Revista Justiça & Cidadania

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EDIÇÃO 71 • JUNHO de 2006

25 TSE ANULA DECISÃO

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REVISÃO CONSTITUCIONAL

DO TRE/SP

Foto: Arquivo CIEE ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO EDISON TORRES DIRETOR DE REDAÇÃO

RISCO E CUSTO BRASIL

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JOSÉ LUIZ COSTA PEREIRA DIRETOR DE MARKETING

RESERVA DE VAGAS NO ENSINO PÚBLICO BRASILEIRO

42

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CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES antonio carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso DALMO DE ABREU DALLARI Darci norte Rebelo denise frossard

SUMÁRIO EDITORIAL

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A INADIÁVEL REVISÃO CONSTITUCIONAL

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A CRISE DO PACTO FEDERATIVO

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A REVISÃO CONSTITUCIONAL

19

A PREMENTE REFORMA CONSTITUCIONAL

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NOBREZA HISTÓRICA

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A POUCOS PASSOS DE UM NOVO TEMPO

33

RECURSO ESPECIAL

34

DEMOCRACIA EM RISCO

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NO DIREITO TRABALHISTA ESPELHOU-SE O NOVO PROCESSO DE EXECUÇÃO

44

O DIREITO LÍQUIDO E CERTO

46

DOM QUIXOTE E OS PINTORES

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Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins josé augusto delgado José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes Miguel Pachá nEY PRADO Paulo Freitas Barata SEBASTIÃO AMOÊDO Sergio Cavalieri filho thiago ribas filho

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EDITORIAL

DE UMA CONSTITUIÇÃO PROVISÓRIA PARA UMA CONSTITUIÇÃO EXCLUSIVA

V

olto a tema que, a meu ver, não perde atualidade, neste número da revista dedicada ao eminente jurista Ney Prado, Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia. Em 1985/86, presidia o Instituto dos Advogados de São Paulo e, naquela época, o Sodalício decidiu defender a tese de uma Constituinte exclusiva. Foi ela albergada, posteriormente, pelo Deputado Flávio Bierrenbach, em seu parecer para elaboração da Emenda Constitucional nº 26/86. Tal postura custou-lhe a relatoria. Os parlamentares não concordaram que houvesse um Congresso Nacional e uma Constituinte paralela de especialistas ou políticos, com a única função de produzir texto constitucional de interesse da sociedade que, após aprovado, seria desfeita. Não tendo, a tese, vingado, prevaleceu uma Assembléia de parlamentares constituintes, que, simultaneamente, atuavam como deputados e senadores ordinários, os quais, após quase dois anos de discussão, produziram um texto tão provisório e tão extenso que já sofreu 58 emendas (52, no processo ordinário e 6, no revisional), sobre gerar quase 4.000 ações diretas de inconstitucionalidade. Tudo isto em apenas 18 anos. A Constituição americana de 1787 tem 216 anos e apenas 26 emendas. A Corte Constitucional alemã, que só cuida de matéria constitucional –é muito mais antiga que a Constituição de 1988- decidiu, desde sua fundação, 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006


um número menor de ações em controle concentrado de constitucionalidade que o Supremo decidiu nestes 18 anos de Corte Constitucional brasileira. O número de emendas já promulgadas, portanto, e os 1600 projetos de emendas que tramitam no Congresso Nacional estão a demonstrar a provisoriedade de nossa Carta Suprema. Como velho professor de direito constitucional e comentarista da Constituição brasileira, cada vez mais me convenço de que as Constituições analíticas são sempre provisórias. Os portugueses, sabiamente, criaram um mecanismo qüinqüenal –às vezes as alterações se fazem um ou dois anos depois— para revisão do que está ou não está dando certo em sua Constituição de 1976. É que, como os espanhóis, em 1978, adotaram uma Constituição não inteiramente analítica. Desta forma, não vivem alterando a Lei Maior, a todo o momento, como ocorre no Brasil, e permitem que haja um teste de eficácia, validando por um período de 5 anos, pelo menos, o novo texto. Os argentinos, aproveitando os problemas constitucionais criados pela Carta Magna Brasileira, produziram, na década de 90, uma Constituição de 129 artigos e 17 disposições transitórias, não procurando regular, constitucionalmente, tudo o que dissesse respeito à sociedade e ao Estado. Uma das características da Constituições analíticas, “pormenorizadas”, é que elas não resistem ao tempo, à evolução da humanidade, ao progresso científico e tecnológico e ao desenvolvimento das relações sociais, comunitárias e econômicas. A Constituição brasileira está a demonstrar a precariedade de seus comandos, hoje com 250 artigos e 94 disposições transitórias! Em 1988, tínhamos 245 artigos de texto ordinário e 70, apenas, de disposições transitórias! Como se percebe, a Constituição brasileira é uma Constituição provisória, em permanente alteração e com outras alterações projetadas para 2006, o que certamente elevará o número de emendas para quase 60. O pior de tudo isto, entretanto, é que nem todas as emendas fazem com que o texto constitucional atenda às necessidades do povo brasileiro. Prova inequívoca dessa realidade reside nas propostas de reformas tributária, previdenciária, política, do judiciário e administrativa, previstas para 2006, a demonstrar que, por mais que se mexa na lei suprema, continua sendo provisória e insuficiente. E, à evidência, uma Constituição hospedeira de toda a espécie de formulações legais --inclusive matérias que melhor ficariam em portarias ou resoluções do Executivo-- termina por colocar as relações entre a sociedade e o Estado em permanente litígio. Estou convencido de que a lentidão do Judiciário deve-se, fundamentalmente, a dois fatores: a) atuação aética dos Poderes Executivos, que entulham o Poder Judiciário com questões repetitivas, ofertando recursos

“Parece-me que uma reflexão se faz necessária: apesar do grande avanço no que diz respeito aos direitos individuais, o constituinte criou um Estado maior do que o PIB.”

meramente protelatórios, apenas para retardar o pagamento de suas obrigações; b) complexidade do texto constitucional, de 344 artigos, que permite variada interpretação e conflitos permanentes. Nem mesmo a E.C. nº 45 de reforma do Judiciário equacionou o problema da Justiça. Parece-me que uma reflexão se faz necessária: apesar do grande avanço no que diz respeito aos direitos individuais, o constituinte criou um Estado maior do que o PIB. Instituiu amarras fortes ao desenvolvimento e à redução do tamanho do Estado. Privilegiou os detentores do poder com fantásticos direitos, na ativa e na inatividade. E prejudicou a sociedade, que não vê como se libertar do peso do estamento oficial. A meu ver, apenas uma nova Constituinte originária e exclusiva, decorrente de um plebiscito, para que seja originária e quebre a camisa de força dos privilégios públicos, poderia reverter este quadro, que a sucessão de emendas não equaciona. A Constituição provisória do Brasil torna o Brasil também um país provisório, no concerto mundial. Estou convencido de que a Constituição deveria ter um perfil sintético, com definição de direitos e garantias individuais e políticas, enunciação genérica de direitos de 2a., 3a. e 4a. geração, mecanismos claros de controle do Estado por parte da sociedade e nítida divisão dos poderes, para que uma contaminação “conveniente” e “conivente” não facilitasse soluções pro domo sua dos detentores do poder em detrimento dos direitos do cidadão. Só assim teríamos uma Constituição capaz de permitir o exercício da cidadania e o desenvolvimento social e econômico.

Ives Gandra Jurista Membro do Conselho Editorial 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


CAPA

A INADIÁVEL REVISÃO CONSTITUCIONAL Ney Prado Jurista

“Os românticos da Assembléia Nacional Constituinte, in­satisfeitos com a realidade, acreditaram ser possível rejeitá-la radical­mente e modificá-la por ato de von­tade.”

A

ntes de adentrar propriamente na análise dos vícios da nossa atual Constituição, vale recordar que toda obra humana, individual ou coletiva, é passível de imperfeições e, portanto, de censura. Ainda porque, como lembrou Theodore Roosevelt: “O único homem que jamais comete erros é o homem que jamais fez alguma coisa”. De fato, acertar e errar é uma contingência humana. Seria mera idealização, imaginar que os nossos constituintes pudessem tornar a Constituição uma obra perfeita e acabada. Hoje, após dezoito anos de vigência, a Constituição de 1988 já recebeu abundantes apreciações e avaliações críticas de vários segmentos da sociedade brasileira e até de instituições internacionais, dando-nos um panorama razoavelmente diver­ sific­ado de seus aspectos positivos e negativos. São, com efeito, muito grandes as perplexidades suscitadas pelas inovações da Carta de 1988. Por vezes, sem precedentes na práxis de outros povos; por vezes, repetitivas de antigos preconceitos; por vezes, sepultadas na experiência dos país­es mais desenvolvidos; por vezes, im­precisas e duvidosas; por vezes, incom­pletas e in­definitórias, multi­plicam-se elas no texto, positivadas em grande quantidade, normas problemáticas, controvertidas e inexecutáveis. Essas perp­ lexidades têm se refletido no Parlamento, no Executivo e nos Tribunais, bem com­o nos inúmeros seminários e congressos em que as novas instituições vêm sendo analisadas e debatidas. Há quase um geral reconhecimento que o nosso Magno Diploma Jurídico trouxe mais dúvidas do que certezas quanto à interpretação de seus inúmeros e infindáveis artigos. 1 É bom lembrar que, no plano interno, a idéia de uma nova Constituição surgiu num momento de transição, coincidentemente com o esgotamento do ciclo autoritário 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

e os movimentos de redemocratização do País; “diretas já” e “constituinte já”! A idéia dominante era que a nova Constituição “não exerceria apenas o papel de tradutora dos valores predominantes, mas também o de propulsora de transformações sociais. Não poderia ser igual às outras. Nem na forma, nem no estilo, nem nas afirmações e nas formulações fundamentais. O de que se tratava era fazer uma Constituição realmente libertadora de nosso povo, que pudesse garantir ao mais humilde cidadão ter seus direitos totais assegurados, inclusive o direito de simplesmente não aceitar o fato de não ter nada quando alguns poucos têm tudo”.2 Mas quando a Constituição foi promulgada em outubro de 1988 “ainda não havia clara percepção das dramáticas transformações mundiais, caracterizadas pelo colapso do dirigismo socialista. Se a gravidez constitucional tivesse prolongado por um período adicional de nove meses, os constituintes teriam percebido a enorme mudança na ecologia econômica mundial. Uma quádrupla rebelião: a primeira contra o Estado regulador, que destrói a flexibilidade necessária às sociedades industriais modernas; a segunda contra o Estado exator, que aumenta tributos sem cortar gastos e sem melhorar serviços; a terceira contra o Estado empresário, que não pode ser julgado pelos testes de mercado, por operar com monopólios e privilégios; e finalmente contra o Estado previdenciário, que agrava desnecessariamente os custos de mão-de-obra quando seus serviços poderiam ser executados com menor custo e maior eficiência pelas próprias empresas, mediante acordos fiscalizados pelos trabalhadores.”3 Nossa Constituição possui reconhecidamente vícios e virtudes.


