Jornal terra jun 2013

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Órgão informativo do Coletivo Terra Vermelha - Campo Grande, MS – Junho de 2013 - Edição Especial

A

violência de forma generalizada cometida contra os povos indígenas, em Mato Grosso do Sul, inscreve-se como política institucional de Estado, seja pela ação ou pela omissão dos governantes. O Legislativo e o Judiciário se aliam nessa política. Juntamente com o Estado, beneficiadas por este, operam as forças particulares, personalizadas em fazendeiros, produtores rurais e meios de comunicação, através da manipulação da informação. Uma mídia pouco ou nada socialmente responsável. E tudo isto com o consentimento de parcelas da sociedade que assistem, ora pasmas, ora alheias ao que ocorre nas regiões, palcos dos conflitos. Uma postura cínica como se dissessem: Não temos sangue de índio! Não temos cultura indígena! Chega-se a esta conclusão observando a cobertura da imprensa, somados aos relatórios e outros documentos elaborados por entidades nacionais e internacionais. A internet está repleta de vídeos feitos por iniciativas de profissionais de comunicação, advogados, membros de comunidades indígenas ou por cidadãos comuns que querem dar visibilidade às mazelas do Estado e das personagens por ele beneficiadas. A Constituição Brasileira de 1988 reconheceu os direitos dos povos indígenas sobre a terra. No entanto, passados exatos 25 anos as demarcações (estudos e homologação) caminham de forma extremamente moro-

Operação desastrosa das polícias federal e militar resulta na morte do guerreiro Oziel e deixa dezenas de feridos sa, solapada pela enxurrada de ações judiciais que impedem os processos de desenvolvimento e de conclusão da demanda. Os conflitos e a omissão do Estado (leia-se governos dos últimos 25 anos, seja da esfera estadual ou federal) têm levado a situações fatais como o crescente assassinato de indígenas por mando de proprietários rurais ou diretamente pelo Estado. Assim, o Estado Brasileiro, além de não cumprir a Constituição Federal, mata os cidadãos que já têm os seus direitos fundamentais violados constante-

mente e de forma escancarada. A judicialização dos processos conforma-se como uma estratégia que configura a má vontade dos governantes, própria do conluio entre o Estado e os “poderosos” (produtores, mídia, entre outros). A morte de indígenas é apenas a situação mais grave, espelha o que acontece com esta, e outras populações vulneráveis, como negros, trabalhadores rurais, mulheres, crianças e adolescentes, entre outros. Na sua maioria, pobres!

É esta constatação, entre outras, que fundamenta o exemplo de luta conjunta das populações historicamente marginalizadas exemplificada pela Jornada Unitária de Luta dos Povos da Terra que acontece no momento em Campo Grande. Assim, a violência não se configura apenas com os assassinatos. Tem mais elementos: terra insuficiente para a sobrevivência, a falta de estrutura para a educação e a saúde, a taxa de mortalidade infantil altíssima, os suicídios, o subemprego, a violência sexual contra mulheres, crianças e adolescentes, a invasão das comunidades por traficantes, o desrespeito a direitos específicos previstos na Constituição. Nesta mesma esteira estão as violações da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial, a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (ONU), o Estatuto do Í n d i o, d a C o nve n çã o 1 6 9 d a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso. A indignação dos oprimidos contra esta situação está na imagem televisiva que mostra os Terena rasgando a determinação da Justiça para a desocupação da fazenda Buriti. É apenas um ato que segue o exemplo do próprio Estado Brasileiro, que por sua omissão rasga a própria Constituição quando não a cumpre, garantindo os direitos essenciais dos cidadãos. A vida merece respeito!


EXPEDIENTE Terra – Órgão de divulgação Coletivo Terra Vermelha – Edição Especial - Junho de 2013. Campo Grande-MS. Realização: Coletivo Terra Vermelha e Centro de Estudos Bíblicos (Cebi) Coordenação Coletivo Terra Vermelha: Breno Moroni, Jorge de Barros Oliveira e Myla Barbosa. Coordenação do Projeto de Comunicação e Mobilização: Paulo Duarte Paes Editores: Edson Silva (MTb 091) e Gerson Jara (MTb 003/94) Colaboradores: Eber Benjamin, Karina Vilas Bôas, Priscila Anzoategui, Kátia Karine, Myla Barbosa, Jorge de Barros Oliveira, Lino Bambil. Revisão: Elanir França Carvalho Criação, diagramação e arte final: Grafiqx Impressão: Gráfica Qualidade

