Editorial J - Número 25 - Abril/Maio de 2017

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A B R I L / M A I O • 2 0 1 7 F A M E C O S / P U C R S • W W W . P U C R S . B R / F A M E C O S / E D I T O R I A L J

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MARCAS DO ABORTO ILEGAL 6

Roberta Requia (2º sem.)

Agência J de Reportagens investiga os perigos e a precariedade das clínicas clandestinas, situação que se perpetua no país há décadas

03 04 10 COMBATE À MENTIRA

Em entrevista exclusiva ao Editorial J, o jornalista Marcelo Rech afirma que jornalismo de qualidade combate a desinformação

PLANILHA DOS JORNALISTAS Documento que circulou na web no final de 2016 revela queixas de repórteres de grandes redações brasileiras

O ESPAÇO DAS ESCRITORAS

A partir da escolha de uma mulher para a patronagem da última Feira do Livro, Editorial J mapeia a presença das escritoras no meio literário


Jornal do Laboratório de Jornalismo Convergente da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Avenida Avenida Ipiranga, Ipiranga, 6.681 6.681 Porto Porto Alegre/RS Alegre/RS PUCRS PUCRS Reitor ReitorClotet Ir. Joaquim Ir. Evilázio Teixeira Vice-reitor Vice-reitor Ir. Evilázio Teixeira Prof. Jaderson Costa da Costa Pró-reitora Acadêmica Pró-reitora Acadêmica Mágda Rodrigues da Cunha Mágda Rodrigues da Cunha FAMECOS FAMECOS Diretor Diretora JoãoCristiane Guilherme BaroneCarvalho Reis e Silva Mafacioli

papo de redação

Laboratório lança manual PARA GARANTIR TRANSPA RÊNCIA , DOCUMENTO RE ÚNE ORIE NTAÇÕE S DE REDA ÇÃ O E CONDUTA

Coordenador Coordenador do do curso curso de Jornalismo Jornalismo de Fábian Chelkanoff Chelkanoff Thier Thier Fábian

POR Alexandre Elmi

Coordenador do Editorial J Fabio Canatta Coordenadora de Produção Ivone Cassol Coordenadores Coordenador do do Núcleo Núcleo Digimpresso Impresso AlexandreAlexandre Elmi e Marcelo Elmi Fontoura Coordenador Coordenador de de Design Design Luiz Luiz Adolfo Adolfo Lino Lino de de Souza Souza Professores do do Editorial Editorial J J Professores Alexandre Elmi, Fabio Canatta, Flávia Quadros, Ivone Cassol, Cassol, Luiz Alexandre Elmi, Fabio Canatta, Flávia Quadros, Ivone Luiz Adolfo Lino de Souza, Marcelo Fontoura, Silvio Barbizan e Tércio Adolfo Lino DeSouza, Marcelo Fontoura, Silvio Barbizan e Tércio Saccol Saccol Alunos editores Alunos editores Ângelo Menezes, Eduardo de Bem, Igor Dreher, Roberta Requia e Angelo Werner, Annie Castro, Bibiana Garcez, Eduarda Endler Lopes e Sofia Lungui Eduardo Rachelle Diagramação Diagramação Cecília Rico e Sofia Lungui Eduarda Endler Lopes Alunos Alícia Porto, Aline Possaura, Alunos Ângelo Menezes, Bárbara Assmann, Ângelo Bruno Abichéquer, Bruno Gentz, Camila Lara, Carolina BrunoMenezes, Abichéquer, Camila Lara, Cecília Rico, Clara Godinho, Eduardo Vicari, Daphne Constantinopolos, Eduardo de Bem, Gabriel Bandeira, de Bem, Eduardo Lesina, Felipe Chiamulera, Felippe Morais, Gabriel Gabriele Lima, Gustavo Barreto, IgorCassol, Dreher,Gustavo Italo Bertão Filho, Kamylla Affatato, Gabriel Bandeira, Giulia Barreto, Hebert Lemos, Igor Luiz Dreher, EduardoItalo Cardoso, Luiz Otávio Pereira, Matheus Wolff, Mia Garcia, Bertão Filho, Jonas Melgaré, Larissa Fenalte, LetíciaPedro Santos, Luana Casagranda, Soares, Luiza Meira, Requia, Maria Sodré, Braga, Renata Saraiva, Luisa Rhafael Munhoz, Roberta Eduarda Petek, Mariana Cunha, Mariana Puchalsky, MiaUrbani, Sodré, Virgínia Nathália Sara Santiago, Sofia Lungui, Victória Lermen, Victória Porto,Fernandes, Pedro Martins Moura, Roberta Requia, Samira VitorSpieker, Kafruni,Ritieli Vitorde Lacourt e Wellinton Almeida. Rodrigues, Sofia Lungui, Vitor Kafruni, Vitor Lacourt, Wellinton Almeida CONTEÚDOS DO EDITORIAL J FamecosCast É uma webradio com programação diária de reportagens, debates, entrevistas, colunas e noticiários ustream.tv/channel/famecos-cast. Twitter, Instagram, Flickr e Facebook Por meio de perfis, notícias e imagens são compartilhadas. Pelo Twitter, no @editorialj. Pelo Instagram, no @editorialj. No Facebook, pelo facebook.com/editorialj. No Flickr, flickr. com/editorialj. Editorial J na TV Telejornal quinzenal, semanal, com comproduções produções audiovisuais pelas redes sociais e reportagens sobre assuntos diversos. As edições estão disponíveis em youtube.com/editorialj. IMPRESSÃO Gráfica Epecê - PUCRS

Laboratório de Jornalismo Convergente da Famecos www.pucrs.br/famecos/editorialj

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ste espaço normalmente é usado por alunos para comentar suas experiências de apuração no Editorial J. Voltará a ser assim já no próximo número, mas neste, quando o jornal do Laboratório de Jornalismo Convergente da Famecos chega à sua 25ª edição, optei por assumir a produção deste texto para explicar duas mudanças significativas na nossa experiência pedagógica de Jornalismo. A primeira delas é um marco na vida do laboratório: desenvolvemos e lançamos um documento que reúne uma série de indicações de redação, conduta e procedimentos, tanto para as nossas reportagens impressas quanto para os nossos conteúdos digitais. O Manual do Editorial J foi pensado para consolidar conceitos e recomendações aprimorados por professores e alunos que passaram pelo Editorial J em quase seis anos de existência. Além de reunir as principais diretrizes produtivas, pretendemos que o guia seja um dos pilares da nossa política de transparência, compartilhando com a comunidade e com o público leitor a nossa visão sobre o fazer jornalístico.

+ Confira o pdf do Manual de Redação do Editorial J.

Portanto, fixamos nele os nossos compromissos cruciais: economia da escrita, transparência, interesse público e respeito às noções de diversidade. Trata-se de um trabalho aberto à evolução, receptivo às transformações e a complementos determinados por novas necessidades de orientação. “O exercício da atividade jornalística é altamente padronizado, com convenções que buscam uniformizar os procedimentos em uma redação. Em inúmeros casos, há mais de uma forma de proceder e mais de uma resposta às dúvidas elementares de escrita e ação. Assim, em nome da unidade ética, técnica

e estética, as redações alinham regras e recomendações, seguidas pelos seus integrantes”, diz o documento, resumindo o objetivo de padronização, ao mesmo tempo em que alerta para o risco da burocratização. No manual, que pode ser consultado a partir do caminho publicado no QR Code nesta página, o interessado encontra dicas de estilo, recomendações de comportamento jornalístico durante a apuração e um breve perfil do Editorial J nas redes sociais. Exemplos de orientações que estão no documento: como escrevemos os cargos das fontes que entrevistamos, como o repórter do Editorial J deve se apresentar em entrevistas, qual a diferença entre a personalidade do J no Facebook e no Instagram. Embora o Manual tenha sido escrito para orientar os estudantes de Jornalismo, esperamos que ele também chegue às pessoas que têm interesse na nossa atividade e querem entender como as nossas histórias são produzidas. Acreditamos que a valorização do jornalismo passa por uma melhor compreensão das suas engrenagens de funcionamento.

Um novo visual A segunda mudança que merece ser anunciada é estética, pois o jornal Editorial J chega graficamente renovado à sua 25ª edição. Sob a orientação do professor Luiz Adolfo de Souza, o Núcleo Digimpresso – neologismo criado para designar a fusão entre as atividades do Núcleo Impresso e Núcleo Web do laboratório –, fez um ajuste no projeto gráfico da nossa publicação, com o objetivo de ampliar a legibilidade das páginas e pensar de uma maneira

distinta as capas de cada edição. A nova lógica de desenho da nossa capa prevê a valorização de uma imagem principal, para que a publicação se torne ainda mais atraente nos displays de distribuição. Nas páginas internas, os ajustes foram promovidos para ampliar a legibilidade dos elementos textuais, como o corpo de texto das reportagens e os títulos, além de uma modernização da cartola que identifica os temas das reportagens. Seguimos acreditando na

mídia jornal impresso, como retrato periódico da nossa produção, oferecendo uma experiência singular de leitura. É como diz a jornalista Belisa Ribeiro no livro em que conta a história do lendário Jornal do Brasil: “Um jornal não muda o mundo. Mas é como o bispo no jogo de xadrez. Anda na diagonal”. Esperamos que a diagonal do J siga produzindo seus efeitos, complementando a cobertura que fizemos em todas as nossas plataformas. Boa leitura!


imprensa

Contra fake news

MAR C ELO R E C H , P RE S I DE NTE DA ASS OCIAÇÃO NACIONAL DE JORNAIS, ENTENDE QUE JORNALISMO DE QUALIDADE COMBATE DESI N F O RMAÇ ÃO

P O R Italo Bertão Filho (3º sem.)