Foto: Arquivo CIEE

Pode-se tudo criticar a respeito dos constituintes de 1988 e da qualidade de seu trabalho. Não obstante os defeitos que possa apresentar ela representa inegavelmente um marco importante na História do País: o fim de um ciclo autoritário e o início de uma nova experiência democrática, que se pretende duradoura. Retrata, assim, o anseio da sociedade brasileira de viver um regime de liberdade, protegido por um Estado de Direito; assume, merecidamente, o papel simbólico do regime democrático; da desejada estabilidade in­stitucional, sem a qual nenhum valor formal tem sentido. Um dado, entretanto é recorrentemente enfocado. Emerge como uma tônica, constante em quase todas as apreciações: a Constituição de 88 é um documento provocativo, inegavelmente criativo, mas, por suas características, desestabilizador da vida nacional. Não há exageros em afirmar-se que seu advento provocou enorme in­segurança jurídica, dificultou a governabilidade, inibiu os negócios e investimentos internos e externos, sem falar nos conflitos sociais que gerou, em níveis jamais ex­perimentados entre nós. Um dos vícios da Constituição de 1988, recorrentemente apontado, é o casuísmo, observável em todo o texto. Nele tudo se prevê ; tudo se regula. Antevêem-se todas as hipóteses e dispõese sobre todas as soluções. A Constituição foi transformada num variado repertório de temas, sem distinção, entre o que realmente deve ser matéria incluída na Carta Magna e o que poderá ser objeto de legislação complementar, ordinária e até regulamentar. Aliás esse inchaço constitucional, essa colcha de retalhos, essa verdadeira enciclopédia pública, fruto da imposição de um modelo de constituição dirigente, com minudências que descem da matéria constitucional, para esgotar temas reservados à legislação ordinária e às opções administrativas regulamentares, não é, apenas, um defeito técnico muito grave da elaboração constitucional: é uma forma de totalitarismo normativo, espécie tão ou mais nociva que o totalitarismo tradicional. Para ser democrática, uma Constituição não pode ser um elenco infindável de soluções. Seu papel é oferecer uma moldura, dentro da qual o povo poderá, durante muitos anos, continuar a buscar o seu caminho. Para fugir ao casuísmo, a Constituição deveria ser um corpo forte, esbelto, sintético, essencial, compendiado, estrutural, nunca penosamente adiposo e extensivo. Outro vício da constituição é a sua contraditoriedade intrínseca, tanto do ponto de vista dos valores adotados quanto das normas que ela contém. Com efeito, de nada adiantam seus princípios, do título I e suas abundantes setenta e duas declarações de liberdades e garantias, esmiuçadas no quilométrico artigo 5º do título II, se, con­traditóriamente, elas acabam sendo anuladas pela complicada máquina do Estado intervencionis­ta e fiscalista que vem minudentemente construída nos sete Títulos restantes. “O indivíduo, exaltado por aquelas prolixas declarações de direitos e garantias, parece ter recebido tudo e mais alguma

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“Outro ponto negativo da nossa atual Carta Magna é que ela não eliminou as características corporativistas das constituições anteriores: na verdade, agravou-as.”

coisa. Mas, aos poucos, a Carta decepciona e se contradiz, a medida em que o papel do Estado vai sendo detalhadamente definido na mais extensa Carta de nossa his­tória. O in­divíduo tem tudo enquanto pessoa idealizada: no momento em que dele se espera o trabalho, a iniciativa, o progresso, enfim, dele se desconfia, começa a ser penalizado, tributado e limitado”4. Na ordem econômica, desde logo, nos deparamos com uma espantosa contradição entre o disposto no artigo 170, inciso IV, que estabelece as pilastras da economia de mercado (livre iniciativa e livre concorrência) e a grande quantidade de dispositivos de natureza interventista que se segue. Indaga-se: como realizar uma economia de mercado com mais de quarenta regras de intervenção econômica? Na verdade, a Constituição de 88 não chegou ao ponto de estruturar um Estado Democrático de Direito de conteúdo socialista, mas pretendeu, por certo, compatibilizar a democracia política com muitos dos aspectos próprios do socialismo econômico. Quanto à organização funcional do poder, lembra-nos oportunamente Roberto Cam­pos que o modelo inglês é o da integração dos poderes; o americano, o da separação dos poderes; o nosso modelo atual não é um nem outro. Criou-se um terceiro tipo: o da invasão dos poderes. No dizer de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, assistimos hoje uma situação esdrúxula: “O poder executivo legisla, o poder legislativo investiga e o poder judiciário administra”. Essa anomalia tem provocado uma constante fricção entre os Poderes, agravando o quadro da ingovernabilidade. Esse grave defeito torna impossível uma legislação coerente, uma ad­ministração coerente e, sobretudo, uma jurisprudência coerente. O utopismo é outro vício que se pode imputar à Constituição de 1988. E o é, duplamente: porque pretende ser um instrumento de transformação social e porque se divorcia totalmente da realidade. Os românticos da Assembléia Nacional Constituinte, in­ 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

satisfeitos com a realidade, acreditaram ser possível rejeitá-la radical­mente e modificá-la por ato de von­tade. Ignoraram que a norma facilita ou dificulta o progresso, mais não o gera materialmente. A materialização do progresso pertence à ordem dos fatos, não à dos preceitos”.5 “Na verdade, uma Constituição não resolve problemas, apenas aponta diretrizes”.6 A Constituição de 1988 ao se divorciar da nossa realidade perdeu consideravelmente as condições práticas de reger eficazmente a vida política, econômica e social da Nação. Dominados pelo desejo de inovar, os constituintes pretenderam produzir a mais perfeita e completa Constituição em seu gênero entre as existentes no Brasil e no mundo; algo pronto, acabado, um produto no qual tudo parece simples e coordenado, uniforme e justo. Parece ter sido escrita para um outro País, com pouca coisa em comum com o Brasil real. A impressão geral é que os constituintes quiseram apenas conceder, sem nada ex­igir, e distribuir sem tratar de criar condições de produzir. Poder-se-ia argumentar que as medidas propostas são de cunho meramente programático e que muitas delas costumam vir inseridas em algumas constituições, tanto brasileiras como estrangeiras. Acontece, no entanto, que o utopismo do Constituinte foi muito além do esperado. Decretaram por um passe de mágica, pela crença desmedida no poder das fórmulas escritas, que todas as normas programáticas passariam a ser pragmáticas, pois sentenciaram no artigo 5, LXXVII, §2º, que: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata”. O dado observável da nossa realidade é que a proposta constitucional gerou e exacerbou desejos, despertando novas e crescentes reinvidicações, por parte da sociedade. Como muitas delas são irrealizáveis, e outras só serão possíveis de atendimento a longo prazo, dentro das possibilidades futuras da Nação, as reivindicações não atendidas vêm provocando dramáticas frustrações. Outro ponto negativo da nossa atual Carta Magna é que ela não eliminou as características corporativas das constituições anteriores: na verdade, agravou-as. O brilhante ministro Nelson Jobim, parlamentar à época, bem retrata o ambiente corporativista nos trabalhos constituintes: “em 1988 nós víamos a galeria como a representação popular, como se estivesse lá o povo pelas suas organizações. Depois nós começamos a ver que o que estava na galeria não era o povo: eram as corporações de ofício, aparelhadas algumas por partidos políticos, outras não, mas todas elas visando a interesses próprios das suas corporações”. Em termos de corporativismo, o texto constitucional é rico de exemplos: Empresas Estatais ( artigos 21, X, XI, XII; 177 I até IV ); Magistratura ( artigo 93 ); Representação Classista ( artigo 111 §3º. inciso I e §2º. ); Ministério Público ( artigo 123,§3º. e §5º. ); Procuradoria Geral da Fazenda Nacional ( artigos 131 caput e §3º. ); Polícias Rodoviária e Ferroviária Federal ( art.144 incisos II e III ); Polícia Civil ( artigo 144 § 4º. ); Médicos ( 199 § 3 º. ); Universidades Estaduais ( artigos


218 § 5º. ); Notários ( artigo 236); Fazendários ( artigo 237 ); Delegados de Polícia ( artigo 241 ); Escolas Oficiais ( artigo 242 caput ); Servidores Públicos Civis ( artigo 19 ); Ministério Público do Trabalho e Militar ( artigo 29 § 4º. ); Índios ( artigo 231 § 2º. e 3º.); Empresariado Nacional ( artigo 171 § 1º. ); Advocacia ( artigo 133 ), além de inúmeros outros. Constata-se, da leitura dessa imensa lista que, a rigor, todos os segmentos organizados da sociedade foram aquinhoados, de alguma forma, com favores e benesses legais: desde a “tanga” até a “toga”. Outro aspecto negativo da Constituição é o seu nítido viés estatizante. Nela os dispositivos intervencionistas, de cunho regulatório, são possivelmente mais numerosos do que em qualquer outra Constituição do planeta. O constituinte, em vez de prever os gêneros de intervenção e deixar que o legislador ordinário instituísse as espécies que considerasse necessárias, preferiu, ele próprio, desfilar dezenas de espécies constitucionais. Lamentavelmente os constituintes não conseguiram ou não quiseram superar nosso condicionamento cultural de tudo esperar do Estado. Deveriam reconhecer e lutar contra essa distorção, mas acabaram por inserir no texto constitucional, uma série de dispositivos que aumentaram consideravelmente os encargos e as formas de intervenção do Estado. Em magistral trabalho, Diogo de Figueiredo Moreira Neto nos mostra que chega a quarenta o total das modalidades de institutos interventivos ; vinte e oito de cunho regulatório, um concor­rencial, cinco de natureza sancionatória e seis de cunho monopolista. Comparando esses números com o total de catorze institutos da Carta de 1969 encontraremos um espantoso acréscimo de vinte e seis novas modalidades de atuação do Estado na ordem econômica, o que corresponde quase ao dobro7. Os resultados práticos dessa forma equivocada de ver o novo papel do Estado são de fácil aferição: alimentou o populismo, estimulou o empreguismo, agigantou a burocracia, aumentou os níveis da corrupção, elevou consideravelmente a carga fiscal sobre a sociedade, desestimulou investimentos, cresceu a taxa de desemprego, aumentou a economia informal, gerou recessão e assumiu características nitidamente paternalistas. O modelo de Estado intervecionista desenhado pela Constituição ficou mais forte e demandado. Tornou-se administrador, justiceiro, patrão, e defensor dos fracos e oprimidos, além de produtor e provedor de recur­ sos. De outro lado, a sociedade ficou mais dependente e mais inerme. Foi limitado o campo de opção do brasileiro em questões importantes de sua vida e reduziu-se, enfim, a capacidade de encontrar seus próprios caminhos e de se desenvolver segundo suas próprias decisões. O estatismo paternalista configurado no nosso atual modelo constitucional resultou da teimosa postura racionalista dos constituintes, cujo traço mais distintivo é a crença no poder das formulas escritas, na excessiva confiança na capacidade e nos bons propósitos da tecnoburocracia, no medo do exercício da liberdade e no receio da competitividade social.

“O certo é que a Constituição estratificou as relações entre empregados e empregadores: frustrou a ambas as partes o direito de decidir sobre o futuro, arvorandose em ditadora desse destino.”

