igreja sede, em Maringá. - Nelir, não quer ir à igreja sede hoje, não? O Marcos está lá, não está? - Tá, sim. - Ah, então vamos! Eu levo você com as meninas. - Sei lá, eu programei de ficar aqui mesmo. Será? - Vamos, sim. Vai tá gostoso lá. O Marcos já tá lá também. Nelir se animou. O marido estava por lá, cuidando do som, mesmo. Avisou as meninas. Elas iriam à igreja naquele sábado. Com penteados novos. *** Instinto de Búfalo Natanael Búfalo entrou na Igreja Assembleia de Deus, com CDs nas mãos. Encaminhou-se até o maestro do coral, a quem os entregou; recebeu um aperto de mão e um abraço caloroso. Estava bem vestido. Caminhou até o fundo da igreja, puxou um copo de plástico e tomou água. Lentamente, foi até a porta, parou, e observou as crianças que corriam por ali. Brincavam, enquanto os pais assistiam ao culto que já havia começado. Búfalo sentiu algo por dentro; um calor, uma ansiedade profunda. Começou a suar. Deu alguns passos para fora. Aproximou-se das crianças, com o sorriso que sempre exibia a elas. Após observá-las, buscou, com os olhos, a menina de maior estatura, que coordenava as brincadeiras, sem correr. Ela tinha 10 anos. Dirigiu-se até ela, com simpatia invejável. - Oi, Márcia. Tudo bem? A menina o conhecia. Ele frequentava a igreja havia algum tempo e sempre esteve perto das crianças. Era, para quase todos, alguém confiável. - Tudo, Natan. E você? 68


volta.

- Tudo também. Você veio com a mãe hoje? - Aham. - Ela está lá dentro, né? - Tá. - Então, eu vou buscar um bolo. Você gosta bastante, né? A menina fez que sim com a cabeça. - Quer ir comigo buscar? É rapidinho. - Não. Não posso sair sem avisar minha mãe, não. - Não, Márcia. É rapidinho. Não precisa avisar ela, não. Já a gente

- Preciso avisar minha mãe, então. - Não. Ela está prestando atenção no culto. Você vai atrapalhar ela, ela não vai deixar e você vai ficar sem o bolo. - É rápido mesmo? - Claro. Dez minutos nós estamos aqui de volta. - Tá.Pode ser. Os dois saíram pelos fundos. Búfalo guiava a menina com a mão nas costas dela. Foram até o carro. Márcia estava preocupada, pois nunca havia saído da igreja sem avisar a mãe. Queria voltar logo. Estava quieta, apreensiva. Búfalo sorria e puxava assunto. O carro ia longe. Márcia, incomodada, abriu a boca. - Natan, a gente tá indo muito longe. Minha mãe vai brigar comigo. Vamos voltar. - Não, Márcia. Fiquei tranquila. Já estamos chegando, vai ser bem rápido. Búfalo foi à sua casa. Estacionou o carro no quintal, apagando as luzes que iluminavam o local. Fez Márcia, que queria estar bem longe dali, entrar. As luzes de dentro também permaneceram apagadas. Só a tevê foi ligada. Márcia pediu para ir embora. As luzes coloridas que saiam da tevê iluminaram o quarto de Búfalo, para onde ele levou a menina. Pediu para que Márcia tirasse a roupa. Chorando, ela clamou mais uma vez. - Natan, eu quero ir embora. Deixa eu ir embora, por favor. O homem ignorou, com um sorriso sarcástico. Agarrou-a, e tirou, ele mesmo, a roupa dela com força. Márcia chorava. Búfalo também ficou nu. Segurando-a pelos cabelos, passou as mãos em todo o corpo que tremia, e a obrigou a manter relação sexual. Márcia chorava muito. Ainda pedia, com educação, para que ele deixasse que ela fosse embora. Foi reprimida por uma bola de meia, enfiada em sua boca. - Fique quietinha, fique. 69


Foram aproximadamente quinze minutos ali, na cama, no terror. Búfalo levantou, levou Márcia, amolecida, até o banheiro. Ligou o chuveiro; ensaboou a menina, com toques leves. Sentou no chão gélido onde batia a água, e, mais uma vez, obrigou-a a fazer sexo. Medo e dor fizeram a menina urinar. O criminoso se irritou. Pegou-a pelos braços, nervoso, e, voltando para o quarto, a jogou na cama. - Não saia daí! Márcia não conseguiria sair, tamanho o desespero. Nos fundos, o dono da casa buscou fios de uma extensão. Amarrou a vítima pelos braços e pelas pernas. Ela gritava. Pedia por socorro. Búfalo não teve dó. Alcançou um saquinho plástico, e colocou na cabeça de Márcia. Apertou seu pescoço com toda a força que tinha. Sem ar, a menina se debatia muito. Pernas e braços eram lançados para todos os lados. Mesmo assim, ele não largou o pescoço, até que todo movimento fosse extinto. Sem o bolo, Márcia havia partido. ***

Erva daninha II O sol escaldante o viu preparar a terra. No milharal, juntou as palhas e jogou o que tinha às mãos entre os ramos do cereal, como se fosse também palha. Atirou líquido inflamável. Riscou o fósforo e ateou fogo, como se queimasse ervas daninhas para eliminar a praga do meio da plantação. Fitou o fazer de cinzas por alguns instantes até deixar o local a passos calmos. Márcia ardia em chamas.

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ROBERTO SILVA Roberto Silva, 51 anos, é repórter do jornal O Diário do Norte do Paraná desde 1983. É natural de Carmo do Rio Claro-MG, pai de dois filhos e casado com Tereza Meneghel, também jornalista. Notabilizou-se como repórter policial setorista, área em que trabalha há 16 anos, por diversas reportagens investigativas de crimes que causaram comoção popular – em algumas delas, aliás, desvendouos antes da polícia. Começou no jornalismo como vendedor de assinaturas, no próprio jornal O Diário, em Maringá. É provisionado e tem registro definitivo de jornalista profissional desde 2001.

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Roberto Silva não é de se deixar envolver facilmente. Homem “durão”, mantém a postura serena e a sempre presente simpatia. O corpo, alto e magro, evita dores por medo ou angústia. Os olhos geralmente dormem em paz. Estão sempre atentos. Vão de um lado ao outro com rapidez incomum; gostam de olhar no centro dos pares dos outros – e não foram poucos os encarados pelo jornalista de 51 anos. Em Maringá há 28 anos, a voz anasalada impõe respeito a qualquer autoridade policial que conheça um pouco do jornalismo da cidade. Afinal, são mais de duas décadas como repórter setorista, um rol de investigações bem sucedidas, e todas tentativas de processos judiciais arquivadas. A lisura ética, sempre ressaltada por quem o conhece, é, sem dúvida, o principal instrumento de trabalho de Roberto Silva. É curioso que não me deixo envolver emocionalmente por nada. Por nada! Eu já vi centenas de cadáveres, de mortes violentas, coisas terríveis. Mas tem alguns casos que não tem como não te abalar. É impressionante. Eu me considero uma pessoa super fria em relação a crimes, mas tem casos que te abalam – e não necessariamente morte. É curioso isso - não precisa ser morte. Certa vez, eu peguei uma história de um rapaz na delegacia, um pedreiro. Ele foi preso, atacou uma moça na zona norte da cidade. Ela estava passando por uma avenida, foi atacada por esse rapaz, que tentou tomar a bolsa dela. A moça reagiu, começou a gritar e populares correram em socorro dela, dominaram esse rapaz, arrebentaram ele na pancada e o entregaram para a PM [Polícia Militar]. Eu estava lá quando esse rapaz chegou à delegacia. Fui ver, ele nunca tinha tido passagem pela polícia. Era servente de pedreiro. Não era criminoso, só era usuário de crack – viciou no crack. E deu uma paranoia nele. Ele estava sem dinheiro, deu uma paranoia de fumar pedra, e queria fumar pedra, e queria de todo jeito. Largou o serviço e saiu na rua para roubar alguém para conseguir pelo menos 10 reais para comprar uma pedra. Foi a primeira vítima que ele viu. Quando fui entrevistá-lo para a rádio, o coloquei ao vivo na rádio Cultura, e só de ouvir os gritos de desespero dele, pedindo ajuda para largar o vício – ele chorava, ele berrava, implorando ajuda... nossa, aquilo cortou o coração. Eu não consegui terminar de entrevistá-lo. Cheguei em casa passando mal à noite. A Tereza [mulher de Roberto Silva] estava em casa, comecei a contar para ela. Nossa, desabei. *** O começo do caso Búfalo O ambiente é simples e aconchegante. As portas e janelas estão todas escancaradas, permitindo que os raios de sol batam nas paredes 75


de cores pastéis, iluminando o local. O andar onde ele concede a entrevista tem dois níveis: na parte de cima, há uma mesa grande de jantar, uma estante e várias peças de artesanato – a mulher, Tereza, é quem faz. Na parte mais baixa do ambiente, onde somos convidados a nos acomodar, uma mesa de madeira no centro impede que os dois sofás brancos, de lados opostos, se observem. Roberto Silva senta-se de um lado, sozinho, e se acomoda sem cerimônia. Nós, mais acanhados, ocupamos o outro lado com postura reta em respeito à pessoa de histórias que está à nossa frente. Não demora para que ele nos deixe à vontade. Silva esconde a doçura com coragem. Explicamos, com mais detalhes, o motivo de nossa presença ali, e ele, carismático, logo se põe a falar. As primeiras palavras que deixam a boca já demonstram sensatez. O homem parece saber momento e tom certo de falar. Conta do começo da cobertura do caso Búfalo. Eu recebi a notícia do desaparecimento dela [Márcia] no mesmo dia, no começo da noite. Ela sumiu, horas depois um policial me ligou informando que a polícia estava toda envolvida para localizar essa menina e que havia a possibilidade dela ter sido morta. Eu já fiquei atento. Os policiais já desconfiavam, até porque não era uma família com posses. Então, não se tratava de um sequestro. Uma criança que desaparece misteriosamente, se a família não tem posse, você já vem com a pior hipótese possível. Peguei o carro, fui para delegacia, conversei com o doutor Brandão [Antônio Brandão, ex-delegado-chefe da 9ª Subdivisão Policial] e ali eu tomei conhecimento do que estava acontecendo. A Polícia Civil convocou todos policiais que estavam em casa, de folga. Todas as equipes da 9ª SDP foram mobilizadas e, junto com a família e conhecidos da vítima, a maioria fiéis da Igreja Assembleia de Deus, começaram as buscas por toda a cidade. Entre os envolvidos na busca da menina estava o Natanael Búfalo. A polícia, logo à noite, com base em depoimentos, é lógico – ela ouve todo mundo, nenhuma hipótese é descartada – começou a investigar todas as hipóteses. Chegou a deter um rapaz, que foi visto com um carro perto da igreja. Foi encontrada droga com ele. Ele negou qualquer participação no sumiço da garota e nada ficou esclarecido. Isso ocorreu no fim de semana. Chegou a segunda-feira. A polícia começou a ouvir todo mundo, várias pessoas que estavam na igreja. E entre os intimados a ir à delegacia estava o Búfalo. Quando o Búfalo chegou à delegacia para depor, entra um detalhe curioso: você, quando cobre polícia por muitos anos, começa desenvolver um faro policial. Isso é natural - e eu sempre fui uma pessoa curiosa. Principalmente em crimes sexuais. Tenho muito cuidado com esses casos. Eu já vi pessoas 76


inocentes serem presas, sendo escrachadas. É muito perigoso você noticiar um crime sexual e imputar a culpa a alguém. Mas você, de uma certa forma, desenvolve um faro natural para reconhecer o culpado de um crime. Búfalo chegou à delegacia que o repórter já ocupava, na segundafeira pela manhã. Sentou-se, calado, esperando por sua vez de falar. Começou a brincar com os dedos. Estalava-os. O jornalista observava todos ali presentes. Olhava, um a um, a fim de garimpar alguma pista que lhe levaria ao culpado. Foram poucos minutos até perceber o ar de apreensão do homem que apertava as mãos. Fez o teste: o fitou nos olhos. Búfalo o evitou, abaixando a cabeça. Assim, cabisbaixo, ficou por quase toda aquela manhã. Sempre de cabeça baixa, evitava fitar nos olhos: esse já é um indício de que a pessoa tem algo a esconder. Quando ela não fita os seus olhos, é porque ela está querendo esconder algo. Eu percebia que ele estava meio apreensivo e já suspeitei imediatamente dele. Imediatamente suspeitei e fui checar quem era Natanael Búfalo. Na hora, pedi para que um colega, um policial, levantasse aquele nome. Ele me confirmou que o Búfalo já tinha sido preso por estupro. O crime que ele havia praticado havia sido uns quatro anos antes, se não me engano. Quando eu soube, fui atrás de como ocorreu esse estupro. Eu descobri que o Búfalo havia ido a uma festa em Presidente Castelo Branco. Lá, ele rendeu, usando um revólver, uma menina de 15 anos de idade. Era uma festa popular que estava acontecendo na rua. Ele pegou essa menina em um local ermo, rendeu-a com a arma, colocou-a em um carro, levou para a zona rural e, lá, tirou um aparelho de barbear de dentro do porta-luvas. Com esse aparelho, ele depilou a genitália dela. Depilou ela todinha. Isso é uma coisa anormal, de maníaco. Eu nunca tinha ouvido de um maníaco fazer isso com uma jovem de 15 anos. Só então ele cometeu o estupro. E, durante o estupro, ele pegava o cano da arma, introduzia no ânus e na vagina da menina e a fazia lamber o cano da arma. Nesse momento, Silva refletiu. Havia uma lógica. Uma tara. Búfalo tinha atração por meninas, crianças, e não por jovens de 15 anos. Por isso a primeira providência fora depilar a moça, para que parecesse menor. Na hora, eu já liguei os fatos. Abordei o Búfalo no pátio da delegacia, tentei conversar. Cheguei diretamente nele, para testar o psicológico. Virei para ele e falei: “eu sei que foi você”. Ele abaixou imediatamente a cabeça. “Eu não quero conversar com você.” Eu fui atrás dele. Ele foi se afastando, eu fui 77


atrás. Falei: “Búfalo, confessa. Eu sei que foi você, cara”. E comecei a tentar dialogar, testando o psicológico dele. A reação dele foi entrar no carro. Se não me engano, era do advogado, que tinha ido com ele, que era também um fiel da igreja. A igreja indicou para que o acompanhasse, porque, até então, ninguém suspeitava dele. O suspeito de Silva, até então, guardou-se no carro. Ergueu os vidros e travou as portas. Em silêncio, manteve-se de cabeça baixa, evitando qualquer olhar janela afora. A partir daí, eu já fiz a primeira reportagem. Eu falei com o delegado, ele disse que não tinha suspeito. A polícia não conseguia chegar a ninguém e eu já fiz a primeira matéria dizendo que a polícia já tinha um suspeito do crime. Joguei, eu arrisquei mesmo, mas não citei nome, não indiquei ninguém. Eu percebi que o Búfalo começou a ficar mais retraído. Ele não aparecia mais na igreja, começou a se afastar das pessoas que o conheciam. Quando foi ouvido, ele apresentou um álibi perfeito. Aliás, quase perfeito. Ele confirmou que esteve na igreja para a polícia, acompanhou o culto. Ele era o “palhaço” da igreja, ficava reunido com as crianças - isso também me serviu para chamar mais a atenção, porque geralmente pedófilos sempre procuram uma atividade que os aproxime das vítimas, das crianças. Geralmente ele se caracterizava de palhaço para brincar com as crianças enquanto os pais estavam no culto - mais um detalhe que reforçou a culpabilidade dele. Portanto, eu, percebendo que ele estava cada vez mais recluso, comecei a fazer matérias. As matérias que estampavam o jornal O Diário do Norte do Paraná incomodavam Antônio Brandão, o delegado do caso. Para a polícia, não havia suspeitos. Brandão, então, passou a convocar a imprensa e dizer que havia um jornal da cidade que estava explorando o caso de forma desleal. Desmentia, a todos os órgãos, as palavras que Roberto Silva escrevia nas páginas policiais. Eu fazia contato com a polícia, estava lá todos os dias. O que eu ouvia dos policiais é que eu estava correndo risco, que seria processado e que eles não tinham suspeito. Vários policiais me chamaram na sala: “Roberto, você é louco. Nós não temos suspeito. Não é esse cara! Não é ele”. Apesar de eu apresentar tudo para eles. Eu colocava as cartas na mesa. “Gente, vocês têm que ver que tudo bate. Ele já tem uma passagem em Presidente Castelo Branco, ele depilou a menina.” Quando Silva teve as fotos da vítima às mãos, concretizou as 78


suspeitas que tinha. O ânus e a vagina da menina estavam destroçados, praticamente dilacerados. Estavam emendados. Aquilo só podia ter sido causado por um objeto. Era a tara de Búfalo. Eu percebi que aquilo não era um estupro. Era objeto que ele introduzia. E, lógico, eu já liguei o caso com o de Presidente Castelo Branco. A tara do Búfalo não era praticar o estupro, era introduzir objetos. Aquilo que ele causou no ânus e na vagina dela jamais um pênis faria. Foram objetos introduzidos, apesar dele nunca ter confessado isso. Ele nunca confessou, mas eu tenho certeza absoluta disso. A polícia só o ouviu uma vez e, como ele apresentou os álibis, a polícia os checou e eles foram parcialmente comprovados: ele esteve na igreja, foi em outra igreja, depois na casa de uma ex-namorada. A polícia checou. “Poxa vida, bateu.” Começaram a me questionar. Continuaram dizendo que eu estava correndo risco, que eu poderia ser processado, que eles não tinham suspeito. O Búfalo não era suspeito. Eu, porém, tinha certeza absoluta que era ele. Insisti nas matérias, porque sabia que estava no caminho certo. Apesar de muitos jornalistas acharem que essa não é a função do jornalista, eu acho que é. O repórter policial tem o poder de investigação dele. Se ele puder, pode ajudar a polícia a elucidar um crime. *** Com provas subjetivas, o jornalista confiava em sua experiência. O olhar fugitivo ainda acompanhava o homem que esteve à sua frente, sentado no banco da delegacia, naquela segunda-feira. A ligação dos crimes, as mãos que se entrelaçavam, a apreensão nítida, o olhar para o chão - as provas de culpa, para ele, estavam ali, claras. A polícia continuava negando a semana inteira. Chamava, convocava a imprensa, dizia que tinha um jornal que estava deturpando, que não tinha suspeito, que era mentira. E eu comecei a falar de um animador de lojas realmente ele trabalhava com animação de lojas, mas a profissão dele, quando cometeu o crime, na verdade era em uma garagem, no centro de Maringá. Ele era manobrista de uma garagem de automóveis. Isso também ajudou a reforçar, porque a pessoa que pegou a menina foi vista saindo em um carro. A polícia, três dias depois, descobriu que o Búfalo havia alugado um carro na garagem. Até então eu o soltava [publicava-o nas matérias] como um animador de lojas, que, realmente, era uma atividade que ele tinha antes de ser manobrista. Continuei insistindo com as matérias. As matérias ganhavam as capas do jornal O Diário e mexiam 79


com Natanael Búfalo. Fosse ele ou não o assassino, eram totalmente direcionadas a ele, como isca para que confessasse. Silva tinha absoluta certeza que ele era o culpado. Jogou com o que tinha. O suspeito sentiuse pressionado. Na sexta-feira da mesma semana, o Búfalo surpreendentemente apareceu na delegacia, acompanhado do advogado da igreja. Assim que o advogado me viu, me abordou, dizendo que ele iria processar o jornal porque estava colocando o cliente dele em risco. Eu falei: “como em risco, doutor? Eu nunca citei o nome do seu cliente”. Ele falou: “ele está ameaçado de morte. Tem pessoas querendo matar o meu cliente e você é o responsável. O meu cliente veio aqui para se entregar, porque ele está com medo de ficar na rua”. Eu achei aquilo totalmente descabido. Ele quer ficar preso por um crime que não cometeu? Isso não existe! Eu resolvi encarar o advogado. “Doutor, se eu provar que foi o seu cliente, o senhor continua no caso? Eu vou provar que é ele.” O advogado titubeou, e falou: “eu vou continuar no caso”. Eu falei: “o senhor não vai continuar no caso, eu tenho certeza”. Até porque ele era membro da igreja. A igreja tinha pedido ajuda a ele para proteger o Búfalo. A polícia também achou muito estranho esse momento: o Búfalo querer se entregar para ficar preso? Ele, pedindo para ficar preso porque estava com medo de ficar na rua? Era a única forma dele continuar vivo? Ora, se não era ele e ele tinha medo de morrer em Maringá, porque ele não foi embora de Maringá? O país é tão grande! Ninguém iria achá-lo. Em uma das matérias eu publiquei, para que o Búfalo não fugisse - porque eu tinha quase certeza que ele iria fugir da cidade e eu estava chegando nele -, que a polícia estava mantendo ele sob vigília constante, o que não era verdade. Ele não era suspeito da polícia, mas eu tinha certeza que ele poderia fugir da cidade. Por esse medo, eu coloquei isso na matéria. Apesar de alegar inocência, a polícia quis ouvir Búfalo de novo. Decidiu colocá-lo em uma cela de triagem. A delegacia estava em calmaria, sem nenhum repórter a não ser o que sempre esteve lá: Roberto Silva, que aproveitou-se do silêncio dos outros órgãos de imprensa para conversar com o homem que estava guardado por entre as grades. Eu entrei na cela e comecei a conversar com o Búfalo. Eu virei para ele e falei: “Búfalo, eu estou fazendo essas matérias porque eu sei que foi você. Vou te falar uma coisa agora que eu sei que você nunca falou para ninguém. Você nunca contou isso para ninguém, mas eu sei o que aconteceu com você quando criança. Eu sei que abusaram de você. Você foi vítima de abuso sexual. Você, para mim, não é um criminoso. É, antes de tudo, um doente. Precisa de 80