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arcelo Rech é, por essência, um repórter. Hoje dedicado a funções executivas — é presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) e vice-presidente editorial do Grupo RBS — escreve menos, mas ainda marca presença em Zero Hora com artigos de opinião. Rech começou na carreira em 1979, na Rádio Gaúcha. Já fez de tudo nas redações: foi copydesk, pauteiro, repórter especial, editor-chefe, chefe de redação e diretor de jornais do conglomerado da família Sirotsky. Participante do painel Os Limites da Democracia do 30º Fórum da Liberdade, Rech concedeu uma entrevista exclusiva ao Editorial J.

dia não é um tecido único. Há veículos que defenderam o impeachment e outros que o condenaram. De uma forma geral, porém, entendo que os veículos defenderam os segmentos dos ritos e preceitos constitucionais.

J — Como o jornalista pode lidar com as fake news?

Igor Dreher (3º sem.)

Editorial J — Qual é o futuro do jornal impresso? Marcelo Rech — Quem vai dizer é o usuário. A televisão tem futuro? A revista tem futuro? O mobile tem futuro? O usuário é quem vai dizer. É importante dizer que nós, jornalistas, não estamos no ramo da impressão de jornal, e sim, no ramo da produção e difusão de conteúdo. Nossa obrigação é produzir conteúdos da forma conveniente para o usuário. Se ele quiser ler, ele vai ter escrito. Se quiser em vídeo, ele terá em vídeo. Nossa obrigação não é nos preocuparmos muito com plataforma. Isso é secundário. A preocupação deve ser em relação à qualidade e atratividade que nós estamos gerando na plataforma que for. Esse é o nosso papel daqui pra frente.

J — O futuro então é a reportagem, não a plataforma? Rech — A plataforma é meio. Estamos vivendo numa era em que dá para dividir entre os médicos profissionais e os charlatões. Os jornalistas profissionais serão os médicos. Haverá um monte de gente, amadoristicamente e de boa ou má fé, que vai dar a receita do chazinho, a receita pra curar tosse, o resfriado. Numa situação mais

Rech esteve na 3oª edição do Fórum da Liberdade séria, quando o sujeito realmente precisa de uma informação mais qualificada, ele vai procurar o veículo ou o jornalista profissional, uma grife, seja num blog, seja num site, seja num veículo grande. Alguns veículos serão centros de referência, outros serão questionáveis. As pessoas não vão deixar de trocar receita de chazinho pra curar a tosse. Isso vai acontecer sempre. Mas na hora da necessidade, (elas) vão procurar um médico. Nós somos os médicos da informação.

J — A imprensa está preparada para isso? Rech — Poucos profissionais e veículos estão preparados para o nível de exigência que esse cenário novo estabelece. De uma forma geral, ainda estamos fazendo

jornalismo como nós fazíamos há 40 anos, ou até pior em algumas situações, achando que dar uma notícia é suficiente. O futuro está em nós irmos além das aparências e fazer mais investigação e reportagem, procurar as conexões e oferecer uma análise apurada de expert, de entendido e oferecer isso em cinco minutos, não mais em cinco dias ou cinco anos.

J — Em redes sociais, encontra-se uma crítica à cobertura dos grandes veículos durante o processo de impeachment, acusando-os de “mídia golpista”. Como interpretar este tipo de crítica aos jornais? Rech — Nas redes se encontra de tudo, inclusive muitos que acham a mídia esquerdista. A mí-

Rech — O antídoto para fake news é jornalismo de qualidade. Não há dúvida que as redes sociais, em particular o Facebook, distorceram a noção de informações críveis. O algoritmo privilegia informação que tende a ser mais compartilhada. Informação compartilhada é informação que gera informação porque gera dados sobre o usuário que o algoritmo busca. Essa noção de qualidade e credibilidade foi completamente distorcida. Tudo que está sendo feito até agora pelos gigantes digitais está muito mais no campo das relações públicas do que encontrar uma solução global que valha tanto para os Estados Unidos quanto para a África do Sul. Eles precisarão mexer no algoritmo privilegiando veículos de jornalistas tradicionais ou pessoas que tenham credibilidade. Eles vão ter que abrir mão de receita ou de informação. Se continuar assim, quem vai perder são os gigantes digitais, que vão ficar irrelevantes e perder receita por causa da má reputação. No fundo, vai ter que passar por uma autorregulação, estabelecendo um modelo complementar com o jornalismo profissional.

J — Isso não faz os veículos serem reféns dos gigantes digitais? Rech — Acho que isso começou a mudar. Nós estávamos e ainda estamos, de uma forma geral, completamente reféns dos gigantes digitais, sobretudo no campo da distribuição. Hoje, quem detém a distribuição de forma majoritária são as redes sociais. Poucos publishers tomaram a decisão

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de ficar fora do Facebook. É uma decisão muito difícil. A maioria está (no Facebook), ainda que de maneira controlada. Creio que começou a cair a ficha do Facebook e do Google. Eles vão ter que trabalhar com jornalistas profissionais, de alguma forma, para se manter, para sobreviver. O fato deles estarem dispostos a pagar agências de checagem de fatos já é um sinal. Eles nunca fizeram isso. Sempre se valeram do trabalho escravo de bilhões de pessoas para produzir conteúdos e dados sobre elas mesmas para venderem conteúdo para outras pessoas. São indústrias de manipulação, que usam milhões e milhões de dólares para difundir a desinformação. São países inteiros, a China, a Rússia, gerando uma torrente de informação falsa para obter ganhos políticos e econômicos.

J — Zero Hora tem apostado mais em reportagem? Rech — Historicamente, o jornal investiu muito em reportagem. Entendo que, mesmo numa época de crise econômica, este é um espaço que não só está assegurado como se procura qualificá-lo cada vez mais. Os jornais da Caldas Júnior tinham muita coluna, muita colaboração, muito artigo e alguma reportagem. Zero Hora teve uma decisão estratégica de contratar grandes repórteres e de dar espaço para eles, que palmilharam o Rio Grande do Sul atrás de histórias. Não é só estar na linha de frente. Na maioria das vezes, a grande reportagem está a 500 metros da gente.

J — Há futuro para a reportagem? Rech — Não há futuro sem reportagem. Se o futuro é jornalismo de qualidade como contraponto à desinformação, a reportagem está no topo da pirâmide. A reportagem é o que traz mais dignidade para o jornalismo. Mais que o jornalismo de análise, de opinião. O que gera um conteúdo único é a reportagem. É o chão de fábrica. A pessoa mais importante numa redação é o repórter. É a pessoa essencial não só para buscar as informações na rua, o que é uma bobagem. O repórter é quem vai enxergar o mundo e traduzi-lo para o leitor, ouvinte, telespectador e internauta de forma profissional e independente, mais precisa possível, que não troque milhão por bilhão, que não erre sobrenome das pessoas. Tudo isso gera credibilidade. Embora a figura do repórter seja classificada, infelizmente, como uma profissão em decadência, eu acho o contrário.


A planilha aberta dos jornalistas PLA N I L HA Q U E C I RC U LO U NA WE B NO ANO PASS AD O RE VELA CLIMA DENTRO DE R EDAÇÕE S B RAS I L E I RAS. ASS É D IO MORAL LID E RA QUE IXAS DOS PROFISSIONA IS

P O R Sofia Lungui (2º sem.)

