Gato Preto

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Gato Preto de

Erick Carjes

baseado no conto de

Edgar Allan Poe


Olá Senhor. Obrigado por ouvir esta pobre alma Não espero nem solicito o crédito do Senhor para a tão extraordinária e no entanto tão familiar história que vou contar.

já que posso morrer amanhã, quero aliviar hoje o meu espírito.

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Certa noite, ao regressar para casa, completamente embriagado, de volta de um dos refúgios na cidade...

ví Plutão dormindo no tapete. Devo dizer que ele era um gato enorme e dotado de uma sagacidade espantosa,

e eu, que sempre adorei os animais, não me contive e fui acariciá-lo.

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mas pareceu-me que o gato evitava a minha presenรงa.

Achei estranho e apanhei-o!

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e ele, horrorizado com a violência do meu gesto, feriu-me ligeiramente na mão com os dentes.

Uma fúria dos demónios imediatamente se apossou de mim.

Não me reconhecia.

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Tirei do bolso do colete um canivete,

agarrei o pobre animal pelo pesco莽o e, ferrozmente, arranquei-lhe um olho da 贸rbita!

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Queima-me a vergonha e todo eu estremeço ao dizer esta abominável atrocidade. Quando, com a manhã, me voltou a razão, quando se dissiparam os vapores da minha noite de estúrdia, experimentei um sentimento misto de horror e de remorso pelo crime que tinha cometido. o gato curou-se lentamente. A órbita agora vazia apresentava, na verdade, um aspecto horroroso, mas o animal não aparentava qualquer sofrimento.

Voltei a mergulhar nos excessos, e depressa afoguei no álcool toda a recordação do ato.

Porém, restava-me ainda o suficiente do meu velho coração para me sentir agravado por esta evidente antipatia da parte de um animal que outrora tanto gostara de mim. Em breve este sentimento deu lugar à irritação. E para minha queda final e irrevogável, o espírito da PERVERSIDADE fez de seguida a sua aparição.

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Certa manhã, a sangue-frio, passei-lhe um nó corredio ao pescoço e enforquei-o no ramo de uma árvore; enforquei-o com as lágrimas a saltarem-me dos olhos e com o mais amargo remorso no coração

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Na noite do próprio dia em que este ato cruel foi perpetrado,

fui acordado do sono aos gritos de “Fogo!”

Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio.

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A destruição foi completa.

Todos os meus bens materiais foram destruídos;

e daí em diante mergulhei no desespero.

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Nos dias que se sucederam ao incêndio, visitei as ruínas. As paredes, à exceção de uma, tinham abatido por completo.

Próximo desta parede juntara-se uma densa multidão e muitas pessoas pareciam estar chocadas com o que viam.

Aproximei-me e vi, como se fosse gravado em baixo revelo, sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco!

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Tomado por uma mistura de medo e remorço, entreguei-me à bebida e à superstição.

a minha atenção

Uma noite

estava sentado

meio aturdido

e a minha atenção

foi despertada

por um gato enorme,

semelhante a PLutão

menos por um detalhe

este gato tinha uma mancha branca, grande mas indefinida, que lhe cobria toda a região do peito

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ví que ele estava disposto a acompanhar-me.

então levei-o para minha casa

adaptou-se logo e logo se tornou muito amigo da minha mulher.

Pela minha parte, não tardou em surgir em mim uma antipatia por ele.

um certo sentimento de vergonha e a lembrança do meu anterior ato de crueldade impediramme de o maltratar fisicamente ou de devolve-lo à rua.

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O que aumentou, sem dúvida, o meu ódio pelo animal foi descobrir...

na manhã do dia seguinte a tê-lo trazido para casa, que, tal como Plutão...

tinha também sido privado de um dos seus olhos! Isso despertou mais afeição na minha mulher

Jovem e linda...

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mas que não se parecia mais a mesma pessoa com quem casei.

Aos poucos ela se tornou um monstro, um demônio cujas únicas obrigações eram saciar os caprichos do odioso animal!

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Eu não acreditava no que via! O cruel animal revelava não mais uma mancha branca indefinida, aquilo era agora a imagem da forca!

Eu evitava a todo custo o maldito animal...

Em tais momentos, embora a minha vontade fosse matá-lo com uma pancada, era impedido de o fazer, em parte pela lembrança do meu crime anterior mas, principalmente, devo desde já confessá-lo, por um verdadeiro medo do animal. Este medo não era exatamente o receio de um mal físico; no entanto, é difícil defini-lo de outro modo. Quase me envergonhava admitir - sim, mesmo aqui, nesta cela de malfeitor, eu me envergonho de admitir - que o terror e o horror que o animal me infundia se viam acrescidos de uma das fantasias mais perfeitas que é possível conceber.

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comecei a me sentir acuado, esquecído e ignorado em minha própria casa! Me senti sozinho.


Um dia minha mulher me acompanhou-me, por qualquer afazer doméstico, à cave do velho edifício onde a nossa pobreza nos forçava a habitar. O gato seguiu-me nas escadas íngremes e me derrubou!

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a queda me exasperou atĂŠ Ă loucura.

sem pensar, Apoderei-me de um machado!