tratamento. Eu sei que você passa mal quando ataca uma pessoa, uma vítima, uma criança. Eu sei que aquilo te faz mal depois. Mas, na hora, eu sei que você gosta. Você não consegue controlar seus impulsos, mas depois que tudo acaba, você começa a sentir remorso, começa a sentir culpa. Eu sei que foi você, Búfalo. Pelo amor de Deus, conte a verdade. Chega. Acabou! Acabou, você não vai estender isso por muito tempo!”. Ele levantou a cabeça, e foi a primeira vez que ele me fitou nos olhos. Ele virou para mim e disse: “deixa eu pensar”. Na hora que ele falou isso, “deixa eu pensar”, eu falei: “você quer conversar comigo?”. Ele falou: “não, depois a gente conversa. Deixa eu pensar um pouco”. Falei: “então tá. Eu vou esperar ali na frente. Pensa bem, cara. Você não vai estender mais isso.” O jornalista deixou a cela voltou para o corredor da delegacia. Nesse momento, policiais já vasculhavam a casa de Búfalo – onde encontrariam um lençol com fios de cabelo longo e preto, parecidos com os de Márcia, e panos sujos de sangue. Por volta das 18h30, esses homens retornaram à delegacia. Silva ainda estava lá. Ouviu Búfalo bater na cela chamando pelos policiais. Ele queria confessar o crime. E confessou. *** Por que Márcia? Márcia fora a escolhida daquela noite. Búfalo selecionou-a, segundo disse à polícia, por ser a maior que estava no pátio da igreja. Silva vai além. Ela foi o alvo mais fácil que ele achou. Foi a que aceitou comer um pedaço de bolo que ele estava oferecendo. Se ela tivesse recusado, ele teria abordado outra. Outra criança seria o alvo, porque aquela noite ele saiu para saciar a tara dele. Ele não premeditou que seria ela. Saiu com a tara. Tanto que alugou o carro para cometer o crime. Esse foi mais um detalhe: quando eu percebi que ele tinha alugado um carro, isso me chamou muita a atenção, porque, até então, ele ganhava um salário mínimo. Quem ganha um salário mínimo não tem condições de alugar um carro para uma noite. Tem que ser por um objetivo muito especial. Ele iria numa festa – isso não há necessidade. Ele poderia ter ido de ônibus. Para que carro para ir numa festa? Ele ganhava um salário mínimo! Quem ganha um salário mínimo, olha, só aluga um carro em uma situação especialíssima demais, não para ir a uma festa. Ele premeditou realizar a tara dele, mas não a vítima. Naquela noite, 81


alguma criança iria ser morta. E essa criança foi a Márcia, que aceitou sair com ele. *** A confissão de Búfalo Único repórter policial do jornal, Silva tinha de dar conta dos outros casos que aconteciam na cidade, além de manter-se imerso no caso Búfalo. Os textos das outras matérias eram bem mais curtos. Mesmo assim, estava na Redação, envolvido com outros casos, quando Búfalo confessara o crime ao escrivão. Teve de recorrer ao telefone e aos contatos policiais. Eu me dedicava mais. Fazia o factual, mas resumia. Fiquei nesse caso, me concentrei nele. Eu estava no jornal já à noite quando o Búfalo começou a fazer a confissão. Tive que ir para a Redação, porque tinha de fechar o jornal. Então, na hora que ele sentou-se na sala com o escrivão, eu não acompanhei. Geralmente eu acompanho os depoimentos, até porque são livres. Eu posso acompanhar um depoimento desde que não seja menor [criança ou adolescente] - em depoimento de um menor, eles têm o direito do sigilo. Mas quando é uma pessoa maior de idade, geralmente eu peço para acompanhar. Como eu já estava na Redação, não acompanhei. Os policiais iam me passando por telefone o que ele falava. “Ele acabou de assumir, oh. Ele acabou de falar isso.” Eu ligava para outro policial: “E daí? O que mais ele falou?”. Conclui a matéria por telefone, porque a confissão já tinha ido, com cada um me passando um trechinho. O delegado me passava um trecho, o policial outro, o escrivão me passava outro trechinho, e eu fechei a matéria dessa forma. Por mais que a experiência tenha lhe dado estrutura psicológica para acompanhar casos que chocam, Silva não conseguiu suportar tamanha atrocidade com uma menina de 11 anos. Os dias que sucederam a cobertura causaram-lhe mal estar. Eu passei mal só no outro dia, quando eu tive acesso a esse interrogatório dele [Silva estica os braços, oferecendo o papel]. A confissão oficial. Vocês vão ler, vão ver que é estarrecedora. Era de te embrulhar o estômago, você perceber o terror que essa menina passou nas mãos dele antes de morrer. Eu me coloquei no lugar da criança, sabe? Você se sente na pele da criança nas mãos de um monstro. Ela levou 82


horas para ser assassinada. Ele não a matou simplesmente. Ele foi fazendo tudo meticulosamente, saciando todas as taras. Na hora que ele saciou tudo que ele queria, aí resolveu matar porque ela poderia entregá-lo, porque era conhecido. Geralmente, quando um maníaco sexual mata sua vítima, é porque ela o conhece. Porque, na maioria dos casos, esses maníacos, praticam o estupro e somem, deixam a vítima viva. Mas quando você vê uma morte que envolva um crime sexual, você pode ter quase certeza: é conhecido. É alguém próximo dela. Ele matou para que ela não falasse. É o caso do Búfalo. Foi mais um detalhe que me chamou a atenção: porque quem matou a menina, matou porque ela o conhecia. Era da igreja. Então você vai somando tudo, né? Você pega todos esses fatores, soma tudo e chega ao Búfalo. É uma coisa tão simples. Os editores, à época, não viam como algo tão simples assim. Houve, dentro da Redação de O Diário, hesitação com relação às investigações e conclusões de Silva. Mas não interferência. Mesmo ressabiados, os chefes deixaram o repórter mais experiente trabalhar. Sozinho, ele trabalhou. Muito. A Redação ficou meio em cima do muro. Eu batia de frente, dizendo que não tinha perigo, que eu tinha certeza. Eu não ia identificar o autor, só dizia que eu sabia quem era. Tanto que eu nunca o identifiquei como manobrista, e sim como animador de lojas, para não colocá-lo em risco. Eu poderia citar que era um manobrista de estacionamento na área central de Maringá o principal suspeito. Mas, lógico, tudo cairia sobre ele. No fundo, eu percebia que sabiam que eu estava no caminho certo. Tive dificuldades, nesse caso, de pesquisar o antecedente do Búfalo. Foi a única ajuda que eu tive. Quem é o Búfalo? Era um ex-presidiário por crime sexual. E foi aí que começou. No jornal, era aquele negócio: “você tem certeza?”. “Nossa, o que é isso?! Como é que você vai afirmar isso?”. “Gente, eu estou falando. Eu sou experiente na área, eu tenho certeza absoluta do que eu estou falando. Eu nunca errei numa reportagem.” Nunca cometi um erro! Nunca, porque sou uma pessoa altamente responsável. Eu me orgulho, porque eu tomo muito cuidado. Muitas vezes, algumas pessoas me criticam. “É, aqui ele não deu o nome do cara.” Por que não dei o nome do cara? Porque eu tenho dúvida. Se eu tenho dúvida, realmente eu não dou o nome. E se o jornal insistir em colocar o nome, eu falo: tire o meu nome da matéria. Eu não assino a matéria. A Redação assume, eu não assumo. Eu já cansei de falar isso dentro da Redação. E foram inúmeras vezes. *** 83


Cuidado com as palavras Palavras jogadas nas páginas de jornais podem fazer estragos irreparáveis. Em casos de repercussão, que envolvam morte, como o crime de Natanael Búfalo, mais ainda. Que palavras usar? Como descrever tanto horror sem cair no sensacionalismo? Você pensa na família. “Meu Deus! A família vai ler o jornal amanhã!”. “Se eu colocar essa palavra aqui...” O medo de cair no sensacionalismo: “Nossa, amanhã o que vai ter de ligação de leitor indignado com o que você escreveu, te xingando, cancelando assinatura”. Meu Deus, parece que você vai enlouquecer. Na hora você fala “O que eu vou escrever? De que forma eu escrevo?”. Muitas vezes eu chegava no colega que estava do lado: “o que eu coloco aqui? Eu não posso colocar essa palavra. Não posso colocar isso aqui, esse texto, essa parte”. “Ah, faz assim, assim é melhor.” Eu me sinto no lugar da família. Toda hora ficar relembrando aquilo, ficar cutucando, fazendo relembrar toda a dor que passou. É a mesma coisa quando me mandam para ir a um velório, para entrevistar a mãe do cara que está sendo velado, que foi assassinado. Eu acho isso de extremo mau gosto. O jornal pode esperar. Deixa sepultar. No dia seguinte, vai lá na casa, senta com a família. “Não, vá no velório agora! Nós queremos a mãe! Agora! Amanhã eu quero uma entrevista com a mãe!” É uma falta de respeito. O jornalismo não tem respeito por nada. Quando os editores não pensam, perde-se o respeito. Eles acham que a notícia está acima do respeito, da dignidade humana, de tudo. Eu sou visceralmente contra isso. O curioso é que na faculdade você tem teorias de tudo, mas a hora que cai na prática é um jogo sujo. É imundo. Eu tenho dó dos acadêmicos de jornalismo que só ficam dentro de uma faculdade e não veem o mundo fora, a realidade. Esqueça tudo aquilo, aquela teoria que ensinam em sala de aula. No mundo real, aquilo tudo é mentira. Ninguém tem sentimento, ninguém tem nada. O que vale é o sensacionalismo, a exploração ao máximo. O que vale é o telespectador, são os cliques no site, quantos acessos, bater recordes. Me embrulha o estômago. Eu passo mal. *** O maníaco sexual Casos de homicídio, principalmente os que envolvem abuso sexual, exigem extrema sensibilidade e cuidado. As expressões de vítimas e acusados dizem muito. Roberto Silva aprendeu, com o tempo, 84


a entendê-las melhor. Percebe nuances, traça perfis, calcula mentes, usa da psicologia. O jornalista criminal necessita dessas percepções. É seu arroz e feijão. O maníaco sexual, em geral, é inteligente. Ele é sereno, consegue manter a frieza. Por dentro ele pode estar desmoronando, mas por fora ele consegue ser uma parede. Você tem de perceber muito atentamente alguns detalhes. Existe a forma: o maníaco sexual, se você gritar com ele, bater nele, aí é que ele se fecha. Os criminosos sexuais, 99% deles são vítimas de abuso quando crianças. Isso é certeza. Eles já foram abusados quando crianças. Eles crescem e se tornam abusadores [pedófilos] quando adultos. Há o risco de cobrir um crime sexual: você pode fazer uma reportagem que destrói a vida de um inocente. Há cerca de 15 anos, eu estava na delegacia e um senhor foi preso, acusado de estuprar as duas filhas. Meninas pequenas – uma de seis aninhos e a outra de sete aninhos. A denúncia foi feita pela exmulher. Esse senhor era separado e todo fim de semana tinha o direito de passar com as crianças, com as duas meninas. A mãe procurou a Delegacia da Mulher e denunciou o ex-marido. Disse que ele tinha estuprado as duas filhas. Imediatamente, a delegada da época encaminhou essas crianças para o IML [Instituto Médico Legal] e constataram lesões nas vaginas das duas crianças. Não havia rompimento de hímen, mas as vaginas das duas estavam muito feridas. Não tinha como negar que houve alguma coisa com as crianças. Então, ele foi imediatamente preso. A prisão dele foi decretada na hora. Tinha um outro repórter, na delegacia, de um jornal concorrente à época. Fomos eu e esse repórter para conversar com o preso. Quando eu pedi para que o tirassem da cela, esse homem começou a chorar. Ele chorava desesperadamente, negando, negando, negando. “Não fui eu. Pelo amor de Deus, eu não fiz nada disso. Não fui eu”. Esse repórter maltratou muito esse senhor. Chamou-o de vagabundo, de tarado, falou que ele tinha que ser escrachado, que ia acabar com a vida dele e já saiu em seguida. Nem esperou o final. Foi embora. Eu continuei conversando. Eu senti que aquele homem era inocente, sabe? Te dá um estalo. É aquilo que eu falo: você vai ficando tanto tempo nessa área que desenvolve seus sentidos. Seus sentidos ficam mais aguçados. Na dúvida, eu fiz a matéria sem citar o nome dele. Não citei o nome dele de forma alguma e coloquei a versão dele: que ele negou veementemente, chorou muito, disse que jamais teria coragem de fazer aquilo e que amava as filhas dele. Soltei a matéria. O jornal concorrente acabou com a vida do homem. Chamou-o de maníaco – o nome mais simples que ele foi chamado foi de maníaco -, enquanto eu coloquei dúvida na matéria. Aquilo não me saiu da 85


cabeça a noite inteira. Eu fui para casa, não consegui dormir. Silva estava incomodado, tinha de investigar aquele caso a fundo. Foi à casa da mulher que acusara o ex-marido para entrevistála. Queria ouvir a história da boca dela. A casa, nos fundos do Jardim Alvorada, zona norte de Maringá, ficava em um quintal de terra. Ali, havia uma banqueta de madeira, cheia de pedras de sabão de soda secando ao sol. Era a própria mulher que os fabricava. Silva ainda começava a entrevista quando viu as duas meninas, só de calcinha, brincando de passar a mão nas barras de sabão. Disfarçadamente, ficou observando-as com mais atenção. Elas coçavam a vagina. De repente, eu olho, elas coçando a vagina.[Breve silêncio].Quanto mais elas coçavam, mais coçava, porque era soda que estava ferindo a vagina das duas. Na hora eu já me toquei. Até dispensei a entrevista da mãe. Voltei correndo para a delegacia e avisei a delegada da época. Falei: ‘doutora, é isso, isso e isso. Manda essas crianças de novo para exame. Não é estupro. É a soda! Eu as vi brincando e coçando. E quanto mais coçavam – a vagina é uma área muito delicada -, mais pioravam os ferimentos. Dito e feito. Foi comprovado que aquilo não era estupro, era a soda. O homem foi imediatamente libertado. Eu fiz a matéria da inocência dele. Esse homem não sabia o que fazer para me agradecer. Aí que ele foi contar que a mulher implicava com ele, que não gostava que ele pegasse as filhas todos os fins de semana, que estava revoltada com a separação e fazia de tudo para acabar com a vida dele. Era uma vingança. Isso acontece muito com ex-marido e mulher. Muito! Então, é um alerta que fica para os novos jornalistas. Quando se depararem com um caso de estupro, se envolver ex-marido e ex-mulher, desconfie. A primeira coisa é você desconfiar, porque filhos são usados como armas numa guerra inconsequente. É isso que acontece. Quando envolve denúncias de ex-marido e ex-mulher, abra sempre o olho, fique sempre com o pé atrás. *** O cheiro Além das percepções, o jornalista diz ter um dom: sente o cheiro de maníacos sexuais. Para ele, não há erro: ao seu olfato, os suspeitos se condenam com o mesmo odor. Mesmo que se lavem. Eu peguei um caso em Marialva muito curioso. Eu desenvolvi uma 86


técnica. Até falo para as pessoas: o maníaco sexual – eu senti isso no Búfalo, sinto em qualquer um -, ele emite um odor. É impressionante isso. Ele pode tomar banho, pode fazer o que ele quiser, mas parece que fica com o cheiro da vítima. Eu sinto isso em um maníaco sexual. Sou uma pessoa muito cética em tudo, não acredito em nada. Mas, não sei se é dom, não sei o que é, mas eu sinto isso na pessoa. Ele exala um odor, é impressionante. Muita gente pode não acreditar, mas eu sinto isso em um maníaco sexual. No caso de Marialva, um homem foi preso. Uma menina de 11 anos começou a passar mal na sala de aula. A professora a encaminhou para o posto de saúde, descobriram que ela estava grávida. A diretora do colégio foi conversar com a menina. Ela contou que o pai a estava estuprando, desde os nove anos de idade, e a tinha engravidado. A polícia prendeu esse senhor. Um senhor de idade. Deixou na delegacia. As equipes de reportagem foram para lá de manhã. Vários jornais, rádios, tevês. Ele negou o crime para todo mundo. Já tinha negado para o delegado e para o escrivão. Levado ao fórum, negou para o promotor e para a juíza, na época. Negou para todos os órgãos de imprensa. “Não, não fui eu. Jamais faria isso com a minha filha. Jamais! Não fui eu. É mentira! Ela está saindo com o namoradinho, foi algum namoradinho dela, ela quer esconder o namoradinho.” Todo mundo ficou em dúvida. Ele continuou detido. À tarde, eu fui à delegacia. Pedi para que tirasse ele da cela que eu queria conversar com ele. Um detalhe que chama a atenção é que, geralmente, a maioria desses repórteres policiais trata presos – têm exceções, são poucas – com casca grossa. Eles não entrevistam. Interrogam o preso, pressionam o preso, jogam duro com o acusado. Não é essa a solução para você conseguir uma boa reportagem. Eu pedi para que o tirassem da cela, e a polícia atendeu ao pedido. O jornalista e o acusado deixaram a cela e se encaminharam para a cozinha da delegacia. Lá, Silva disse ter pego dois cafezinhos e convidado o homem a sentar-se à mesa. Ele aceitou. Os dois se olhavam frente a frente. Silva tirou o maço de cigarros do bolso da camisa e pegou um. Deu-lhe todo o resto. “Oh, fuma. Você tá sem cigarro. Fique com esse maço.” Começaram a dialogar. Fui conversando, dialogando, muita conversa. E eu percebi o cheiro nele. Ele exalava o cheiro de estuprador. Eu disse a ele também que eu sabia de tudo, não precisava esconder nada de mim, porque eu sentia que ele tinha remorso do que acontecia. Eu sabia que era uma tara que ele não conseguia segurar. Um desejo que era maior que ele. Foi a mesma frase que eu falei para o Búfalo na ocasião. Falei: “Búfalo, eu sei que esse desejo é maior que você. Eu sei que você quer controlar, mas você não 87


consegue.” Eu falei isso para o senhor também. Eu uso essa técnica geralmente com maníacos sexuais. Falei para o senhor: “eu sei que é uma vontade que bate, eu sei que o senhor não conseguiu segurar”. Esse senhor virou para mim e falou: “Olha, de todo mundo que conversou comigo até agora, o senhor foi o mais educado. Ninguém me respeitou até agora. Até tapa da polícia eu já levei. O senhor me respeitou. Eu vou contar a verdade para o senhor: fui eu. Eu não sei o que dá em mim, mas eu sinto essa vontade, eu pego a minha filha”. Ele confessou tudo o que fazia com a menina. Entrevista feita, Silva estava para levantar-se da mesa quando uma mulher apareceu na janela da cozinha. Era filha do homem acusado. Tinha aproximadamente 30 anos. Ela virou o rosto na direção do pai e disse: “Olha aí, pai. Eu sempre disse que o senhor um dia ia pagar. O senhor lembra quando me estuprava quando eu era criança?” O repórter disse ter sentido calafrios. “O senhor lembra, pai? Eu sempre falei que o senhor um dia ia pagar tudo o que o senhor fez comigo. Agora o senhor fez com a minha irmãzinha!”. Essa moça já era casada, residia em Sarandi. Eu virei para ele e perguntei: “é verdade o que ela está falando?” Ele falou: “é”. Eu falei: “meu Deus!”. Já levantei, pedi para recolhê-lo na cela e para afastar a mulher. Cheguei ao delegado e contei: “ele acabou de confessar todo o crime”. O delegado, imediatamente, mandou que lhe retirassem da cela para levá-lo ao Fórum novamente. Eu peguei meu gravador e fui embora para o jornal. O acusado foi levado ao Fórum. Novamente, negou tudo para a juíza e para o promotor. Silva publicou a entrevista, pingue-pongue, com ele, na íntegra, no jornal O Diário. No final, está um elogio: o jornalista fora o único que tratou-lhe com respeito. Mais tarde, a juíza pediu a matéria e a cópia da fita. O homem foi condenado a 18 anos. Um exame de DNA comprovou: ele era realmente o pai. O bebê nasceu, foi rejeitado pela família e encaminhado à adoção. *** Imprensa, hoje Silva diz ter vontade de produzir matérias mais aprofundadas, bem investigadas. Investir em personagens e apuração refinada; investir no papel social do jornalista. Não consegue. A velocidade da informação, hoje, é impressionante. Não é culpa do 88


repórter, muitas vezes. É culpa do órgão de imprensa. O jornal não quer perder dinheiro e não quer perder tempo. Não quer investir em matéria investigativa. Eu tenho vontade fazer uma série de matérias aí, mas que demandaria tempo. Eu estive em Terra Rica [a 134 quilômetros de Maringá], fui fazer uma reportagem. Dois homens apareceram degolados - dois homossexuais. Ambos na zona rural - um na zona norte, outro na zona sul da cidade. E um menino desapareceu, que tinha ligação com uma das vítimas. Eu pedi para o jornal. “Não, isso aí está muito estranho. São as mesmas pessoas que estão envolvidas nessas mortes. Não tenho dúvidas disso. Esses crimes têm ligação. Não é normal dois homossexuais serem degolados e um menino que tinha ligação com uma das vítimas desaparecer da cidade. O que é isso?” Ficaram uma semana decidindo se eu ia ou não para Terra Rica, que é aqui pertinho. Me mandaram para Terra Rica. Cheguei às três horas da tarde, porque eu entro à uma e meia. Percebi que não dava para apurar tudo. Eu não conseguiria levantar tudo. São três crimes! Não dava para apurar tudo no mesmo dia. Resolvi pousar lá com meu dinheiro. Fui para o hotel, gastei meu dinheiro. “Não, amanhã vou ficar na cidade e vou levantar, vou mais a fundo. O que é isso? Eu tenho que levantar esses crimes.” No outro dia, quatro horas da tarde, recebo um telefonema do editor, bravo. Por que eu não retornei no mesmo dia? Ele estava esperando, a página estava me esperando. Queriam a matéria e eu não podia ter feito aquilo. Era para eu voltar imediatamente para o jornal. Eu voltei, fiz uma página de jornal. Não tive nem tempo de ir atrás. Resultado: há duas semanas, degolaram o terceiro homossexual em Terra Rica. O que o jornal pediu? Nem mandou eu ir lá. Não está nem aí, não quer saber. Até porque, o leitor também já esquece o que você escreveu ontem. Ele já não se lembra hoje porque já foi bombardeado com tanta informação, com tanta notícia, que já se esqueceu. Eu falo que hoje o valor da notícia está na velocidade que você desce o “carrinho” [barra de rolagem] do site ou do blog. O cara posta a notícia, todo mundo entra ali, critica, fica indignado. Daqui a pouco, postou outra notícia, ninguém vai comentar, porque ela já está lá em cima e ninguém se lembra mais daquela que está lá embaixo. O ser humano se perdeu, o jornal se perdeu. Silva está desiludido com o jornalismo. Viu a mulher Tereza, antes competente repórter, segundo ele, abandonar a carreira para dedicar-se ao artesanato – e a uma vida com mais conforto. Pensa em, logo, também deixar a carreira. Estou totalmente descrente. Já pensei em abandonar essa área várias vezes. Primeiro, porque é desgastante. E outra, por falta de interesse de ir 89