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urante todo o mês de agosto de 2016, um formulário de autoria anônima circulou pela web com o objetivo de servir como divã para jornalistas. Nele, os profissionais de imprensa poderiam responder a uma pergunta direta, “como é trabalhar na redação de…?”, com a identidade protegida. Ao todo, antes de sair do ar, a planilha eletrônica que era atualizada com as respostas recolheu 279 relatos de participantes de 89 diferentes veículos de comunicação no Brasil. O Editorial J mapeou as considerações e buscou entender quais foram as principais reclamações, para compreender o clima dentro das redações, que pode ser ilustrado por uma das respostas ao questionário: “Há uma cultura de assédio moral constante, com chefes ‘autorizados’ a gritar com chefiados. Falta uma estrutura de crescimento profissional e de feedback. Alguns editores são notoriamente despreparados para o cargo, com opiniões e constantes declarações preconceituosas sobre questões centrais de suas editorias”. O assédio moral liderou a percepção negativa dos jornalistas sobre o ambiente de trabalho. R7, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Editora Abril, UOL e Editora Globo foram os mais mencionados no formulário. Além do documento para coletar o relato anônimo da vivência nas redações, outro arquivo circulou também durante o mês de agosto para monitorar a percepção dos profissionais das agências de publicidade. Mais adiante, o escritor Caio Andrade revelou que criou o questionário sobre as agências para ajudar um amigo, porém, o dos jornalistas segue sem autor identificado. Esta reportagem do Editorial J foi produzida com base na análise, realizada ao longo do 2º semestre de 2016, de planilha do Google Drive com as respostas sobre as redações brasileiras. Cada um dos relatos foi analisado e classificado em categorias pré-definidas, que englobavam trato com os empregados, remuneração, relações entre os empregados, teto de ho-

ras, linha editorial, conformidade com as do Mick, essa é, geralmente, a única maleis trabalhistas. As 279 respostas foram neira do jornalista alcançar remuneração e desmembradas em 642 críticas (negativas reputação elevadas, conquistando posição e positivas), pelo fato de, na maior parte dominante na área. dos casos, haver mais de uma crítica ou Para o pesquisador, práticas como o queixa na mesma resposta. As categorias assédio moral podem acarretar até mesmo que mais apareceram foram: assédio moem problemas de saúde física ou mental, ral (80), desconformidade com os direitos muitas vezes. “O assédio moral pode estar trabalhistas (70), gestão ultrapassada relacionado à precarização, uma vez que o (61), falta de conhecimento (57), clima problema está ligado ao cumprimento de burocrático (54), salários baixos (44). No metas. A lógica de metas é típica do capitotal, 84,89% dos relatos foram negativos, talismo contemporâneo. O assédio está alguns até mesmo envolvendo situações relacionado a um aspecto de longa duração como o assédio sexual. da nossa experiência escravocrata, que Em síntese, as queixas corroboram a está presente em diversas funções interideia da precariedade da profissão jornamediárias do trabalho no Brasil”, afirmou lística. Apesar disso, não se pode dizer que o professor. os dados são representativos da categoria O assédio sexual, por outro lado, é reno Brasil, pelo fato de serem casos isolados sultado da sociedade patriarcal em que vie aleatórios, e também por não representavemos, observou Mick. Entre as mulheres rem uma pesquisa específica sobre o tema. que responderam o formulário, 23 afirmaÉ importante ressaltar que as informações ram ter sofrido assédio sexual dentro do são majoritariamente referentes às plaambiente de trabalho, por parte de colegas taformas digital e impressa dos veículos ou de superiores. “Passei pelo assédio privados, deixando de lado as emissoras de sexual constante. Sentir-se despida ao pasrádio e TV e veículos públicos. sar por um corredor ou se sentir devorada É possível dizer que os dados ao conversar com gerentes são situações coincidem, em parte, com os resultados da normais. Acostume-se com o assédio da pesquisa Perfil do Jornalista Brasileiro, remaneira mais doentia em que ele ocorre, alizada em 2012 por Alexandre Bergamo, devagar. Eles fazem grupos no Whatsapp, Jacques Mick e Samuel Lima. Segundo o expõem nossos rostos e nomes, todo muncoordenador do estudo, Jacques Mick, que do se sente confortável para te olhar como é jornalista e professor do Departamento se você fosse um pedaço de carne”, relatou de Sociologia e Ciência Política da Univeruma das respondentes que trabalhava na sidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Editora Abril. Além disso, tanto homens a principal conclusão do levantamento como mulheres relataram que, em muitos foi observar os obstáculos da carreira de veículos, mulheres recebem muito menos jornalista no Brasil. “Os do que homens, além de indicadores de precariereceberem cargos infedade combinam-se uns riores a eles. No 1º secom os outros. Para o mestre do ano passado, Conheça o levantamento e sujeito se tornar domifoi realizada a pesquisa produza outros trabalhos. nante dentro do campo, Desigualdade de Gêneele precisa acatar conro no Jornalismo, pelo dições de trabalho. Ou Coletivo de Mulheres seja, ao longo de sua vida Jornalistas do Sindicato profissional, ele precisa dos Jornalistas Profissiotrabalhar mais de oito nais do Distrito Federal horas por dia, em três ou (SJPDF). Conforme o quatro empregos, muitas levantamento, 70,7% das vezes”, explicou. Segunentrevistadas responde-

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ram que acreditam que já foram designadas para uma pauta pelo simples fato de serem do sexo feminino; 77,9% delas já sofreram assédio moral por parte da chefia ou de colegas de trabalho. Práticas como estas originaram o movimento Jornalistas Contra o Assédio, fundado na metade de 2016 por jornalistas brasileiras que sofreram assédio e reivindicam igualdade entre gêneros na profissão. Em alguns dos jornais que receberam críticas no formulário eletrônico, constatou-se a presença de um padrão: apareceram as mesmas etiquetas em diferentes relatos sobre o mesmo veículo. No caso da Editora Globo, que obteve dez respostas, em quase todas foi mencionado que há conformidade com os direitos trabalhistas, pelo fato de pagar em dia, por exemplo, embora muitos dos participantes tenham afirmado que o assédio moral é recorrente. Quanto ao Estadão, nos 34 relatos, as reclamações sobre o desrespeito a direitos trabalhistas foram unânimes. Os problemas de gênero também foram criticados no jornal, especialmente o machismo. O tópico que mais chama a atenção no Estadão e também da Editora Abril (18 relatos), porém, é a gestão ultrapassada, que se manifesta de algumas maneiras: falta de perspectiva de crescimento profissional, de planejamento e de profundidade no conteúdo digital, editorias digitais ignoradas, setor online engessado e distanciamento entre impresso e digital são algumas das queixas. Há diferentes explicações para o aparente fenômeno, que pode ou não ser confirmado. A gestão ultrapassada e o clima burocrático apareceram em muitas das queixas de jornalistas da Editora Abril. Para Mick, a crise que o jornalismo vive está longe de acabar. “As empresas não sabem como reagir à crise, sobretudo as que vieram da mídia impressa. Houve deterioração de credibilidade dramática no último ciclo, pois parte das mídias resolveu abraçar um posicionamento político, afastando-se de uma cobertura equilibrada”, opinou. “As pessoas estão se informando com o smartphone. Há uma mudança no perfil de leitura do público. O jornalismo


trabalho aborto é um discurso que todo mundo considera fundamental mas que o leitor decide não ler”, disse. O diretor executivo do Departamento de Comunicação do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS), Pedro Sellos, prefere um caminho diferente, com perspectiva positiva sobre o futuro do jornalismo. De acordo com Sellos, o momento atual é muito oportuno para a produção jornalística, que é cada vez mais fomentada. No entanto, a gestão dos veículos vem se mostrando ultrapassada, não somente quanto aos recursos digitais, como também na gestão de pessoas. “Nunca se leu tanto, nunca se consumiu tanta informação. Mas o jornalista tem uma formação muito orientada para a produção de conteúdo informativo. Isso é bom por um lado; por outro é ruim, pois ele entra no mercado com visão corporativa e do mundo empresarial muito ingênua e abstrata”,

analisou. O problema está especialmente no fato de que as empresas de mídia continuam funcionando por meio do modelo antigo, embora utilizem uma tecnologia nova, apontou Sellos. “As empresas de mídia possuem modelo tradicional, pouco apoiadas em tecnologia, empregando muitas pessoas. Durante muitos anos, estas empresas foram líderes das regiões em que trabalhavam. Isso gera uma curva de lucro muito acima do PIB (Produto Interno Bruto) local. Hoje, são as mais fragilizadas, no momento em que surge uma tecnologia disruptiva, oferecendo novas formas de serviço em cima desse mesmo setor”, informou. O professor usou como exemplo os táxis, que tiveram sua hegemonia balançada após o surgimento da empresa Uber, que possui preços mais acessíveis e uma nova tecnologia de transporte individual. O mesmo serve para as empresas de jorna-

lismo. Segundo ele, os “Ubers” do jornalismo são as iniciativas independentes, que ao contrário das empresas tradicionais, funcionam com base em performance e produtividade, em vez de relacionamentos. Sem benefícios ou plano de carreira, pagamentos atrasados, exploração de estagiários, condições de trabalho precárias e a falta de benefícios foram algumas das denúncias feitas pelos jornalistas, sobretudo do Estadão e da UOL (14 relatos). Em outros veículos, entretanto, os problemas também apareceram, não se limitando às empresas maiores e mais tradicionais. “Há diversas pessoas fazendo o mesmo trabalho e ganhando quantias muito diferentes. Na época em que trabalhei lá eram todos PJ (pessoa jurídica), o que é péssimo para quem trabalha cinco vezes por semana em um horário determinado. Além disso, usam os estagiários como mão de obra barata, fazendo-os algumas vezes traba-

lhar até mesmo em feriados”, relatou um funcionário do Catraca Livre, por exemplo. José Carlos Torves, diretor-executivo suplente da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), acredita que estes problemas se devem ao comportamento da sociedade brasileira no trato com os subordinados. “A própria repercussão (destes problemas) na sociedade põe a responsabilidade sobre o jornalista, quando deveria ser do editor-chefe ou do dono dos veículos. Isso tudo é uma consequência dessa má qualidade que temos nas redações. Isso se torna uma forma de assédio que é feita diariamente”, classificou. Até o fechamento desta edição, os veículos procurados para se manifestarem a respeito do estudo não responderam ou não tiveram interesse em fazer pronunciamento. Caso algum deles faça alguma declaração a versão online deste conteúdo será atualizada.