O equívoco foi imaginar que bastaria colocar uma idéia no texto constitucional para transformá-lo, desde logo, em algo vivo e atuante. Ou em outras palavras: o entendimento de que ao fazer da vontade uma norma, estar-se-ia automaticamente, conformando a realidade à ordem legal. Ignorou-se a distinção entre a norma como estimuladora do progresso com a que pretenda gerá-lo independentemente dos processos reais da sociedade. Ao invés de fortalecer a burocracia, o correto seria devolver ao homem e as entidades econômicas e sociais o seu legítimo espaço de liberdade e iniciativa. A melhor solução para os problemas encontra-se na sociedade civil, mediante iniciativas independentes e convergentes realizadas por forças sociais espontâneas e não mediante ações burocráticas e ad­ministrativas. O estatismo com seu inafastável viés paternalista emascula as sociedades que dominam, reduz-lhes a capacidade de encontrar seus próprios caminhos e desenvolver suas próprias soluções. Desestimula o empreendedor, quando não o pune, e leva o homem a se acostumar a esperar resignadamente do Estado a solução de todos os problemas e a despejar-lhe a cornucópia de todas as benesses. O paternalismo está presente em quase todo o texto constitucional. Adquiriu, todavia, maior evidência quando trata dos direitos dos trabalhadores e dos chamados “direitos sociais”. “A preocupação dos constituintes não foi facilitar a criação de novos empregos e sim garantir mais direitos para os já empregados. Legislou-se para pouco mais de metade dos trabalhadores, porque os demais estão na economia informal, à margem da lei e das garantias. Nossa Constituição, sob aparência benfeitora, é , na verdade, uma conspiração dos já empregados contra os desempregados e os jovens”. 8 Na ânsia de proteger a todos os trabalhadores, indistintamente, o texto constitucional acabou por dar tratamento igual a situações desiguais. Considerou em iguais direitos tanto um próspero executivo como um 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


simples ajudante de pedreiro. Atribuiu às empresas iguais responsabilidades, independentemente de sua natureza, porte econômico, localização, e sem levar em conta as adversidades eventuais da conjuntura. O certo é que a Constituição estratificou as relações entre empregados e empregadores: frustrou a ambas as partes o direito de decidir sobre o futuro, arvorando-se em ditadora desse destino. Indiferentes aos obstáculos da própria realidade, imaginaram os constituintes ser possível resolver o problema das carências humanas por meio de simples inserção no texto dos chamados “direitos sociais”. Confundiram meros anseios, com direitos. Não distinguiram o “justo” , do “possível”; desconsideraram o estádio de desenvolvimento atual do Brasil, a quantidade e a dosagem dos meios necessários à implementação das medidas assistenciais abundante e generosamente nela contempladas. Para garantir o Welfare State, a partir de 1988, a máquina burocrática do Estado continuou a se expandir e, conseqüentemente os seus custos, exacerbando, como nunca, sua voracidade fiscal em níveis inimagináveis e insuportáveis para o contribuinte. Não há nenhum exagero, nem recurso retórico, na afirmação de que o modelo de mega-Estado intervencionista, paternalista, assistencialista e fiscalista, adotado pelo nosso legislador constituinte, trouxe sérias implicações negativas à economia e ao desenvolvimento geral do País. É bem verdade que a lei, qualquer lei, por si só, não cria o desenvolvimento político, econômico e social. Mas a Constituição de 1988 tem comprovado que o contrário ocorre: que a má lei pode inibir o desenvolvimento global de um País pelas reiteradas crises, de todo tipo, que provoca. Uma conclusão parece-nos irrefutável: a atual Constituição pelo seus vícios de origem, de forma, de conteúdo e de funcionalidade, está longe de representar o instrumento juspolítico que garanta ao País uma democracia estável e um desenvolvimento mais justo e auto sustentado. Daí a necessidade imperiosa e inadiável de uma Revisão Constitucional.

Notas PRADO, NEY - Razões das Virtudes e Vícios da Constituição de 88: São Paulo, IL/Inconfidentes, 1994, p. 3/4 2 ABRAMO, CLAUDIO – Constituinte e Democracia no Brasil: São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985, p. 53 3 CAMPOS, ROBERTO – Sigla e Mensagem: O Globo, 22/12/85, p.12 e Ibidem Século Esquisito, Rio de Janeiro, Ed. Topbooks, p. 214 4 MOREIRA NETO, DIOGO DE FIGUEIREDO – Dávida do Papel: Rio de Janeiro, Apec, nº. 797, 30/06/88, p. 18/19 5 JAGUARIBE, HELIO – Três Problemas e Seis Cenários: In Folha de São Paulo, 21/07/1988, p. A3 6 NATHANAEL, PAULO – Constituição: Crendice e Realidade: In O Estado de S. Paulo, 05/03/87 7 MOREIRA NETO, DIOGO DE FIGUEIREDO – Constituição e Revisão: Rio de Janeiro, Ed.Forense, 1991, p. 442 8 CAMPOS, ROBERTO – Alem do Cotidiano, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1985, p. 88

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Quem é Ney Prado

O

jurista Ney Prado que tem formação multidisciplinar, tanto no Brasil como no exterior, é detentor de um grande número de títulos recebidos durante a sua vitoriosa carreira jurídica, no magistério e na magistratura. Foi professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e atualmente é coordenador do curso de especialização em Direito do Trabalho e professor de Direito Constitucional do Centro de Extensão Universitária, também em São Paulo. Foi membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra no Rio de Janeiro, professor e chefe da Divisão de Estudos Políticos do Colégio Interamericano de Defesa em Washington nos Estados Unidos. Juiz do trabalho aposentado do TRT-2ª Região, o jurista Ney Prado possui os seguintes títulos: Vice-Presidente da Associação Promotora de Estudos da Economia no Rio de Janeiro; Membro e Secretário Geral da Comissão de Estudos Constitucionais nomeado pelo Presidente da República para elaboração de Anteprojeto Constitucional 1986/1987 - Rio de Janeiro;.Membro do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio de São Paulo; Membro do Conselho Consultivo da Federação da Agricultura do Estado de São Paulo; Membro do Conselho Técnico da Confederação do Comércio do Rio de Janeiro; Membro do Conselho Consultivo do Centro de Integração Empresa Escola de São Paulo; Membro do Centro de Estudos Estratégicos do CIESP; Membro da Comissão de Defesa do Contribuinte da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo; Membro da Academia Paulista de Direito; Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho; Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia. Em 1979, representou o Brasil na Junta Interamericana de Defesa em Washington, nomeado pelo Presidente da República. Tem, também, em seu vasto currículo, inúmeras condecorações e centenas de palestras e conferências no Brasil e no exterior. São de sua autoria os livros: - “Os Notáveis Erros dos Notáveis” (Análise Crítica do Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos); “A Economia Informal e o Direito no Brasil”, “Razões das Virtudes e Vícios da Constituição de 1988” e “Futuro da Justiça do Trabalho” Participou, ainda, com outros autores, da confecção de livros como: - “Direito Sindical Brasileiro”; “Reformas Constitucionais”; “Ética no Direito e na Economia”; “Reforma Trabalhista” e “Estudos de Direito”.


REVISÃO CONSTITUCIONAL Diogo de Figueiredo Moreira Neto

Foto: Arquivo

Jurista

A

Constituição de 1988, ao ser promulgada, estava destinada a ser o último modelo para um Estado do Bem-Estar Social. Naquele fim da década dos oitenta, em momento em que outros países estavam se desvencilhando ou já haviam se despojado de seus antiquados aparelhos estatais hipertrofiados, centralizadores, burocratizados, ineficientes e, sobretudo, insuportavelmente dispendiosos, o Brasil, guiado pelos constituintes de 1988, enveredava pela contramão da História. Recebia, então, o País, uma Carta Política longa, casuística e incompletamente negociada através de pequenos compromissos recíprocos, fruto de uma generosa dose de utopismo, de uma demagogia autointitulada de progressista, de um corporativismo militante dos grupos mais organizados, de um bem intencionado socialismo dos que ainda criam ser possível lograr distribuir riquezas sem produzi-las, do estatismo saudosista dos que não vêem como a sociedade possa prescindir da tutela do Estado, do paternalismo dos que têm o Governo como o munífico provedor de todas as necessidades, do assistencialismo dos que acreditam que a letra da lei converte-se automaticamente em benefícios, do fiscalismo dos despreocupados com as conseqüências desmotivadoras e recessivas das sobrecargas tributárias e, por fim, da xenofobia de tantos que, mesmo por eles fascinados, ainda temem os estrangeiros. O inevitável resultado da imposição dessa camisa-de-

força, versão cisatlântica de constituição dirigente, foi o fortalecimento da estrutura recebida do Estado autocrático que, paradoxalmente, se pretendia despedir, com todo o seu desmedido peso financeiro, confiscatório de quase um terço do produto interno bruto de toda Nação, para dispersá-lo entre mais de cinco mil unidades políticas, num festival burocrático de baixissimo retorno à sociedade. Obsoleta para resolver os velhos problemas pendentes, a Constituição de 1988 muito menos havia sido aparelhada para enfrentar os problemas emergentes deste fim de século suscitados pela Revolução das Comunicações, como a globalização, a competição por mercados, por capitais e por cérebros, a resistência social ao aumento da tributação e o fenômeno do despertar das massas para uma crescente participação política. Toda essa arraigada origem estrutural da ingovernabilidade não pode ser revertida senão através de profundas e amplas reformas do Estado Brasileiro; isso porque, muito embora o direito, enquanto ordem positiva, pouco possa influir como causa do desenvolvimento, sabese, por farta experiência histórica, que é imenso o seu poder inibidor e destrutivo, mormente em países em vias de desenvolvimento, nos quais se registra um abissal descompasso entre o produto nacional, de um lado, e o custo-país, de outro, gerado por tributos escorchantes, por elevados déficits fiscais e por inúmeras prestações onerosas que ficam a cargo do Estado. Não obstante os propósitos generosos, nos duzentos e quarenta e cinco artigos originais da Carta de 1988, os sistemas político, econômico e social por ela instituídos mostraram-se de tal modo emperrados, arcaicos, ineficientes e frustrantes das expectativas populares, nesses seus dezessete anos e meio de turbulenta vigência, que basta considerar-se o número de Emendas (ou de remendos) promulgadas, cinqüenta e uma ao todo, para constatar-se inequivocamente sua inadequação originária aos superiores reclamos do desenvolvimento do País, falha que hoje até mesmo seus subscritores em maioria o reconhecem e abertamente o demonstram, sendo os primeiros a pugnar, no Congresso Nacional, por corrigir seus erros. Ora, instituições políticas, quando são equivocadas, mas rigidamente constitucionalizadas, como as responsáveis pelo delicado equilíbrio entre Poderes, pela repartição federativa de competências e de receitas tributárias, pela representação eleitoral, pelos serviços e servidores públicos, e tantas outras mais, exacerbam a ingovernabilidade Do mesmo modo, fragmentos ideológicos supérstites, cristalizados como dispositivos constitucionais, atrasam e dificultam a abertura da economia, obrigando o País a perder um tempo precioso na corrida da competição global. Similarmente, as distintas políticas governamentais, também inflexivelmente constitucionalizadas, que foram imaginadas para os sistemas de educação, saúde, previdência, segurança pública, política 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


urbana, rural e indigenista, não só já se revelaram anacrônicas e falidas como respondem pela crescente e alarmante deterioração de vários serviços prestados à população. O legislador constitucional, ao que tudo indica, a julgar pelo demonstrado afã de tudo regrar nos mínimos detalhes e de reduzir os espaços da legislação infraconstitucional, desconfiava do legislador ordinário e quis assegurar-se de que suas iluminadas opções governativas prevaleceriam resguardadas pelas exigências materiais e formais estabelecidas para o processamento das Emendas. Não deixa de ser realmente paradoxal que depois de reconquistadas as franquias democráticas plenas, interrompidas por mais e vinte anos, inclusive com a adoção de novos e promissores instrumentos de participação política, a Constituição se tivesse dedicado a reduzir, ponto por ponto, as oportunidades de utilizá-las em inúmeras questões vitais para os cidadãos, precisamente aquelas que, por sua mutabilidade, são as que mais e permanentemente demandam flexibilidade de respostas governamentais. Não é difícil convir, assim, que Miguel Reale tinha toda razão, em 1986, ainda quando os “Notáveis”, convocados por José Sarney, preparavam o texto matriz onde os constituintes de 1988 foram abeberarse da doutrina da constituição dirigente, ao prever que o autoritarismo governativo acabaria sendo substituído pelo totalitarismo normativo1, como resultado de um lamentável conceito elitista e preconceituoso que acabou prevalecendo. O previsível resultado desse anacronismo - o estatismo paternalista, patrimonialista, assistencialista e corporativista continuaria a preponderar sobre a racionalidade na execução das políticas públicas, mantido assim, com todo o vigor do velho e falido Welfare State durante esses dificeis anos de vigência da “Constituição Cidadã”, e, por isso, ficariam obstadas, por todos os modos elaboradamente amarrados na ordem jurídica, as transformações que a sociedade brasileira vem reclamando manifestamente já em quatro eleições presidenciais consecutivas. O INSTITUTO DA REVISÃO As Constituições, leis fundamentais dotadas de supremacia normativa sobre todas as demais, são tradicionalmente classificadas em sintéticas e analíticas; aquelas, limitando-se a estabelecer os princípios e preceitos essenciais à organização do Estado, à declaração de liberdades e definição de direitos individuais e coletivos e a traçar as linhas programáticas para a ação do Estado, da sociedade ou de ambos2, e estas, as analíticas, a desenvolver mais pormenorizadamente cada um desses conjuntos de normas. Mais recentemente, os textos constitucionais passaram a receber toda espécie de normas que neles quisessem inserir os seus autores, definindo, por vezes à exaustão, quando não redundantemente, preceitos sobre quaisquer matérias, até mesmo as que sempre foram tratadas a nível regulamentar. Por outro lado, observou-se também, por volta da década de setenta, uma sobrevalorização do componente ideológicoprogramático, traduzida na inserção, no Texto Maior, de 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