mais a fundo nas questões, de investir mais. Os editores acham que é fácil ser repórter policial. Eu já ouvi isso inúmeras vezes. “Fazer matéria policial é fácil. Factual é moleza.” Moleza? Sabe como é que eu me sinto? Eu sempre uso um termo bem escroto para definir o repórter policial: me sinto mexendo um tacho de merda todo dia. E cuidado para não respingar em você. É assim que eu me sinto todo dia. O que me revolta são os editores acharem que a cobertura policial é a coisa mais fácil que tem no jornal. É o factual. A notícia está pronta, é só ir lá e pegar. Por que, então, quando eu saio de férias precisa de três, quatro para cobrir o que eu cubro sozinho o ano inteiro? Por quê? Eu não entendo. Deixa um só. Quando eu saio de férias, é realmente uma guerra na Redação. Ninguém quer cobrir polícia. “Não, não. Eu não quero.” “Não, passa para o outro.” “Não, pelo amor de Deus, tira eu. Deixa eu fazer essa aqui.” Todo mundo sabe que é desgastante, mas ninguém admite isso. Vocês vão chegar a uma certa idade que vocês vão ver que são só uma peça da engrenagem. Nada mais do que isso. Vocês vão ser usados, vão ser explorados. Vão passar a fazer parte do jogo sujo, mesmo que não queiram, mas precisam do emprego. E você vai ter que atender ou vão te mandar embora e acabou. A Tereza desistiu desse mundo. Ela parou, largou mão, não quer mais. E é meu sonho também: não vejo a hora de acabar com isso, de dar um ponto final. *** Jornalismo investigativo Investigar é preceito básico para o jornalismo contemporâneo. No entanto, cada vez mais, a pressa da notícia engole a busca por informações preciosas, que só estão fora das redações, nas ruas e pessoas, frutos de observação e percepções do repórter. Também vítima dos deadlines, Silva defende o “jornalismo investigativo”. Eu defendo o jornalismo investigativo. É uma pena que os jornais de hoje não valorize mais isso. Eles não te dão tempo. Hoje é a pressa da informação. No jornal, hoje, ainda mais com o advento da internet, ninguém quer apurar a notícia. É o seguinte: a versão oficial, publique. Não interessa se é verdade ou se é mentira, é o delegado que está falando. Põe na boca dele, põe entre aspas, grava o que ele falou. A imprensa se tornou inconsequente, quer rapidez na informação. Quantos erros já foram cometidos por isso? A Escola Base [quando os proprietários da Escola Infantil Base, em São Paulo, foram acusados de abusarem dos alunos. Eles foram escrachados pela imprensa, 90


mas nunca comprovados como culpados], tantos casos. São inúmeros e inúmeros casos de erro da imprensa por ficar no oficial. Não é porque é polícia que só ela tem a capacidade de desvendar um crime. Você, se for um repórter responsável, tem a capacidade. Quantos e quantos jornalistas, repórteres policiais no Brasil, já foram atrás de desvendar muitas coisas? Mas, hoje, é uma pena que os órgãos de imprensa não valorizam isso. Você pode fazer uma página, levar três, quatro dias para apurar uma notícia, e fazer uma matéria diferente de todo mundo, com mais dados, mais informações. O jornal não quer. Ele prefere mil caracteres agora e acabou. Porque notícia para ele se renova a cada instante, e o leitor quer rapidez também. A matéria investigativa também demanda um pouco de investimento financeiro, e, nas empresas de hoje, é corte de gasto. Então você vai até desistindo, sabe? A não ser quando for um caso gravíssimo como esse. Aí você entra de cabeça. Você vai por sua conta. *** Jornalismo criminal Arriscar o prestígio ou até a vida nas cascas de ovos que são as matérias criminais todos os dias é para poucos. Detalhes são tudo. Interesses de poderosos são atingidos. Erros, quase sempre imperdoáveis. Apesar do cansaço, Silva diz amar o que faz. A ação, o movimento, a vontade de você conhecer o lado do ser humano que muita gente não conhece. É o lado curioso do ser humano. O lado criminoso. Eu fico fascinado com a cabeça humana – do que ela é capaz para cometer um crime. Isso me fascina. É incrível. Te instiga a ir atrás das coisas, investigar, apurar e saber a verdade. Descobrir a verdade – acho que é isso que me instiga mais. Eu já paguei um preço caro por correr atrás da verdade. Eu incomodei muita gente na cidade. Já tentaram me prejudicar, mas não conseguiram, porque, se eu realmente fosse culpado, eles teriam me pegado e acabado com a minha vida. Mas não conseguiram. Uma vez um promotor deu de dedo na minha cara. Eu descobri que esse promotor forjou o depoimento de uma testemunha, para incriminar os policiais. Ele deu de dedo na minha cara, dentro do Fórum. Ele não gritava comigo, ele berrava. Na frente de uma jornalista da Folha de Londrina, a Lucinéia Parra, e um fotógrafo, que hoje está no Mato Grosso. “Eu vou te pegar!”, ele dava de dedo na minha cara. “Eu vou te pegar, eu vou acabar com a tua vida! Eu vou acabar com ela!”. Eu ria na cara do promotor. Falava: “doutor, eu não ando nem de bicicleta em cima da calçada. O senhor vai me pegar no quê?”. “Eu vou 91


te pegar! Você vai ver se eu não te pego! Você vai ver.” Realmente, tramaram tudo. Juntaram dois promotores e a P2 [Serviço Reservado da Polícia Militar], que, na época, eu denunciei por tortura, para me pegar. E um bandido, que eu havia denunciado que tinha um desmanche na cidade de Paiçandu. Me prenderam por cinco dias, só que tudo foi por água abaixo. Tudo! Porque, se tivesse um erro na minha vida... ah, eles teriam pego. Era a hora. Aí vai fazer o quê? Absolve o cara. Mas esse foi o objetivo deles: vamos destruir a vida desse cara, o jornal manda ele embora, a gente acaba ele. Eu mexi muito com Fórum, com interesse de promotor, com interesse dessa P2, que era um órgão sujo que tinha em Maringá. Um órgão imundo. Graças a Deus, todos foram afastados depois do que aconteceu comigo. Alguns chegaram a pedir aposentadoria de medo do que eu tinha em mãos. Eu fiz alguns comentários em blogs da internet alertando a Procuradoria Geral da República, a Polícia Federal. Eu sabia que ia ser assassinado. Só não me mataram porque sabiam que eu tinha amigos na polícia que iam desvendar minha morte. Por muito tempo fui vigiado. Tive o telefone grampeado. Eles queriam me pegar de qualquer jeito. Você corre muito risco. É isso que te faz, muitas vezes, se afastar de uma investigação. Você pode atingir interesses que não deviam ser mexidos. Então, você chega numa idade – já estou com 51 anos – que você vê que muitas vezes não vale a pena. Esse país não tem justiça. *** As ações como jornalista Roberto Silva investigou, tomou a frente da polícia, foi ameaçado e ameaçou. Por investigação própria, revelou um dos assassinos mais cruéis da história de Maringá. Gerou inveja. criou desconforto com polícia e jornais – inclusive no qual trabalha. Se pudesse fazer tudo de novo, mudaria todo esse trajeto? Eu repetiria tudo. Se eu me vir diante de qualquer outra situação grave, eu meto a cara. Se eu perceber que a polícia está demorando e a sociedade está cobrando, que o negócio é sério, é grave, eu vou meter a cara. Não vou deixar barato. Eu já fiz isso inúmeras vezes. Parei por uns tempos, porque você fere sentimentos, fere interesses. O caso [Búfalo] me ensinou a ser cuidadoso. A mostrar que eu estou no caminho certo, tomando alguns cuidados. Me ensinou a tomar o máximo de cuidado possível em tudo. Eu percebi que, à época, alguns policiais ficaram meio sentidos comigo. “Ah, o cara quer aparecer, o cara fez isso, agora fica aí com os louros.” Mas não 92


é isso. Tinha que ser elucidado, a demora estava muito grande. Eu não culpo a polícia por, muitas vezes, usar violência e não chegar a lugar nenhum. Ela erra demais em achar que tudo quanto é bandido tem que ser na base da pancada. Eu não a culpo, porque ela é mal preparada. O Estado não dá estrutura nenhuma. Se você chegar à delegacia, hoje, vai ver que o policial não tem nem um binóculo para fazer uma campana. Se ele precisar de um binóculo, para vigiar uma pessoa à distância, ele vai ter que comprar um, porque o Estado não o dá. Eles só fazem o curso quando entram na polícia - um cursinho de três meses. Passam a vida inteira sem passar por uma reciclagem. Ele termina fazendo o que ele pode fazer. No caso Búfalo, eu não vou culpar a polícia pela demora, porque não tem estrutura mesmo. Para você ter ideia, quando foram à casa do Búfalo, a polícia [Polícia Científica de Maringá] não tinha luminol [substância química usada para identificar sangue humano]. Não tinha para passar na casa, para ver marcas de sangue, no banheiro, no quarto, na cama! Ela não tinha esse produto, que é uma coisa ridícula! Eu achei aquilo o cúmulo. *** Búfalo quando solto Natanael Búfalo tem previsão para ser solto com aproximadamente 55 anos, com a progressão de pena – incentivo que a Lei de Execuções Penais dá aos presos que apresentam bom comportamento. Para Silva, quando solto, o assassino vai voltar a matar. Ele vai voltar a matar. Não tenha dúvida disso. Não é a idade. O caso do Búfalo não é tesão, é obsessão. O Búfalo, ele contou lá, reservadamente para a polícia, que ele tem sérios problemas de ereção, porque teve uma fimose. Um quadro de fimose muito dolorido. Então, ele sente dores quando vai manter relação sexual. Se ele sente dor para manter relação com uma mulher comum, que já não é virgem, imagina com uma criança? Ele jamais teria condições. Então, o que ele faz? Ele rasga com o objeto, vai introduzindo o objeto, para alargar. Aí sim ele pega ela. *** O perdão ao Búfalo Nelir e Marcos, pais de Márcia Constantino, dizem ter perdoado 93


Natanael Búfalo. Muitos se assustaram com a atitude, se revoltaram, outros tantos os criticam até hoje. A mãe relata que ainda hoje várias pessoas a olham com desprezo, justamente pelo perdão. Roberto Silva acompanhou todo o caso de perto - o drama da família, as fotos; esteve com Búfalo frente a frente. Fosse envolvendo ele, também perdoaria? Eu perdoaria, mas não é o tipo de perdão que muitos pensam. O perdão, necessariamente, não é para ele. É para a mente. Porque, se você não perdoa, você vive aquele inferno todo dia. Você acorda, passa o dia, dorme, e aquilo não sai da sua mente. Perdoar é livrar sua mente daquilo – você expurga aquilo de sua cabeça. Isso é perdão. Você não está ignorando o que ele fez com sua filha. Não, ignorar não. Perdoar não é ignorar. É tirar aquilo, aquele inferno, da sua cabeça. Isso é perdoar. Quando você fala “eu perdoo o que esse cara fez”, é para você. Eu sei que ele está cumprindo a pena dele. Mas, quando você perdoa, se livra daquele inferno, porque a sua vida vai desmoronar ou você se suicida lá na frente, de tanta dor. Um filho, meu Deus! Meu Deus! Não tem nada mais precioso. Ainda mais você perder ele de uma forma violenta. Então é isso: você tem que perdoar dessa forma. É para livrar você, não ele. Ele vai ter que pagar. O perdão é um ‘afasto de mim esse cara’. Eu não quero saber dele, não quero lembrar o que ele fez com minha filha, não quero relembrar nada. O perdão é você. *** Roberto Silva hoje Mesmo depois de anunciar sua desilusão, Silva se rende à paixão. Tereza mesmo é quem diz: “Ele não consegue viver sem o jornalismo.” Vale a pena. Tem hora que, quando acontecem as coisas, você pensa em desistir de tudo. Você enlouquece, pira. Mas aí, quando você sai vencedor de uma batalha terrível, cria forças. Aí você olha para os caras de cima. Eu já encarei essas pessoas que tentaram me prejudicar. Eles abaixam os olhos hoje. Não têm coragem de me olhar nos olhos. Eles sabem o que eles fizeram. São sujos, são imundos e são autoridades. Eu não tenho um pingo de respeito por eles. Teve um que me chamou no Fórum para me pedir desculpa. Disse que não queria ter um inimigo oculto na vida dele. Eu falei que eu não era oculto, eu era de carne e osso. Ele sabia o que eu tinha levantado dele. Você morre. Você vai morrer, eles vão te matar. Onde você pisar, você 94


morre. Não tenha dúvida. Quando fiz denúncias contra policiais que torturavam aqui em Maringá, eu dirigia só do lado esquerdo da pista. Não dirigia do lado direito, e até hoje eu tenho esse hábito. É só olhando no retrovisor e dirigindo do lado esquerdo. Não dou flanco para atirador, do meu lado do motorista, atirar em mim. Se ele quiser, vai atirar da porta do passageiro. Eu tomo muito cuidado. Quando eu saio do jornal, eu nunca saio do jornal sem olhar. Eu olho todos os carros que estão estacionados, quem está dentro. Se olhar dentro do meu carro, você vê um monte de placa anotada. Eu anoto placas. Eu sempre tomo esse cuidado, porque, muitos desses grandes que você prejudica vão esperar o tempo passar para te acertar, para te dar um tiro na cabeça. Mas você pode tomar alguns cuidados. É ‘facinho’ matar alguém. Você bota dois caras em uma moto, um deles armado e ‘pow! Pow! Pow!’. Acabou, tchau. Simples, não é? Tem que tomar muito cuidado. Eu já pirei, já enlouqueci. Fazer o quê? Eu adoro o que eu faço. Eu falei que vou me aposentar, estou querendo, daqui dois anos. A Tereza fala: “você não vai conseguir, você vai ver. Você não vai. Você não para”. Não sei, vamos ver. Talvez eu consiga.

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CAPÍTULO DOIS FABÍULA

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Começo A pele branca deixava-se aquecer com o sol da manhã. O vento fresco que fazia bailar a cortina refrescava o ambiente, mas não diminuía o fervor que a jovem Marcia Regina carregava dentro de si. Ao seu lado, envolto em panos leves, condição que o verão obriga, repousava Felipe. Um menino calmo e sereno que conhecera o mundo havia apenas cinco meses. Prova bonita de que o casamento de nove anos estava prometido ao recanto da felicidade. Antes de Felipe, viera Fabrício. Esse, já moleque, contava sete anos. O primeiro filho que alegrou o jovem casal. Naquela ocasião, já assumia o papel de pajem do pequeno da casa. Enquanto observava os dois filhos, a jovem mãe refletia e indagava uma mesma oração. Meu Deus, o que faço agora com outra criança? Há poucos dias, Marcia Regina descobrira a terceira gravidez. Mesmo com a felicidade denunciada pelas batidas disparadas no peito, o coração também dava sinais de inquietação. Afinal, por mais sonhadora e benevolente que seja uma mãe, alentar duas crianças de colo é tarefa que esgota até a mais disposta das moças. 1° de agosto de 1991. O inverno maringaense, como sempre, já havia dado seu susto. Agora, acalentava os adoradores do clima quente com tardes agradáveis, ensaiando uma próxima estação. O impasse de abrigar uma dupla que entoaria, em coro, choros longos e noites em claro, já fazia parte do passado. A gravidez tranquila fez Marcia Regina repousar em calmaria. Os nove meses se arrastaram, o suspense do sexo da criança era zelado por todos. Marcia Regina foi obstinada. Tentou por seis vezes descobrir quem repousava em seu ventre. Seis tentativas, seis frustrações. A cada ultrassom, só era possível registrar o contorno na tela. Um pequeno ser, uma ótima formação, mas que se negava a acabar com a curiosidade dos que esperavam do lado de fora. O médico, habituado com os contratempos que a tecnologia da época não era capaz de solucionar, pedia calma. Doutor Ruggeri era um homem alto, magro, bastante cabelo, voz grossa. Exímio jogador de basquete nas horas que se ausentava dos choros da ala de obstetrícia do Hospital São Marcos. Atencioso com todas as mães – motivo de elogio pela maioria delas -, brincava com Marcia Regina e dizia que, certamente, mais um menino se aninharia na família. Ruggeri já havia celebrado, junto àquela mãe, o nascimento de Fabrício e Felipe. Preparava-se agora para enfileirar mais um membro da família Coalio. O médico ouvia dos pais o forte desejo de serem 97


agraciados com uma menina. Seria perfeito. Os meninos já eram grandes. Na hora certa, Fabrício já seria um homem; Felipe acompanharia a garota nas rotinas do dia a dia. Seria acolhida e protegida pelos dois guardiões mais velhos. *** Menininha Espoleta, graciosa e autoritária. Fabíula foi tomada, desde cedo, pela personalidade forte, cuja opinião era vista e mantida, por muitos, sem contestação. A jovem Coalio só perdia o embate quando, ao seu lado, estava a campeã invicta na categoria ordens na casa: a mãe. O sorriso de fada engambelava todos os que se deixavam envolver pela menininha. O pai se derretia por conta da pequena dos cabelos loiros correndo pela casa. Bastava chegar perto, amaciar a boa vontade e lá estava concedido o desejo da caçula. Com Fabrício, o irmão mais velho, a relação era de respeito, igualmente com o pai, mas nem por isso a garota economizava a doçura e as pitadas de astúcia para persuadi-lo. Felipe nem se dava o trabalho de negar um pedido da irmã. Acabava sempre ludibriado e convencido. O sorriso meigo, os pedidos preguiçosos, acompanhados de carinhos, davam à pequena Fabíula, na maioria das vezes, o sim que ela já esperava receber. A única que não caia nos encantamentos minuciosamente estudados de Fabíula era Marcia Regina. A voz firme exigia de Fabíula o cumprimento das ordens da mãe. Apesar dos resmungos, a tarefa era sempre concluída, mesmo que com um bico atrelado em meio à cena. Mas, ainda assim, raras vezes, após perdido o embate, Fabíula, com jeitinho, desmantelava a decisão da mãe, e recebia o troféu de persuasão. - Mãe, não quero essa camiseta, parece roupa de menino. Fabíula, com cinco anos, já exigia o que desejava ou não vestir. A camiseta da ocasião havia sido um presente de uma das tias. Era básica, mas com a estampa de um urso feliz. Para Fabíula, o urso não tinha nada de delicado em seus traços e era descabido fazê-la sair à rua acompanhada daquela imagem. Marcia Regina fingia não ouvir as acusações ao pobre urso, e ia erguendo os braços da menina e vestindo-a com a roupa. Fabíula silenciou a sessão de reclamações e permaneceu imóvel na cama, com as pernas entrelaçadas entre si. A mãe foi até o outro quarto buscar alguns objetos. Na volta, lançou os olhos na filha, que, naquele momento, permanecia no mesmo 98


lugar, com as pernas descansadas na mesma posição. O detalhe que lhe fez frear o movimento estava no sumiço da camiseta. Fabíula havia arrancado a peça do corpo, enquanto fazia brilhar os olhos em direção à mãe, num pedido quase suplicante para que não fosse atrás da camiseta. Diante da ação rebelde, mas significativa, Marcia Regina pegou Fabíula no colo, abrindo a gaveta de camisetas, e, com os olhos, indicou que ela podia ficar à vontade na escolha. *** A bicicleta O pedido, quase virando em febre, fez Márcia Regina esquecer as sobras do almoço natalino, engolir um café às pressas e correr ao centro da cidade para sossegar o desejo impiedoso da filha. Fabíula estava inconsolável por não ter recebido da mãe a recompensa pelas excelentes notas no colégio. Passado o meio do ano, a caçula da família já havia decidido qual seria a sua alegria na data de 25 de dezembro. Com apenas seis anos, ela alimentava pouca importância pelas bonecas lançadas naquele ano. Suspirava mesmo era por uma bicicleta rosa. Ela já queria descobrir a liberdade, mesmo que por alguns metros. Quando a recompensa pelas boas notas chegou ao quintal de casa, Fabíula, num único ato, já estava acomodada no banco estreito, cortando os curtos trechos da rua onde morava. *** Sinhazinha Dona de uma autoridade peculiar, Fabíula não hesitava quando tinha a oportunidade de liderar. E se tal feito fosse concedido pelos próprios esforços, ela já tomava as decisões mais acertadas. Todos os anos a escola em que a menina Coalio estudava promovia a festa mais esperada do ano – a festa junina. Para os pequenos, era a oportunidade de uma semana lúdica. Para Fabíula, era sempre algo mais. Para enfeitar o espaço escolar, era necessário que os alunos contribuíssem vendendo uma cartela de bingo. A recompensa pelo empenho das meninas vinha coroada com o título de “sinhazinha”, mérito de oradora das condutas caipiras e diretriz dos passos mimosos da dança. Alongando os pensamentos para o dia da festa, Fabíula apertava o passo, na tentativa de abocanhar o título. Angariava ajudantes 99


para o posto de sinhazinha no próprio bar em que a mãe trabalhava. Aproximava-se dos clientes e com um jeito particular de convencer e intimidar, fazia a troca do pedaço de papel enumerado, pelo papel de real valor. O feito, bem executado, lhe rendeu, por dois anos, a coroa, ou melhor dizendo, a chita de sinhazinha. A última vez que liderou o grupo tinha dez anos. Exigiu o vestido mais rendado que se podia encontrar. Por merecimento, o pedido foi atendido pela mãe. Era quase fim da festa, Fabíula não dava repouso ao próprio esqueleto. Dançava, pulava e fiscalizava o bom andamento de seu pastoril. A renda impecável do vestido esvoaçava em ritmo caipira. Mas a sinhazinha não contava com o acaso. Em uma das tantas descidas do palco, no intuito de conferir os arredores, a renda brigou com o vento, que levou o fino pano até um prego esquecido no canto. O encontro rasgou o tecido, deixando a sinhazinha enfurecida. Como era possível a anfitriã do grupo encerrar a noite com as vestes dependuradas? O alarde foi acionado. Marcia Regina, observando a cena, pediu calma, sorrindo e alertando para o encerramento da noite. Os pedidos da mãe não geraram conforto na paciência de Fabíula. Foi preciso que uma das professoras se embrenhasse pelas salas do colégio e, dentro de um armário escondido, encontrasse uma agulha alinhada para dar fim ao desespero da sinhazinha. *** “Grela” Com os traços fortes herdados do pai e a delicadeza absorvida da mãe, Fabíula crescia. Com 12 anos já fazia sombra nas meninas da mesma idade. O corpo leve não se espremia nas vestimentas. Era magra. Não demorou muito para despertar nos moradores da casa uma maneira interessante de chamá-la. Era, por assim dizer, óbvio para quem a fitasse: Grela. No início, a expressão Grela ecoava nos cômodos do lar dos Coalio, no intuito de arrancar irritação na menina de olhos vivos. Aquela irritação que vinha dominada de gargalhadas por todos os envolvidos, na sequência. Felipe abusava do apelido, na intenção de tatear até aonde iria a paciência da irmã – farpas de irmãos. Rose, a moça que viera morar com a família e ajudar nos afazeres da casa e do bar que Márcia Regina mantinha, divertia-se com aquela brincadeira toda. Uma espécie de irmã mais velha para Fabíula, jogava nos dois lados da competição. Deixava escapar o apelido em alguns 100