Sofia Lungui (2º sem.)

Uma radiografia sobre a planilha O levantamento de dados feito pelo Editorial J foi realizado por meio da análise das respostas do formulário até sua última atualização, no final de agosto de 2016. Alguns relatos foram descartados por serem irrelevantes

Os números ao lado referem-se aos 279 relatos do documento. Dos 89 veículos, estes ao lado foram os cinco que se destacaram no número de respostas. Coincidentemente, estes são alguns dos maiores grupos de jornalismo do país, além da Editora Globo e O Globo, que tiveram 3,94% e 3,23% dos relatos, respectivamente. Em todos estes veículos houve uma queixa de maior destaque, todas negativas, como é apresentado na tabela.

para a pesquisa ou por criticarem pontos relacionados à cobertura dos veículos. Ao todo, foram analisadas 279 respostas. As tabelas podem ser acessadas pelo link no QR Code na página anterior.

13,98%

dos relatos são de jornalistas da rede R7, que apontaram o assédio moral como principal problema;

12,19%

são de repórteres do Estadão, que mais mencionaram a desconformidade com os direitos trabalhistas;

7,53%

é o percentual de trabalhadores da Folha de S. Paulo, que mencionaram mais vezes a desconformidade com os direitos trabalhistas;

6,45%

é a porcentagem de respostas de jornalistas da Editora Abril, que se queixaram sobre a gestão ultrapassada;

5,02%

das respostas coletadas são de funcionários da UOL, o problema de maior destaque foi o clima burocrático.

50,56% dos jornais citados possuem publicações impressas, entre estas jornais e revistas;

35,96% dos jornais envolvidos são nativos da web, com plataformas digitais, somente;

10,11% dos veículos citados são emissoras de televisão;

Os relatos (279) foram desmembrados em 642 queixas negativas e positivas, representadas por algumas categorias, como estas citadas abaixo. Os dados da tabela a seguir são baseados neste número, sendo estes os mais relevantes. 84,89% das menções são negativas; entre elas, o assédio moral se destacou. Categorias negativas

Categorias positivas

Assédio moral

12,46%

Bom ambiente de trabalho

5,76%

Desconformidade com a CLT

10,90%

Conformidade com a CLT

2,49%

Gestão ultrapassada

9,50%

Gratificante

1,71%

Falta de conhecimento

8,88%

Autonomia

1,71%

Clima burocrático

8,41%

Salários uniformes

1,40%

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3,37% dos veículos mencionados são emissoras de rádio.


aborto

Cama forrada com jornal, paredes mofadas e feto na privada

C RI MI N A LIZ AÇÃO DO ABORTO NO PAÍS SUJEITA MUITAS MULHERES À SITUA ÇÃ O PRECÁ RIA DAS CLÍNIC AS C L A NDEST INAS.

M A I S DE D UAS MIL ABORTAM P OR DIA, SENDO O A BORTO ILEGA L A QUINTA MA IOR CAUS A DE MORTE MAT ER NA NO BR ASIL

POR Annie Castro (6º sem.)

E

ra uma quarta-feira como qualquer outra. Não para Leila. Naquele dia, ela entrou no consultório do doutor N. Aos 22 anos, Leila iria fazer um aborto. Esteve lá no dia anterior para uma consulta e, por estar grávida de 16 semanas, o feto deveria ser retirado o mais rápido possível. Portanto, no dia seguinte, ela retornou. O médico a atendeu em uma sala precária, separada do consultório; a cama, por exemplo, era forrada com jornal. Leila ficou consciente ao longo de todo o procedimento feito com anestesia local. Viveu o medo de ter alguma infecção, caso um dos instrumentos cirúrgicos caísse nos jornais e seguisse sendo utilizado. Foi há cerca de 30 anos, mas essa ainda é a realidade que muitas mulheres enfrentam diariamente ao realizarem um aborto em clínicas clandestinas no Brasil. Não há um levantamento oficial de quantas dessas clínicas existem no país, onde o aborto só é permitido por lei em casos em que a gravidez é resultante de estupro, representa algum risco à vida da gestante ou quando o feto é anencéfalo. Porém, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o aborto clandestino é feito por mais de um milhão de mulheres anualmente em território nacional. Ou seja, duas mil mulheres abortam diariamente no Brasil, aproximadamente duas por minuto. Seja pagando até mais de um salário mínimo em consultórios ilegais ou em casa, usando remédios ou chás. Aos 28 anos, Paula* virou estatística. Numa clínica clandestina em um prédio comercial, que provavelmente passava despercebida pelos muitos que transitavam no centro de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Lá dentro havia câmeras de segurança na porta e vários homens sentados na recepção – a companhia de alguém era obrigatória, já que a mulher fica desorientada em função da anestesia geral. Na sala de recuperação havia apenas alguns colchões com cobertores no chão. Acordou sozinha após o procedimento e começou a perambular pela clínica. Foi quando viu um feto ser aspirado do útero e jogado na privada. Ela não deveria ter visto. Lá, as mulheres

não sabiam o que acontecia com o feto. Quando as acordavam após o procedimento, elas já estavam com o antibiótico na mão e o absorvente na calcinha, prontas para irem embora. Paula pagou R$ 3 mil pelo aborto, feito em um local sem as condições de higiene necessárias. Talvez por isso, tenha contraído uma infecção e precisou de tratamento ginecológico durante meses. O abortamento ilegal constitui a quinta causa de morte materna no país, segundo relatório elaborado pelo governo brasileiro para o evento Pequim + 20, em 2015. E, segundo a OMS, isso resulta na morte de uma mulher a cada dois dias no Brasil. Para a assessora da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Ariane Leitão, 36 anos, formada em Direito, a violência contra a mulher no Brasil é uma pandemia. “Morre mulher que nem morre barata. E um dos elementos que mais mata a mulher é a violência obstétrica. Dentro disso está o abortamento legal e também as tentativas de abortos ilegais. E é uma morte muitas vezes subnotificada”. E isso está, na maioria das vezes, ligado à falta de informação. No Nordeste, o número de mulheres sem instrução que fazem aborto ilegal é de 37%, enquanto o de mulheres com Ensino Superior completo é 5%. Já entre as mulheres negras, a porcentagem é o dobro das brancas (3,5% e 1,7%, respectivamente), de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2013. É uma prática antiga, realizada através dos mais diversos métodos, em clínicas ou pelas próprias grávidas: chás, remédios, objetos pontiagudos para perfurar o útero, como agulhas de tricô, curetagens. “As mulheres sempre fizeram. Mas elas praticam aborto quando elas precisam praticar. Elas não praticam como método contraceptivo porque ele é doloroso, ele é doloroso psicologicamente”, afirma Cláudia Prates, de 56 anos, militante da Marcha Mundial das Mulheres, movimento que tem como uma de suas principais pautas a luta pela legalização e descriminalização do aborto. Diferente de Paula, Tatiana* não teve só traumas físicos, e sim psicológicos. Em uma sexta-feira de abril, dois anos

Roberta Requia (2º sem.)

No país o aborto só é permitido quando a gravidez resulta de estupro, representa risco à vida da gestante ou quando o feto é anencéfalo depois, também em meio ao movimento caótico do centro de Porto Alegre, ela se despediu da mãe. Seguiu, acompanhada de uma moça, até um prédio residencial em uma das maiores avenidas da cidade. O apartamento era velho, úmido e cheio de quartos. As paredes manchadas, como se não fossem limpas há tempos. Na peça onde a estudante de 15 anos foi atendida havia alguns aparelhos, utensílios médicos e uma cama. Ao acordar da anestesia geral, olhou para o lado e viu um pote que continha o sangue resultante do procedimento. Ela teve sangramento por dois meses seguidos. Durante esse período, carregava consigo muitos receios: “Fiquei com medo de ter uma infecção generalizada e acabar morrendo. Fiquei com medo de perder o meu útero, caso o sangramento não parasse. Se ficasse mais intenso e com muita dor, tinha o risco de

perder. Eu não sei até hoje se eu sou fértil ou não. Não tive nem coragem de ir ver”. Além disso, até hoje Tatiana não consegue realizar o exame de papanicolau sem desmaiar. O procedimento, por ter a lógica de utilizar instrumentos parecidos com os da curetagem, mesmo método usado no aborto de Tatiana, faz com que ela relembre tudo o que passou. “Eu tenho que vestir aquele hobbyzinho, tem que deitar naquela cama e abrir as pernas. Eu não consigo, passo mal sempre.” Para algumas, a falta de acesso à informação sobre métodos realmente eficazes pode piorar o processo. Priscila* engravidou mesmo tomando a pílula do dia seguinte uma hora depois da relação sexual. Ela conta que seu mundo desabou no momento em que o exame de gravidez deu positivo. Por saber que não teria apoio do pai da criança e teria que

cuidar dela e de tudo sozinha, resolveu abortar. Após esse momento, seus dias foram seguidos por desespero e busca por métodos eficientes. Por medo de utilizar remédios que não funcionassem, ingeriu incontáveis misturas de chás e bebidas alcoólicas, conforme ensinavam blogs que descobriu na internet. “Chegou um dia que eu tomei tanto chá, tanto álcool (que tinha que deixar as ervas de molho), que eu passei muito mal. Ia pro banheiro e fazia força achando que estava abortando. Mas eu estava só passando mal em efeito do chá. Cheguei no fundo do poço mesmo”, lembra. Sozinha e sem ajuda – uma vez que sua mãe e amigas tinham medo de conseguir algum remédio que, ao invés de abortar, à levasse a óbito – acabou indo procurar seu ginecologista. Saiu do consultório com uma resposta já conhecida: ele não a ajudaria. Foi assim