inúmeras e detalhadas definições de políticas governamentais destinadas a dirigir os futuros poderes constituídos, ou seja, estabelecer “tarefas de Estado”, na expressão de J.J. Gomes Canotilho3. A tipologia clássica tomou-se, assim, insuficiente para explicar esses novos modelos, mas enquanto apenas o excesso de detalhes já basta para descrever uma Constituição casuística, pois ela seria uma patologia do analítico, e como tal não encontra defensores, a regulação detalhista “autoritária e intervencionista”4 caracterizadora da Constituição dirigente, fez escola e lançou suas raízes no ultramar, na Carta brasileira de 1988. Necessariamente, essas variações teriam que repercutir sobre uma outra tradicional classificação dicotômica, entre Constituições rígidas e flexíveis, uma vez que a rigidez se compatibiliza sem dificuldades com os modelos sintéticos, mas não tão facilmente com os modelos analíticos. Essa incompatibilidade é que acabou se tornando aguda e problemática na medida em que proliferavam os modelos casuísticos dirigentes, uma vez que através deles tem um sem número de exemplos de decisionismo constitucional acabaram protegidos por cláusulas pétreas, explícitas ou implícitas. Confrontadas, de um lado, com a necessidade política de serem alteradas e, de outro, com o hibridismo antagônico rígido-analítico, formalmente implantado, explícita ou implicitamente, as Constituições contemporâneas desse tipo, como a brasileira de 1988, podem suscitar dramáticos dilemas políticos, que oscilarão entre a obediência a esquemas inflexíveis de reforma, com o risco de aluir seus fundamentos de legitimidade com o rompimento formal do sistema e todos os inconvenientes de insegurança jurídica decorrentes, e a busca de soluções criativas além da ortodoxia positivista, como de fato vem ocorrendo e a seguir se exporá. A doutrina clássica teve sempre por assemelhados os processos de reforma constitucional, tanto o ordinário, por via de revisão, quanto o extraordinário, por via de emenda, às chamadas cláusulas pétreas, considerando-os implicitamente imodificáveis. Mas, mesmo no passado, quando o princípio democrático era mais tênue que hoje e a forma da democracia representativa era plenamente dominante, essa cláusula pétrea implícita, seja limitadora do poder reformador competente, seja restritiva do tipo de procedimento a ser por ele seguido, já recebia temperamentos. Foi o que ocorreu no importante precedente histórico da Lei Constitucional francesa, de 3 de junho de 1958, que inovou regras de reforma constitucional na Constituição de 1946 para transferir o poder constituinte derivado a Charles de Gaulle, submetendo-a a referendo popular legitimatório, uma formalidade distintiva da democracia participativa que começava sua trajetória ascencional no segmento pós – guerra. 5 Mais recentemente, outro caso de moderação na interpretação do rigor formal de cláusulas pétreas no Direito Constitucional contemporâneo, em hipótese de Carta ainda mais analítica e de mais forte sentido dirigente, por sinal reputada como um dos modelos mais proximamente seguidos


pelo constituinte brasileiro de 1988, deu-se com a segunda revisão da Constituição Portuguesa de 2 de abril de 1976. A primeira revisão constitucional (Lei Constitucional no. 982) já havia sido considerada por seus comentaristas “extensa e, em alguns domínios profunda” mas, apesar disso, não teria chegado a lesar “a essência da Constituição” e nem romper “com a ordem constitucional originária”, expressões que guardam sinonímia com o conceito autopoético, também moderníssimo, de identidade constitucional. Tem-se, com efeito, como um dos traços marcantes do direito público neste final de século, a pressão popular por maior participação política em todos os processos do poder, na legiferação, na administração e na jurisdição. A respeito, nossa monografia “Direito da Participação Polifica”, editora Renovar, Rio de Janeiro, 1992. A segunda revisão constitucional (Lei Constitucional n.01/89), porém, eliminou algumas cláusulas pétreas, com o sentido de possibilitar de futuro a reforma das matérias constitucionais que haviam sido por elas protegidas, mas, não obstante esse surpreendente rompimento da velha ortodoxia teórica, seus abalizados e insuspeitos comentaristas, como J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, concluíram com acerto que “Globalmente considerada, portanto, a revisão não se traduziu numa solução de continuidade constitucional”6. Na verdade, essa construção doutrinária tinha o mérito de conciliar o pleno ingresso de Portugal na Comunidade Européia sem rompimento de sua ordem jurídica. O problema passou a se situar, assim, não no valor absoluto de qualquer cláusula pétrea, explícita ou implícita que seja, mas na verificação da possibilidade de encontrar-se uma forma legítima de evolução que preserve a identidade constitucional originária. Em outras palavras: o conceito de rigidez evoluiu para passar a ser entendido como uma técnica substantiva de estabilidade voltada à manutenção dessa identidade, necessariamente com sentido material, seja este um valor autônomo, da própria Constituição, seja ele heterônomo, que se impõe por fora ou por cima dela, excluindo-se, assim, os limites meramente formais, que não portam valores e, por isso, não apresentam referencial direto com a legitimidade. Concluindo a apreciação da questão da dupla revisão, Canotllho e Vital Moreira tampouco vêem obstáculo jurídico intransponível nos limites formais implícitos, ou seja, nos que não estão mencionados no próprio sistema de revisão.7 No mesmo sentido manifesta-se na doutrina italiana Enrico Spagna Musso, afirmando que “se num determinado ordenamento estatal está previsto um processo de revisão constitucional sem a explícita previsão de limites à própria revisão, não se pode sustentar a existência de limites implícitos em relação a dadas matérias” 8 No Brasil, tampouco, na experiência constitucional recente, a existência de limites formais implícitos de reforma, no caso pela via de emenda, foi invocada como impedimento para que se promulgasse a Emenda Constitucional no. 26, de 27 de novembro de 1985, que transformou o Congresso

“(...) a regulação detalhista “autoritária e intervencionista”4 caracterizadora da Constituição dirigente, fez escola e lançou suas raízes no ultramar, na Carta brasileira de 1988.”

Nacional constituído, em Assembléia Nacional Constituinte “livre e soberana”,9 ou seja, sem submissão a quaisquer tipos de limites instituídos, como também se exigia na tradição doutrinária nacional. 10 Mas a despeito da doutrina contrariada, nenhuma violação de limites implícitos chegou a ser verberada, nem mesmo sob a pesada suspeita de ilegitimidade do Congresso Nacional, então composto por senadores desprovidos de investidura democrática pelo voto popular, nem mesmo, ainda, pelo ponderável argumento de que seria imprescindível para legitimar o processo que se o culminasse com um referendo, como foi brilhantemente sustentado pelo saudoso jurista Geraldo Ataliba e por Michel Temer.11 Com efeito, as clássicas concepções formalistas e juspositivistas do fenômeno constitucional, como avivam os exemplos assinalados, parecem ter ficado superadas, com o advento de novas vertentes teorético-dogmáticas que se mostraram mais adequadas ao que hoje se espera de uma Constituição: menos comprometida com a manutenção do status qua, mais aberta a valores e, sobretudo, mais efetiva para garantir a estabilidade política que todos os povos almejam. Com a ênfase axíológica, porém, não se está procurando, para escapar ao legalismo, retomar a ordem de valores (Wertordnung) weimariana, com suas referências antropológicas e metafísicas remanescentes de um romantismo tardio, mas, ao contrário, avançar para uma reconstrução dos valores democráticos fundantes (Grundrechte) sob formas jurídicas (Grundrechte) na formulação do que se tem denominado apropriadamente de um “constitucionalismo adequado”12, para que não nos perguntemos, afinal, como Dworkin, “se o Direito Constitucional não foi construído sobre um erro”.13 Os valores, porém, enquanto conceitos antropoaxiológicos, recebem codificação para ingressar no mundo do direito e nele vir a estruturar os sistemas jurídicos por meio da destilação e da organização nuclear de um centro de identidade constitucional formado por princípios, estando aqui, para Robert Alexy, a distinção fundamental entre ambos, valores 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


e princípios, a partir da qual se abre uma nova e ampliada compreensão da Constituição como um sistema aberto de preceitos e princípios14, em que a atividade subsuntiva e silogística, própria da visão piramidal kelseniana, conducente ao unidimensionalismo jurídico, cede à atividade ponderativa e razoabilística, mais harmônica com a visão autopoiética teubneriana, e, por isso mesmo, conducente ao circularismo auto-reflexivo do direito15. Observe-se, porém, que o enclausuramento autopoiético se situa no plano puramente normativo, da organização, onde se desenvolve o processo jurídico, ao passo que a estrutura, que sobre ela historicamente se desenvolve, abre-se para receber os influxos externos, daí a referência à obra de Niklas Luhmann, para quem o sistema jurídico é normativamente fechado e cognitivamente aberto16. Ao contexto cede o texto, de modo que, desde que não haja desfiguramento da identidade reflexiva da Constituição, permanecendo intocados e até mesmo rejorçados17 e revivificados os limites expressos substantivos, ou seja, aqueles que revelam valores e respectivos princípios fundantes, a reforma constitucional, agora pensando na Carta brasileira de 1988, pode ser eficientemente realizada estendendo o instituto da revisão do corpo transitório, onde parece restar inoperante, para o corpo permanente da Constituição, combinando-a com o emprego do princípio legitimatório fundante do referendo, como condição de vigência. JUSTIFICAÇÃO DA PROPOSTA DE EMENDA REVISIONAL A Constituição de 1988 distinguiu e adotou os dois tipos de reforma usuais no constitucionalismo contemporâneo: a revisão e a emenda, prevendo-lhes processos distintos. Conferiu-se à emenda um sentido casuístico, pontual e extraordinário, mas permanente (art. 60), ao passo que à revisão deu um sentido amplo e obrigatório, não, porém, ordinário e permanente (art. 3° do ADCT). Observe-se, ainda aqui, uma outra estranhável preocupação elitista do constituinte originário, ao negar o caráter ordinário da revisão, tal como é encontrada nas Cartas contemporâneas analíticas tomadas em tantos outros casos como modelo, para reduzi-la a uma utilização singular e excepcional. Não obstante, imagine-se como compensação, tomou-a mandatória, ou seja, não deixou sua realização ao alvedrio do Congresso18. Por ocasião da efetivação da revisão prevista, nas circunstâncias políticas sobejamente conhecidas, o Congresso Revisor decidiu porém se auto-limitar, fixando-se um prazo peremptório para concluir os trabalhos. Com esse expediente, estava criada uma subordinação indevida de um comando substantivo de nível constitucional para realizar a revisão, a um limite temporal, um comando formal, de hierarquia regulamentar (interna corporis), o que levou ao prematuro encerramento do processo revisor sem que se houvesse esgotado, pelo menos, a pauta da Relatoria, que já tinha sido, por sua vez, minimizada com o intuito de atender ao referido prazo. 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