O golpe seria fatal se o tivesse atingido como eu queria.

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Mas o golpe foi sustido diab坦licamente pela m達o da minha mulher.

libertei o machado da sua m達o...

enraivecido pela sua intromiss達o...

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THUD! Por que?

e enterrei-lhe o machado no cr창nio.

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Caiu morta, ali mesmo, sem um queixume.

entreguei-me de seguida, com toda a determinação, à tarefa de esconder o corpo. Sabia que não o podia retirar de casa, quer de dia quer de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.

Em dado momento, cheguei a pensar em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los um a um pelo fogo.

Noutro, decidi abrir uma cova no chão da cave.

Depois pensei deitá-lo ao poço do jardim, ou metê-lo numa caixa como qualquer vulgar mercadoria e arranjar um carregador para o tirar de casa.

Por fim, Decidi emparedá-lo na cave como, segundo as narrativas, faziam os monges da Idade Média às suas vítimas.

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A cave parecia convir perfeitamente aos meus intentos. As paredes não tinham sido feitas com os acabamentos de costume e, recentemente, tinham sido todas rebocadas com uma argamassa grossa que a humidade ambiente não deixara endurecer.

Não duvidei que me seria fácil retirar os tijolos

mantive-o naquela posição ao mesmo tempo que, com um certo trabalho, devolvia a toda a estrutura o seu aspecto primitivo.

depois bastaria colocar o corpo dentro da parede.

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Usando de toda a precaução, procurei argamassa, areia e fibras com que preparei um reboco que se não distinguia do antigo e, com o maior cuidado, cobri os tijolos.

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Aqui, pelo menos, nĂŁo foi infrutĂ­fero o meu trabalho.

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procurei o animal que tinha sido a causa de tanta desgraça, finalmente, tinha resolvido matá-lo. Se o tivesse encontrado naquele momento, era fatal o seu destino. Mas parecia que o astuto animal se alarmara com a violência da minha cólera anterior e evitou aparecer-me na frente, dado o meu estado de espírito. É impossível descrever ou imaginar a intensa e aprazível sensação de alívio que a ausência do detestável animal me trouxe. Não me apareceu durante toda a noite, e deste modo, pelo menos por uma noite, desde que o trouxera para casa, dormi bem e tranquilamente; sim, dormi, mesmo com o crime a pesar-me na consciência.

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surgiu inesperadamente em minha casa um grupo de agentes da Polícia

No quarto dia após o crime,

confiado na impenetrabilidade do esconderijo, não sentia qualquer embaraço.

Bem-vindos Oficiais, fiquem a vontade para investigar a minha casa.

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ajudarei no que for necesรกrio.

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e obviamente deu tudo certo!

Não encontramos nada senhor. Ok, chame os rapazes, vamos embora

Os agentes estavam completamente satisfeitos e prontos para partir.

Senhores Estou feliz por ter dissipado as vossas suspeitas. Desejo muita saúde para todos, e um pouco mais de cortesia.

A propósito, esta casa está muito bem construída...

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Direi, até, que é uma casa excelentemente construída.

e bati com força na parede em que estava minha mulher.

Mal tinha o eco das minhas pancadas mergulhado no silêncio, quando ouvimos um gemido, a princípio abafado e entrecortado como o choro de uma criança, que depois se transformou num prolongado grito sonoro e contínuo, extremamente anormal e inumano.

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Tolhidos pelo terror e pela surpresa, os agentes que subiam a escada detiveram-se por instantes.

Logo a seguir, doze bra莽os vigorosos atacavam a parede. Esta caiu de um s贸 golpe.

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O cadáver apareceu ereto frente aos circunstantes.

sobre a cabeça estava o odioso gato cuja astúcia me compelira ao crime e cuja voz delatora me entregava ao carrasco.

Eu tinha emparedado o monstro no túmulo! Fim

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15/Set/2011


obrigado por ler

Gato Preto

O Gato Preto (em inglês: The Black Cat) Foi publicado em uma edição do Saturday Evening Post de 19 de agosto de 1843. É um estudo da psicologia da culpa, também comparado ao conto “The Tell-Tale Heart, também de Poe.

Erick Carjes (Santo André, 15 de Agosto de 1986) é ilustrador, designer por formação e autor independente de Histórias em Quadrinhos. Carjes é considerado um promissor quadrinista graças ao seu traço marcante e inconfundível. já escreveu e desenhou diversas obras, tais como Extraordinários e muro. Sua Graphic Novel de maior repercurssão é Entidade, que já está em sua segunda impressão e em breve poderá ser encontrada no site Graphicly.

Edgar Allan Poe (Boston, 19 de janeiro de 1809 Baltimore, 7 de outubro de 1849) foi um escritor, poeta, romancista, crítico literário e editor estado-unidense.

Poe é considerado, juntamente com Jules Verne, um dos precursores da literatura de ficção científica e fantástica modernas. Algumas das suas novelas, como The Murders in the Rue Morgue (Os Crimes da Rua Morgue), figuram entre as primeiras obras reconhecidas como policiais, e, de acordo com muitos, as suas obras marcam o início da verdadeira literatura norte-americana.

Leia também:

no site: www.carjes.wordpress.com

@erickcarjes


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