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que, aos 23 anos, Priscila desenvolveu depressão. Por conta da clandestinidade do que precisava fazer, começou a perder cabelo e não ter forças para sair da cama, trabalhar ou fazer tarefas básicas do seu dia-a-dia. Pensou até mesmo em suicídio. Após entrar em um grupo no Facebook e conseguir o contato de um médico que topou fazer o procedimento, Priscila conseguiu o dinheiro e foi até a clínica. Ela pagou R$ 4 mil e foi atendida em um ambiente higienizado e com todo o aparato necessário. Porém, teve a oportunidade de poucas. Por isso, ela sentiu um tipo diferente de dor. “Foi tudo muito mais fácil e tranquilo. Então cai naquela questão de que eu tinha condições de fazer, tinha como arrumar o dinheiro. E se fosse uma menina que não tivesse como? Por que eu tive esse direito? É uma covardia muito grande com todas as

mulheres, principalmente com quem não tem dinheiro”. Leila abortou em 1986, Paula em 2009, Tatiana em 2011 e Priscila no final de 2016. Apesar da diferença temporal, as quatro enfrentaram a mesma realidade: uma legislação restritiva e conservadora acerca do aborto no Brasil. Uma lei que não impede que ele aconteça, mas faz com que não se fale do tema com a frequência e a importância que exige. Em 2016, relatores especiais das Nações Unidas (ONU) encaminharam um documento ao Supremo Tribunal Federal (STF), afirmando que negar o serviço do aborto é equivalente à tortura. Para que as más condições em clínicas clandestinas, a venda de remédios que não fazem efeitos, os traumas gerados em muitas – antes, durante e após o procedimento ilegal – e a morte de tantas outras parem de acontecer, alguns pequenos, porém importantes, passos foram dados. Ainda no ano passado, a primeira turma do STF, formada pelo ministro Luis Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Marco Aurélio Mello descriminalizou o aborto até o terceiro mês de gestação. Apesar da decisão ter sido especificamente para um caso que estava sendo julgado, Ariane Leitão acredita que isso gerou um grande precedente para a questão do abortamento legal no país: “Abriu caminhos para que nós possamos, um dia, definitivamente legalizar ou melhor, descriminalizar a questão do aborto”, comenta. Além disso, as brasileiras estão encontrando refúgio e apoio umas nas outras, principalmente no meio online. Cláudia ressalta que a internet tem ajudado essas mulheres a acessar sites e blogs de países onde o aborto não é proibido e tenham um maior acesso à informação. Sites como Socorristas en Red e o Women on Waves, grupos no Facebook e movimentos feministas dão este tipo de suporte. Priscila, por exemplo, está conseguindo melhorar da depressão e da dor psicológica através de grupos onde conversa com mulheres que passaram pelo menos que ela: “Eu me senti muito bem quando eu pude ajudar outras meninas a conversar sobre isso. Acho que pelo próprio fato de falar disso, de quebrar esse tabu”. * Alguns nomes foram alterados para preservar a identidade das fontes

O desafio de escutar

R

ealizar essa reportagem foi como levar um soco na boca do estômago – tanto durante o período de apuração quanto de escrita. Ouvir esses relatos doeu. Me fez enxergar outra realidade. Até então, eu apenas imaginava como era. E, pela primeira vez, na minha vida de estudante de Jornalismo, consegui entender a dimensão da profissão. Do quanto precisamos enxergar e tentar sentir, mesmo que parcialmente, a dor do outro. Entendi que precisamos expor e denunciar as situações das quais ela resulta. Porém, só pude concluir isso quando vi a reportagem ganhando espaço nas redes sociais, por meio de alguns veículos de comunicação, do Twitter e de páginas no Facebook - onde atingiu mais de dois mil compartilhamentos. Primeiro, ela foi publicada pelo Ponte Jornalismo, um canal de informações sobre Direitos Humanos, Justiça e Segurança Pública, em parceria com a Carta Capital. Dali, foi replicada pela página Quebrando o Tabu, onde teve cerca de 18 mil reações. O texto também foi reproduzido pela Agência Patrícia Galvão, uma organização não governamental que trata da temática dos direitos das mulheres, e pelo Sul21, veículo online. Ver em todos esses posts as reações, os compartilhamentos e principalmente, os comentários, me trouxe a certeza de como o jornalismo pode impactar as pessoas. Por se tratar de um tema importante, foi muito bom observar essa repercussão e perceber que gerou debates entre usuários das redes. A reportagem é feita desses relatos, dessas mulheres, dessas dores que precisam ser vistas. Conseguir escutar e poder propagar essas vozes foi gratificante. E, com isso, percebi que o jornalista é como uma esponja: absorvemos as histórias que escutamos, também somos impactados por elas. Para escrever, precisamos nos enxugar, colocar nossas emoções de lado e dar voz a quem tem seus gritos abafados pela sociedade. (Annie Castro)

Reprodução de post na página Quebrando o Tabu do Facebook.