É, portanto, perfeitamente sustentável que a revisão determinada pelo constituinte original não chegou a ser realizada, pelo menos com o sentido e abrangência por ele previstas, que não poderiam ser consideradas atendidas com a promulgação das discretas seis “Emendas de Revisão” produzidas, quase todas de relativa pouca importância diante de um contexto total de 318 artigos a serem revistos, sendo 245 permanentes e 73 transitórios. Afinal, o objetivo revisional só poderia ter sido o de procederse a uma ampla reapreciação de todo o Texto, como é do próprio conceito do instituto, e não ter sido adotado para produzir meia dúzia de emendas singulares, diferenciadas das demais apenas pelo rito. Isso posto, pode-se retirar duas premissas, que ora se submetem como justificação de um proposta para instituir a revisão como espécie de reforma constitucional em caráter ordinário, permanente e periódico: primeiro, não se trata de um instituto estranho ao direito constitucional positivo brasileiro vigente e, segundo, o seu comando original, por não ter sido esgotada a sua destinação, permanece eficaz, apto para que se reabra a sua execução, não obstante prematuramente interrompida. Uma Emenda Constitucional neste sentido, além de resgatar a vontade do constituinte originário, lesada em 1994, estaria perfeitamente harmônica com o entendimento que se vem emprestando aos conceitos de limites, como acima se expôs, tornando perfeitamente válida e apropriada essa transposição do instituto para o corpo permanente da Constituição, sempre que respeitadas as condições de oportunidade (art. 60, §IO) e de conteúdo (art. 60, §4°) já estabelecidas para o processo das emendas. Com efeito, inexistirá qualquer limite implícito formal oponível se, como tem aceito a doutrina, se agravarem, em relação ao disposto originalmente, as formalidades exigidas para a reforma; o que poderá ser atendido submetendose a revisão, uma vez concluída, ao referendo popular, que, por sua vez, tampouco é um instituto estranho ao ordenamento constitucional de 1988, incluindo-se, por sinal, na competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49,XV), embora, como demonstra recente e bem conduzido estudo de direito comparado, encontre-se ainda muito acanhado, com amplíssimo espaço jus-político para desenvolver-se19. Restaria a definição do órgão revisor. Aqui tampouco levanta-se um limite implícito oponível, principalmente se a escolha recair numa convocação popular para a eleição de uma Constituinte Nacional Revisora exclusiva. Esse alvitre teria três vantagens indiscutíveis; pela ordem de importância: não paralisaria os trabalhos da legislativa ordinária, não se poderia acoimar a classe política de legislar em causa própria e se estaria reforçando a legitimidade de todo o processo, além de possibilitar, periodicamente, uma utilíssima consolidação constitucional. A revisão se incorporaria ao Texto permanente como um tipo ordinário e mais amplo, porém fatalmente mais exigente


de reforma, conjugada ao referendo, inaugurando-se dês’arte uma nova etapa do desenvolvimento do direito político no Brasil. Em Última análise, o rompimento do impasse político na transformação do Estado brasileiro se faria pelo recurso democrático ao detentor do poder soberano, absolutamente na mais elevada linha principio lógica sacralizada nos próprios dispositivos fundamentais da Constituição20. Desse modo, o povo, que não foi consultado nem para a convocação da Assembléia Nacional Constituinte de 1987, esquecido pela Emenda Constitucional n.026/85, nem para ratificar o produto de seu trabalho, nem para apreciar o simulacro de revisão que o surpreendeu e o vexou em 1994, teria enfIm a oportunidade de ser chamado para decidir não apenas por quem quer ser governado, prerrogativa da democracia representativa, mas como quer ser governado, conquista da democracia participativa21. Afinal não há razão alguma, ao contrário, sobejam, para que não se devolva ao povo, o soberano nas democracias, neste final de século e de milênio, o direito de decidir sem intermediários sobre o seu futuro . A comemoração de quase dois decênios da Constituição de 1988 não poderia ser mais apropriada e mais democrática que pela devolução ao povo, em caráter

permanente e periódico, da mais ampla decisão sobre seus destinos. Como tantas vezes ocorreu na história dos povos, o referendo viria como solução áurea para romper antigos impasses políticos, renovar as relações entre os Poderes do Estado, ao mesmo tempo que se estaria queimando angustiantes etapas formais que ainda nos estão separando de uma era de desenvolvimento sustentado que nos inserirá na sociedade global, em intenso processo de integração política, econômica, social, científica, tecnológica, artística e cultural, tudo com a necessária e sempre aspirada estabilidade constitucional: a permanência do essencial pela transformação do acidental. De resto, se a Carta de 1988 se assentou sobre premissas que se revelaram falazes, utópicas e ilusórias, possivelmente porque a participação popular foi então canalizada por segmentos militantes e vozes corporativas, cabe agora à sociedade, como um todo, imprimir o realinhamento que deseja para o Estado nos próximos dez anos e assim sucessivamente, porque o ritmo de suas transformações será previsivelmente cada vez mais acelerado e a política, parafraseando Clemenceau, é demasiado importante para ser entregue apenas a políticos.

NOTAS 1 MIGUEL REALE, in razões de Divergências, Folha de São Paulo, 29/6/86, p.3:”...quando o legislador se substitui ao povo, impondo-se normas rígidas e bloqueando o processo da livre construção de seu próprio caminha.” 2 Adotou-se a precisa classificação tripartite de LUIS ROBERTO BARROSO, in O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, Ed. Renovar, 1990, os. 84 e 85. 3 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, in Rever ou Romper com a Constituição Dirigente Defesa de um Constitucionalismo Moralmente Reflexivo, Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, Ano 4, n.º 15, abril-junho de 1996, p. 11.

J.J. GOMES CANOTILHO, op. Cit., p. 9. Tem-se, com efeito, como um dos traços marcantes do direito publico neste final de século, a pressão popular por maior participação política em todos processos do poder, na legiferação, na administração e na jurisdição. A respeito, nosso monografia Direito da Participação Política, editora Renovar, Rio de Janeiro, 1992. 6 J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora, 1991, pg. 291 e ss.. 7 J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. Cit., p 300 8 ENRICO SPAGNA MUSSO, Diritto Costituzionale, CEDAM, Pádua, 1992, 4ª ed., 121 (n/grifo) 9 A expressão entre aspas está no art. 1º da Emenda nº 26/85 10 JOSÉ AFONSO DA SILVA, por exemplo, apoiando-se na excelente monografia de NELSON DE SOUZA SAMPAIO, O Poder de Reforma Constitucional (Ed. Livraria Progresso, Salvador, 1954, p. 93 e ss,) tem como excluídas do alcance de uma emenda as normas constitucionais referentes a titularidade do poder reformador e ao processo da própria emenda ou revisão. 11 Apud NEY PRADO, Razões das Virtudes e Vícios da Constituição de 1988, Ed. Inconfidentes, 1994, p.25. 12 J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, Ed. Almedina, Coimbra, 1991, 5ª. Ed. P.174. 13 RONALD DWORKIN, Law’s Empire, Belknap Press, Cambridg, 1986, em epigrafe ao Cap. X. 14 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, Baden-Baden, 1985, p 133 e ss. 15 JOÃO CARLOS SIMOES GONÇALVES LOUREIRO, em preciosa monografia, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares, Coimbra Editora, 1995, considerando a tesa do “constitucionalismo adequado”, chama a atenção para o fato de que a ponderação não exclui a motivação, uma vez que a descoberta, por aquela produzida, tem de dar lugar a justificação, pois a racionalidade é a pedra angular do trabalho jurídico” (p. 172) 16 Apud JOÃO CARLOS SIMOES GONÇALVES LOUREIRO, op. Cit., os 173 e 174. 17 Como é o caso do que adiante se propõe com relação aos adquiridos, hoje tempestuosamente subsumidos no inciso IV, do § 4º, da Constituição. 18 A expressão do art. 3º do ADCT é inequívoca neste sentido: “ A revisão constitucional será realizada após cinco anos...” (n/grifo); não existe faculdade de realiza-la ou não; apenas se fixou um interregno mínimo para concretiza-la. 19 V. de ADRIAN SGARBI, O Referendo no Brasil, Itália e Suíça: Uma Analise Comparativa, Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, ano 4, nº 16, julho/setembro de 1996, os. 142 a 158, dos quais se extrai a seguinte conclusão:”2. O referendo, como instrumento de participação ex populo, é importante fonte de legitimação da esfera política, pois pode desempenhar o papel de colmatar eventual ruptura etre representante e representados, ao mesmo tempo que transforma o cidadão, de mero expectador, em sujeito das relações sociais decisórias, trazendo-o ao exercício da democracia.” (p. 156). 20 Art.1º, Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (n/grifo) 21 A referencia é a conhecida indagação de JEAN RIVERO no estudo A propôs dês metámorphoses de I’ Administratin d’aujourd’hui: démocratie et administration, in Mélanges offerts a René Savatier, Ed. Dalloz, Paris, 1965, p. 827. 4 5

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a crise do pacto federativo Bernardo Cabral Relator da CRFB/88 Consultor da presidência da CNC

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“Uma Constituição deve espelhar o estado atual das relações sociais, mas, ao mesmo tempo, deve servir de instrumento para o progresso social.”

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esnecessário registrar da minha profunda satisfação em participar deste Congresso promovido pela Academia Internacional de Direito e Economia, sob a coordenação dos ilustres Juristas Ives Gandra Martins e Ney Prado, na qualidade de palestrante e abordando o tema “A Constituição e a Crise do Pacto Federativo. A Realidade do Centrismo Político e Fiscal”. Para tanto, se faz necessário lembrar o contexto em que foi elaborada a nossa Lei Maior, nos idos de 1987 e 1988. Assim, o primeiro ponto que desejo destacar diz respeito ao perfil do órgão ao qual foi atribuída a feitura do Pacto fundamental. Diversamente do que antes ocorrera, e até em contrariedade ao que desejado por alguns, deliberou-se por partir do nada, para a elaboração de uma Lei Maior. Preferiu-se, à sólida estaca de um Anteprojeto - formulado por um jurista ou uma comissão deles - a abertura da senda constituinte a partir do próprio povo, seus anseios, suas idéias, suas necessidades, suas convicções. Algumas centenas de brasileiros receberam mandato, neste embutida a representatividade constituinte. E como essa legitimação era haurida e conferida sem limitações, que não as do próprio ato convocatório, decidiu-se pelo mais difícil 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

e mais autêntico: estruturar aos poucos, tijolo sobre tijolo, piso sobre piso, o grande edifício da Constituição. Abriuse mão da comodidade do pré-moldado e das estruturas pré-fabricadas, em nome da realização da edificação mais conforme à realidade do Brasil e dos brasileiros. Uma vez mais estava o Brasil mobilizado para a tarefa de elaborar uma nova Carta Magna. Tratava-se de reordenar democraticamente o país após a ruptura da ordem constitucional, e a importância, para a sociedade brasileira, de uma Constituição democraticamente votada era evidente para todos. Sem ela os valores fundamentais em que se deve basear a sociedade estão permanentemente ameaçados. Uma Constituição deve espelhar o estado atual das relações sociais, mas, ao mesmo tempo, deve servir de instrumento para o progresso social. Para tanto, elegeu-se um método a ser utilizado pelo Congresso Constituinte que privilegiou a espontaneidade das contribuições ao invés de adotar um texto inicial, como disse antes, a partir do qual trabalharíamos. Era essa metodologia extremamente controvertida, devido às suas características democráticas. Realizou-se amplo levantamento das aspirações nacionais, expressas pelos constituintes e também pelo próprio


povo através das emendas populares. Nesse estágio, o objetivo era termos um documento que refletisse a consciência da maioria do povo. Foi montada uma estrutura composta de subcomissões e comissões temáticas, que dariam uma visão da realidade brasileira que se mostrou específica e necessariamente parcial. Como resultado, temos hoje um documento no qual as diversas partes refletem diferentes posicionamentos ideológicos e, portanto, de difícil articulação numa proposta unificada. Tratou-se, porém, apesar das críticas suscitadas, de um trabalho extremamente profícuo, que permitiu que soubéssemos aquilo que setores majoritariamente da sociedade tinham a propor. Nesses palcos setoriais transcorreu a primeira etapa do grande esforço: justapondo idéias, amalgamando propostas, e formulando textos, as subcomissões foram construindo a parte que lhes cabia da engenharia constituinte. Seus trabalhos não eram um “diktat” setorial: pelo contrário, eles eram submetidos a intensas discussões entre os constituintes, dissecados em assembléias públicas (com enorme participação popular, diga-se) estudados em cuidadosos pareceres e, afinal, votados, em sessões de grande atividade e mesmo, por vezes, eletrizantes. Aliás, essa era uma tônica do Congresso, naqueles dias, como até a mídia repetidamente assinalou: os corredores estavam repletos de populares, cidadãos, que circulavam de um gabinete ao outro, de uma comissão a outra, abordando constituintes, convocando-os a ouvirem suas idéias e aspirações, numa sadia prática lobista, bem diversa das que por vezes se registram nesta República. Aliás, essa era a marca daqueles dias: vivia-se uma República, um momento em que a atividade política era res publica, coisa de todos, de todos nós brasileiros. É oportuno, mesmo, evidenciar que a participação da cidadania, aqui relembrada, foi um poderoso vetor de atuação popular, aplacando iras e ressentimentos, transformando-os em energia positiva, construtiva, participativa. E, como tal, a participação em causa foi um valioso instrumento de concretização da transição democrática, delicada etapa de nossa História, ainda inconclusa. Aquele que leia, sem paixão e preconceito, o texto da Constituição de 1988 poderá, descontados os naturais problemas de qualquer obra do homem, asseverar que se trata, sem dúvida, de diploma exemplar, profundamente renovador, à altura dos melhores que o constitucionalismo tem produzido, aí incluídas as justamente decantadas Constituições de Espanha e Portugal. Façamos breve ponderação e esse respeito. O primeiro dado a destacar é de topografia, mas igualmente de conteúdo: o texto se instaura com a indicação dos princípios fundamentais, direitos individuais, garantias fundamentais e direitos sociais. Em vez de clássica exposição vestibular da estrutura do Estado e de seus Poderes, deu-se prevalência ao cidadão e ao trabalho: no dado geográfico, uma eleição ideológica. Esta, verdadeiramente, é uma Constituição cidadã. E o exame sumário de seus Títulos