momentos, mas também defendia a mocinha da casa, quando Felipe exagerava na zombaria. A reserva de calmaria de “Grela” era grande. Não demorou muito tempo para que o símbolo de provocação se tornasse uma agradável forma de buscar os ouvidos da menina de corpo distinto. Grela passou a ser o afago carinhoso para Fabíula Coalio. *** Mocinha A vaidade florescia regada de descobertas para Fabíula. Os cintos já eram capazes de revelar a cintura agraciada da menina. As roupas de mocinha iam somando pilhas dentro do guarda-roupa - já que a numeração infantil deixava os cambitos à mostra. A preocupação com as formas que o corpo tomaria dali para frente já fazia a menina enumerar uma sequência de questionamentos. Certa vez, numa tarde estafante, Marcia Regina tomou o caminho do banheiro na tentativa de mandar embora, mesmo que por pouco tempo, o desgaste do dia de trabalho. Abriu a chuva quente e controlada e deixou cair no corpo uma promessa de relaxamento. Atrás da mãe, Fabíula apoderou-se da cama que dava de frente para o chuveiro. Junto dela, a inseparável amiga Ana. As duas cochichavam os segredos escolares, enquanto Fabíula arrumava atenção para pensar em como ficaria seu corpo depois de perder a idade infantil. Sem dar mais espaço para a dúvida, virou-se para a mãe e lançou mão daquilo que lhe afligia no momento: - Mãe, será que quando eu crescer vou ter uns “txuqui txuquis” iguais aos seus? Marcia Regina não pediu razão às palavras e, sem dar mais cena para a indagação sobre os seus seios, respondeu com a voz convincente: - Claro que sim. Quando você crescer, será a menina mais bonita que irá existir! *** O primeiro beijo - Eu gosto de você! – pensava Fabíula, todas as vezes que dobrava o corredor da sala e fitava, à sua frente, a imagem de Alisson. O menino, apenas um verão mais velho que ela, também sentenciava a 101


mesma reflexão. Amigo de Felipe, sempre procurou deixar evidente o respeito e os cuidados que preservava pela garota. Tanto que esperou e guardou para ele o momento de descoberta, apresentando à Fabíula as peripécias e o encantamento do primeiro beijo... No entanto, a volúpia não era conhecida da menina que ainda brincava com suas bonecas. Haja vista: naquela época - nem tanto tempo assim, remonta menos de uma década -, muitas meninas de 12 anos ainda dividiam seu tempo entre a escola e o brincar. O máximo que chegavam da quebra da infância era um selinho, o leve toque dos lábios que fazia disparar o coração. Os meninos já estavam esticando os olhos até as meninas, mas também preenchiam a vaga ociosa do tempo com tarefas de moleque. Fabíula reinava nesse grupo infantil. Porém, não se pode negar que já sofria das corrupções do coração. Alisson fazia parte de uma lista – estava em primeiro lugar, isso era inquestionável -, mas Guilherme, outro amigo de Felipe, e Rafael, o Pimenta, disputavam uma beira no pódio. *** Pai A cada viagem, um novo presente. A mulher e os outros dois filhos de vez em quando recebiam um agrado. Com Fabíula a história era diferente. O mimo era sagrado. Representante comercial, o homem alto, de olhos azulados, passava por muitas cidades. Em cada uma delas, conseguia enxergar um objeto que agradasse a filha. Uma hora um brinco, outra hora, uma camiseta. Por menor que fosse o presente, era uma forma de demonstrar que a bonequinha da casa acompanhava os pensamentos do pai, independentemente de onde ele estivesse. Em muitos momentos daqueles 12 anos, não foi necessário proferir palavras. Não pelo medo da vergonha flamejar no rosto. Ao contrário. Muitas vezes, unir algumas sílabas, não renderia a intensidade do amor que um oferecia ao outro. Fabíula corria até o colo de Milton e lá permanecia. Era bonito de ver. *** Tia Zelinda e o segredinho Marcia Regina estimava e cuidava da beleza da filha com esmero. O cabelo, um chamativo natural, era a paixão da mãe e um motivo de 102


desgaste para a filha. Quando menininha, odiava aparar os fios loiros, mas já crescida, intrigada pelas mudanças, Fabíula queria arriscar as pazes com a tesoura e ousar um pouco mais. Pedido absolutamente negado pela mãe. Era inimaginável se desfazer de todo aquele cabelo liso, solto, bem cuidado, com mechas que tornavam ainda mais bela a figura da menina. Fabíula escolhia o dia de se desfazer das pontas judiadas de seu cabelo. Um dia em que a mãe não pudesse lhe acompanhar. Há tempos indo sozinha ao salão de Zelinda, ela conseguiu, sem muito sacrifício, instaurar um pacto de confiança com a madrinha, que preferiam chamar de “segredinho”. A cada escapadela que dava ao salão nos dias demarcados para o corte, Fabíula era obrigada a repetir as recomendações da guardiã dos fios: escrito em uma pequena folha de papel, a instrução caligrafada por Marcia Regina, dava nota de que apenas as pontinhas deveriam ser eliminadas. Sem esconder a bula receitada pela mãe, ela se virava para a madrinha e, com cara de moleca, pedia para que o segredinho das duas fosse colocado em prática. - Tia, faz o meu segredinho?, murmurava com cara de sapeca. O tal segredinho entre as duas não ia muito além de uma pequena arte. Como a mãe recomendava apenas as pontinhas, e Fabíula adorava inovar, pedia, espertamente, para que tia fosse além e aliviasse o peso daquela cabeleira toda, em mais ou menos quatro dedos de corte. Depois de cortado, a bronca podia até ser grande, mas o desejo já estava atendido. *** Ana Era impossível queixar-se ao lado de Fabíula, sem ouvir, em tom de ordem, que tudo ficaria bem. Ana se sentia protegida pela amiga mais nova, ouvindo-a falar, consolar, refletia, em determinadas situações, ser impossível, de fato, que os problemas se avultassem. Bastava correr para Fabíula, o medo era apaziguado, cuidado e o sentimento do início era retomado em forma de coragem. Ana desfrutou a vantagem de ser estimada por Fabíula. Com idade incipiente para dar entendimento nos rompimentos que a vida comete, Ana se via angustiada com a possibilidade de perder a avó, a pessoa que lhe criara desde a infância, tida e amada como mãe. A senhora era, na época, acometida por um câncer. Apesar de 103


todo o tratamento e promessas de cura, era impossível não borbulhar na mente da jovem menina o desconsolo de um abandono próximo. Fabíula bania para longe os pensamentos incompreendidos, relutava em animar a companheira e nos dias em que a tristeza de Ana levava as tentativas de Fabíula ao chão, a estrategista não dava folga para o lado impiedoso do ringue. A sentença, apesar de triste, seria simples: Ana não ficaria sozinha. - Você tem a mim, a minha mãe, meus irmãos, meu pai. Minha família! Sozinha você não fica. Jamais. Alertava em sinal de protesto. Ana se esquivava na tentativa de mostrar à amiga que nem tudo era tão simples. No inicio, até recusava, mas com tanto engenho diante de si, era compelida a acenar em sinal de concórdia. E sempre foi assim. Fabíula amolecia o coração de Ana e conquistava a resposta esperada. Fosse para passeios depois do colégio, apenas com a função de bater perna, na escolha dos filmes que fechavam os finais de tarde ou mesmo nas horas em que sentia vontade de dedicar um tempo às bonecas que enfeitavam seu quarto. As amigas se acomodavam no coração de Fabíula seguindo uma pequena exigência, formulada em parágrafo único: não cobiçar o irmão. Felipe era o grande ciúme de Fabíula. O charme do jovem garoto já agraciava as alunas do Colégio Ipiranga. Felipe, esperto como julgam ser a maioria dos garotos de sua idade, estava longe de beirar uma página de catecismo. Se embrenhava pelo descobrimento da adolescência e deixava Fabíula de sentinela. Ana era diferente, o interesse em Felipe esbarrou e se acomodou apenas na amizade. *** Veterinária Um peixe, um passarinho e um coelho. Esse grupinho, que dividia o espaço da casa dos Coalio, era o grande chamego de Fabíula. Apaixonada pelos bichos, a menina não sentia remorso em se afastar do orfanato de bonecas que ocupava seu quarto. Preferia o movimento, o som, o cheiro, o calor daqueles serezinhos dependentes, ao bom comportamento das meninas de plástico. Desde muito cedo, balbuciava para a família e para os amigos que quando crescesse seria veterinária. Conforme os anos iam somando a idade de Fabíula, o entusiasmo em seguir a carreira ia se multiplicando. Interessava-se pelo assunto, questionava a mãe, as tias, os irmãos. Queria saber sobre a profissão. Arquitetava cada canto do consultório em que receberia os pacientes Atenderia, cuidaria, salvaria. 104


Em grande parte, já fazia isso tudo. Marcia Regina ficava louca. Quando se dava conta, notava que alguma vasilha do bar havia desaparecido. Sem muita sorte em procurar nos armários da cozinha, seguia a trilha que levava até a calçada. Lá estava: colocada no chão, a vasilha estava cheia. Algumas vezes, cheia com algum tipo de alimento, outras, simplesmente água – tudo para saciar a carência dos pobres cachorros da rua. Fabíula não dava importância para as broncas da mãe. Sabia que não era certo dispor um utensílio do bar para os animais, mas seria ainda mais errado deixar o pobre animal padecer sem ajuda. No último dia em que puderam desfrutar da companhia uma da outra, Fabíula apresentava um estado de tranquilidade e paz. Com um delicado sorriso, sentou-se de frente com a mãe. Olhou-a firme nos olhos e a fez lembrar, mais uma vez, do sonho futuro. - Mãe, você monta uma clínica para mim se eu me formar? Quero uma clínica toda branca! Após o pedido, os olhos vagaram em direção ao céu. Marcia Regina concordou com a cabeça. As duas ficaram em silêncio. *** O pedido Um abalo estremeceu a família Coalio. Meses antes de Fabíula completar 12 anos, o pai sofreu um derrame cerebral. Entristecidos com a desordem que se tornaram os dias, a atenção era voltada toda para ele. Fabíula foi a primeira a abandonar o posto de xodó da casa, alentando todo amor que podia transmitir ao pai. Próximo ao mês de agosto, Milton já se recuperava do padecimento, ainda caminhava com certa dificuldade, os olhos vivos já não refletiam tanta vida, mas mesmo assim, estava lá, firme. Marcia Regina enrijeceu os ombros e levou sozinha a responsabilidade da casa. Diante da situação, chamou Fabíula de canto e explicou que, naquele ano, a costumeira festa de aniversário teria que ser adiada. Fariam uma grandiosa quando a garota completasse 15 anos. Sem contestar, Fabíula consentiu. Com aquilo martelando na cabeça, alguns dias depois, a menina sentou-se no colo do pai e fez o homem amolecer mais uma vez. - Pai, eu queria uma festa de 12 anos. Soltando um suspiro profundo, Milton afastou as pernas de Fabíula de seu colo e caminhou até o bar, onde Marcia Regina atendia 105


os clientes. Após entrar no bar, rodeou o balcão que dava até a mulher. - Marcia, vamos fazer uma festa de 12 anos para a Fabíula? Por que você não quer fazer a festa? A mãe, tomando um susto com o pedido inesperado do pai, disse que as duas haviam feito um trato e que a festa seria realizado quando Fabíula completasse 15 anos. Após a doença de Milton, seria imprudente abusar dos gastos. O homem, de rosto fino, ouviu as palavras, concordou com um balanço afirmativo, mas em pouco tempo lançou um olhar piedoso em direção à mulher. - Dinheiro a gente ganha outro. Sem dizer mais nada, forçou um leve sorriso e foi virando as costas em direção à rua. Marcia Regina petrificou. Sem entender o que estava acontecendo, deixou o corpo expressar, naquele momento, o nó que havia dado seu coração. Enquanto olhava o marido atravessar a avenida, se pôs a chorar. Os pensamentos começaram a borbulhar e ela temia, enquanto sussurrava para si. - Meu Deus, por que ele quer que eu faça o aniversário, mesmo sabendo que estamos apertados? Será que ele não vai estar vivo nos 15 anos dela? O aperto lhe fez companhia até voltar para casa. Ao abrir a porta, Marcia Regina já avistou Fabíula junto do pai. Não houve explicação, apenas uma frase. - Vou fazer a festa dela. Fabíula correu para os braços da mãe e já disparou: - Vou convidar a minha sala inteira, mais uns amigos do Felipe. Será a festa mais bonita de todas. *** A fotografia Os olhos cintilavam em frente ao espelho. A roupa, toda azul, fazia par com o chapéu comprado há dias. Nos lábios, um sorriso inocente, vibrante pelos minutos seguintes. A festa de aniversário se aproximava, e, com o grande dia, a preocupação de Fabíula com convites. Tudo estava sendo arrumado com cuidado e beleza. Não era perdoável que um dos detalhes principais saísse de forma simplória. Escovou mais uma vez os cabelos loiros e tomou o rumo da loja de fotos que ficava próxima de casa. Como presente de aniversário, Osvaldo, o dono da loja, disse que faria para Fabíula as fotos que 106


encartariam o papel rosado/azulado. Animada, ela juntou-se à mãe, enquanto caminharam até o estabelecimento. Acomodada por si só no banquinho, ela se posicionou da melhor maneira. Sem nenhum fio de timidez, virou-se para o fotógrafo acionando a dúvida: - Estou bonita assim? Já sabendo a resposta, pôs-se a sorrir junto com a mãe e o homem dos flashes. Cinco disparos de luz foram dados em direção à Fabíula. Era necessário, em seguida, aguardar um tempo para que as imagens captadas fossem registradas em papel. A ansiedade era tamanha. Adoradora de fotografias, deslumbrava-se com a própria imagem. Seo Osvaldo chamou. Era hora de escolher a fotografia que iria enfeitar ainda mais o cartão colorido. Já de longe, Fabíula afobou-se em ter nas mãos a foto, que, para ela, era a mais perfeita. - É essa, é essa! Marcia Regina não fez muito jus ao deslumbre da garota, já que na opinião dela, a foto ao lado, esquecida por Fabíula, era mais bonita. - Não, filha, a outra é mais bonita! -Não, mãe, é essa. Nessa foto eu estou linda. Dá uma olhada em mim. A mãe não se viu no direito de julgar o encantamento da filha diante da própria beleza. A foto encartou o convite de aniversário, e, semanas à frente, os jornais da cidade. *** 12 anos A semana já findava, todos os preparativos estavam encaminhados. Agora era esperar pela festa mais bonita feita até então. Dias antes, Fabíula, acompanhada da mãe e de Ana, passeavam pelo centro da cidade. A andança tinha um motivo: encontrar o vestido que agraciaria a aniversariante diante dos convidados. Marcia Regina sugeriu muitos, Ana aconselhou alguns. Nada. Nenhum ia ao encontro do gosto peculiar de Fabíula. Já exaurida de tanto caminhar, a menina já perdia as esperanças. A tarde caia e as lojas começavam a fechar. Sem dar mais importância para a causa, deixou os olhos vagarem pelas lojas à frente. Lá estava. Vermelho, um ombro só, delicado, perfeito. - É aquele! - exclamou. A mãe interveio e disse que o vestido não era propício para o dia. Certamente estaria friozinho, melhor encontrar outro. Iriam para casa e voltariam no outro dia. Como as portas da loja avisavam que o dia 107


estava chegando ao fim, não foi possível ir contra a mãe. No outro dia não teve jeito, voltaram as duas até a loja. Ao se aproximar da vitrine, Fabíula relançou um olhar de contemplação. Era aquele. Marcia Regina tentou mais uma vez. - Fabíula, vai tá frio! - Não, é esse que eu quero. E é esse que eu vou usar! Com o vestido vermelho e muita delicadeza nos trejeitos, Fabíula entrou no salão. À sua volta, rostos amigáveis, verdadeiros, únicos. Com uma felicidade ímpar, a menina ia faceirando entre os grupinhos que se formavam dentro do salão. Naquele dia, era como se Fabíula entregasse um pedacinho de seu coração a cada pessoa ali dentro. Quis guardar o grande dia com cada amigo, poses, abraços, eternos registros. O sorriso não foi deixado de lado em nenhum momento, a simpatia e a delicadeza foram intensificadas, de modo que todos comentassem o estado de alegria da mocinha. E assim foi, embebida naquela toada até o último convidado acenar o adeus. *** Último dia O lençol de Fabíula estampava princesas com sorrisos infantis. Pobres princesas, no dia 13 de agosto foram todas sufocadas pelos embrulhos desfeitos da festa de aniversário ocorrida no início do mês. Os presentes eram tantos que fecharam todo o espaço da cama em que a menina adormecia todas as noites. A alegria estava refletida em cada peça que havia recebido. Difícil, porém, tinha sido acertar o tamanho exato da garota que não parava de esticar as pernas. Não era possível brigar com o tamanho dos pés e trancafiá-los numa masmorra sufocante, obrigando-os ao trabalho de levar sua dona de um canto a outro sem aparecimento de bolhas. Tampouco exibir as roupas que vagavam em seu corpo de lá para cá com o rumo certo de ir ao chão. Restava, então, solicitar algumas mãos caridosas, empenhadas no trabalho de sacolejar alguns pacotes em direção ao shopping mais próximo e dar função e utilidade para todas aquelas peças que estavam na cama, na mais atormentada solidão. Marcia Regina foi a primeira a ser escalada para a tarefa. Na outra ponta estava Ana, a amiga inseparável. Uma tarde inteira foi reservada para a troca dos presentes. A tarefa se tornou passeio, gerou risadas, conversas descompromissadas entre as três, uma parada para 108


um lanche ao final da tarde e um sorvete para refrescar o calor que tomava a cidade no quase meio de agosto. Com as bochechas rosadas, resultado da tarde estafante, Fabíula voltou-se para mãe e, com suavidade na voz, fez um pedido quase que como um suspiro vindo do coração: - Mãe, nós vamos fazer isso muitas vezes ainda, não é? *** A escada A cada degrau que desciam, o vento dos primeiros minutos da noite se encarregava de rasgar o silêncio selado entre Fabíula e Rose. Silêncio sentido e estranhado por Rose. Fabíula era sempre tão falante, a vozinha fina fazia-se ouvida mesmo quando se pedia o contrário. Ignorando o momento, Rose puxou conversa, vagou entre assuntos da casa, mas a menina estava com os lábios cerrados, resguardada em pensamentos. Rose tentou, fez algumas perguntas à Fabíula, mas, naquele momento, era como se o som não pudesse ser propagado nos metros que distanciavam as duas. Com passos largados, como se caminhasse mecanicamente, Fabíula se dispôs a seguir a companheira e elas atravessaram o portão de ferro. Um portão grande, pesado, que só poderia ser fechado após um grande empenho de força. Mas, naquele final de tarde, feito um papel, o enorme portão seguiu a rota do vento e voltou a se abrir. O barulho estridente daquela grande placa de aço batendo na parede acinzentada fez ecoar os ouvidos de Rose. Fabíula, sem se importar com o acontecido, prosseguiu com os passos mecânicos que lhe dominavam desde a escada. Rose tentou sacudir a atenção da menina, avisando que voltaria para fechar a entrada. Pediu calma, apenas alguns segundos para que pudesse puxar o portão e manter a entrada da casa em segurança. O problema é que novamente o som não chegou aos ouvidos de Fabíula. A menina continuou, poucos passos, devagar; aqueles seriam os últimos. *** A disputa Os dois carros escuros emparelharam-se no semáforo da Avenida Colombo com a Rua Lauro Werneck. Em frente às faixas brancas, 109


pintadas no chão, os motores aqueciam o asfalto com a fumaça cinza que emanava dos escapes. Os vidros, insulfilmados, eram os guardiões dos condutores. Como dever, incapacitam até mesmo os olhos mais atentos em denunciar as figuras dentro dos veículos. Quem observava, ao redor, percebia que a pressa tinha tom de disputa. As duas máquinas buscavam um pódio imaginário, resultado que mortificaria o ego do perdedor. No trabalho sincronizado, os sinais vermelhos ainda apontavam estado de inércia para os que aguardavam naquela rota, no entanto, o par de motores potentes saiu em arranque. Em poucos segundos, os que ficaram ali, cumprindo a ordem de parada, só guardaram com o zumbido estridente dos veículos, que já não podiam mais ser percebidos no local, tamanha a velocidade. Os velocímetros trabalhavam em exaustão, marcando 100, 120, 130 km/h. Quando os carros já cortavam, sem piedade, o vento da Avenida Colombo, um carro mais à frente, dificultava e impedia a competição paralela. Num movimento quase que instintivo, os dois motoristas que aceleravam violentamente atrás, abriram um para cada lado, deixando no meio, o carro menor que permanecia em seu percurso normal. Percebendo a vantagem, o motorista da pista esquerda ganhou velocidade e fez sacudirem as árvores do caminho. Ultrapassou o carro branco, num estalo de segundo. O acelerador do carro à direita se igualou nos esforços e fez o motor gritar em ritmo agonizante. Ao findar a ultrapassem do carro branco, o motorista da esquerda largou em vantagem, o da direita ainda se arrastava na mesma velocidade. De repente, um vulto, um estrondo, um torpor imediato fez reagir os sentidos, que estavam adormecidos pela irracionalidade até então. O corpo frágil de Fabíula distanciou-se do solo por 66 metros. No limite do voo, em poucos segundos, tocou o asfalto ainda aquecido pelo sol da tarde. Os olhos foram fechados no mesmo instante em que o coração, já se findando, dava seu último pulsar. O pé foi largado do acelerador por alguns segundos. O tempo era muito escasso para se lembrar do freio. Dando de ombros à ideia de uma possível parada, os dois motoristas seguiram a avenida, agora apenas com a intenção de encontrar um lugar seguro para proteger suas máquinas. O pódio havia sido esquecido. ***

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19h15 Um risco de luz clareou a avenida mais movimentada da cidade. Um barulho seco foi ouvido por todos que estavam parados, caminhando, sentados, ou mesmo, desatentos. Do outro lado da rua, Marcia Regina virava-se para servir um cliente. O bar estava cheio, rotina vivida pela comerciante todas as noites. A cerveja gelada no fim do expediente sempre garantiu aos trabalhadores enfrentar a semana com mais afinco. Reunir-se todos os dias, no mesmo lugar, com as mesmas pessoas, era ritual que sugeria amizade, companheirismo. As pessoas que preenchiam o espaço do bar aquela noite puderam empregar esse conceito. Eles não sabiam, mas seriam o primeiro suporte da dona do estabelecimento. Antes de dar às costas para a rua, Marcia Regina viu ao longe uma cabecinha miúda. O sol já se afugentava no céu, as luzes da rua já iam sendo acionadas, dando maior visibilidade aos olhos noturnos. Mesmo estando distante, a mãe pôde delinear a perfeita imagem da filha caminhando em direção ao bar. Possivelmente, seu inconsciente repetiu que dentro de alguns minutos a companheira estaria assumindo seu posto. Era ritual. Todo começo de noite, lá estava Fabíula. Nos dias de ânimo, a garota gerenciava o atendimento aos clientes. Mostrando esperteza e desenvoltura, cativava os frequentadores assíduos. *** A mãe já não clamava pela sobrevivência. Percebia, apertando o corpo da menina contra o seu, que os traços de vida já não mais restavam. Ela só propunha à ocasião a oportunidade de se despedir da filha. De desprendê-la de seu afago com uma última frase de amor. Que Fabíula repousasse enfim. Não temerosa, mas que findassem seus dias, acalentada pela voz doce e rouca da mãe, dando-lhe paz e as finadas palavras de repouso. Nada disso foi possível. Marcia Regina foi incapaz de derramar sobre Fabíula sua consolação materna. Os olhos da menina não se alinhavam mais aos seus. O corpo ainda se mantinha quente, mas a respiração estava silenciosa. Os braços longos estavam repousados, como se dispostos minuciosamente para um estado de descanso eterno. Seu rosto perdera as expressões. Os cabelos molhados, ainda pesados com a companhia 111


da água, também não mais balançavam ao vento. Os minutos seguintes vieram denunciar que toda a alegria de Fabíula estava encerrada naquele início de noite de agosto. *** Domingo Dizem que chorar alivia as mazelas da alma. Dizem, também, que quando se chora por um ente querido, esse não repousa na paz que lhe é merecida. Dizem muitas coisas. Só não dizem que chorar, muitas vezes, tem um preço. Marcia Regina traçou seu itinerário após aquele 13 de agosto. Suas manhãs de domingo seriam dedicadas à filha. O ritual matinal, inventado por Fabíula, havia sido abandonado. Uma vez, a menina exigiu, e assim se cumpriu, que aos domingos, como promessa sagrada, todos se levantariam de suas camas, sentariam-se à mesa e trocariam confraternizações no café farto de domingo. Como durante a semana a vida era corrida e cada um tropeçava nos ponteiros do relógio na hora de tomar o rumo do dia, não era possível aproveitar a companhia um do outro. Sendo assim, ficou outorgado: domingo, independentemente da hora que se adormecesse, todos tomariam o café da manhã juntos. Que graça teria retornar a esse ritual? Marcia Regina não conseguia, nem sabia organizar a mesa da mesma forma que Fabíula organizava. Preferia virar as costas ao café dominical e ir ao cemitério. Era ali que iniciava a semana. Era ali que se sentia mais próxima de Fabíula. Era ali também que padecia, resguardando um grito desesperado dentro de si. O choro, que brotava involuntariamente, só era estancado após algumas horas debruçada na morada última da filha. Depois de tantos domingos assim, envolta a flores sepulcrais, aspirando o cheiro das velas faiscadas, o choro apresentou-lhe a nota e o preço. O telefone vibrou dentro da bolsa. Após alguns segundos, pôdese ouvir do outro lado da linha o murmúrio de Fabrício, o filho mais velho. - É, mãe, você está aí, nós estamos aqui em casa. Não tem nem pão para tomarmos o café. Eu acho que não era isso o que a Fabíula queria, principalmente no domingo.