Mídia rasga Código de Ética “O exercício da profissão de jornalista é uma atividade de natureza social, estando sempre subordinado ao presente Código de Ética” (Art. 3º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros). Boa parte da imprensa de Mato Grosso do Sul tem lado: o dos fazendeiros. O tratamento dado as causas indígenas é recheado de quantificações negativas, desde as chamadas de capa dos jornais diários: “Índios saqueiam e põem fogo em fazenda” (O Estado de MS, 31/0513). Na edição destina-se apenas uma nota para informar a morte de Oziel Gabriel. No relato predomina a versão dos fatos na ótica dos policiais. O Correio do Estado publicou: “Sidrolândia quase repete Carajás”, mostrando as versões dos Terena e da Polícia. No entanto, criminaliza a luta dos indígenas. Nas edições subsequentes do mesmo veículo predominou a versão dos ruralistas. Na reportagem de canal de televisão de MS, a primeira cobertura teve o repórter como personagem, inalando

gás lacrimogêneo. O cinegrafista alvejado por bala de borracha. Na edição houve a tentativa de mostrá-los como reféns dos índios. Nas demais reportagens de rede, o tratamento foi total-

“O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, razão pela qual ele deve pautar seu trabalho pela precisa apuração e pela sua correta divulgação” (Art. 4º). mente negativa à causa indígena. A repórter, durante o velório de Oziel, assumiu postura provocativa: apresentou a liminar da justiça de reintegração de posse, o que causou indignação nos indígenas que rasgaram-na à frente das câmeras.

Os principais veículos de imprensa do Estado reforçam os argumentos dos fazendeiros, como o pedido de intervenção do Exército e da Força Nacional e a consequente indenização dos ruralistas, no valor de mercado. Além disso, contribuem para descaracterizar os laudos antropológicos da Funai. Omite fatos históricos e econômicos, como o avanço do agronegócio transnacional nas terras indígenas e o papel do Estado na regularização ilegal de áreas doadas às comunidades indígenas pelo imperador Dom Pedro II, em reconhecimento a participação das etnias na Guerra com o Paraguai. Oculta o papel do antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) na “domesticação” e confinamento das diversas comunidades indígenas, com o objetivo de facilitar a invasão privada ruralista.

Você tem sangue de índio?

O ator Fernando Cruz desperta a população para a causa indígena A pergunta, assim na lata, feita com um megafone em plena via pública, pega muitos de surpresa. As respostas surpreendem. Muitos vacilam antes de responder. Outros, com evidentes traços de mestiçagem indígena, negam! A pergunta, feita pelo ator Fernando Cruz nas intervenções do

Imaginário Maracangalha nas ruas de Campo Grande, expõe um dos traços mais cruéis da colonização: o preconceito e o racismo contra as comunidades indígenas. Para justificar a invasão das terras das tribos indígenas, usa-se descaradamente o argumento de que são seres inferiores, que não produzem, que são preguiçosos, que suas terras tem mais é que ser ocupadas por fazendas de soja ou criação de gado. Uma cultura diferente – As comunidades indígenas têm um modo de vida diferente do branco. O seu modo de vida tradicional não se enquadra no capitalismo. Eles não produzem para acumulação de riquezas, de capital. Eles vivem uma relação direta com a natureza, com as matas, com os rios, com os campos, de onde extraem o seu sustento. E a preservação dessas matas e desses rios é coisa básica para a sobrevivência dessas tribos. E também plantam sim! Para comer, não para exportar em dólar e acumular capital especulativo num banco. E você, tem sangue de índio e tem vergonha de assumir isso?

P E L O S

P O V O S

I N D Í G E N A S

Com a morte do guarani Nisio, em 2012, artistas, professores, estudantes, profissionais liberais e vários segmentos sociais criaram o Coletivo Terra Vermelha que vem realizando atos públicos e mobilizando a sociedade e as redes sociais para os direitos à terra e o respeito aos povos indígenas.


A outra face da história Indígenas relatam momentos de terror no conflito da fazenda Buriti, em Sidrolândia. São mais de 13 anos de luta, com estudo antropológico confirmando as terras como pertencentes aos Terena.