“Aquele que leia, sem paixão e preconceito, o texto da Constituição de 1988 poderá, descontados os naturais problemas de qualquer obra do homem, asseverar que se trata, sem dúvida, de diploma exemplar (...)”

reforça tal convicção. Vejamos alguns reflexos e conseqüências do texto constitucional no Estado Democrático de Direito: • a expressa consagração do respeito aos direitos humanos como princípio fundamental; • o alargamento das garantias fundamentais, com ênfase para o “habeas data”, o mandato de injunção, a garantia do devido processo legal, o mandato de segurança coletivo, a imprescritibilidade de certos delitos gravíssimos etc; • a consagração constitucional dos direitos fundamentais do trabalhador, com particular referência ao fortalecimento do sindicato e à ampliação do direito de greve; • a maior dimensão do sufrágio universal e do direito de votar e de ser votado; • a redefinição das competências normativas, conferindo aos Estados e ao Distrito Federal poderes jamais antes concedidos; • a atribuição ao Município de efetivos instrumentos de autonomia; • o fortalecimento e aumento de atribuições do Legislativo, que é a casa do povo, deslocando o Executivo da posição majestática, antes detida; • os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais conferidas às Comissões Parlamentares de Inquérito; • a reformulação da partilha tributária, de sorte a viabilizar a federação; • o estabelecimento, pioneiro no patamar da Constituição, de uma clara e ordenada política urbana; • o regramento, voltado para os interesses da sociedade, do sistema financeiro nacional; • a elaboração, por vez primeira, de uma estrutura integral da seguridade social; 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


“(...) cumpre extrair da Constituição tudo o que permite a sua virtualidade, ao invés de, a todo instante, modificar-lhe o texto, a reboque de interesses meramente circunstanciais.”

• a total reformulação da disciplina fundamental da educação e da cultura, assentando a amplitude de seus fins e a generalização de seus beneficiários, priorizando o sistema público como destinatário dos recursos arrecadados da população; • os capítulos absolutamente inovadores e exemplares da comunicação social, ciência e tecnologia, desportos; o do meio ambiente, primeira consagração mundial do tema em sede constitucional, com a dignidade de direito público subjetivo, de natureza difusa; • o combate sem trégua à corrupção, através do fortalecimento do Ministério Público; • a preocupação específica com o idoso, a criança, o adolescente e o índio, todos enfim justamente considerados como titulares de atenção especial; • a revalorização da família, com o reconhecimento de seu novo perfil e a abolição das discriminações entre os filhos; • o fim da censura. MINICONSTITUINTE OU NOVO PACTO CONSTITUINTE Já há numerosas declarações sobre a convocação de uma Constituinte restrita ou Mini-Constituinte, às quais - com o respeito que os seus defensores merecem - é necessário, senão indispensável, fazer algumas oposições. Qual a semelhança entre o Brasil de hoje e o de 1964? Vamos retroagir um pouco no tempo. O primeiro semestre de 1964, sob os impulsos de um movimento popular, fruto ou não de equívoco, as Forças Armadas, com o apoio, manipulado ou não, de significativa parcela da classe política (parlamentares, governadores e prefeitos), destituíram o Presidente da República e operaram lesões na ordem político-institucional vigente, através dos chamados atos institucionais. Após um período de convivência da Constituição de 1946 com os Atos Institucionais, o Congresso Nacional foi chamado 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

a institucionalizar o quadro jurídico resultante, através da elaboração da nova Constituição, que foi promulgada a 24 de janeiro de 1967 e entrou em vigor a 15 de março do mesmo ano. Durou pouco e, no curto espaço de tempo de sua vigência, ouviram-se as primeiras vozes em favor da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, idéia que, informalmente, foi defendida, desde abril de 1964, pelo saudoso Senador pela Bahia, Aluísio de Carvalho Filho. A idéia não prosperou, uma vez que a 13 de dezembro de 1968 o estamento militar impôs ao Presidente da República a edição de Ato Institucional de nº 5, que promoveu a completa ruptura político-institucional. Eis aí o motivo forte de então para a convocação da Assembléia Nacional Constituinte: a completa ruptura político-institucional. E dela decorreram todos as ações políticas que tiveram curso no País. Como pois, no momento atual - apesar dos problemas econômicos - quem pode negar a existência de um tempo excepcional de liberdade e da plenitude do Estado de Direito? É o que me leva a adotar opinião contrária ao chamado novo pacto constituinte. Ademais, a doutrina consiste em ver a Constituição como lei fundamental, onde se resguardam, acima e à margem das lutas de grupos e tendências, alguns poucos princípios básicos, que uma vez incorporados ao seu texto tornam-se indiscutíveis e insuscetíveis de novo acordo e nova decisão. Como não é todos os dias que uma comunidade política adota um novo sistema constitucional ou assume um novo destino, cumpre extrair da Constituição tudo o que permite a sua virtualidade, ao invés de, a todo instante, modificar-lhe o texto, a reboque de interesses meramente circunstanciais. Essa a modesta contribuição que trago a este Congresso, formulando votos para que a Academia Internacional de Direito e Economia continue como uma das vanguardeiras na defesa do País.


A REVISÃO CONSTITUCIONAL Samantha Meyer-Pflug Mestre e Doutoura em Direito do Estado - PUC/SP

Foto: Arquivo Pessoal

“(...) as Constituições não são perfeitas, podendo e devendo ser aperfeiçoadas e atualizadas pelas revisões constitucionais, desde que feitas com equilíbrio, consenso, com obediência ao postulado da unidade da Constituição (...)”

A

tualmente, no Brasil, encontra-se em andamento no Congresso Nacional a Proposta de uma Emenda Constitucional (PEC n. 157) de autoria do deputado Federal José Carlos Santos que convoca uma revisão constitucional, nos moldes português, para o ano de 2007. Essa proposta já foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça que emitiu parecer sobre a sua constitucionalidade e já foi aprovada pela Comissão Especial com parecer favorável do deputado Federal Roberto Magalhães, relator da referida Comissão. O passo seguinte será o seu encaminhamento ao plenário da Câmara dos Deputados para que seja aprovada pelo quorum de três quintos em votação em dois turnos e depois seguirá para o Senado Federal onde também deve ser aprovada pelo quorum de três quintos em dois turnos. Note-se que não está a emenda constitucional sujeita a veto ou sanção do Presidente da República. Em virtude dessa proposta de emenda constitucional que visa a instauração de

uma revisão constitucional no Brasil, muito se tem discutido, não só no ambiente político, mas também no jurídico e no acadêmico sobre a conveniência ou não da realização de uma revisão constitucional, de sua própria constitucionalidade e, precipuamente, das suas conseqüências para a realidade brasileira. Não há negar-se que é traço característico das Constituições democráticas atuais trazerem em seu texto mecanismos de alteração de suas normas, para que as mesmas possam se adaptar às novas realidades sociais e políticas. Essas alterações podem ser levadas e efeito por meio da edição de emendas constitucionais ou através do processo de revisão. Note-se, ainda, que muitas vezes a alteração do Texto Constitucional pode dar-se de modo informal, através da interpretação que altera o sentido, o significado da norma constitucional, atualizando-a em face das novas exigências da sociedade, sem, contudo, alterar a letra da lei. O Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição desempenha papel relevante nessa tarefa de intérprete da norma constitucional. A Constituição Federal de 1988, a denominada “Constituição Cidadã” adotou dois mecanismos de alteração de suas normas, mas de forma diferenciada. Em seu texto ficou estabelecido, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que após cinco anos da promulgação do Texto Constitucional seriam editadas emendas de revisão. Na ocasião foram promulgadas seis emendas revisionais. Contudo, essas emendas não fizeram uma revisão profunda do Texto de 1988, mas limitaram-se, tão-somente, a alterar questões pontuais e específicas. De outra parte assegurou a Carta Magna a possibilidade de promulgação de emendas constitucionais a qualquer tempo, desde que obedecidos os 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


requisitos previstos no art.60, caput, quais sejam, quorum de aprovação de três quintos e votação em dois turnos em cada Casa do Congresso Nacional, sendo que os legitimados para a propositura de PEC são um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, o Presidente da República, e mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. Não há negar-se que o tema da revisão constitucional é polêmico por si só, pois, qualquer alteração na Constituição de um País leva a sérias conseqüências políticas e econômicas, além de repercutir em todo o ordenamento jurídico. Todavia, em muitos momentos mostra-se a mesma imprescindível para a manutenção da força normativa da Constituição, bem como para a sua adaptação às novas realidades sociais, econômicas e políticas. Há que se considerar que a Constituição Cidadã é bastante extensa, analítica e até mesmo casuística o que dificulta a sua adaptação às novas realidades e a sua própria aplicação. Isso se deve, sobretudo, a maneira com que ela foi elaborada, fruto de uma assembléia constituinte composta por parlamentares de diversos partidos políticos, num momento de transição de uma ditadura para uma democracia e no inicio do mandato do vice-presidente em razão do falecimento do presidente Tancredo Neves. No entanto, a nossa Constituição de 1988 já foi emendada 52 vezes, tendo apenas 18 anos e se encontram em tramitação no Congresso Nacional mais de duas mil propostas de emendas constitucionais. Do que se depreende que a Constituição inevitavelmente sofrerá inúmeras alterações específicas que acabam por descaracterizála e gerar uma grande insegurança jurídica, se nada for feito para evitar tal desiderato. É nesse cenário que surge a necessidade de uma revisão constitucional que procure levar a efeito uma alteração sistêmica e global do Texto Constitucional, preservando a sua identidade (cláusulas pétreas), mas de maneira a adaptálo às novas realidades, bem como retirar algumas normas formalmente constitucionais, que acabam por fazer com a Constituição perca sua força normativa, sem, contudo, a necessidade de uma ruptura jurídica drástica, como a promulgação de uma nova Constituição. Nesse exato sentido tem-se a PEC 157/04 que visa a instauração de uma revisão constitucional para 2007. Esta se inspirou no sistema português. A Constituição Portuguesa de 1976, optou pela revisão constitucional que vem, expressamente, prevista em seu texto nos arts. 286 à 291. Nele fica estabelecido que a Assembléia da República pode rever a Constituição, decorridos cinco anos sobre a data da publicação de qualquer lei de revisão. De igual modo a Assembléia da República pode assumir em qualquer momento poderes de revisão constitucional desde que o faça por maioria de quatro quintos dos deputados em efetividade de funções. Uma vez instaurada a revisão, ela pode ter toda a amplitude possível, o que ficará a cargo dos deputados que apresentam os seus projetos durante a sua realização. A Constituição Portuguesa já sofreu 7 revisões: 1) 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