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*** O quarto Muitas noites se foram, a casa dos Coálio estava diferente, mas, no quarto de Fabíula, tudo se mantinha preservado. Os objetos ainda estavam todos lá, como que esperando o regresso da dona. Marcia Regina não encontrava forças e nem motivos para se desfazer dos pertences tão estimados da filha. Mas nesses casos, o pó é impiedoso. Sente a ausência de vida. Mesmo que outro o leve embora com algumas espanadas, o forasteiro toma conta das frestas, dos cantos mais sorrateiros e escancara a solidão em que passam a viver os objetos. Diante das lembranças, ali, tão vivas, sendo enterradas pelo pó, a família preferiu fazer sorrir quem precisava. Um a um, os objetos foram sendo retirados, levados e doados. O quarto foi ficando escuro, inebriado. Nem as lâmpadas, potentes em sua vocação, conseguiam abrir um clarão nas paredes e dar vida ao cômodo. A porta foi fechada, e ali dentro os últimos objetos adormeceram em silêncio.

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JOSI COSTA Josefa Costa Silva, 45 anos, conhecida como Josi Costa, é ex-repórter do jornal O Diário do Norte do Paraná, onde trabalhava quando cobriu o caso Fabíula, e, atualmente, trabalha como produtora de jornalismo na Rede Massa, em Maringá. Josi é natural de Inajá-PR e mãe de uma filha. Se formou em Letras (português/inglês) pela Universidade do Oeste do Paraná (Unioeste) de Cascavel-PR, em 1992, e em Jornalismo pela Universidade do Oeste Paulista de Presidente Prudente (Unoeste) - SP, em 1999.

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O encontro foi marcado para o segundo sábado do mês de maio. O dia no calendário denunciou uma agradável coincidência: era véspera do Dia das Mães. Acordar cedo num sábado nem sempre anima o relógio do espírito, mas naquele, em especial, era importante, valia o esforço. Ao chegar ao condomínio da entrevistada, o interfone disparou o alarme para o apartamento. Convidados a entrar, esperamos o encontro pelo rosto até então desconhecido. Um sorriso aberto veio ao nosso encontro. Pele clara, cabelos curtos, roupas leves, ajustadas à comodidade de casa, faziam par com os calçados abertos que deixavam os dedos respirar. Prontamente, rumou em nossa direção a passos largos. Os olhos da jornalista ainda brigavam com a luminosidade que insistia em flamejar por cada brecha de árvore. Mesmo assim, ela se esforçou para analisar os dois rostos à sua frente. Era a repórter que havia feito a cobertura do caso Fabíula. Josefa Costa Silva, conhecida como Josi Costa no meio jornalístico, 39, já passou por muitas Redações dentro e fora do Paraná. Sempre gostou da cobertura popular e se sentiu bem indo atrás da informação, buscando a história, conhecendo de perto as personagens. Naquele sábado, ela iria detalhar como foi a cobertura da personagem mais marcante de sua carreira. Um calor gostoso já havia despontado com o Sol. A entrevista, feita ao ar livre, dava mais liberdade para falar dos assuntos dolorosos do passado. O condomínio, desses que se idealiza morar pela tranquilidade, ainda estava acordando. Sedentas para brincar no parquinho, as crianças começavam a fazer coro ao fundo da gravação, tamanha a algazarra. Os carros passavam lentamente. Com olhar atento, era possível observar as sacolas de feira nos bancos de trás de alguns automóveis. Os banquinhos próximos à pracinha estavam bem convidativos. O ar estava fresco, dando uma sensação boa de temperatura na medida certa. Todos acomodados, já era possível começarmos a traçar internamente o perfil da profissional. De início, ficou claro que Josi mantinha uma visão certeira no fundo dos olhos. Isso nos alimentou de expectativas. Uma conversa é sempre mais proveitosa quando, além das palavras, se troca também confiança – o olhar da jornalista denunciava isso. Ela, da mesma forma, empregava muito bem o papel de leitora de seus personagens do dia. Mas, naquele momento, os papéis se invertiam e a entrevistadora se tornava a entrevistada. A jornalista delicada, de voz suave, balançava o chaveiro que 117


havia trazido consigo. Mostrava interesse no conteúdo das perguntas que revelariam o caso mais valioso da carreira. Com as apresentações devidamente feitas, o primeiro questionamento foi lançado: Qual havia sido o primeiro contato de Josi com a história de Fabíula Coalio? Estava no jornal [O Diário do Norte do Paraná] havia três anos, fazendo a cobertura de ‘geral’ [cidade]. Eu já era vista como alguém que produzia matérias com maior apelo popular. Me dedicava a esses casos, porque isso está em mim, eu gosto. Por conta disso, a história chegou até mim. O Edvaldo Magro, que era meu editor na época, me pautou para fazer a primeira matéria do caso Fabíula. Enquanto costurava o passo a passo da cobertura, as chaves continuavam a balançar com o impulso das mãos. Em dado momento, o olhar de Josi desviou, como se procurando um refresco para as próximas palavras. Não teve jeito. As sobrancelhas arquearam no mesmo instante em que a voz deu sinais de falha. Uma pausa curta, um princípio de lágrima interrompeu a interlocução. Naquele momento, foi possível sentir o quanto o caso Fabíula Coálio ainda mexe e desvia a paz da vida de Josi Costa. As palavras foram tomadas por uma rouquidão momentânea. Eu quis ir até à casa da família. O fato era muito recente. Não me recordo se foi no dia seguinte ou dois dias depois. Na primeira matéria, fui até à casa da Regina e eu quis entrar no quarto da menina. Para mim, foi como se eu tivesse sido arrebatada pela causa. Dentro daquele quarto, vendo que tinha ficado tudo do jeito que ela tinha deixado. O travesseiro virado, as coisinhas dela na parede, o urso. A partir dali eu prometi que iria me empenhar. Após um suspiro longo que pareceu ter renovado as forças das palavras, Josi foi pontuando os motivos do arrebatamento. Essa história mexeu muito comigo. Eu tinha uma filha com a mesma idade [de Fabíula] na época. Tanto eu, quanto o secretário de Redação e o meu editor. Isso é uma coisa importante de dizer. As três pessoas envolvidas diretamente na cobertura tinham filhos mais ou menos na mesma idade. É impossível dizer que você não se envolve, que você é simplesmente alguém que vai redigir aquela matéria, registrar. Isso não existe. Isso só existe em Manual de Redação. 118


Pedimos, então, para que ela se recordasse do primeiro contato que teve com a família. Apurando as pálpebras, ela parecia olhar para dentro, buscando as imagens para narrá-las. Mais uma vez a voz ficou miúda. O primeiro contato com a família foi muito difícil. A hora que eu entrei naquele quarto e vi o desespero daquela mãe, daquele pai, daqueles irmãos. Ela [Fabíula] não estaria mais no quarto e não estaria ali nunca mais. O clima de perda, de tristeza enchia todo o ambiente. Quando eu fui me dando conta, ali, dentro daquela casa, que nunca mais ela veria a menina, nunca mais eles comemorariam o aniversário dela. Todas aquelas coisas do quarto seriam guardadas ou largadas ali, porque ela nunca mais iria tocar. Tudo aquilo me deu uma revolta muito grande. Josi conseguiu, naquele momento, materializar por meio de expressões e oscilações no tom da voz, a dor que tomou para si logo após ter conhecido os Coalio. Sem medo de esbarrar nas convenções jornalísticas, ela apoderou-se de coragem para contar um pouco da revolta que lhe arrebatou naquele dia. Me deu uma revolta porque eu pensei: espera aí, até que ponto alguém tem o direito de acelerar um carro numa via publica, matar alguém e nada acontecer? Porque não tinha ninguém preso ainda. Ninguém sabia direito o que estava acontecendo, mas ali existia um crime. Para mim era muito claro que existia um crime. E a partir do momento que eu percebi que ali existia um crime que precisava ser punido, foi o que me alimentou. Ali eu não era só repórter. A volta para o local de trabalho sentenciou o que estaria por vir da cobertura daquele caso. Colocar no papel as impressões, os fatos, os detalhes, mexeu com a mente de Josi, motivo que a fez indagar sobre qual seria o encaminhamento do material. Pela primeira vez, a jornalista questionou a si mesma a respeito do cuidado em produzir um trabalho. Eu fiquei na casa dos Coalio por volta de uma hora e meia. Quando voltei para a Redação, sentei à mesa do computador, não sabia nem por onde começar. O que tinha dentro de mim era tão grande, que eu falei baixinho: meu Deus, como eu vou filtrar isso? Como eu vou pôr no papel tudo isso que eu estou sentindo? De que forma? Se eu for seguir o Manual de Redação, eu não vou falar 1% do que eu estou sentindo, do que eu vi, isso não vai fazer diferença nenhuma, será só mais uma matéria. 119


Conversei com o Zanatta [Marcos Zanatta], o secretário de Redação e falei: essa é uma história que nós vamos ter que ter muito carinho. O que você acha? Ele disse pra eu escrever o que estava sentindo. Sentei ao computador e relatei tudo. Eu simplesmente coloquei os meus sentimentos naquele material. Eu não estava me importando com regras jornalísticas, eu não estava nem aí. O que eu queria mesmo era que no outro dia, quando as pessoas lessem a matéria, elas ficassem do meu lado. Mas não do meu lado ego, do meu lado para fazer com que essa história servisse de exemplo para alguma coisa, que alguém fosse punido, que isso mudasse a realidade, de alguma forma. Não podia ser mais um crime. “Ah, mais uma criança foi atropelada.” Não. Ela não foi atropelada, ela foi assassinada! Na tentativa de buscar uma punição para os dois culpados, Josi tinha consciência de que a opinião pública seria o chamariz para qualquer tipo de decisão judicial. Diante desse pensamento, ela não mediu nenhum tipo de esforço. O deadline não implicava ponto final para o texto. As portas da Redação sendo fechadas, tampouco, e com sua ferramenta de trabalho, o texto, foi, aos poucos, fazendo a população entender o que havia acontecido naquele fatídico final de tarde. Tinha a obrigação de colher o máximo de informação, não só para o jornal, mas também para ter a opinião pública do meu lado. Eu queria a opinião pública do meu lado, a qualquer custo. A partir daquele dia, apesar de todas as matérias que eu tinha do dia a dia, eu me dedicava todos os dias àquele caso. Eu falei com vários promotores, assistentes do Fórum. Eu ligava no Fórum, ia até lá fora do meu horário de trabalho. Quando eles começaram a perceber meu empenho fora do horário, passaram a entender que aquilo era uma causa importante para mim. O empenho da jornalista foi além da cobertura. Antes do caso, Josi disse que não se preocupava muito com os aspectos policiais e judiciais que explicam o universo criminal. Mas sentiu a necessidade conhecer e entender os detalhes que se amontoavam diante da investigação do caso. Foi quando organizou todo o tempo que tinha para encaixar um exercício a mais na agenda do dia: compreender melhor as minúcias da Justiça. Quando eu vi a qualificação de uma das promotoras [Mônica Louise de Azevedo], enquadrando o crime como se fosse culposo [quando não há a intenção de matar], a minha revolta dobrou. Ela estava qualificando o crime como se eles tivessem apenas culpa e não precisassem ser criminalizados pelo 120


ato. Eu falei para mim mesma: não, aí tem alguma coisa errada! Eu me lembro que essa promotora estava grávida e eu fiquei mais revoltada ainda. Eu sabia que ela precisava ser imparcial, mas como podia qualificar da noite para o dia? Havia sido muito rápido, ela não havia estudado o caso. Para ela estava sendo apenas mais um caso. Até então, eu fazia minhas coberturas sem muita preocupação em conhecer a legislação. Esse caso me fez estudar. Eu fui procurar advogados. Inclusive, o Israel Batista de Moura [advogado criminalista] me ajudou muito. Eu conversava com o Israel todos os dias, eu ligava, pedia para ele me explicar. Eu queria entender, porque eu não queria escrever besteiras, eu queria fazer tudo da forma mais correta possível. Eu comecei a estudar para entender. Mais uma vez, o texto foi a arma da jornalista. Decidida a mostrar a importância do caso, ela se afundou na frente do computador e, lá, pôde, mais uma vez, chamar a atenção para a história. Fiz uma matéria em cima disso, questionando a qualificação, colocando todos os ingredientes que deveriam qualificar o crime como doloso. Nós [o Diário] batemos nessa tecla por um bom tempo, porque o intuito era desqualificar o que ela [promotora] estava querendo. Era tornar [o castigo] mais rigoroso. Com mais rigor eles [os atropeladores] poderiam ir a júri popular, como foram. Essa foi a parte mais importante de toda a cobertura. Mudou tudo. Mudou o juiz, e eles foram enquadrados [por dolo]. Na primeira conversa por telefone, eu senti que ele [o juiz] estava muito mais disposto a entender que aquela história precisava ser melhor estudada e que não era tão simples. Ele jamais falaria contra a colega dele, só que, na conversa por telefone, eu percebi que ele iria se empenhar para mudar, e, de fato, mudou. A partir daí, a cobertura se tornou policial, porque saiu do simples fato e foi para a questão de polícia. Ficou mais complicado porque eu tinha que cobrir Polícia Civil e Fórum. E eu não ficava só nisso, eu tinha todas as minhas obrigações e mais isso. Eu já tinha experiência com o ambiente de delegacia, de Fórum, eu já tinha um certo traquejo, mas esse foi o maior caso. Qualquer pessoa que olhar o processo hoje vai ver que foi mudado de crime culposo para doloso, tanto que eles foram a júri popular. No meio dessa cobertura houve um apelo popular, um protesto. Porque o clamor público faz a Justiça acelerar e realmente buscar todos os caminhos para punir o crime, até para dar uma resposta à população. O repórter tem uma função, ele tem um momento para agir. Meu intuito era insistir, porque depois que o processo fosse montado, depois que a Justiça qualificasse de vez, não teria muito que fazer. Só se o advogado entrasse com uma ação, pedisse revisão. Eu percebia que no Fórum a história era assunto em 121


pauta - no meio policial, no meio judicial. O caso foi tomando proporções incríveis. A cidade inteira passou a comentar a história. A foto de Fabíula já era conhecida por todos. Nesse momento, era necessário cuidado ainda maior para que a cobertura não fosse desviada do caminho e acabasse ganhando contornos sensacionalistas. Eu sempre soube separar notícia e sensacionalismo. O fato em si já era tão forte e revoltante que dispensaria qualquer apelo sensacionalista. Nunca cobri qualquer fato sem tentar ouvir a versão do outro lado e não foi diferente nesse caso. Eu não olhei só o lado do crime. Fui procurar um deles [Marcos Jesus da Silva] que era o que tinha o carrinho de cachorro-quente, quem de fato atropelou a Fabíula. Eu liguei para ele depois de inúmeras matérias, falei quem eu era, ele me atendeu. Eu disse que queria conversar com ele, olhar no olho, queria saber como ele era, que tipo de pessoa ele era. Sabe o que eu vi? Eu vi um menino que não teve nada na infância. Que assim que ele pode, comprou um carro. E ele estava ali naquela avenida, brincando. Como se estivesse brincando com um carrinho de rolimã numa rua qualquer. Aí vem o outro lado. Que histórico que essa criatura tem? Quando ele pensou que ia matar uma pessoa com o carro dele? O que ele não passou depois do atropelamento, escondido? Porque ele passou horas escondido. O jornalista precisa pesar os dois lados. Tem uma matéria que fala desse encontro. Eu senti muita pena dele. É como se isso tivesse me dado um contrapeso diante dos meus julgamentos. Mas, mesmo assim, são adultos, informados. A partir do momento em que você chega à maioridade e está em um volante, passou por uma autoescola, teve instruções. Você está numa via pública, tem uma placa mostrando o quanto você pode correr. Digamos que eu senti pena dele, por ele. Pelo que ele ia passar. Ele tinha filho pequeno. A família dele estava sofrendo também. Não tanto quando a outra que perdeu a filha, mas estava sofrendo também. Só que isso não me fez mudar o que pensava, mas eu quis ter esse contato, eu queria conhecer a pessoa. Eu fiquei sabendo, por meio de um sobrinho meu, que o rapaz de Floraí [Luiz Cavicchioli Forini] era o ‘boyzinho’ na cidade. Comportamento “kamikaze” mesmo. Eu compreendi que o histórico revelava que algum dia aconteceria algo, que não foi um fato isolado na vida dele. Não sei por que, até hoje, eu acho que o grande incitador é o de Floraí, não é o de Maringá. O daqui me recebeu com muita simplicidade. Tem uma coisa que é você olhar no olho da pessoa e eu não me engano. Quando você olha no olho da pessoa, consegue perceber se está sendo sincera, a menos que seja um psicopata, que logra até 122


psicólogo. Mas a pessoa se mostra no olhar. E eu percebi que ele, em parte, era vítima também. Eu nunca consegui falar com o outro, embora tenha tentado, nunca consegui. Para mim o que fica é que o inacessível deve mais. No jornalismo é assim: quando a pessoa não quer falar com você, ela teme. Por que o daqui falou comigo e o de Floraí não? *** A ligação com Regina Coalio À medida em que conhecia Regina, mãe de Fabíula, Josi Costa conseguia delinear a imagem da menina. Conforme registrava a ideia da personalidade da garota estudiosa, ela guardava ainda mais o caso em sua mente. A essa altura, a aproximação com Regina foi inevitável. Ficava com duas imagens na minha cabeça. A imagem da Regina, desesperada, e a foto da Fabíula com aquele chapéu, a foto clássica dela. Aquela menina sorrindo para mim. Aquelas duas imagens ficaram por muitos anos. Eu ligava para a Regina, para saber como estava a casa e eu ficava pior. O pai estava em depressão. A família foi destruída, caiu um raio lá dentro e levou uma pessoa. Eu mantive contato com a Regina por muito tempo e era impossível desligar. Acabei conhecendo a Fabíula porque, conversando com a Regina, ela contava tudo. Do que ela gostava, dos sonhos, que ela queria ser veterinária. Por vários anos eu me lembrei do aniversário dela. Ficava pensando: esse ano ela faria tantos anos. A idade da Fabíula era muito próxima da idade da minha filha. Nas outras conversas que eu tinha com a mãe dela, ficava muito claro para mim como era a personalidade da menina brincalhona, independente, amorosa. Eu tinha essa visão. Ali misturava um pouco a Josi amiga, mãe e repórter. Era uma mistura, mas eu separava no momento em que precisava fazer meu trabalho. É difícil você estar sempre procurando a pessoa para tocar no assunto que a fere, você tem que ter muito jeito. Vai ter dias em que a pessoa não vai estar disposta e você tem que entender. Houve dias em que eu ligava e ela dizia: “Josi, não vai acontecer nada. Esses bandidos estão soltos por aí e minha filha está morta.” Eu tinha que concordar com ela e não insistir. Naquele dia não tinha matéria, eu ficava conversando com ela. Ela dizia: “não quero falar, meu marido está em casa dopado, não quero falar nada.” Muitas vezes eu fiz algumas matérias curtas só para o caso não cair no 123


esquecimento, mas teve muita coisa dos bastidores que eu filtrei, que achei que não valia a pena, que era muito dela. Por exemplo, algumas vezes eu senti nela uma revolta tão grande, que eu percebia que a vontade era realmente se vingar. Em nenhum momento publiquei isso, porque achei que se o fizesse, estaria inflando, incitando alguma coisa do tipo. Você não sabe quem vai ler aquela matéria. Pode ser uma pessoa equilibrada e pode ser alguém que já tem raiva do cara. *** Os momentos difíceis da cobertura A apuração não podia ser descuidada. Rumores de todos os lados tornavam ainda mais complexa a história por trás dos dois jovens que haviam atropelado a menina Fabíula. Nesse ponto, saber o que e a quem ouvir era primordial. Chegava até a Redação muita fofoca também: ‘eles estão bebendo, continuam nos bares...’. Eu não dava muito ouvidos para isso, porque poderia ser verdade e poderia não ser. Checava, mas não obtinha nada disso, deixava para lá, era fofoca. Eu cheguei até o Edvaldo [editor] e falei que, naquele momento, eu precisava me afastar um tempo. Eu me afastei, mas apenas por alguns dias, porque eu não parava de pensar na história. De volta à Redação, depois de alguns dias distante do caso, Josi retomou as suítes [matérias que dão sequência a uma notícia] do triste atropelamento na Avenida Colombo. As semanas foram passando, os meses entrando e só assim foi possível dar mais atenção para as outras pautas do dia a dia. Começava o processo de virar a página do caso Fabíula. Mesmo sentindo um ardor na garganta, por conta dos passos lentos da Justiça, era necessário deixar a história chegar ao fim. Eu desligava pouco. Só consegui desligar quando passou um tempo, que a gente terminou, porque chega uma hora que a cobertura se esgota. Você tem que ter essa noção, porque aí se torna algo pessoal, não pode ser pessoal. A causa não pode ser tua. Não era uma causa minha, era da sociedade. E aí chegou uma hora que se esgotou, não sei em que período, não me lembro qual foi a última matéria publicada, mas acabou naquele momento. Mesmo a história não estando estampada na capa do jornal todos os dias, a tentativa de mudar o rumo das investigações já podia 124


ser sentida. O emaranhado de matérias produzidas por Josi Costa fez acordar a sociedade maringaense para uma discussão e uma reflexão importante a respeito da segurança no trânsito da cidade. Não demorou muito para que isso incomodasse quem esperava um desfecho diferente para a história. Nesse período nós recebemos uma ameaça, por telefone, na Redação. Quem atendeu foi meu editor. A ameaça dizia para nós largarmos o caso. Dizia que nós tínhamos filhos. Eu fiquei muito preocupada. Fiquei preocupada porque minha filha tinha 12 anos, na época, e ela andava sozinha pela cidade, ia para escola sozinha. Comecei a temer, eu pensei: não sei até que ponto isso pode chegar. Como cheguei a entrevistar um deles, percebi que estavam tranquilos. Eles tinham matado uma criança, mas estavam tranquilos. Com tudo isso, então, eu saí de Maringá. Fui para Presidente Prudente, depois fui para Cuiabá [Josi Costa ficou fora de Maringá de 2002 a 2009]. Quando eu saí da Redação, nenhum outro repórter assumiu a continuidade. Os fatos novos foram para a cobertura policial. O Roberto Silva passou a acompanhar quando tinha algo novo. É diferente a cobertura de um geral com desdobramentos. O [a editoria] policial tem que cuidar de todos os casos. Não pode dar muita atenção para um ou outro caso. Tem que dar atenção para todos de maneira bem equilibrada. Percebi que houve uma lacuna. Se você pegar os arquivos, vai perceber que a história não teve uma sequência. Eu fui acalmando na medida em que a Justiça começava a tratar o caso com importância, com a atenção que o caso merecia. Era como se aquilo fosse me trazendo um alívio. Fiquei longe do jornalismo um tempo. Esse caso mexeu emocionalmente comigo em todos os aspectos. Me fez perceber o quanto a vida é frágil, me deixou muito fragilizada durante a cobertura, porque eu percebia que, pela profissão, eu ficava pouco com a minha filha. Eu percebia que o que havia acontecido com aquela criança poderia acontecer com qualquer outra. Houve esse lado emocional muito forte. As marcas da cobertura ficam evidentes no depoimento da repórter. O distanciamento entre o jornalista, a fonte e o fato, tão apregoado dentro da profissão, deram lugar ao envolvimento com o caso. Eu me tornei, ao mesmo tempo, mais sensível, me trouxe mais sensibilidade no tratamento com essas questões mais delicadas do dia a dia, me deu um traquejo, me ensinou como lidar com situações trágicas, a trabalhar com situações trágicas e traduzi-las para o jornal ou qualquer outro veículo. 125