adoção

Família brasileira não tradicional

os meninos. Fernando telefonava pela manhã, e Henrique, à tarde. A família só se reencontrou no sábado seguinte, quando almoçaram com a juíza e a assistente social. Os novos pais voltariam a Porto Alegre às 14h, mas as crianças foram aos prantos quando perceberam que estava na hora da despedida. A juíza, então, conferiu mais uma autorização de viagem válida por quatro dias. Só conseguiram a guarda provisória na quarta-feira, 20 de abril. Fernando recebeu a licença-maternidade no QUAN DO A A DO Ç Ã O H O M OAF ETIVA É CONS IDE RADA A MELHOR mesmo dia. Com o passado perturbado dos meninos, OPÇÃO PARA C RI A N Ç AS Q UE P RE CIS AM GANH AR UM NOVO LA R Henrique e Fernando se empenharam em construir novas memórias. Ocuparam seus finais de semana com programas especiais: cavalgaram, pescaram, conheceram o mar, foram ao circo e andaram de trem. “Em sete meses, as crianças tiveram mais memórias do que em sete anos de vida”, se orgulha P O R Victoria Urbani (4º sem.) Henrique. A rotina de segunda à sexta é outra. As escolas de Lucas e Gabriel têm ensino em turno integral. De manhã, eles fazem ativienrique e Fernando* conheceram cedeu uma autorização de viagem por quatro menos problemas de conduta e de autoestima. dades recreativas, como assistir a filmes. Se seus filhos na manhã de uma dias. Aquela era a primeira vez que um casal É o que afirmam dois estudos da Universidade não há lições de casa pendentes, seu tempo quinta-feira. Eles saíram de Porto homoafetivo adotava no município. da Califórnia feitos em 2012 e 2014. O planeé reservado para as brincadeiras. Lucas está Alegre para enfrentar uma viagem O processo de adoção iniciou em agosto de jamento familiar é um dos fatores apontados no segundo ano do Ensino Fundamental e de sete horas pela BR-386, com destino a uma 2014, quando o casal fez a petição de entrada pelas pesquisas para explicar o bom desempeestuda à tarde a partir das 13h30min. Gabriel, cidade do interior do noroeste rio-grandense. nos cadastros locais e nacionais de pretennho das crianças educadas por sua vez, ainda está no Lá, o casal encontrou os irmãos Gabriel e Ludentes. Demorou um ano até juntar todos os por mães e pais LGBT. maternal. Por conta do cas*, que estavam em um abrigo pela terceira documentos obrigatórios e passar pelas avaConforme o CNJ, há histórico dos filhos, os pais vez. O biólogo Henrique, 32 anos, vem de liações psicossociais da Vara da Infância e Ju7.159 meninos e meninas procuraram uma escola uma família com histórico de adoções e desde ventude de Porto Alegre. Inicialmente, o perfil à espera de uma família que fosse inclusiva, menos jovem tinha certeza de que queria ser pai. Fercriado por Henrique e Fernando considerava pelo CNA. Desses, 63% elitizada, mas com boa nando, economista, é nove anos mais velho apenas crianças de zero a três anos. Eles ficatêm irmãos. Já os pretenestrutura educativa. que seu marido e só sentiu vontade de adotar ram cerca de meio ano aguardando a vez no dentes somam 38.071, O pai biológico de Gadepois do depoimento de um amigo que se Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Foi aí sendo que apenas 31% briel e Lucas era pastor. arrependeu de não ter filhos enquanto podia. que uma amiga comentou sobre a possibilidaaceitam receber mais de No entanto, pode ser que À primeira vista, o abrigo parecia aconde de adotar no interior do Estado. O casal foi um filho. O maior obstáoutro evangélico também chegante. Os beliches estavam arrumados; diretamente à Comarca de um município com culo às adoções é a idade tenha um papel na vida as refeições, bem servidas; e os cômodos da 7 mil habitantes. Em uma cidade interiorana, das crianças. Somente dos meninos: o deputado casa, impecáveis. As crianças, por outro lado, a adoção é acompanhada mais de perto, tanto 6% dos que aguardam a federal Anderson Ferreira tinham aspecto magro e cabelo mal cortado. por assistentes sociais quanto por juízes e adoção têm menos de um (PR-PE). Ele é o autor Andrea Mantese, assistente A última vez que tiveram contato com sua promotores, tornando o procedimento mais ano, ao mesmo tempo do Projeto de Lei (PL) social família biológica havia sido oito meses antes. rápido. Quinze dias depois, eles viraram pais. em que 87% têm mais de 6.583/2013 da Câmara, Em agosto de 2015, o Conselho Tutelar tirou Famílias biológicas não são perfeitas e, cinco anos, faixa etária mais conhecido como Esa guarda do pai, que causou um acidente de em alguns casos, a negligência por parte de aceitável por apenas 11% tatuto da Família. No artitrânsito. Desde que Gabriel e Lucas tinham, um ou ambos pais traz consequências devasdos pretendentes. go 2, entidade familiar é definida como núcleo respectivamente, um e dois anos, eram tadoras para a educação dos filhos. Gabriel e Os perfis desejados, além de condicionar social formado apenas por homem e mulher, levados ao abrigo da cidade. Na primeira Lucas não tiveram figura materna na maior o tempo de espera, também influenciam em sendo legitimado a partir de casamento ou ida, foram entregues pela parte de suas vidas. Isso decisões tomadas para receber as crianças. união estável. O PL -  que está parado, há um mãe, que os abandonou. favoreceu a situação de “Como esperávamos por bebês, já havíamos ano, no Congresso  -  é, basicamente, uma Mesmo tentando recuHenrique e Fernando, que escolhido os nomes. A troca foi feita no carbomba-relógio contra os direitos civis. Mães perar seus filhos, o pai só poderiam oferecer duro. Eles saíram do abrigo com um nome e solteiras, avós que criam os netos, pais que perdia sucessivamente o pla paternidade. “O que chegaram a Porto Alegre com outro”, relatam não casaram e famílias como a de Henrique e poder familiar em função levo em conta é a flexibiHenrique e Fernando. O casal até inventou Fernando seriam excluídas pela lei. “Não sode seu vício com álcool lidade e a disponibilidade uma história de super-heróis com vida dupla, mos a família tradicional brasileira. Podemos e drogas. Só no dia 7 de em relação ao perfil da que estavam indo para uma supercidade. Para morar em um bairro tradicional, com pessoas abril de 2016, aos cinco criança, suas condições de isso, precisariam de nomes mais bonitos e o tradicionais e vir de uma família tradicional. e sete anos, as crianças saúde e história de vida. antigo seria apenas uma página virada. Mas ninguém vai nos olhar como uma”, laencontraram um novo lar. Os casais LGBT parecem Sete gatos, dois cachorros e um papagaio menta o casal. Quando o casal cheaceitar e lidar melhor com aguardavam a nova família em uma cobertura Justamente por não seguirem o estereógou, tomou café da manhã as diferenças”, ressalta a situada no bairro Rio Branco. Pela primeira tipo de família, Henrique e Fernando foram com os meninos. Depois assistente social Andrea vez, Gabriel e Lucas conheciam uma grande os melhores pais que seus filhos poderiam de passar a noite na estraMantese. De acordo com cidade. Nunca tinham visto sinaleiras, prédios ter. Sem mãe e com pai perturbado, Gabriel da, Henrique e Fernando um estudo publicado em altos ou até mesmo ido ao supermercado. e Lucas provavelmente ficariam no abrigo até Henrique* dedicaram o dia seguinte 2014 pela Universidade de Agora estavam em uma metrópole com mais a maioridade. Apenas 3,7% dos pretendentes para conhecer os futuros Melbourne, filhos de pais de um milhão de habitantes. “Nos primeiros no CNA aceitam crianças com até sete anos, membros da família. “Foi homoafetivos apresentam dias foi um terror: botar tela na janela, comidade do irmão mais velho. Em alguns meses, horrível. São dois estraíndices de saúde, comprar camas, não saber que roupa vestir. Era a lembrança dos meninos magricelos ficou nhos de um lado, conhecendo dois estranhos portamento e estabilidade familiar em média um processo de nada ter”, desabafa Henrique. no passado. Se um acidente de carro pôs fim de outro. Eles estão receosos, olhando de 6% superiores aos de casais heterossexuais. O processo de adaptação ainda não estava à sua antiga família, os novos nomes foram canto, afinal, foram abandonados”, conta A pesquisa avaliou 315 casais LGBT e 500 completo, pois a adoção não se concretizara. escolhidos também na estrada. Lá, ganharam Henrique. Por volta das 13h, levaram as criancrianças com até 17 anos. Quem é criado por Retornaram ao abrigo em um domingo. Por a chance de nascer de novo. ças para cortar o cabelo. Na volta, a juíza conmães lésbicas tem melhores notas na escola, uma semana, o casal ligava diariamente para * Nomes fictícios

H

“O que levo em conta é a flexibilidade em relação ao perfil da criança. Os casais LGBT parecem lidar melhor com as diferenças”

“São dois estranhos de um lado, conhecendo dois estranhos de outro. Eles estão receosos, olhando de canto, afinal, foram abandonados”

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memória Pedro Spieker (1º sem.)

Caldas Júnior, que homenageia proprietário de grupo jornalístico, é uma das mais tradicionais ruas da Capital

Avenida Jornalismo N OM ES DE DI VE RS AS RUAS E M PORTO ALE GRE FAZ E M H O MENAGEM À I MPR E N S A, C O N F O RME L E VANTAME NTO E XCLUS IVO DO E DITORIA L J

P O R Italo Bertão Filho (3º sem.)

E

m Porto Alegre, muitos nomes de ruas aparentemente banais preservam não só a história do jornalismo, mas também a do Rio Grande do Sul e do Brasil. Apesar disso, a Capital seguiu a moda brasileira na hora de batizar suas ruas. Entre duques, viscondes, ditadores e presidentes, pelo menos 87 dos 9.778 logradouros da cidade fazem referências ao jornalismo, sendo 57 ruas, 11 avenidas, nove praças, cinco travessas, três largos e um parque. O Centro abriga a maior quantidade de homenagens: são 11 logradouros com referências ao jornalismo. Entre elas, há uma

pequena travessa de nome curioso, chamada Mário Cinco Paus, que liga a Uruguai à Borges de Medeiros. “Muita gente especula a origem do sobrenome, mas era dele mesmo, não era apelido”, afirma o escritor e jornalista Rafael Guimaraens, autor do livro A tragédia da Rua da Praia. Em setembro de 1911, os porto-alegrenses foram pegos de surpresa com uma trama digna de Hollywood: quatro bandidos russos invadiram uma casa de câmbio, mataram o gerente, roubaram dinheiro e joias e fugiram rapidamente pelas ruas do Centro. A saga terminou quando a Brigada Militar matou os pistoleiros nas águas

do Rio Gravataí. Junto dos brigadianos, estava o intrépido Mário Cinco Paus, munido de seu bloquinho. Nessa época, o Correio do Povo, fundado em 1895, já era um jornal influente na cena jornalística de Porto Alegre. Aparentemente invencível, a Companhia Jornalística Caldas Júnior foi o berço de inúmeras inovações na imprensa gaúcha. “Todas as inovações tecnológicas de um século e meio passaram por ela. Também como alvo de contestação histórica e como ninho de grandes nomes do jornalismo e da literatura do nosso estado”, afirma o jornalista e escritor Walter Galvani, que

escreveu o livro Um século de poder, lançado em 1995, quando o Correio do Povo completou 100 anos de existência. Seu poder era tão grande que fez o prefeito Antônio Brochado da Rocha mudar o nome da rua Paissandú para Caldas Júnior em 1944, após o jornal comprar o Edifício Hudson, onde está instalado até hoje. Por pouco, a Avenida Ipiranga não seguiu o mesmo caminho da antiga Paissandú: passaria a se chamar Avenida Maurício Sirotsky Sobrinho, empresário-fundador da RBS, falecido em 1986. A proposta do prefeito Alceu Collares acabou rechaçada pela Câmara de Vereadores