a de 1982 extinguiu o Conselho da Revolução e reformulou o sistema dos órgãos de soberania; 2) a de 1989 teve por finalidade a reversibilidade das nacionalizações e a alteração da constituição econômica; 3) a de 1992 alterou o texto constitucional para adequá-lo às normas constitucionais ao Tratado de Maastricht, (União Européia); 4) a de 1997 tratou da revitalização do sistema político; 5) a de 2001 tratou da ratificação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional; 6) a de 2004 tratou de normas relativas à comunicação social; 7) a de 2005 tratou do referendo sobre tratados internacionais que visem a construção e aprofundamento da União Européia e da proibição de discriminação em razão da opção sexual. Verifica-se, que a Constituição portuguesa apesar de mais antiga que a nossa sofreu menos alterações, além de a inserção de Portugal na União Européia só poder ter sido feita em razão da possibilidade de revisão da Constituição que permitiu a adequação das normas constitucionais, como um todo, às novas regras de direito internacional. Sem esse mecanismo a integração à União Européia seria inviável do ponto de vista jurídico. No Brasil, a proposta de revisão constitucional, aprovada pela Comissão Especial nos termos do parecer do relator deputado Roberto Magalhães prevê a instalação no dia 1º de fevereiro de 2007 da Assembléia de Revisão Constitucional, formada pelos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, pelo parlamentar mais idoso que dirigirá a sessão de eleição de seu presidente. As discussões e os encaminhamentos de votação serão feitos em sistema unicameral. A Revisão Constitucional será consubstanciada em ato único, será promulgada após a aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta de votos de cada Casa integrante da Assembléia de Revisão Constitucional e de referendo popular a ser realizado no primeiro domingo de abril de 2008. O prazo de duração da Assembléia será de 12 meses a contar de sua instalação. Ficará a cargo da Assembléia decidir sobre a possibilidade de autorização de Revisões periódicas da Constituição, com intervalos não inferiores a cinco anos. A referida revisão terá como limite o disposto no art. 60, §4º da Constituição (cláusulas pétreas), sendo-lhe vedado suprimir ou restringir os direitos sociais, o plebiscito, o referendo popular e a iniciativa popular. As matérias objetos da revisão constitucional são: a) a organização dos poderes; b) o sistema eleitoral e partidário; c) o sistema tributário nacional e as finanças públicas; d) a organização e as competências das unidades da federação; f ) o sistema financeiro nacional. No entanto, mister se faz analisar alguns aspectos, quais sejam, a conveniência ou não da realização da revisão, seus limites, o perigo do excesso de revisões e o princípio da segurança jurídica. Ao se tratar da possibilidade de realização de uma revisão constitucional tem-se que analisar primeiramente se esta se apresenta como medida apta para solucionar a crise que lhe deu azo, pois é imperioso sempre preservar a estabilidade das Constituições e, por via de conseqüência do próprio ordenamento jurídico. Este aspecto também é


amplamente discutido em Portugal, nesse particular assevera Jorge Miranda que: “(...) Uma Constituição não resolve uma crise, nem pode ser posta em causa, a pretexto de uma crise, em especial quando acaba de ser modificada e quando a crise já havia nessa altura.”2 De outra parte tem-se que evitar a banalização das revisões constitucionais, pois estas como qualquer outra medida têm as suas limitações, e muitas vezes, as crises podem ser solucionadas por meio da adoção de políticas públicas e não através de reformas legislativas. Essa só deve ocorrer quando se mostrar apta e eficaz para solucionar o problema em questão, pois em alguns casos o próprio texto constitucional se apresenta como óbice para a realização dessas mudanças. Outro ponto importante que se verifica nas revisões constitucionais ocorridas em Portugal e que é perfeitamente aplicável ao sistema brasileiro diz respeito aos custos advindos de sua implantação, pois se trata de um processo longo e que se não for bem delimitado pode gerar mais expectativas, do que soluções e ao invés de conferir unidade e preservar as normas constitucionais pode gerar fissuras no texto, ou ainda, um aumento dos preceitos constitucionais o que pode tornar o texto extremamente longo e analítico e dotado de normas pouco exeqüíveis. Adverte Jorge Miranda que: “(...)E, por essa via, a Constituição, carregada cada vez mais de normas não exeqüíveis por si mesmas, vai-se engordando e tornando flácida e redundante. Mas mais importante do que tudo, avulta a instabilidade das normas constitucionais, com custos pesadíssimos para o trabalho dos operadores jurídicos e para a segurança e confiança dos cidadãos.”3 Nesse contexto, enfatiza o autor que os problemas principais de Portugal não seriam solucionados através de alterações nas normas jurídicas, mas com o trabalho. Tal afirmativa aplicase perfeitamente à realidade brasileira. Tendo em vista que muitas das modificações realizadas através da edição de emendas constitucionais com vistas a solucionar problemas econômicos apresentaram-se, na grande maioria das vezes, ineficazes. Ressalte-se, ainda, que há na Constituição do Brasil, como ocorre na Constituição portuguesa, diversas normas pendentes de regulamentação por leis infraconstitucionais. Há que se avaliar se algumas crises não poderiam ser superadas através da edição dessa legislação ordinária ao invés de uma revisão constitucional. A proposta de revisão constitucional, como dito, terá como limite, as cláusulas pétreas, os direitos sociais e os instrumentos de exercício de democracia direta. De igual modo, a Constituição portuguesa também elenca em seu texto (art.290) diversas matérias que são limites materiais ao poder de revisão. No entanto, é aceita a tese da revisibilidade das cláusulas de limites materiais. Esclarece Jorge Miranda que: “O art. 290.º não cria os limites materiais de revisão – pois estes não são senão princípios constitucionais; declara-os e garante-os; e é uma norma, como qualquer outra, que pode ser revista nos termos gerais. O que não pode é, enquanto estiver em vigor – como está neste momento e estará,

necessariamente, até, pelo menos, à lei de revisão que, acaso, o modifique – ser desrespeitado, por derrogação ou supressão de qualquer dos correspondentes princípios.”4Tanto é assim que na revisão constitucional de 1989 foram modificados diversas alíneas do citado artigo, inclusive ocorreu a supressão de uma delas. Verifica-se que o projeto de revisão constitucional brasileiro não vai a esse ponto, na medida em que contem regra expressa no sentido de proibir qualquer alteração nas cláusulas pétreas e incluindo também os direitos sociais e os instrumentos de democracia direta. Note-se, que no tocante ao quorum de aprovação da revisão constitucional que é de maioria absoluta nas duas Casas não se verifica qualquer violação as cláusulas pétreas, na exata medida em que a própria Constituição de 1988 quando tratou no ADCT da possibilidade de edição de emendas revisionais fazia menção expressa ao quorum de maioria absoluta. De igual modo o art. 60 ao fazer referência à necessidade do quorum de aprovação de três quintos, não constitui cláusula pétrea implícita, inexistindo jurisprudência do STF a respeito, e mesmo que fosse verificase que os sistemas constitucionais que adotam a revisão constitucional admitem a alteração dos seus limites materiais, como ocorre em Portugal. Segundo o parecer do deputado Michel Temer “(...) o núcleo conceitual da cláusula pétrea implícita, referente à modificação constitucional, continuará intacto. Isto porque adiciona-se ao processo de modificação, ora facilitado, enorme dificuldade: a submissão do projeto de Emenda constitucional a referendo popular(...)” Ressalte-se que a proposta em andamento exige que o projeto de revisão seja submetido a um referendo popular, ou seja, a aprovação do povo quanto ao seu conteúdo. Tratase da aprovação da revisão da Constituição pelo titular do poder constituinte originário (todo poder emana do povo). Isso acaba por legitimar definitivamente o processo de revisão da Constituição. Em síntese, tem-se que as Constituições não são perfeitas, podendo e devendo ser aperfeiçoadas e atualizadas pelas revisões constitucionais, desde que feitas com equilíbrio, consenso, com obediência ao postulado da unidade da Constituição, com uma visão sistêmica de suas normas e precipuamente, com vistas ao futuro, para que não seja necessário a todo e qualquer momento ter-se de recorrer a esse mecanismo. A proposta de revisão em andamento atende a esses pressupostos, na medida em que sua matéria se encontra delimitada, respeita as cláusulas pétreas e está sujeita a aprovação direta do povo (referendo). Ademais, verifica-se que nos países que adotam a revisão constitucional, como Portugal, esta tem correspondido satisfatoriamente à evolução da sociedade. NOTAS 1 Mestre e Doutoranda em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, membro do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e professora univesitária. 2 Jorge Miranda, Constituição e Cidadania. Coimbra Editora, 2003, p .16. 3 Jorge Miranda, Constituição e Cidadania. Coimbra Editora, 2003, p .237. 4 Jorge Miranda, Constituição e Cidadania. Coimbra Editora, 2003,p. 41.

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A PREMENTE REFORMA CONSTITUCIONAL EM FACE DA CRISE DA LEGALIDADE E DA SEGURANÇA JURÍDICA Renato Ferrari

N

Foto: Arquivo CIEE

Jurista

o contexto geral, os brasileiros certificam a existência das crises nacionais; apuram as suas causas, como ato preliminar do conhecimento, superando a visão restrita dos efeitos, ineficiente para as soluções globais, e tão generalizada em nossa sociedade; desvendam as relações de causa e efeito entre as coisas, lembrando o dizer shakesperiano, no falar de Apolônio, de que “é preciso descobrir a causa deste efeito – ou melhor dizendo – deste defeito – porque este efeito, que é defeito, provem de uma causa”; e evidenciam que a problemática não se cinge ao plano teórico, mas se corporifica nos fatos sociais.

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Ao considerar as crises, ergue-se, desde logo, a observação de que a normatividade legal, em sentido pleno, só se faz autêntica pelo respeito das características conformadoras da respectiva unidade política, de sorte que as teorias contemporâneas homenageiam a legalidade e a ordem jurídica, uma e outra, e ambas entrelaçadas, quando de acordo com o Estado Democrático de Direito, para o qual evoluiu o Estado de Direito, na realização de uma democracia substantiva, e não apenas formal. Assumiu relevância a efetiva correspondência entre a lei e a realização do bem comum, proporcionado entre o bem individual e o bem coletivo, com o pré-estabelecimento dos valores fundantes da sociedade, expressos em princípios explícita ou implicitamente insertos na ordem jurídica, no seu quadro integral de normas constitucionais e infraconstitucionais. Em razão de regência axiológica, que consubstancia o elemento moral, representando a licitude, define-se a legitimidade, que se expressa no efetivo atendimento das necessidades e aspirações do povo; e destas bases deve emanar a legalidade, como norma de conduta, em coerência com a licitude e a legitimidade, em composição tridimensional. Na medida em que a legalidade não obedece a legitimidade e esta não obedece a licitude, desobedecendo-se entre si, instaura-se a crise das desconformidades, que, segundo sua extensão, converte-se em crise sistêmica e, segundo sua profundidade, em crise nuclear, atingindo o estado de anomia. Este é o Brasil de hoje. A começar pela Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, relativa à Constituição de 1969, esta resultante da Emenda nº 1 à de 1967, emenda aquela convocatória de uma Assembléia Nacional Constituinte e pela qual o Congresso Nacional outorgou-se poderes de constituinte originário, através dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em reunião unicameral e voto de maioria, quando, considerada a existência de ruptura política ensejante de uma nova Carta Magna, só se justificaria a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte própria, de caráter autônomo e independente do Congresso Nacional. Nessa elaboração de legislador ordinário transformado em constituinte originário concorreram a visão e os interesses de jaez partidário, grupal ou pessoal, no quadro de centenas de parlamentares filiados a grande número de agremiações com os entrechoques de posições particulares ou unilaterais, vindo a obumbrar-se o embasamento filosófico-político e principiológico capazes de uma configuração adequada, para daí resultar um documento repleto de inadequações, em cujo cerne, para exemplificar, comprometeram-se os conceitos federativos, inclusive por equivocada discriminação de competências e funções, de receitas e despesas; confundiram-se as características do sistema de governo, num híbrido de parlamentarismo e