Mas, do ponto de vista psicológico, me trouxe alguns danos. Isso quem diz é minha família. Até 2003, eu era mais calma, era mais leve no meu modo de ser. A partir dali, as coisas começaram a ficar mais urgentes para mim, mais contundentes com relação aos assuntos de casa, do trabalho. Me tornei muito mais critica. Ácida, acho que essa é a palavra. Tinha cuidado na hora de escrever para não ferir as três famílias. Isso desgastava. Era muito fácil escrever tudo aquilo, jogar tudo no papel. O que desgastava era filtrar. Às vezes guardar para você, em vez de colocar no papel, é que desgasta. É como se você não pudesse desabafar, porque a função do jornalismo não é desabafar. Tudo o que você guarda, te prejudica. Você gostaria de falar, mas não pode, tem que ter essa noção. Sabia que tinha, pelo menos, três famílias que iam ler. Isso poderia prejudicar de alguma forma. Judicialmente, emocionalmente, eu pensava muito. Cheguei a pensar: e se fosse comigo? Como a minha filha é o grande motivo da minha vida, ainda que fosse a única coisa que eu fosse fazer na vida, iria mover céus e terras para ver os dois presos, porque eu ia ter tempo. Não era o caso da Regina. Ela tinha marido, dois filhos. Eu, na época, estava separada. Era só eu e a minha filha. Então para mim era muito fácil falar que ia fazer isso, mas ela não podia fazer nada. Senti que com o tempo a Regina conseguiu compreender que a vida precisava continuar e que ela tinha mais dois filhos. Ela precisava dar amor para esses dois filhos e ainda amparar o marido. Ele sofreu, para ele foi mais difícil, porque ele queria tomar uma atitude, coisa de homem. Tanto que ela continua trabalhando. Ela fechou o bar por um tempo, mas depois continuou. O que sobrou para a Regina foi a justiça divina. O que é espiritual fica na pessoa. A carga espiritual ficou. Nisso eu acredito, já no judiciário eu acredito pouquíssimo. É muito difícil quando você é jornalista e cobre casos do dia a dia que dependem da Justiça. Você não acredita nela. Vai escrever uma coisa que sabe que não acontece. Ela falha e falha muito. Falha desde o momento da perícia, no lugar do crime. A falha já começa ali. *** Descrédito pela Justiça Apesar de não se arrepender da fustigante cobertura que fez, a jornalista se sente frustrada com a Justiça pela punição que os dois rapazes receberam. Quando voltei para Maringá, coincidentemente, eles estavam indo a júri popular. Ao voltar e perceber que nada tinha acontecido, senti uma decepção 126


enorme, um desencanto bastante grande com o trabalho. Mesmo assim, valeu a pena porque eu dei o melhor de mim. Eu fiquei quantas horas foram necessárias na Redação para fazer o meu trabalho. O meu trabalho eu fiz. Tenho a sensação do dever cumprido. Não sei se eu tivesse continuado em Maringá, insistido no caso, se isso teria mudado, não sei mesmo. Não faria nada diferente. Esse foi um dos casos em que eu pude perceber o quanto a função do jornalista precisa estar afinada com os interesses populares. Independentemente se a Justiça ou outros poderes se manifestam, esse é nosso dever. Embora eles não tenham cumprido pena, eles ficaram conhecidos, certeza que algumas coisas na vida deles mudaram, no ponto de vista de pai, mãe, até a questão profissional. Eles tinham tanta certeza que seriam presos, que um deles foi estudar Direito. Ele temeu. A prisão seria uma excelente resposta para a sociedade, para os pais. Mas eu não sei o volume de perdas que eles tiveram. É uma coisa interessante para se apurar. Pegar esses dois rapazes e saber o que mudou na vida dos dois depois desse crime. Eu tenho certeza que eles não saíram impunes. O emocional, o psicológico, às vezes pesa muito mais do que uma cela. Para ser bem sincera, são poucos os episódios em que eu acredito na Justiça. O que a gente lê é que a Justiça tarda, mas não falha. Para mim, a Justiça que tarda já está falhando. Ela já falhou no tempo que demorou em dar uma resposta para a família e quando deu essa resposta, foi insatisfatória. Se essa menina fosse filha de alguém, de um político influente, de qualquer pessoa de poder aquisitivo alto, vocês podem ter certeza que eles não estariam soltos. Infelizmente, no Brasil, a Justiça só é rápida quando também é acionada por alguém que tenha dinheiro. *** Ainda restam lembranças Oito anos se passaram. A ligação entre Josi e Marcia Regina foi sendo desligada ao longo do tempo. Processo natural. As pessoas se afastam, mudam. No entanto, as lembranças permanecem dentro de um espaço sagrado, em que mesmo correndo o tempo ou não mais vendo-se os rostos, ficam para sempre lá, acomodadas. Basta um detalhe para que todas voltem, angustiem o peito e faça reviver tudo novamente. Eu não tenho contato, há um ano, com a Regina. Mas tenho um carinho imenso por ela. Solidariedade, talvez, soe melhor do que amizade para descrever o tipo de relação que mantivemos durante o tempo em que o caso 127


era assunto quente na mídia. Na época desse acidente eu já tinha experiência e traquejo suficiente no Jornalismo para conduzir o trabalho como deveria. Nunca ‘usei’ fonte alguma apenas para obter informações. Coisas são feitas para serem usadas e nunca pessoas. Esse respeito não está em manuais de Redação, costuma-se aprender desde o berço. O que ainda mexe comigo é que todo ano, no aniversario da minha filha, eu me lembro da Fabíula. Lembro que a mãe dela só pode ir ao túmulo. Era a única menina que ela tinha. Menina é diferente. Quem tem menina sabe que é diferente. Menina é mais parecida com a mãe. Eu só tive a minha filha, mas eu percebo que menina é diferente para a mãe. É uma extensão. Uma coisa que me machucava muito era quando ela falava: ‘era minha menina!’ Uma parte dela foi embora e ela não pôde resgatar isso. Nenhum momento ela quis ter outro filho, ela não teve, ela podia. Regina era jovem na época. Eu não me esqueço dela. É um dos personagens vivos para mim. Até hoje, de todos os casos que eu cobri. E eu cobri inúmeros casos trágicos. Tanto aqui, quanto em Cuiabá, quanto em Prudente, porque eu trabalhei nessas três praças depois de um tempo, mas nenhum mexeu tanto comigo. É impossível esquecer. *** Texto para todas as editorias O que pesou para a jornalista durante a cobertura foi que a vontade de se dedicar unicamente ao caso ficava apenas na vontade. Juntamente com as linhas escritas sobre Fabíula Coálio, a jornalista se desdobrava para dar conta de fatos totalmente opostos à grande história. Era difícil conciliar a cobertura do caso com a produção diária, dar atenção especial sem deixar de lado o outro trabalho. Eu não tinha esse luxo de ser repórter especial exclusiva daquela matéria. No mesmo dia, tinha várias matérias publicadas além daquela. Aí que está. Talvez se eu tivesse sido destinada para cobrir esse caso somente, de repente, a cobertura seria muito melhor. Teria mais tempo para me dedicar. É tudo muito superficial, muito rápido. Quando você é superficial, deixa de cumprir o papel. Você só consegue mudar situações sociais se conseguir chegar ao fundo de uma situação. Não é trabalhando na superficialidade que você vai formar uma opinião. Ninguém fica rico sem ter um planejamento, a menos que ganhe na Mega Sena, você tem que ter uma persistência, tem que ter um projeto, tem que persistir. 128


No jornalismo é assim também. Se você realmente quer ser condutor da mudança, tem que focar e se aprofundar. Ver todo o contexto e manter uma regularidade no assunto para não cair no esquecimento. Hoje todo mundo fala do mesmo assunto, uma semana depois, ninguém fala mais. E tem muitos casos por aí, gravíssimos, tão graves quanto esse, que caem no esquecimento. E aí não há uma dedicação. E não é porque o repórter não quer, não é isso. É porque não existe esse desdobramento, ele não tem tempo, ele fica na superficialidade, na factualidade. A imparcialidade que sempre pratiquei foi a de não julgar ou apontar culpados, mas oferecer elementos para o leitor formar sua opinião. Porém a distância entre a imparcialidade e a indiferença e frieza com que se registra um fato é muito tênue. É preciso sempre diferenciar um episódio que envolve interesse coletivo, fatos graves com ‘receitas de bolo’. A objetividade no jornalismo está em dar a notícia de forma direta, clara, concisa com linguagem culta e simples que prenda o leitor. Porém, muitos confundem objetividade com informação truncada, seca, em que as coisas são ditas à queima-roupa, sem as respostas essenciais. Esse estilo, que cabe muito bem em notas de falecimento, nunca me atraiu nem como repórter e muito menos como leitora. As pessoas começaram a ler as matérias do caso Fabíula e passaram a me identificar no caso. A partir daí trouxe, no aspecto profissional, um reconhecimento que não se traduziu em remuneração, mas abriu todas as portas profissionais. Me tornou conhecida em todos os meios de comunicação. Hoje, quando falam do caso Fabíula, as pessoas vão se lembrar do meu nome. Isso é importante do ponto de vista profissional, você ser lembrada por uma causa nobre. Isso me deixa feliz. Esse caso mudou tudo, foi um divisor para minha carreira. *** Avenida Colombo Mesmo não tendo presenciado o acidente que matou Fabíula Coalio, a Avenida Colombo deixou um trauma na vida de Josi Costa. A repórter deixa claro que evita usar aquela via para quaisquer locais aonde vai. Se tem um lugar que não tem quem me faça andar de carro em Maringá é na Avenida Colombo. Eu não passo. Vou para casa da minha mãe e teoricamente teria que passar por lá. Eu peço para o meu marido cortar o caminho e já sair perto da entrada de Paranavaí. Quando eu estou com outra pessoa e tem que passar por lá, eu nem 129


converso. Aquela avenida me traz algo ruim, me traz alguma coisa muito ruim. Eu tenho medo de andar lá, não me sinto segura. Ela me lembra morte. Hora que saio de casa, que sei que tenho que passar por lá, se tiver como escolher, eu não vou. Há uns três meses, eu fui numa gráfica que fica lá, mas dá para você vir pela Avenida Dezenove de Dezembro, não precisa passar pela Colombo. Eu desci, parei na gráfica e não consegui retornar. Eu tive que andar dois quarteirões na Colombo. Eu não via a hora de sair daquela avenida. É uma avenida, para mim, que ficou algo ruim. Eu não consigo andar lá, de verdade, eu não consigo dirigir lá. Eu não comento isso, eu guardo isso para mim e minha família fala que eu sou medrosa, que eu comprei minha carteira e isso me fere. Se eu for falar para eles o porquê, eles não vão entender. As pessoas não têm obrigação de entender o que existe dentro de você, ficaram alguns traumas. *** Ensaio para a despedida A jornalista, por vezes, insistiu em falar, durante a entrevista, que a aposentadoria está próxima. No entanto, o semblante demonstra que a ideia pode ser contrária. Josi gosta do que faz, isso é perceptível. Ela sente prazer em ver seu trabalho sendo reconhecido, comentado, valorizado. Analisa, discursa, teoriza sobre o rumo da profissão, sem deixar de lado o encanto que a cativou para tornar-se jornalista. Quando eu entrei na Tibagi [TV Tibagi, sucursal de Maringá] em 2008, vieram algumas pessoas de Curitiba para fazer seleção, e uma das gestoras de RH [Recursos Humanos] me perguntou qual havia sido o caso mais importante da minha carreira e, claro, eu falei e ela quis saber algumas coisas do caso. É impossível, pode passar muitos anos, é impossível não viver tudo aquilo, ver tudo muito claro. E a cada vez que me recordo, me emociono. Isso mexeu tanto, que, hoje, quando existe algum caso que envolva adolescente e criança eu tento não me envolver. Se eu puder, eu não faço, eu evito. Tem o jornalista frio, tem sim, mas ele não é jornalista. Ele só fez uma faculdade e tem um título. Esse jornalista frio que faz um relatório, não é jornalista de vocação. Ele nunca vai fazer diferença, ele nunca vai se envolver. E quem não se envolve, não muda nada. Muitas vezes, eu vejo algumas histórias no jornal, na internet sendo relatadas com uma frieza que me choca. Em dez linhas o jornalista resume que a pessoa foi trucidada e acabou. Nem o atropelamento de um cão se redige com tanta frieza. Você não vê ali, uma frase que realmente dê o tom da seriedade do 130


negócio. É tudo muito banal. Há cinco anos eu estou tentando me despedir da profissão. Há cinco anos eu decido que vou parar. A minha paixão é o jornalismo impresso, que permite que você tenha contato com as pessoas. Essa é minha escola, era o que me alimentava como profissional e eu não vejo mais isso nas páginas de um jornal. Talvez se consiga fazer isso numa revista, talvez. Porque você tem mais tempo para apurar. Hoje, se eu fosse continuar no impresso, eu teria que ir embora para uma capital e conseguir emprego numa boa revista. Aí eu me sentiria satisfeita pelo meu trabalho. Estou há cinco anos tentando me despedir, mas não consigo. Eu entro, eu saio. E todas as vezes que eu entro, quando percebo, estou envolvida em casos enormes. Por isso eu falo, jornalismo é uma espécie de religião. ‘Ah, eu vou largar.’ Não é assim, estou tentando, mas não é fácil. Como eu gosto muito de jornal e eu estou vendo o jornal se transformar em relatos curtos, frios, isso não me satisfaz mais. Nunca fiz jornalismo por dinheiro, porque o salário não é lá grandes coisas. Você pensar que o jornalista ganha dois mil reais para trabalhar por cinco horas, numa empresa que realmente te faz trabalhar só cinco horas, acho que ainda é um salário razoável, comparado com a maioria dos brasileiros. A gente reclama, fala mal, não é assim, não. Não é tão ruim. Eu estou fazendo pós-graduação em moda, mas fico com um pé lá e outro cá. Eu fui para a pauta da TV, porque eu posso direcionar o repórter e dizer cubra isso e continue. Só fui para a TV para ter essa autonomia, porque TV nunca foi meu foco. Na faculdade eu cedia meus horários para os meus colegas. Eu nunca fui para o laboratório de TV, a minha paixão é escrever. E outra coisa: as pessoas que leem jornal são as que têm mais sensibilidade e querem se envolver. Você assiste a uma matéria na TV, se te chamou a atenção, você não vai procurar informação em outro lugar ou você fica satisfeito em desligar a TV?

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CAPÍTULO TRÊS CLEUDISSON

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A pureza do sítio A casa feita com estacas de madeira aquecia quem ali morava. Do lado de fora, as folhas molhadas de orvalho recebiam o vento que trazia a manhã de inverno. Os galos cantavam alto, anunciavam o nascer da manhã. Os olhos abriam. Era dia de trabalho na roça fria de Marau, a 263 quilômetros de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Lourdes acordou cedo. Tomou o leite que as vacas lhe ofereceram. Puro como sua alma. E um banho rápido e frio. Mesmo com os afazeres do sítio, aquele dia seria especial, como vinham sendo todos os outros. Ela iria à capela, na cidade, onde encontraria o homem que lhe tirava o ar. Antônio era o nome dele. Por lá, os sorrisinhos e a troca de olhares atravessavam os bancos entre as preces. Os dois esqueciam a missa, algumas vezes, para se admirarem com timidez. Só depois de rezar o terço, até às 16h, em média, eles se davam ao capricho de conversar com o outro, ainda que com parcimônia. Lourdes observava o pretendente jogar cartas com os outros rapazes no restante da tarde. Antônio admirava a moça, já no pôr-do-sol, indo embora pelos caminhos de terra que levavam à zona rural. A vida no campo era simples. O namoro também. Amar, à época, era ser melhor amigo, estar sempre presente; era admirar o outro a uma distância razoável, que não rendesse burburinhos entre os outros moradores. No máximo, beijinhos recatados coroavam a relação. Foi assim quando Lourdes e Antônio se uniram. Eles andaram de mãos dadas por cinco anos. Lourdes, faladeira, cobrava o quietão Antônio. Queria se casar, ir embora dali. Eles tinham de crescer, formar uma família. O homem não teve escolha. Teve de, num jantar com o pai da moça, pedir a mão da mulher que estava lhe oferecendo a vida para compartilhar ao seu lado. *** Família Bernardi e um novo membro Antes de se casar, Antônio trabalhara como caminhoneiro. Viajava pelos pampas e buscava, nos canteiros das estradas, vislumbrar uma nova vida fora de Marau. Tentava alcançar com os olhos algo que talvez lhe rendesse lucro para pensar em ter filhos com Lourdes, constituir um lar como os que eram sonhados na roça – crianças brincando pela casa, condição financeira estável, um lugar de paz. Encontrou um moinho à venda, em Salgado Filho, a 326 133


quilômetros de Porto Alegre, três meses antes de consumar o matrimônio. Era a hora para arriscar. Vendeu o caminhão que tinha e decidiu investir, com o irmão e o cunhado, no novo negócio. Deixou tudo ajeitado: casa, móveis novos e o planejamento para tocar o novo projeto. Casou-se, enfim. Ao amanhecer do outro dia, já estava dividindo as paisagens de vegetação rasteira com Lourdes a caminho da cidade onde morariam por quase três anos. Foi por lá, em Salgado Filho, que nascera o primeiro filho do casal, Cléucio, em 2 de novembro de 1969. Havia se passado dois anos e três meses do casamento. Com ajuda de uma parteira, um mês antes do esperado, a casa fora a maternidade. O parto foi complicadíssimo. O bebê estava em posição ruim no útero da mãe. Não achava brechas para o mundo. Lourdes teve de ficar de pé para dar o filho à luz. Não houve pré-natal nem acompanhamento médico; houve genuína dor e felicidade. *** Beira de estrada Cléucio já ensaiava os primeiros passos quando Antônio e Lourdes decidiram deixar Salgado Filho para comprar um restaurante na beira da estrada de Miracatu, em São Paulo. Eles morariam nos fundos, em quartinhos onde mal cabiam os móveis. A mulher, aliás, teve de vender todos os que tinha para alojar-se na nova morada. Antônio passou a trabalhar das 7h às 23h. Isso quando não havia muitos clientes. Se houvesse muito movimento, ele estendia o expediente até altas horas. Chegava em casa 1h, às vezes até 2h. Mesmo cansada, Lourdes deixava a cama, já na madrugada, para fazer o jantar do marido estafado. Pela localização, o restaurante sobrevivia dos clientes que estavam em viagem. Por isso, funcionava 24h. Antônio revezava o turno com o irmão, que trabalhava por toda a madrugada. Cléucio passou seus três primeiros anos de vida ali, misturado às três cozinheiras – uma delas, sua mãe. Foi na beira da estrada que aprendeu a usar melhor as palavras. Guardou uma delas para sempre: caminhão. *** Posto Querência 134


O restaurante de Antônio era parada quase certa para caminhoneiros que passavam em viagem. Foram alguns deles, já amigos, que o informaram sobre um posto que estava à venda em Sarandi, no norte do Paraná. Seriam novas terras. Poderiam render bons frutos em dinheiro. Mais uma vez, a família juntou as malas para mudar de cidade. Antônio e mais três sócios comprariam o posto. Quando chegaram, depararam-se com um restaurante todo desmontado e um lugar pequeno. Refizeram a cobertura do refeitório. Organizaram as funções entre os sócios. O posto, a partir dali, abasteceria toda a família de Antônio. Cléucio gostou do novo lugar. Teria onde e com quem brincar. O destino tinha solo feito com terra roxa, onde o menino, mais tarde, encardiria as unhas dos pés por diversas vezes. As roupas estavam quase sempre manchadas com a vermelhidão do chão. Lourdes se desesperava, via o branco das camisetas sumir para sempre. Eram os chinelos de dedo que levavam Cléucio de sua casa até o posto que o pai ajudara a comprar. Os caminhões, mais uma vez, eram observados com olhos gulosos. *** O pedido de Cléucio Cléucio observava o movimento de fora pelas janelas do restaurante. Costumava ajudar o pai nas tarefas do trabalho. Ele gostava dali. O ambiente, a cidade, o posto: tudo o agradava. Mas algo lhe faltava. Alguém para dividir as molecagens, para se sujar com ele. O menino queria elogiar os caminhões para um amigo que estaria sempre ali. Decidido, fez um pedido à mãe. - Mãe, eu quero um irmãozinho. Lourdes, surpresa, ficou sem resposta, mas recuperou-se a tempo. - Não é tão fácil assim, Cléucio. Mas vamos ver. Vou conversar com o pai, tá? Apesar de não esperar tal conversa, a mãe gostou da ideia. Conversou com Antônio sobre o pedido do primogênito. Com a concordância, decidiu, então, fazer um tratamento para engravidar. Foram dois meses de espera para a confirmação do sonho de Cléucio. 135