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pelos transtornos que causaria. Foi proposto um prêmio de consolação: a mudança de nome do Parque da Harmonia, recém inaugurado, para Parque Maurício Sirotsky Sobrinho. Hoje, os vereadores detêm o poder de batizar uma rua, mas nem sempre isso foi assim. “Entre o fim do século 18 e a metade do século 19, o nome das ruas era dado pelo costume (da população). A Câmara reconhecia o nome dado a rua pelo uso popular”, explica afirma o historiador Charles Monteiro, pós-doutor em História Social pela Universidade de Sorbonne. Atualmente, uma das principais atividades da Câmara de Vereadores é justamente nomear ruas. Só em 2016, 40 dos 299 projetos de lei apresentados se referem ao assunto. “(O processo) se tornou uma forma de homenagear pessoas e angariar votos na Câmara Municipal”, entende o historiador. Dar nome às ruas ainda sem nome da Capital é uma das principais tarefas do vereador João Carlos Nedel (PP), que já nomeou quase 6% do total de logradouros da cidade. “Há 20 anos, quando ingressei aqui (na Câmara) tomei conhecimento de quase 3 mil logradouros sem denominação. Ter endereço é ter dignidade”, afirma Nedel. Em 2015, um projeto de lei do vereador Marcelo Sgarbossa (PT) propôs que os vereadores não teriam mais o poder de dar nomes às ruas, ficando nas mãos do prefeito e dos moradores. “No passado talvez até justificasse que um vereador fosse até a comunidade fazer o trabalho de despachante”, explica Sgarbossa. Dois anos após ser proposto, o projeto do petista ainda está em tramitação. Independente do debate político sobre o poder de nomear as ruas, é fato que os endereços do jornalismo fazem parte da memória coletiva. Um exemplo é o número 219 da Rua Caldas Júnior. Um endereço único para a história do jornalismo no Rio Grande do Sul. A “Casa de Caldas”, como era conhecida a redação do Correio do Povo, foi palco para os grandes acontecimentos do Estado e do Brasil durante todo o século 20. O histórico Edifício Hudson, sede da Companhia Jornalística Caldas Júnior, foi local de trabalho para inúmeras vidas que passaram por ali. Muitas dessas vidas, militantes da imprensa durante décadas, acabaram imortalizadas nas ruas de Porto Alegre. É o jornalismo cravado no mapa da cidade. O resto é história, de preferência, escrita em letra de imprensa.


Wellinton de Almeida (4º sem.)

Escrita feminina sofre com preconceito e falta de reconhecimento. Dentre mais de 50 edições, Feira do Livro teve somente cinco patronas

A LITERATURA NÃO TEM ROSTO DE MULHER

PO R Q U E E S C RI TORAS NÃO CONQUIS TARAM ME SMO RECONHECIMENTO DO Q U E O S H OME NS E M PRÊ MIOS E H OME NAGENS LITERÁ RIAS

P O R Annie Castro (5º sem.), Bibiana Garcez (6º sem.), Mia Sodré (2º sem.) e Sofia Lungui (2º sem.)

“O

fato de eu ser casada com um escritor fez algumas pessoas pensarem e dizerem que meu marido havia escrito meu primeiro livro.” Essa frase é da escritora gaúcha Valesca de Assis, que começou a publicar livros quando já tinha mais de 40 anos, apesar de escrever desde criança. Ela é casada com Luiz Antonio de Assis Brasil, autor já consagrado no meio literário brasileiro, e sofreu preconceito após sua primeira publicação. Essa poderia ser apenas uma história pitoresca para contar futuramente aos netos em uma roda de conversa se não se tratasse de algo sério e que ocorre frequentemente no meio

literário: o preconceito contra mulheres que escrevem. Em 2016, a 62ª Feira do Livro de Porto Alegre teve uma mulher como patrona, a escritora premiada Cíntia Moscovich. A Feira, que só começou a ter um patrono todos os anos a partir da 11ª edição, teve, dentre mais de 50 edições, somente cinco autoras com o título. A primeira foi Maria Dinorah, em 1989, seguida por Lya Luft (1996), Patrícia Bins (1998) e Jane Tutikian (2011). Além disso, das 865 sessões de autógrafos que ocorreram no ano passado, 60% foram feitas por homens e 40% por mulheres  — isso sem levar em conta quem se inscreveu como “vários autores”, classifi-

cação muito comum nas categorias de livros acadêmicos. Os dados sobre as sessões de autógrafos foram coletados e comparados a partir do próprio site da Feira do Livro de 2016. Cíntia, que já foi indicada cinco vezes à patronagem do evento, conversou com o Editorial J por telefone rapidamente, pois iria viajar no mesmo dia. A patrona acredita que o problema é um reflexo da cultura da nossa sociedade. “A mulher possui menos tempo para escrever porque ela sempre foi educada para ser uma criadora, para cuidar da casa e dos filhos”, afirmou. No entanto, Cíntia pensa que as escritoras estão avançando no campo da literatura. “Talvez em

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breve não seja novidade uma mulher ser patrona da Feira do Livro”, argumentou. Juliane Welter, doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ministrante do curso de extensão Narração e Autoria Feminina, pensa que, apesar das conquistas recentes, as mulheres não devem se acomodar. Para ela, representatividade é importante, por isso é positiva a escolha de uma mulher para a patronagem, mas não é tudo. “Ao mesmo tempo, temos que pensar de que maneira isso impacta politicamente, pois o fato de uma mulher ocupar o cargo não garante uma patronagem progressista (ou não conservadora)”, disse.


literatura Contudo, a desigualdade entre gêneros no campo literário não é uma exclusividade da Feira do Livro ou de Porto Alegre. A equipe do Editorial J fez um levantamento de dados de prêmios literários ao redor do mundo e constatou que o problema da falta de reconhecimento da escrita feminina é algo generalizado e difundido no mercado literário. Entre os que conquistaram o Prêmio Nobel de Literatura, um dos mais consagrados da área, apenas 10,62% são mulheres. O título do texto faz referência à obra de uma delas, Svetlana Aleksiévitch, autora do livro A guerra não tem rosto de mulher. A bielorrussa ganhou o Nobel de Literatura em 2015. Já o prêmio Goncourt, da França, teve 7,14% de vencedoras. Quanto aos livros classificados como 100 melhores do século 20, pelo jornal Le Monde, apenas 12 deles são de escritoras. Já em terras tupiniquins, Regina Dalcastagnè, doutora em Teoria Literária, professora de Literatura Brasileira na Universidade de Brasília (UnB) e crítica literária, fez uma pesquisa sobre o perfil do romance brasileiro contemporâneo e constatou que 72,2% dos escritores brasileiros são homens. Segundo Lélia Almeida, doutora em Literatura da América Latina na Argentina, o mercado editorial ignora soberbamente a produção literária das escritoras. “Não há uma crítica especializada séria e elas ainda são minorias em todos os âmbitos citados acima  —  cultural e político”, disse Lélia, e continuou: “Porém, vivemos um momento de visibilidade midiática e de legitimidade superficial, que nos engana sobre esta questão, a de que as mulheres estão no mesmo patamar dos homens”. No entanto, a jornalista e editora de Cultura da Zero Hora, Cláudia Laitano, acredita que o gênero é um tópico muito recente quando se trata de grandes premiações literárias. “Um prêmio nunca é só literatura. Nem o da Feira do Livro nem o Nobel. E também não é só gênero. Por exemplo, a Academia Sueca sabe que ela não pode passar cinco ou dez anos sem premiar uma mulher porque não vivemos mais neste mundo. Mas ela tem outras obrigações também: uma pauta política, uma pauta geográfica, de idade”, afirmou. Segundo ela, essa recente visibilidade às pautas de gênero só surgiu pois a geração atual está colocando o feminismo em evidência e discutindo esses tópicos. Porém, de acordo com Cláudia, esse avanço no mercado literário só foi possível após os anos 1960. Sendo assim, ainda é algo muito recente e quase nada estruturado. O movimento feminista, cada vez mais em voga nas pautas de redes sociais e até mesmo no meio acadêmico, tem servido de alerta para que se atente à literatura: quem a faz, quem a lê, como são construídas as personagens e qual é o papel da mulher em tudo isso. Karine Lucena, doutora em Letras com ênfase nas Literaturas de Língua Espanhola pela UFRGS, diz que o movimento tem um papel muito importante na desconstrução de preconceitos e de ideias ultrapassadas. “Os avanços do feminismo têm sido determinantes para desnaturalizarmos o machismo no campo literário. Ainda estamos longe de um equilíbrio entre escritores e escritoras