N

os últimos dias o Brasil parou e voltou os seus olhos para Mato Grosso do Sul. A causa é conflito entre indígenas e forças policiais área em disputa. Muito se noticiou a respeito, mas poucos veículos de imprensa realmente retrataram a dor e a tragédia dos Terena na desocupação. A área reivindicada de 17,2 mil hectares já foi delimitada, e a portaria foi publicada no Diário Oficial da União. Mas até hoje a Presidência da República não fez a homologação. O relatório de identificação da área foi aprovado em 2001 pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), entretanto as decisões judiciais suspenderam o curso do procedimento demarcatório. A fazenda Buriti está em área reivindicada pelos índios em um processo que se arrasta há 13 anos. Faz parte dos 17,2 mil hectares, a terra indígena Buriti, reconhecida em 2010 pelo Ministério da Justiça como de posse permanente dos índios da etnia Terena. Um dia após o conflito, na sextafeira (31), os indígenas resolveram voltar às terras da fazenda Buriti e

Depoimentos “Essa luta nós decidimos que não vai parar, o sangue que correu aqui nessas terras, a vida que eles levaram do nosso irmão está doendo, não vai sarar, ficou para sempre no nosso coração” (Cacique Genilson Samuel).

Indios Terena enfrentam o latifúndio e a omissão do Estado continuar a luta pelos seus direitos e reclamar por justiça, por causa do assassinato brutal do jovem, Oziel Gabriel, de 35 anos, que levou um tiro no estômago e das 28 pessoas feridas. O detalhe revela a ação desastrosa: o indígena guerreiro Gabriel, como é chamado pela comunidade, foi assassinado fora dos limites da terra ocupada, onde acontecia o confronto. O crime aconteceu em área homologada e a desapropriação usada como forma

de intimidação. Os relatos mostram que a “tentativa” de retomada de posse foi um desastre. Todos os indígenas relatam os atos agressivos da ação. “A polícia chegou e foi uma verdadeira guerra. Eles chegaram atirando, descendo bala, com muito gás lacrimogêneo e violência. Não teve diálogo, eles nem conversaram”, afirma um dos caciques que está com medo de se identificar, pois foi uma das lideranças presas no dia do confronto.

“Nós estamos em busca do direito do povo, eu luto e dou minha vida por este direito, nós estamos sendo massacrados, temos a carta declaratória que comprova que a terra é realmente nossa” (Indígena Alberto Terena). "Eu cheguei à área da retomada no momento da guerra, já estava pipocando a coisa. Nossos parentes disseram que o delegado desceu do carro e já foi metendo bala. Não teve diálogo, não teve conversa" (Cacique Basílio Jorge, tio de Oziel). “Nós estamos sofrendo muito, tem muita dor, é uma ferida que se abriu e não vai cicatrizar. A perda desse irmão não é uma derrota, ele não foi morto em vão, nós vamos, em sua memória continuar a nossa luta” (Professora terena Amélia Firmino).

O saber ameaça o poder

A força dos Terena está na organização e nas decisões coletivas

A inserção dos indígenas nas instituições educacionais tem representado uma ameaça ao poder econômico e político. Numa reunião da cúpula ruralista, realizada em maio na cidade de Amambai-MS obteve-se o consenso de que a “intelectualização dos indígenas” tem impulsionado a retomada das terras. Tal preconceito subestima o saber tradicional desses povos e suas lutas históricas. Apesar da ineficiência das políticas educacionais, os indígenas têm procurado as universidades vencendo barreiras como: a língua, o preconceito e as dificuldades de acesso. Isso tem possibilitado a eles escreverem sua própria história. Como o poder tem reagido a isso? Assassinando! No ano de 2009, foram os professores da etnia Guarani e Kawioá, Olindo e Jenivaldo Verá; em 2013, o estudante Denilson Barbosa e, agora, o acadêmico Terena da UEMS Oziel Gabriel. Quantos futuros ainda serão interrompidos em nome do “agrobanditismo”?