*** Nascimento do irmão As rodas de boteco do País já respiravam a Copa do Mundo, em 1981, um ano antes da competição na Espanha, quando Lourdes sentiu os primeiros chutes do menino que guardava em seu ventre. Dessa vez, ela tinha acompanhamento médico e fazia exames frequentemente no Hospital Paraná, em Maringá. Os dias passavam rápidos e o irmão coçava as mãos para pegar o bebê no colo. Queria sugerir nome, roupas, atividades recreativas para o menino. A mãe fingia que anotava as possibilidades. O novo filho era a bola da vez. Antônio dividia a preocupação entre os caminhões que agenciava e a mulher. Estava radiante, embora o rosto sereno passasse longe de demonstrar isso. A gravidez fora tranquila até os oito meses de gestação, quando Lourdes passou mal e teve de ser internada. As dores eram fortes. O menino estava com pressa. Mesmo assim, o médico disse que eram contrações comuns e mandou que a mulher voltasse para casa. A recomendação, única, era para que ficasse deitada. Passaram-se oito dias até que Lourdes tivesse de voltar à maternidade. O bebê não aguentava mais esperar. Passava das 20h quando, um mês antes do previsto, no dia 30 de agosto, ele pôs-se em campo, em dia de jogo do Brasil. A vibração duraria toda a noite, além do que, Lourdes e Antônio comemoravam 13 anos de casados. *** Cleudisson Antônio e Lourdes sentaram-se frente a frente. Tricotaram para escolher o nome do menino, mas poucas opções vieram. Mesmo assim, houve um acordo: nada mais justo que homenagear o filho mais velho, Cléucio, afinal, fora ele quem deu a ideia de um novo filho. O pai, então, sugeriu uma mistura. Por que não unir o nome de Cléucio ao de um sobrinho querido? Lourdes aceitou, mas não conseguiu construir o nome. Márcio, um descendente de japonês que fazia a contabilidade do posto, participava da roda de sugestões. Aprovou a ideia da junção e pôs uma opção à mesa. Antônio, sem ideias melhores, aceitou e pediu para que o funcionário e amigo fosse até o cartório registrar o bebê. O nipônico obedeceu. Levou sua ideia à escrivã, que perguntou 136


qual seria o nome do bebê. “Cleudisson”, ele respondeu, com sotaque de quem já morara no Oriente. Sem entender muito bem, a moça que estava do outro lado do balcão teve de perguntar de novo. - Como? Desculpa, não entendi. - Cleudisson – disse, pausadamente. O nome chegaria em um papel, minutos depois, à casa dos Bernardi. Lourdes, a princípio, torceu o nariz. Não havia entendido muito bem. Questionou Antônio, baixinho: - Era esse nome mesmo, meu bem? - Acho que era – respondeu, indeciso. Se não era, foi esse que ficou escrito nos papéis do cartório. O nome que o japonês criara acompanharia o menino pela vida toda. *** Gordinho e chorão O choro, que se estendia pela noite, atravessava todo o corredor da casa. Fazia eco ao surgir do quarto do menino de dois anos, o caçula da casa. A mãe Lourdes acudia Cleudisson, tentava entender o porquê do incômodo, mas nunca conseguiu descobrir. Fez testes com remédios para dor, mas nada feito. Nem mesmo o médico foi capaz de descobrir o motivo das lágrimas. Só o tempo deu jeito de conter o pranto do menino que, apesar disso, sempre teve saúde invejável. Nessa idade, Cleudisson era gordinho. Tinha bochechas macias, feitas para o deleite de tias. Estava começando a lidar com as palavras. As primeiras, confeccionadas havia 11 meses: mamãe, tato e papai. A criança de cabelo claro e olhos castanhos não dava trabalho algum. Mesmo com um certo domínio no vocabulário, preferia trocar as palavras por voltas na motoca que havia ganhado. *** Viagens com as carretinhas Todas as carretas de Cleudisson estavam estacionadas. Eram 12, que esperavam cargas de areia. Em poucos minutos, o menino, com a ajuda do primo, abasteceu quase todas. Alcançou uma vermelha, de madeira, do modelo Volvo, e passou a guiá-la pelo lugar. O barulho das rodinhas dividia o ar com o som dos freios a ar, feitos pela boca do jovem motorista. As outras, de diversas cores e modelos, ficavam 137


paradas, esquentando o motor para a tarde de corridas. As pernas que ousavam atravessar o pátio dos caminhões ouviam repressão das crianças e tinham de se erguer. O espaço estava reservado para viagens. O menino e o primo ficavam ali por toda a tarde. Enquanto arrastavam os brinquedos, imaginavam as viagens que poderiam fazer quando adultos, as estradas que iriam conhecer, os grandes caminhões que comprariam. Com as carretinhas que ganhara do pai, Cleudisson ia longe. *** Quieto Cleudisson namorava o silêncio. Admirava o mundo, sem lhe oferecer uma palavra. Preservava os lábios carnudos que quase sempre estavam cerrados para a entrada do ar. O garoto preferia observar, atirado nos cantos, discreto como um terno negro. Analisava tudo com muita inteligência, que guardava para si. Era perspicaz, tinha jeitão de raposa, porém, sem a malícia do canídeo. Gostava de estudar, talvez para não ter de falar com ninguém. Às vezes, se guardava no quarto e afogava-se em livros. Quando estava sem paciência para leitura, ligava a tevê para assistir as novelas. Tudo sozinho. Estava emudecido quando as vacas do sítio de sua avó puxaram assunto. Talvez preferisse a companhia delas e das galinhas a dos homens. Ao mugido de uma, respondeu com um carinho na testa do animal malhado. A privilegiada abaixou a cabeça e encolheu-se, demonstrando gratidão. As companheiras ainda mugiam alto, mas ela calou-se. Fezse estátua, a não ser pelo rabo que balançava para lá e para cá. Percebeu que não precisava fazer barulho para ser importante. Aprendeu com o menino que lhe passava a mão. *** Felicidade na água - Mãe, olha o sol que tá hoje! Vamos pro Thermas? - Tem que ver com o pai, filho. Você sabe que ele não gosta de água. Vai lá ver se ele quer ir. 138


Antônio não queria, mas, como sempre, cedeu à vontade do filho e da mulher. Era domingo. Com pouco ânimo, o pai separou as carteirinhas de cor dourada do Thermas de Maringá, um clube bastante frequentado que ficava nos arredores da cidade, e foi ajeitar-se no banheiro. Cléucio já estava crescido, não deixaria os compromissos que planejara para passear com a família. Cleudisson já estava de sunga – o único acessório que levava para as tardes no parque aquático. A mãe preparava uma sacola com algumas tralhas: protetor solar, chinelos e um pouco de dinheiro. Já preparados, todos subiram no caminhão. Balançaram uns 30 minutos até chegarem ao lugar, abarrotado de banhistas. Era difícil encontrar vaga de estacionamento até para carros pequenos. Quiçá para caminhões. Mas sempre havia um jeitinho. Ou Cleudisson explodiria de ansiedade pelas águas. Os três se encaminharam à entrada. Buscavam espaço nas filas. Primeiro, era preciso passar pelos exames, numa salinha ao fundo de um corredor do lado direito. Era rápido: só viam as unhas e as solas dos pés. Todos sempre eram aprovados. Aí bastava vencer a roleta para estar no interior do parque aquático. O menino, afoito, queria andar rápido. Até porque o chão com pisos de mármore queimava os pés com o calor do sol – ele não costumava calçar chinelos. Não demorou para que disparasse à frente. Correu, tomou impulso e se jogou nas águas um pouco frias, segurando as pernas junto ao tronco. As gotas se espalharam pelo ar. Ele bateu os braços e as pernas. Bateu num senhor também. A piscina estava lotada. Decidiu, então, aventurar-se nos tobogãs – mais lotados ainda. Aguardou pacientemente a fila se esvair para escorregar na maior atração do parque. Descer naqueles tubos azuis era arrebatador, por mais que a água entrasse pelo nariz e, quase sempre, caísse em cima de alguém. Antônio e Lourdes o deixaram livre. Tomaram um lugar nas sombras, onde estavam as cadeiras brancas que existiam no local. A mulher até arriscou molhar-se um pouco. O homem observou, de fora, a tarde toda. O menino não notou. *** O amigo Alessandro Com oito anos, Cleudisson ganhou um novo companheiro dentro de casa. Alessandro, o primo, que havia perdido a mãe, viera 139


morar sob o mesmo teto dos Bernardi. Passaram a dividir o mesmo quarto. No Colégio Branca da Motta Fernandes, onde estudavam, em Maringá, estavam sempre junto, perdidos na multidão do pátio. Na sala, um emprestava o lápis de outro, que retribuía com a borracha, num outro momento de falta. Quando estavam com as apostilas prontas para alcançarem a sétima série, pediram à Lourdes para que mudassem para o turno manhã. Era o turno mais concorrido; e o mais glamuroso. Quase impossível de conseguir uma vaga. O que diria duas. Para atender os dois pedidos em uníssono, a mãe de Cleudisson teria de rasgar a noite na fila de matrículas. Foi o que fez. Dormiu na porta da escola, se estapeou com o frio, mas voltou para casa com as vagas garantidas. A grande amizade, a partir daquele momento, passou a acordar cedo. *** Susto O ponteiro do relógio quase batia às sete da noite quando Cleudisson, com 9 anos, montava degraus com as caixas que ficavam esparramadas nos fundos do posto, que só fecharia às 20h. Enquanto o filho brincava, Antônio se preocupava em atender os clientes. A noite estava fria. O menino, exposto, só com shorts e camiseta. Preocupada, Lourdes decidiu encarar a estradinha que ligava sua casa ao estabelecimento para buscá-lo. Encapou-se em uma blusa e andou até o lugar onde estavam Antônio e Cleudisson. Deu a mão para o menino, que logo se desvencilhou. Eles caminhavam até a casa em que moravam. Os passos foram interrompidos por quatro homens, que estavam escondidos no caminho. Lourdes não tinha o costume de trancar a porta. Os bandidos, então, os obrigaram a entrar em casa, e lá os fizeram se sentar nas poltronas da sala. Faziam dezenas de perguntas a Cleudisson que, sem saber responder, calava-se em seu medo. A mãe, percebendo a tensão que gritava nos olhos do filho, o empurrou para que saísse dali. Um dos bandidos flagrou o movimento e levou o garoto para o quarto. Lá, mais perguntas foram desferidas, dessa vez com algumas respostas. Eles caçavam dinheiro. Mal sabiam que tudo o que os Bernardi tinham estava no cofre que ficava no posto. De súbito, em meio à bagunça que faziam, Antônio apontou na porta de entrada. Os bandidos não se intimidaram. Deixaram a mulher e a criança 140


amarradas pelas mãos e pelos pés, em cima da cama, para agir com o homem. Todas as vítimas estavam com uma toalha amarrada na boca, para que não falassem. No carro lotado de objetos e dois televisores, levaram Antônio para um beco no bairro Vale Azul. Dois deles fizeram a guarda e outros dois sumiram. Antônio, calado, observou o lugar e localizou-se. Viu crescer a esperança de sair dali quando um carro da polícia iluminou, de longe, o cativeiro com as luzes da sirene. Os homens tinham de fugir, mas não sabiam onde estavam. Antônio ofereceu-se como guia. Orientou os homens até onde eles se achariam, a linha ferroviária. Já era madrugada quando o refém foi solto por sua cumplicidade. Antônio foi embora a pé. Desamarrou a família às três da manhã. *** Um dia eu também quero ir Cleudisson e os pais procuravam as respectivas Bíblias para irem à igreja Divino Espírito Santo, em Maringá. Todas as terças-feiras eram iguais: a família se reunia nos bancos de madeira do templo. O menino, por mais que não demonstrasse, gostava de estar lá. Vez ou outra, quando ele não estava muito disposto, o Padre Bernardo, responsável pelas missas, entrava em ação, a pedido da mãe. Com a benção do sacerdote, o menino acalmava-se outra vez. As reuniões proporcionavam confraternização, paz e sorrisos esparramados. Lourdes entregava os seus a Cleudisson sempre que entoava o verso de uma canção. Deixava de bater palmas para apontar os dedos para ele, como que fazendo um pedido. “Se você for ao céu primeiro que eu, diga lá que um dia eu também quero ir.” *** Stefani Deitado no chão, Cleudisson deixava que a sobrinha Stefani pulasse sobre ele. Ela subia nas costas do tio, fazendo apoio ao corpinho de dois anos. Era incrível a ligação entre o garoto e a filha de seu irmão Cléucio. A menina chamava o tio de “Tato”, como se ele fosse seu irmão. E, a não ser nos documentos, ele era mesmo. Cleudisson teve muito mais momentos de irmandade com Stefani do que com seu próprio irmão de sangue, 11 anos mais velho. As brincadeiras, as conversas, o 141


ciúme um do outro: tudo dizia que aquela não era uma relação entre tio e sobrinha. Cleudisson inclusive a defendia com unhas e dentes. Quando a menina aprontava, era protegida por ele dos tapas da avó Lourdes, que cuidava dela na maior parte do tempo. E como Stefani aprontava. Apanharia muito não fosse o protecionismo do tio. *** O melhor garçom Os negócios da família Bernardi prosperavam. O posto estava cada vez mais conhecido por seu restaurante e os caminhões que eram agenciados ali iam cada vez mais longe. As cargas já alcançariam a Argentina, caso fosse emitida uma autorização internacional, que só era concedida no país vizinho. Antônio, então, tomou a estrada para consegui-la. Foi em companhia de um amigo do posto, que já conhecia os rumos das negociações. Perto de Foz do Iguaçu, na divisa entre o Paraná e a Argentina, fizeram uma parada. A fome os obrigou. O destino foi um posto, de nome Gasparini. Já acomodados, foram atendidos por um rapaz de boa pinta e fala fácil. Chamava-se Jamir, tinha os olhos claros e o rosto quadrado. O cabelo era espetado para trás. Puxou conversa e ouviu os viajantes dizerem que eram da região de Maringá. Deu risada quando Antônio disse que era do Rio Grande do Sul, onde também tinha nascido. O papo ia longe. O funcionário do posto sabia lidar com as palavras. Foi por essa qualidade que o rapaz que acompanhava Antônio resolveu convidá-lo a seguir para Sarandi, onde trabalharia no restaurante. Jamir anotou o telefone do homem e, pouco tempo depois, desembarcou no norte do Paraná. Não demorou para que se destacasse como um funcionário dedicado e gentil com todos. Tornou-se o melhor garçom do restaurante. *** Bíblia Uma linda Bíblia repousava sobre o criado-mudo de Lourdes. Ela a lia quase todos os dias. Jamir, o garçom, havia comentado sobre a beleza do livro sagrado. Dissera que estudara para ser padre e ofereceu 142


aulas para a família. A mãe da casa aceitou, afinal não tinha muitos estudos. Por diversas vezes, o garçom sentou-se com os patrões para evangelizá-los. Lia os versículos em voz alta e os explicava com ótima didática. O rapaz parecia ter jeito para padre mesmo. Os atributos, ao menos, encaixavam: era atencioso, falava bem, tinha paciência para explicar detalhe a detalhe. Certo dia, depois de mais um dia de evangelização, Jamir fez um pedido, antes de sair. - Dona Lourdes, você pode me emprestar aquela sua Bíblia? *** Camisa Março desmascarava o outono que batia à porta, afoito, com mãos de vento. Os sopros da estação, aliás, eram secos. Levantavam a poeira dos intermináveis chãos de terra de Sarandi e recebiam as folhas amareladas que se desgrudavam dos troncos. Os frutos das árvores e Cleudisson estavam, notadamente, ficando mais maduros. O menino ganhava rouquidão na voz, ombros mais largos. Já dividia os pensamentos entre as brincadeiras do passado e os sonhos do futuro. Teve vontade de estar mais bonito. Nunca exigiu um tostão da mãe, mas viu-se obrigado a pedir uma camisa bordada que gostara. - Mãe, vi uma camisa muito bonita no centro hoje. Tem como comprar? - Ah, não sei não, filho. Tem que ver com o pai. Quanto custa? - Vintão. - Muito caro, Cleudisson. A mãe acha mais barato pra você. - Não, mãe. Eu gostei daquela. Compra lá. Vinte reais só. - Vou pensar, vou pensar. Os costumes de Lourdes realmente a faziam achar que 20 reais eram uma fortuna. Mas como negar o pedido do filho que nunca exigira nem uma moeda de 5 centavos? Não havia jeito. Ela convidou o filho para que indicasse a vitrine onde a peça estava pendurada e foi até lá fechar o negócio. A camisa era, de fato, bonita. Vestiu o corpo que dava sinais de adulto apenas uma vez. *** 143


Curso de informática No começo da década de 1990, a tecnologia surgia com força, ameaçava engolir o mundo. Computadores, máquinas nos sítios e produtos cada vez mais dependentes da indústria encantavam os homens. A não ser aqueles que perdiam espaço para as peças robotizadas. Cleudisson gostava das inovações. Havia feito, com 10 anos, um curso de datilografia, o que o ajudaria mais tarde no contato com o mundo digital. Com 13, a mãe o matriculou em um curso de informática, em Maringá. O menino se identificou com as máquinas. Em frente à tela de um computador, não precisava abrir a boca para falar. Sempre estudava as apostilas, que levava de um lado para o outro. Com dedicação, tornou-se um dos melhores alunos do curso. O professor mal acabava as explicações e Cleudisson já sabia fazer mais do que lhe era pedido. Os dedos que batiam o teclado eram rápidos. O menino passou a usar os conhecimentos para ajudar o pai, um dos que eram avessos à tecnologia, no posto que já dava sinais de invasão pela tecnologia. Era ele, tão novo, que fazia os controles bancários do estabelecimento. *** Sopa de feijão - Mãe, faz uma sopa de feijão bem gostosa? - Faço, filho. A mãe já leva pra você aí. O esfomeado se esparramou no sofá, à espera do prato. Assistia à tevê, que geralmente não mostrava nada de bom no horário de almoço. Esticou as pernas e zapeou por vários canais. Lourdes caprichou na sopa. Não estava acostumada a ver o filho fazer pedido, empolgado como estava. - Cleudisson, tá pronto! O menino comeu rápido, lambuzou-se com o caldo marrom. Eram quase 13h. Cleudisson deixou o sofá, pôs o prato na pia e rumou para o quarto para se trocar. Vestiu-se rápido. Saiu também com pressa. - Vou brincar com os moleques. *** 144


Opala Estranhamente, um Opala preto estava parado na frente da casa dos Bernardi. Antônio o observou pela fresta da cortina. O carro tinha os vidros pretos e nenhum motivo para estar ali tanto tempo. Por toda a noite, guardou a sombra que a luz do poste fazia da árvore. *** Último silêncio de Cleudisson A tarde da segunda-feira de junho de 1996 já se ia. Cleudisson entrou em seu quarto e recolheu algumas apostilas do curso de informática. Lourdes tomava chimarrão com a tia e a prima, na área. O menino passou por elas como se não houvesse ninguém, sem desferir uma palavra. - Onde você vai, Cleudisson? – perguntou uma das mulheres. O adolescente de 14 anos nada respondeu. Enquanto ele fechava o portão, Lourdes palpitou. - Garanto que ele vai lá explicar as coisas para o garçom. Diz que ele tá enchendo o saco. Ele realmente estava indo até o quarto do garçom Jamir, para ensiná-lo, depois de muita insistência, sobre informática. Não houve tempo para ensinar nenhuma linha do que estava escrito nas apostilas. Jamir voou em seu pescoço. Apertou-o com força. Sem ar, o menino se debatia, tentava acertar chutes que nada podiam fazer. Os gritos eram abafados pelas mãos do garçom que esgoelavam a garganta fina. Em poucos segundos, o menino estava amolecido, estirado sobre a cama do quarto dos fundos do Posto Querência. A última palavra de Cleudisson havia sido o silêncio. *** Sumiço Era tarde da noite e nada de Cleudisson voltar para casa. Os pais não sabiam o que fazer. Procuraram-no pelas ruas próximas, ligaram para os amigos, perguntaram por ele para os primos de mesma idade. Ninguém sabia do paradeiro do menino. Cléucio, que havia acabado de chegar de viagem, decidiu rondar por todos os hospitais da região. Em todas as portas recebeu algo parecido com “não tem ninguém com esse nome aqui”. Antônio, 145


desesperado, procurou ajuda na polícia, mas disseram-lhe que nada podia ser feito antes das 24h de sumiço. A noite fora perdida e em claro. Logo pela manhã, Antônio decidiu apelar para quem confiava de verdade. Foi à igreja, bem cedo, rezar pelo filho caçula. O garçom Jamir, que oferecera ajuda para procurar o garoto, fez-lhe companhia. Na saída da missa, o funcionário fez perguntas de todos os tipos. Parecia empenhado em descobrir o paradeiro de Cleudisson. Antônio respondia tudo. - Mas o senhor não tem nem ideia do que pode ter acontecido, seo Antônio? - Então, eu tenho quase certeza que foi um sequestro. Eu vi um Opala parado em frente de casa ontem. Certeza que foi alguém daquele carro que levou o Cleudisson. - Ah, certeza então. Mas não se preocupe não, seo Antônio. Nós vamos achá-lo, o senhor vai ver. - Se Deus quiser! *** Fossa Jamir carregava o corpo juvenil, sem vida, no colo. Levava-o para a fossa dos fundos do Posto Querência, onde o jogaria em meio à sujeira humana. Não havia arrependimento no rosto do homem. Nem preocupação. Foi assim que ele desovou o menino morto. *** Ligação O telefone tocou. Terezinha, irmã de Antônio, atendeu, com as mãos trêmulas. - Alô! – gritou uma voz do outro lado da linha. - Alô. – respondeu Terezinha. - Quem tá falando?! - Terezinha. - Oh, é o seguinte: estou com pressa. O menino e as apostilas estão aqui comigo. Quero 120 mil ou ele morre, certo? – disse a voz exaltada. – Eu tenho um informante, sei de tudo. Então é bom pagar. Terezinha não teve tempo de responder. O telefone, do outro 146


lado, bateu no gancho. *** Churrasqueira Era meia-noite. Com um maçarico, Jamir derretia o corpo que estava na churrasqueira. Fazia movimentos em círculo, enquanto observava o lado de fora. Aquecia-se com o calor e com o medo de alguém vê-lo por ali. Até às 4h, o único som ouvido era o das cinzas que estalavam. Cleudisson estalava. *** Álbum de fotografias Dias depois da morte do filho, Lourdes segurava o álbum de fotografias, sentada no sofá da sala. O abalo havia sido devastador. Em meio ao caos do assassinato, ela não se lembrava mais do rosto do filho. Via as fotos para revê-lo. *** A vida voou As cinzas foram jogadas numa horta, e, com a poeira, voaram, se espalharam, se perderam. Igual à vida.