“A mulher possui menos tempo para escrever porque ela sempre foi educada para ser uma criadora, para cuidar da casa e dos filhos” Cíntia Moscovich

nos panoramas literários, programas de ensino, premiações, grandes cargos etc., mas avançamos muito nos últimos anos”, explica. Lev Vygotsky, renomado teórico da Psicologia bielorrusso, criador da Teoria do Desenvolvimento Cognitivo e também estudioso de Literatura, afirmava em seus estudos que o ser humano é produto de seu meio, que a criação humana é consequência daquilo a que somos expostos e do que vivenciamos, das experiências acumuladas. Portanto, a escrita, assim como seus autores, é influenciada por diversos fatores, sejam eles externos ou internos, que acabam pautando os assuntos que serão abordados pelos escritores. A escrita de mulheres acaba sendo, por vezes, encaixada num estereótipo feminino: intimista, pessoal, romantizada e sentimental. Uma vez que elas possuem um papel pré-determinado na sociedade, que espera que sejam maternais, sensíveis e cuidadoras. Parece haver uma conexão das mulheres escritoras com literatura infanto-juvenil. Das cinco patronas da Feira do Livro, três possuem obras dedicadas a jovens e crianças. O levantamento do Editorial J mostra que dentre todos os prêmios literários apurados, o único que possui um equilíbrio no

número de escritoras ganhadoras é o Hans Christian Andersen, de literatura infanto-juvenil, tendo 23 mulheres premiadas para 34 homens, ainda em maioria. Para Lélia, esta não é uma coincidência: “Ser escritora de literatura infanto-juvenil é uma extensão de ser a professora da creche, da escola, da babá, da mãezinha. Infelizmente, as mulheres são mais aceitas quando cumprem um papel de cuidadoras. E esta identificação tem a ver também com uma cultura para quem a maternagem encontra sinonímia com a feminilidade”, constatou. “Até há muito pouco tempo as mulheres eram apenas personagens. De repente, com uma diferença de séculos, começamos a escrever e a tentar editar. Isso não deixa de ser um choque cultural”, completa a escritora Valesca, que também argumenta que essa lentidão da aceitação da mulher como escritora se dá pelo fato de que o meio literário ainda confia mais no livro de um homem do que no de uma mulher. Maiores leitoras X menos lidas Quando você olha para a sua estante de livros, quantos deles foram escritos por mulheres? Quantas obras escritas por elas você lê ao ano? Estas foram algumas das perguntas que as idealizadoras do Leia Mulheres fizeram a si mesmas. O projeto é um coletivo que procura fomentar a leitura de autoras por meio de reuniões mensais, nas quais as participantes discutem livros escritos por mulheres. Formado em São Paulo e no Rio de Janeiro no começo de 2015, o coletivo possui mediadoras e colaboradoras em diversas cidade do país. Além disso, as integrantes mantêm um blog com textos e resenhas. Os encontros do coletivo são mensais e abertos, e ocorrem na Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães, em Porto Alegre. Mais informações podem ser encontradas no grupo do Facebook Leia Mulheres Porto Alegre - RS, atualizado pelas integrantes.

“Particularmente naquele ano eu havia lido só homens, sem perceber” contou Clarissa Xavier, que é a organizadora dos encontros do grupo na capital gaúcha. Para a cientista da computação e estudiosa da literatura feminina, as autoras não são suficientemente lidas atualmente. “As mulheres representam mais de 50% da população mundial e menos de 30% dos escritores publicados são mulheres. Como feminista, vejo isso como um problema”, defende. Em contrapartida, pesquisas apontam que as mulheres são as maiores leitoras do país. Conforme a 4ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, feita pelo Instituto Pró-Livro em 2015, elas constituem 59% do total de leitores brasileiros. Atualmente, algumas autoras conseguem viver da literatura, não precisando de outra profissão para obter seu sustento. No passado, contudo, o quadro das mulheres era mais difícil. Trabalhando para cuidar dos filhos ou envolvidas com as tarefas de casa, as que tinham vontade de escrever muitas vezes não possuíam tempo ou espaço para a atividade. A escritora Virginia Woolf, em A room of one’s own, menciona que um quartinho é o mínimo que uma mulher precisa para poder escrever, uma referência tanto de Cláudia quanto de Juliane. A editora da Zero Hora considera o processo de inserção da presença feminina na literatura ainda muito incipiente. “Observe mulheres como Jane Austen, a primeira a escrever como profissão e ter reconhecimento em vida - ela nunca se casou. Ela tinha tempo para escrever porque não constituiu uma família e também não precisou trabalhar. Mas por muito tempo o fato de se ter um espaço, não só físico mas também simbólico para escrever, era uma exceção”, afirmou. A dificuldade da mulher para ser aceita no meio literário é algo estrutural, independente de seu estilo de escrita, pois ainda há quem a veja como a cuidadora do lar, com livros no lugar de hobby, não de profissão.

O QUE LER E sobre a literatura feminina? As mulheres têm sido historicamente relegadas, como foi mencionado. Abaixo, citamos as cinco últimas autoras que receberam o Prêmio Nobel de Literatura e o ano em que ganharam, além de sugestões de obras das mesmas. Svetlana Aleksiévitch

2015

A guerra não tem rosto de mulher

Alice Munro

2013

Vida Querida

Herta Müller

2009

Tudo o que tenho levo comigo

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Doris Lessing

2007

Amor, de novo

Elfriede Jelinek

2004

A Pianista


esporte Igor Dreher (3º sem.)

South Wrestiling Union (SWU), no Centro de Porto Alegre, enfrenta falta de apoio e de visibilidade para manter tradição viva

Memórias da luta

SU C ESS O NO S A N O S 1 9 6 0 , TE LE CATCH H OJE TE NTA S E REERGUER

P O R Gabriel Bandeira (3º sem.)

S

empre aos sábados, 20 horas, as televisões dos cariocas encontravam, em 1965, a hoje extinta TV Excelsior do Rio para ver o mocinho Ted Boy Marino entrar em cena para combater mais um de seus adversários. Entre pancadas e sujeiras do oponente, apoiava-se em sua técnica e suporte dos fãs para reverter a situação. Para ganhar, segurava o oponente com os ombros na lona para uma contagem até três do árbitro. Se bem sucedida, conquistava a vitória, acertada antes do combate. Num embate épico entre o bem e o mal, o telecatch, nome criado pela TV Globo, trazia a novidade da luta-livre para o povo brasileiro.

Naquela época, as lutas tomavam conta de capitais como Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. Na capital gaúcha, chegou como Ringue Doze, apresentado pela atual RBS TV, e filmado no Ginásio da Brigada Militar. Em pleno governo militar (19641985), não demorou muito para haver alegações de má influência para os jovens. Aida Serdan, esposa do lutador Michel Serdan, da empresa Gigantes do Ringue, em São Paulo, relata o ocorrido: “Houve influência, mas foi muito sutil. Eles obrigaram os canais de TV a passar o programa às 23h. E foi o que aconteceu. O povo não ficava acordado até tão tarde, a audiência caiu, os patrocinadores fugiram”, relata sua mulher.

Contando apenas com shows em pequenas cidades, o telecatch não durou muito, forçando o fechamento de diversas companhias. Em 2017, no Centro Histórico de Porto Alegre, uma federação continua lutando para manter viva a tradição do telecatch. Nascida em 2011, a South Wrestling Union surgiu após rompimento com a federação Titãs do Ringue, que também atuava na cidade. Membro fundador da SWU, Rusher, nome artístico de Eduardo Goulart, conta que a separação se deu na procura por um produto mais moderno. “O mundo todo se atualizou, os golpes estão mais complexos e existem nomenclaturas mundiais que todos os lutadores devem sa-

ber para fazer a marcação de uma luta”, explica. À frente da companhia, também estão Matheus Bauer, André Machado e Ismael Goulart. Na SWU, ninguém recebe salário. Quem quiser iniciar seus treinos, deve pagar mensalidade de R$ 50, que é revertida para o aluguel do espaço dos treinos e na estruturação da companhia. Recentemente, a nova geração do telecatch porto-alegrense pode ser vista em eventos multitemáticos voltados para o entretenimento de jovens, com foco em animes e mangás, como AnimeXtreme e AnimaTinga. Na busca por novos membros, a SWU proporcionou uma aula de graça, com foco em mo-

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vimentos básicos como quedas e rolamentos, no dia 11 de março. O elenco é composto por dez lutadores e possui cinco formandos. Entrando no seu segundo ano de treino, Arthur Mello, estudante de Medicina, conta sua história. Entusiasta da luta livre desde 2015, trabalhou como voluntário em uma apresentação na AnimaTinga. Em seguida, foi convidado para treinar com a equipe. Nas primeiras semanas, Mello sentia dores enormes, mas “quem quer trabalhar com luta livre deve estar acostumado a isso”. Os treinos ocorrem nas quartas e sábados e somam seis horas no total. “O acordo com a AnimeXtreme está praticamente fechado”, comemora Eduardo Goulart. Até a apresentação em maio, ainda resta muito treino. Em cima do tatame azul, o professor ensina o próximo movimento. No silêncio da academia, escondida na rua Siqueira Campos, os lutadores continuam alimentando a esperança de uma vida mais fácil. Sonham com holofotes e fãs ensandecidos. Homens e mulheres que carregam consigo a tradição do que fora um dia, na euforia de um sábado à noite, uma febre nacional.


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