Foto: Roberto Higa

Marçal de Souza Tupã-Y mártir da luta pela terra no MS

De Marçal a Oziel

Oziel Gabriel

Três décadas de extermínio indígena em Mato Grosso do Sul

H

á quase trinta anos, em 25 de novembro de 1983, outro guerreiro, da nação Guarani Ñandeva, era abatido por pistoleiros a mando de fazendeiros, em sua casa na aldeia Campestre, em Antonio João. O motivo era o mesmo: Marçal de Souza foi morto por lutar pelas terras que sempre pertenceram a seu povo. A gana colonizadora e desenvolvimentista expulsou continuamente os povos indígenas de suas terras, traduzida na postura de sucessivos Governos Estaduais e Federais, que desconsideraram a presença dos povos originários ao oferecer títulos de posse a colonos, oriundos, sobretudo, da região sul do país. A História do Brasil guarda e, muitas vezes, esconde um longo legado de violações e massacres contra os seus primeiros habitantes. Na região do atual Mato Grosso do Sul, essa trajetória de barbárie não foi diferente. Desde os relatos de etnias que desapareceram por completo, como os Echoaladi, dizimadas durante a Guerra da Tríplice Aliança, até as tristemente célebres histórias de extermínio total de aldeias da etnia Ofaié, cuja população, no início do século XX, chegava a 2.000 pessoas, e não passa de 120 indivíduos nos dias atuais. O nosso Estado nunca soube

Família e amigos sentem a morte do guerreiro Oziel Gabriel compartilhar os seus “celeiros de fartura” com os indígenas que aqui vivem e resistem há milhares de anos. Ao contrário: construiu-se com a força do trabalho escravo desses povos, recrutou-os e sacrificou-os na mais sangrenta guerra ocorrida no Brasil, e, apesar dessas dívidas históricas, continua a renegar sistematicamente o cumprimento de seus direitos mais básicos. As violências contra os povos

Tabela 1 - Assassinatos de indígenas no Brasil e em Mato Grosso do Sul - 2003 a 2010

ANOS 2003 2004 2005 Mato Grosso do Sul 13 18 29 Restante do Brasil 29 19 14 Total 42 37 43 MS (% de assassinatos) 33% 48,6% 67,4%

2006 2007 2008 2009 2010 28 53 42 33 34 30 39 18 27 26 58 92 60 60 60 48% 58% 70% 54% 57%

Fonte: Relatórios de violência contra os Povos Indígenas no Brasil - CIMI - 2003-2010

TOTAL 250 202 452 55,5%

indígenas aumentaram drasticamente nas últimas décadas, desde que se lançaram na batalha pela reconquista de seus territórios usurpados. Aqueles e aquelas que hoje se encontram confinados em diminutas reservas e aldeias demarcadas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), com o intuito de liberar as terras para a colonização, decidiram não mais aceitar a injustiça e a indignidade que lhes foram impostas e retomar as

áreas que, desde tempos imemoriais, são suas. Marçal de Souza, Marcos Veron, Jenivaldo e Rolindo Vera, Nisio Gomes, Lurdivone Pires, Oziel Gabriel: nomes de alguns, dentre tantos, que já tiveram suas vidas ceifadas ao longo desses anos. E já que a grande imprensa tanto tem falado sobre uma suposta guerra entre indígenas e produtores rurais, cabe então indagar: que guerra é essa, onde apenas um dos lados tem mortos – centenas deles – a contar? As tabelas 1 e 2 do relatório “As violências contra os povos indígenas em Mato Grosso do Sul” mostram a evolução criminosa na execução e tentativa de assassinatos que não poupam sequer mulheres e adolescentes. Para que não tenhamos que continuar a nos lamentar perante tamanha barbárie, faz-se necessário que toda a sociedade se mobilize para reavaliar se realmente queremos e estamos dispostos a arcar com o preço de uma concepção de progresso e desenvolvimento que tem como base e motor o genocídio. A verdadeira democracia se constrói com o respeito à diversidade cultural e a obediência constitucional ao princípio social e coletivo da terra.

Tabela 2 - Tentativas de assassinatos de indígenas no Brasil e em Mato Grosso do Sul - 2003 a 2010

ANOS Mato Grosso do Sul Restante do Brasil Total no Brasil

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 TOTAL 2 28 51 27 37 19 9 17 100 20 23 11 6 12 20 6 13 111 22 51 62 33 49 39 15 30 301

Fonte: Relatórios de violência contra os Povos Indígenas no Brasil - CIMI - 2003-2010


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