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ANTÔNIO CARLOS MORETTI Antônio Carlos Moretti, 55 anos, é natural de Maringá-PR. Trabalhou nos jornais Folha do Norte, Gazeta Maringaense, Folha de Londrina, O Estado do Paraná e Gazeta do Povo. Também foi assessor de imprensa da Cocari, Cocamar, Prefeitura de Campo Mourão, Prefeitura de Maringá e alguns partidos políticos. É jornalista provisionado com registro profissional definitivo.

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Na busca pelo jornalista da cobertura do Caso Querência, encontramos Antônio Carlos Moretti. Um profissional de 55 anos, hoje, afastado das Redações. No ano de 1996, era repórter da sucursal do Estado do Paraná, em Maringá. Deslocando-se um pouco das entrevistas anteriores, a terceira e última foi feita rodeada de rostos desconhecidos, música ambiente e um cheiro bom de café para nos fazer companhia. Tivemos dois encontros, ambos no mesmo local. A livraria de um shopping. O espaço era convidativo para beber algo gelado no fim da tarde e aproveitar o bate papo sobre os bastidores da cobertura. Entre muitos assuntos discutidos, ouvidos, comentados, falamos sobre as lembranças do jornalista em relação ao mês de junho de 1996 – mês e ano em que o menino Cleudisson Bernardi foi morto. Naquela época, muitos jornais mantinham sucursais na cidade e proporcionavam trabalho aos jornalistas locais – Moretti foi um deles. Apesar de não ter gravado na memória muitas cenas, diálogos e ações, ele contou um pouco de como era o clima na imprensa em meio ao Caso Querência, e as dificuldades que sentiu em relação à polícia no momento de fazer a cobertura. Numa análise durante e depois da entrevista foi nítido perceber como alguns profissionais que se veem obrigados a cobrir crimes se portam diante de fatos chocantes. Talvez alguns regulam uma parte escondida dentro de si e consigam fazer isso de maneira mecânica, isolada de sentimentos e desgastes emocionais. Moretti fez a cobertura de maneira mais distanciada. Não se permitiu envolvimento direto com a família, com o acusado, nem com o próprio caso. Talvez, até mesmo, pela agressividade da história. Para ele, o caso e as lembranças ainda hoje são inevitáveis, mas o trabalho do jornalista se manteve sempre a certa distância, limitandose a cobrir aquilo que era possível e não indo além numa efetiva investigação. No entanto, ele tem o caso como um dos mais marcantes da carreira profissional. Cordial com os entrevistadores, ele relacionou muitos assuntos à história, na tentativa de direcionar uma reflexão sobre o jornalismo. Naquele ano eu trabalhava na sucursal do jornal O Estado do Paraná. Esse caso chegou à Redação no período da tarde, horário em que eu trabalhava, e tudo o que acontecia durante à tarde, eu cobria. As televisões começaram a falar do desaparecimento desse menino [Cleudisson Bernardi]. A princípio, a história não foi apresentada como sequestro, a polícia dizia que era desaparecimento. Nós estávamos numa fase em que, mesmo depois de alguns anos, ainda 151


permanecia muito quente aquela história do desaparecimento do Guilherme Caramês, o filho da então deputada estadual Arlete Caramês [fundadora e presidente de honra do Movimento Nacional em Defesa da Criança Desaparecida do Paraná, em Curitiba]. Era muito fresco na memória das pessoas a história de desaparecimento de crianças. Esse assunto estava em debate no País. E por conta disso, quando teve início essa história do sumiço do menino do Querência, a mídia ficou alerta, justamente por esse detalhe. ‘Pô, mais uma criança desaparecida.’ Então, era sequestro, era desaparecimento, todo mundo queria saber. Moretti, algum tempo antes, havia feito a cobertura do desaparecimento de um menino maringaense, em Londrina. A princípio, ele julgou se tratar de uma história parecida, ainda mais com a polícia afirmando a teoria. Eu tinha feito a cobertura, também, do menino de Maringá [Edson Rodrigo Batista da Silva] que desapareceu numa exposição agropecuária em Londrina e nunca mais foi localizado. Comecei a pensar que o Caso Querência fosse semelhante. Sei lá, eu pensava em muitas coisas. E, então, ficava-se criando hipóteses. Foi isso, foi aquilo. Enquanto nós trabalhávamos com a ideia de desaparecimento, alguns dias depois, a polícia passou a trabalhar com a hipótese de sequestro. Eles foram para a casa dos pais, grampearam o telefone, porque o suposto sequestrador já tinha mantido contato com o pai do menino. A polícia não abriu o jogo de início para a imprensa. Nos primeiros dias, como ninguém sabia de nada, nós ligávamos para a casa [dos Bernardi] para saber se havia alguma notícia, mas ninguém sabia de nada. E mesmo os repórteres que tinham as informações seguraram. A polícia pediu para segurar, porque eles queriam pegar o suspeito fazendo a ligação, uma vez que a família já havia recebido ligação no início, mas nós não ficamos sabendo. Só próximo ao final do caso é que eu fiquei sabendo, não sei se o Roberto Silva, por exemplo, soube antes. Nós ficamos nessa: é desaparecimento, é sequestro e todos os dias uma suíte [matéria que dá sequência a uma notícia] no jornal. Nós, das sucursais, não trocávamos informações com O Diário do Norte do Paraná. Trabalhávamos em sintonia com o pessoal da Globo [RPCTV Maringá] e da Folha de Londrina, também. A gente trocava muita informação, porque existiam informações que eles sabiam, eu não sabia e vice-versa. É lógico, existiam algumas matérias que eu não podia abrir para eles e eles não podiam abrir para mim. Nós sabíamos os limites dessas situações, porque os jornais eram concorrentes, mas tinha alguns detalhes que nós conversávamos. Eu não me lembro da cobertura dos jornais daqui, eu acompanhava os concorrentes de fora. Trabalhava naquela desconfiança de sair uma informação 152


que eu não havia dado e o meu editor cobrar. *** Chega ao fim o mistério A manhã do jornalista naquele dia 20 de junho estava tranquila. Ao rumar para a Redação do jornal, acreditava que a tarde seguiria o mesmo itinerário de calma, talvez nem teria de se deslocar para outro canto, para apurar a pauta da tarde. Grande engano. Naquele dia, ele acompanhou uma cena triste, que ele guardaria por tempos. Eu me lembro que cheguei à tarde ao jornal e já fiquei sabendo que o suspeito havia sido preso. No mesmo instante, corremos para o Posto Querência. Lá, nos fundos do restaurante tinha uma horta. Nessa horta estavam despejadas as cinzas que sobravam da churrasqueira. Nesse local, os policiais procuravam os possíveis restos do corpo. O pessoal da imprensa ficou ali, olhando. Eu mesmo fiquei olhando, mas alguns jornalistas se juntaram aos policiais e ficaram fuçando. Estava quente naquele dia. Um monte de cinzas no fundo da churrascaria e o delegado [José Aparecido] Jacovós e os policiais mexendo naquelas cinzas, procurando ossos. Todos os jornalistas que cobriram aquele crime ficaram chocados, aquilo mexia com você, não tinha como não mexer. Aquela situação horrorosa em frente à casa da família. Ali, eles acharam um pedaço da arcada dentária, uns ossos do dedo e foi apenas isso o que acharam, porque não havia restado mais nada. Tanto, que a primeira informação que nós tivemos, era de que não haveria enterro, mas voltaram atrás e fizeram o velório e, em seguida, o enterro. Colocaram aquele caixão que todos sabiam que não havia nada dentro. Eu não me lembro exatamente quantos dias depois do desaparecimento que isso aconteceu, mas acho que não demorou muito. Ele matou, jogou o corpo na fossa, o corpo começou a cheirar mal. Então ele retirou, levou para a churrasqueira durante a madrugada e ficou lá, queimando aquele corpo. Parecia tão encoberto o crime, que ele [Jamir] tirou as cinzas da churrasqueira e jogou no fundo do terreno. A ponto de no outro dia o pessoal que foi trabalhar não ter percebido nada. Chegaram, acenderam a churrasqueira, possivelmente acharam normal que estava limpa, colocaram fogo na churrasqueira e continuaram a rotina normal. A estratégia da polícia de grampear o telefone da casa dos Bernardi foi a mais acertada. Dessa maneira, foi possível rastrear a ligação e encontrar o possível sequestrador. 153


Com o grampo no telefone, eles perceberam que o cara tinha feito ligações de alguns pontos da cidade e, por isso, eles o pegaram quando estava fazendo uma ligação lá do Cidade Alta. Logo no primeiro momento em que descobriram os restos do corpo, eu tentei falar com a família. Falei com o pai, depois com a mãe, por telefone. A gente ligava bastante para saber se tinha alguma informação nova, aquela rotina tradicional do jornalismo, ficava até o momento máximo do fechamento. Eu conversei com o seo Antônio, o pai do menino, e é até difícil imaginar que hoje ele esteja definhando, deprimido. Ele era um cara arrojado, aquele cara de negócio mesmo. Ele tinha o posto, umas carretas, o restaurante, que era muito famoso, o Querência, um restaurante bastante procurado pelas pessoas que gostavam de comer churrasco. Foi uma surpresa. A polícia pegou o cara e ele confessou friamente que ele havia pego o menino e que eles tiveram uma discussão no quarto dele. Então, o menino foi embora para casa, logo depois, ele [Jamir] mandou chamálo. Foi quando ele [Cleudisson] voltou e foi morto. Ele matou o menino, jogou na fossa do restaurante. Preocupado com o mau cheiro daquele corpo – nesse meio tempo já estava cheirando mal -, ele teve a ideia de colocar na churrasqueira e queimar. Ele colocou na churrasqueira, de madrugada, depois que todos foram embora e ficou ali esperando queimar até desaparecer completamente o corpo, até restarem apenas cinzas. Ele ligava para a família pedindo resgate, eu não me lembro o valor do resgate, mas era mixaria. Em relação à vida, qualquer valor é mixaria, mas, o menino já estava morto. Ele estava pedindo o resgate e continuava morando lá nos fundos do restaurante, mantendo a rotina dele. Dormia lá, trabalhava normalmente. Por isso que, na avaliação de todo mundo, o cara era frio, era um psicopata. Ele não tirou o menino dali, não teve um cativeiro. Ele se manteve presente como se estivesse acontecendo com ele também. Todo crime é horroroso, mas esse foi cruel. *** Pé atrás Apesar de ter acompanhado o caso, o jornalista se sente impedido de confirmar as conclusões que foram feitas a respeito do crime. Moretti, já naquela época, e principalmente hoje, sente-se descrente da tal investigação jornalística, já que para caminhar numa apuração, o repórter tem como fonte a polícia, o que, segundo ele, impede melhor direcionamento para a cobertura. 154


Antes de um crime ser elucidado, você fica pensando num monte de coisa e, mesmo depois de ser elucidado, fica um monte de coisa aberta. Nenhum crime que eu cobri, tenho certeza em dizer: foi isso aqui. Não tenho mais essa pretensão que muitos repórteres têm de se sentirem os investigadores. Eu não tenho mais isso: ‘olha, eu chequei, escutei, investiguei’. Sempre tentei passar uma mensagem para o leitor, sempre coloquei essa expressão: “segundo a polícia”, porque eu acho que num País como o nosso, num País onde você nunca tem certeza de nada, os crimes são apurados de forma medieval ainda. Eu tinha isso, então, colocando “segundo a polícia”, eu levava o leitor a refletir. Eu não tinha opinião formada sobre, eu estava passando uma informação, segundo a polícia. É muito complicado trabalhar com a polícia. Você vai cobrir o setor e só existem duas maneiras de fazer isso: ou você faz um pacto de amizade com os policiais e fecha os olhos para algumas coisas e, com isso, tem acesso às informações, ou você se mantém na sua. Eu sempre fiz questão de ficar na minha, porque se a polícia tiver uma informação que seja realmente relevante, não vai te passar de nenhuma maneira. Porque a polícia não confia em você, da mesma forma que você não confia nela. Quando você faz pacto com eles, com certeza, uma hora vai ser enganado. Por exemplo: eles precisam pegar um cara e ninguém pode saber, eles vão falar para você? Não vão. Vão pensar: esse cara é jornalista. Ninguém confia em jornalista, essa é a verdade. Quando o cara chamar você para almoçar e falar: vou te passar essa informação, mas é off [que não deve ser publicada], você pode ter certeza de que ele está querendo que você passe aquilo para frente, porque eu não acredito que as pessoas creem no jornalista. Eu nunca acreditei nessa história: esse policial é minha fonte, é confiável. Não! Não vai ser confiável o tempo todo. Vai chegar um momento em que ele vai ter que esconder certas coisas, não vai poder contar para ninguém e vai esconder de você também. Eu sempre disse para o editor: eu não vou fazer pacto com policial. Se você não consegue saber das informações pelos meios legais e é obrigado a fechar os olhos para algumas coisas que eles faziam ou fazem, não faça. Uma grande parte dos processos que circulam na Justiça vão sendo arquivados por falta de provas, porque todas as provas conseguidas, muitas delas, são obtidas por coação. Uma delegacia é uma espécie de feudo, você não consegue penetrar. Eu sou capaz de apostar que se for agora ao corregedor e perguntar quantas vezes ele foi ao presídio de Maringá este ano, possivelmente, ele não deve ter ido nenhuma vez. 155


Eu acho que você tem que mostrar aquilo que pode mostrar e aquilo que o jornal quer publicar. Dependendo do jornal que você trabalha, tem a obrigação de publicar. A polícia omite muita coisa, porque mesmo que você seja uma pessoa que eles dizem que confiam, são interesses diferentes. Para um delegado esclarecer um crime é uma pressão da sociedade, no Caso Querência, por exemplo, era uma criança. Quando você está no jornalismo, tem uma visão mais ampla das situações. Todo crime que foi cometido no mundo, ninguém tem certeza se foi aquilo mesmo. Eu não sei se os crimes que eu cobri foram realmente elucidados, se aquilo foi realmente o que aconteceu. No jornalismo você enfrenta aquela história de que todos estão correndo de um lado e você tenta correr um pouco fora, nesse caso, em nenhum momento eu questionei a polícia, não comentei os boatos que circulavam. Saíram versões de que o rapaz, o assassino, seria filho do seo Antônio. Boatos de que a morte teria sido motivada por um abuso sexual. Essas duas versões circularam, mas era um fato tão chocante que abalou tanto as pessoas, que era melhor não questionar. Não tinha uma fonte segura. No jornalismo, muitas vezes, é preciso ponderar as especulações, esse ambiente é forte. Você nunca sabe. Hoje eu não tenho mais a pretensão de dizer: esse caso eu esmiucei, eu investiguei. *** Ética versus Fonte O jornalista Antônio Carlos Moretti é enfático ao dizer que acredita numa conduta ética e séria no trabalho jornalístico. A necessidade de estar sempre no caminho da idoneidade, de acordo com ele, é o que qualifica o trabalho de um profissional. Além disso, o respeito com a fonte, independentemente quem seja ela, precisa ser mantido. Se você cai numa Redação nova, os caras querem te empurrar para cobrir polícia. E a polícia quer que você engula a versão deles. Quando você tenta fazer alguma coisa fora, você vai ficar marcado. O jornalista corre riscos e precisa estar muito bem alicerçado, você tem que fazer da profissão uma espécie de sacerdócio. O que você exige de um sacerdote, por exemplo? Que o cara quando sobe no púlpito para falar, que ele tenha uma vida que dê respaldo. Você pode ser vítima de armações, como aquela história do Cabrini [Roberto Cabrini, jornalista do SBT, preso com dez papelotes de cocaína, em 2008]. Ele entrou por essa área do sensacionalismo, mas ele é 156


um cara que tem história. Pelos princípios dele, ele curte ser jornalista, ele ganha um salário bom, não tem sentido o cara se deixar levar por esse lado. Se você é um trambiqueiro e vai denunciar os trambiques dos demais, eles vão te desmoralizar rapidamente. A grande arma no Brasil é desqualificar o cara que denuncia. É preciso saber conversar sempre, sempre. Não tem como ser desrespeitoso nessas horas. Sempre tive um comportamento de quando entrevistasse alguém que estivesse algemado com as mãos para frente, eu chegava, cumprimentava e falava: - Eu gostaria de fazer algumas perguntas, você gostaria de responder? Não é obrigado. Nunca gostei dessa história de jornalista chegar e ser arrogante. *** Reflexos O Caso Querência, juntamente com outros, diluiu a vivacidade do repórter dentro da Redação. As mãos trêmulas denunciam claramente isso. A testa franzida e os suspiros longos quando perguntado se o jornalismo lhe fez mal revelam boa parte das marcas que ficaram no jornalista, na sequência, a resposta confirma as suspeitas. Por mais que tente se ater às informações, você é tomado por aquele clima. Não é uma coisa agradável você cobrir um caso desses. Você vai para casa com aquela história na cabeça. É horrível cobrir um crime, qualquer crime. A morte me assusta muito. Esse caso me chocou pelo fato de ser uma criança. Eu trabalhava para um jornal de Curitiba, o horário de fechamento era 20h, mas eu não podia ficar alheio ao fato, porque, de repente, 22h aparecia uma novidade e eu tinha que ligar pra Curitiba, para atualizar a história. Durante todo o período em que o menino esteve desaparecido eu fiquei apreensivo. Depois que pegaram o rapaz, havia a preocupação de que a população poderia linchá-lo. Sempre que eu passo naquele lugar, ouço aquele nome [Posto Querência], sinto algo estranho. Depois desse caso eu acho que não fui numa churrascaria mais que cinco, seis vezes. Eu não consigo entrar numa churrascaria, ver aqueles espetos, aquela churrasqueira sem me lembrar desse fato. Eu não faço churrasco, comprei uma casa com uma churrasqueira e mandei desmanchar, não sei se inconscientemente. Você narra uma história de que os policiais acharam entre as cinzas da churrasqueira a arcada dentaria do menino, os ossos dos dedos. Já é uma narrativa macabra. É romance de terror, e disso você não esquece. Eu sou uma pessoa a quem o jornalismo fez mal. Alguns crimes que 157


cobri, algumas situações que passei, por exemplo: fui refém de jagunço. Foi na Fazenda do Bradesco, em Guairaçá [a 105 quilômetros de Maringá], cobrindo uma invasão do Movimento Sem Terra [MST] e aquilo me afetou demais. Eu tive uma depressão logo em seguida, melhorei, tive outra recaída em 2007. A partir daí passei a ter insônia, nunca mais consegui dormir sem medicamento. Na noite passada eu não dormi por causa do vento. Tudo isso consequência do jornalismo. O ser humano não é preparado para viver nesse ambiente que sobrevive com o crime. A maioria das pessoas que está no jornalismo é gente que tem uma formação social diferente. É humanista. Quando a pessoa pensa em ganhar dinheiro, não vai fazer jornalismo. A pessoa é idealista, pensa em coisas diferentes, em conscientização, numa mudança de comportamento, mudança no País, na sociedade. Desde quando eu comecei no jornalismo, que eu fiz faculdade, eu era um moleque, comecei com 18 anos e caí na Redação. Nós estávamos vivendo aquele momento do Regime Militar, 1974. A gente tinha aquela noção de que íamos mudar o País, tinha que mudar, mas não foi assim. Ainda tem os que fazem jornalismo achando que vão tomar o lugar da Fátima Bernardes e do William Bonner, na Globo, mas tem os que fazem com os pés no chão. Para você ver o crime de perto, a morte de perto, a injustiça, a banalização da vida, precisa ter os pés no chão. Se eu tivesse a oportunidade de ter sido arqueólogo, eu teria largado o jornalismo, mas isso era sonho. O jornalismo continuaria dentro de mim. Eu queria ser jornalista, não sei se por influência do meu tio, que era dono de um jornal na época, talvez por isso. Eu não tinha interesse por outra coisa, eu não tenho interesse por outra coisa, não sei fazer outra coisa. É triste ver o caminho que o jornalismo está tomando. Está muito ruim. Você vê nos grandes jornais, como a Folha de S.Paulo, o Estadão, a qualidade decaindo. Começamos a acreditar que a imagem é mais interessante que a história. O jornal correu atrás da TV e se perdeu. Eu peguei o final da fase boa da Folha de Londrina. Era um jornal que todos os dias tinha duas, três reportagens. Eles fechavam a capa do primeiro caderno com uma reportagem, abria o segundo caderno com uma reportagem. Todo repórter tinha por obrigação produzir uma reportagem por semana. Reportagem é história das pessoas, hoje não tem isso nos jornais. A alma do jornalista está nas histórias das pessoas e as pessoas continuam as mesmas, elas têm história. As histórias são contadas de uma forma tão sem interesse. Parece que o jornalista não consegue se interessar pelo que ele está escrevendo. Os sites então são piores ainda. A pessoa lá de São Paulo liga para cobrir um fato aqui em Maringá e fala com o pessoal da TV Cultura [RPCTV Maringá]. Aí sai 158


lá, com informações da TV Cultura. O jornalista não tem a dignidade de ligar diretamente para os envolvidos, é uma ‘chupação’ de notícia. As faculdades jogam uma carga enorme em cima dos alunos em termos de tecnologia. Mexer com programa tal, com esse, com aquele, sendo que isso é uma consequência. Você se tornando jornalista, automaticamente, você vai ter que ter acesso. É como datilografia. Antes escrevia a lápis, depois veio a máquina de escrever e tinha que escrever, nem que fosse com dois dedos, mas escrevia. Qualquer um que faz um curso de design acha que já sabe fazer [diagramar] um jornal. A notícia está sendo trabalhada como produto, e só visa o mercado. Eu penso que um jornal não deveria rodar no domingo, a menos que tivesse alguma coisa extremamente relevante. Não dá para jogar no domingo uma matéria pessimista na mesa do assinante, eu acho de mau gosto. Você pega o jornal de manhã, no domingo você fala: puta merda, por que eu acordei hoje? Por que eu não morri? Eu não tenho filhos, mas tenho três sobrinhas e quando eu ia cobrir casos que envolviam crianças com a mesma idade das minhas sobrinhas, eu ficava comparando. O menino do Posto Querência era mais ou menos da idade delas e a primeira coisa que eu pensava era nelas. Eu fazia essa ligação, nas pessoas que eram próximas a mim, que tinham aquela idade. Ficou uma lembrança triste, uma marca. O jornalista, por mais que seja a terceira pessoa ali, ele fica com a marca daquele fato. Esse fato marcou como outros também marcaram, deixou uma contribuição para me deixar sem esse otimismo que as pessoas têm. Não consigo ser otimista com relação ao futuro da humanidade. O ser humano tem uma capacidade de transformar a sua trajetória em tragédia com facilidade. De repente tudo está indo bem e, num determinado momento, troca um elemento e muda tudo. Você não acredita nas instituições, você se torna uma pessoa descrente. Hoje eu transformei isso numa indiferença. Eu não julgo as pessoas e não acredito nem num lado nem no outro. Sempre tem pessoas querendo te usar. Jornalista vai ser sempre o meio que as pessoas vão tentar usar. Se eu voltar para o jornalismo diário, não sei se eu volto na minha idade, mas a experiência te faz ver as coisas diferentes. Não dá para eu acreditar que o Caso Querência foi aquilo realmente.

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