“Crise do Poder Legislativo e crise do Poder Executivo, sem dúvida, mas igualmente crise do Poder Judiciário sufocado por uma retrÓgrada processualística, consistente na inadequação das leis adjetivas - codificadas, consolidadas ou extravagantes (...)”

presidencialismo, de que dão notícia as medidas provisórias; desfigurou-se o mandamento de igual valor do voto. Pior terá sido a perda pelo Congresso Nacional do reexame constitucional previsto no Ato das Disposições Transitórias para depois de cinco anos, dado que sucumbiu a revisão geral, cifrando-se em seis emendas sem maior importância basilar, certamente pelo idêntico motivo de ser a revisão atribuída ao legislador ordinário, às centenas filiados a imenso número de agremiações políticas, realçando-se os mesmos interesses e desavenças de partidos, grupos e pessoas. Neste curso, o Parlamento enveredou pela adoção de Emendas Constitucionais, de caráter focal, boa parte delas ditada por casuísmos e conveniências de momento dos detentores do poder, as quais já chegaram a cinqüenta e duas, que, somadas a seis de revisão, atingem o inconcebível número de cinqüenta e oito em dezessete anos e meio de vigência constitucional, numa colcha de remendos progressivos pela aprovação das propostas de emenda em andamento e das que certamente aparecerão. 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


“No olhar das raízes, que o comodismo irresponsável finge ou prefere ignorar, é flagrante que a crise constitucional permeia a legislação infraconstitucional e os atos de governo (...)”

No olhar das raízes, que o comodismo irresponsável finge ou prefere ignorar, é flagrante que a crise constitucional permeia a legislação infra-constitucional e os atos de governo, em seus múltiplos aspectos, desde o político, o partidário e o eleitoral, com a permissividade de favorecimentos pessoais e amplos desmandos; e a tudo permeia, como exemplificam: a) as finanças públicas, em que as receitas, na vergonhosa proporção de quarenta por cento do esforço produtivo da sociedade civil, não conseguem cobrir as despesas deste Estado-Leviatã, a arrecadar cada vez mais através do terror fiscal; b) a segurança pública, convertida na insegurança permanente da vida e do patrimônio; c) os direitos sociais à educação, com suas graves insuficiências e gigantesco atraso qualitativo; à saúde, relegada ao mais brutal desrespeito; à previdência social, cujo sistema se deteriora espantosamente por erros de formulação; à assistência social, que mal socorre os desamparados; d) o apelidado custo Brasil, com a mortal carga tributária; o paradoxo das onerações financeiras, 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

as inconsistências cambiais; os excessos dos encargos trabalhistas; a precariedade do saneamento básico e das infraestruturas físicas; o desleixo do meio ambiente; e) as políticas públicas, que não promovem o desenvolvimento econômico, o progresso social e o aprimoramento cultural, com as resultantes dolorosas da falta de emprego e de salário, a par da dramática distribuição de renda, a demonstrar a trágica falta de perfilhamento e de consecução de um projeto de Nação e de Estado. Crise do Poder Legislativo e crise do Poder Executivo, sem dúvida, mas igualmente crise do Poder Judiciário sufocado por uma retrógrada processualística, consistente na inadequação das leis adjetivas -codificadas, consolidadas ou extravagantes-, comprometedora da pronta satisfação jurisdicional, na medida em que propicia a eternização das demandas, amparada em quatro instâncias e na indústria recursal, a aniquilar a razão na tardança do seu reconhecimento, em meio à angustia da imprevisibilidade do trânsito em julgado, para gáudio dos transgressores das normas civis, administrativas e penais, de cuja situação o Estado é o maior useiro e vezeiro, sem embargo das figuras da súmula vinculante e da repercussão geral só recentemente abrigadas pela Emenda Constitucional nº 45. Obviamente, trata-se de crise sistêmica violadora dos primados essenciais do direito, consistentes na segurança e certeza jurídicas, integradas em unidade real, os quais devem resguardar os membros da coletividade como garantia fundamental, impedindo que cada cidadão e toda a sociedade estejam sujeitos às oscilações indevidas ou intempestivas da lei, ao sabor dos interesses dos exercentes do poder, arvorados em senhores da Nação, com seu ranço patrimonialista, negandose a primazia da pessoa frente à conhecida controvérsia the man x the State. É consabido que a pedra angular do paradeiro deste estado de coisas encontra-se nas mãos do Congresso Nacional, como também é cediço, por comprovada experiência, que esta vigorosa empreitada não terá êxito por lances de emendas constitucionais de caráter pontual, no desconcertante, inútil e interminável curso de uma a uma, já desacreditadas até pela ironia popular, a contar que um cidadão vai a uma livraria para comprar um exemplar da Constituição e o atendente lhe diz que “aqui não se vendem periódicos”. Esta é a situação com que se confronta o Parlamento, em sua exclusiva competência de determinar os modos e meios capazes de alterar a Lei das Leis em sua reclamada extensão, a cujo propósito é patente que, se cada legislador ordinário dispõe de capacidade pessoal para tratar da matéria, a reunião de todos transforma-se em embates e dispersões de múltiplos matizes e penosos efeitos, frustrando-se o objetivo maior. Neste quadro, é consabido igualmente que o Congresso Nacional, fundamentado na própria Carta Magna, possui também a pedra de toque da construção da urgentíssima reforma constitucional, em caráter supra partidário, para a salvação do povo, e salus populi suprema lex est.


TSE ANULA DECISÃO DO TRE/SP

Foto: Arquivo

O ELUCIDATIVO RELATÓRIO E VOTO DO MINISTRO GERARDO GROSSI

Relator: Ministro Gerardo Grossi Impetrante: Roberto Pereira da Silva Paciente: Roberto Pereira da Silva Autoridade Coatora: Juiz Relator do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (Processo Crime 1081) 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


RELATÓRIO O Ministério Público Eleitoral no Estado de São Paulo ofereceu denúncia contra Galdino Francisco da Silva e contra o paciente, Roberto Pereira da Silva. Imputou-lhes a prática do crime com previsão no art. 290 do Código Eleitoral, que, como se sabe, tem a seguinte redação: “[...] Induzir alguém a se inscrever eleitor com infração de qualquer dispositivo deste Código”. A imputação ficou assim lançada na denúncia (fl. 29): Consta do incluso Inquérito Policial que, em dezembro de 1999, em data não precisa, na cidade de Mogi das Cruzes, no Estado de São Paulo, GALDINO FRANCISCO DA SILVA, candidato ao cargo de vereador de Biritiba Mirim, ofereceu a Augusta Cristina de Mello e a Marco Roberto de Mello um terreno localizado em Biritiba Mirim, com o intuito de induzi-los a transferir os seus títulos de eleitor para a referida cidade, e ROBERTO PEREIRA DA SILVA, candidato a prefeito em Biritiba Mirim, induziu as pessoas supra citadas a se inscreverem eleitores na referida cidade, em troca de terrenos, tendo sido realizada a transferência dos respectivos títulos em 17 de fevereiro de 2000. Como, segundo a denuncia, foram duas as pessoas vítimas da indução, o MPE entendeu que o crime, praticado em coautoria, estaria sujeito, para aplicação da pena, à regra do art. 69 do Código Penal, isto é, que, no caso, havia um concurso material de delitos. Recebida a denúncia, a ação penal teve curso regular. O paciente e co-réu, Galdino Francisco da Silva , pediram que lhes fosse concedido o benefício do sursis processual, com previsão na Lei nº 9.099/95, e o relator da ação penal indeferiu-lhes o pedido (fl. 724), ao argumento, colhido no parecer da Procuradoria Regional Eleitoral, de que ”[...] É certo que a cominação mínima prevista para o delito em tela é de 1 (hum) ano de reclusão; em face do concurso material, porém, esse mínimo eleva-se para 2 (dois) anos de reclusão, extrapolando assim o limite previsto pelo artigo 89, caput, da Lei 9.099/95, impedido, por conseqüência, o oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo” (fls. 715/716). Contra esta decisão monocrática, de indeferimento do sursis processual, apenas o co-réu Galdino Francisco da Silva interpôs agravo regimental, que o Regional paulista acolheu o Acórdão, que ficou assim ementado (fl. 877): AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. LEI Nº 9.099/95. LEI Nº 10.259/01. 1. A LEI Nº 10.259/01 CONSIDERA INFRAÇÕES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO OS CRIMES A QUE A LEI COMINE PENA MÁXIMA NÃO SUPERIOR A DOIS ANOS, OU MULTA, SENDO QUE, AO ASSIM PROCEDER, NÃO SOMENTE ALTEROU O ARTIGO 61 DA LEI Nº 9.099/95, MAS TAMBÉM O PATAMAR EXIGIDO PARA A CONCESSÃO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO, QUE ANTES ERA O 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

DE QUE A PENA MÍNIMA NÃO EXTRAPOLASSE UM ANO. 2. INTERPRETAÇÃO HARMÔNICA E COERENTE DAS NORMAS, QUE REVELA TER A LEI Nº 10.259/ 01 ALTERANDO O LIMITE DA PENA MÍNIMA COMINADA PARA DOIS ANOS, NO QUE SE REFERE AO INSTITUTO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. 3. RECURSO PROVIDO O MPE, contudo, por seu procurador local, negou-se a propor a suspensão condicional do processo, relativamente ao co-réu Galdino Francisco da Silva. Não porque, em tese, este co-réu deixasse de preencher as condições exigidas para a oferta do sursis. Negou-se a oferecer o sursis porque, como afirmou o Dr. Procurador Regional Eleitoral (fls. 954-955): Deixo consignado o entendimento no sentido contrário à tese esposada pelo V. acórdão de fls. 878/900, vazado nos termos do voto proferido pela Excelentíssima Juíza Suzana Camargo (fls. 880/893), já transitado em julgado para o Ministério Público, no sentido de que a Lei nº 10.259/01 não alterou o art. 89, da Lei 9.099/95, em nada sendo modificada a imitação do sursis processual previsto neste último diploma. E, ao afirmar sua negativa, requereu fossem “[...]os autos remetidos ao Excelentíssimo Procurador-Geral Eleitoral, para o que for entendido cabível” (fl. 959). Remetidos, os autos foram submetidos ao exame da Segunda Câmara de Coordenação e Revisão, que apoiando o voto da relatora, a Vice-Procuradora Claudia Sampaio Marques (fls. 1.000/1.010), se decidiu pela “[...] inaplicabilidade do benefício suscitado pelo Tribunal Regional Eleitoral”. Em tal voto, citam-se precedentes, do Superior Tribunal de Justiça, que apoiariam o entendimento da Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria Geral da República (Resp nº 511.077, José Arnaldo da Fonseca; Resp nº 323.938, Laurita Vaz; RHC nº 12.045, José Arnaldo da Fonseca; RHC Nº 14.871, Paulo Medina e RHC Nº 15.400, Félix Fischer). Retornados os autos ao TRE/SP, nada se decidiu à propósito da aplicação do sursis ao co-réu Galdino Francisco da Silva. É que seu il. advogado comunicou ao relator a morte de seu cliente, ocorrida em 17.9.2004, comprovando-a com a juntada certidão de óbito (fl. 1.021). A ação penal teve curso, relativamente ao paciente Roberto Pereira da Silva, que, em 1º.2.2005, pediu que, nos termos do art. 580 do CPP, lhe fosse estendido o benefício do sursis processual, antes concedido a co-réu Galdino Francisco da Silva. O seu requerimento foi indeferido (fl. 1.086), sendo este o ato de coação apontado na impetração desta ordem de habeas corpus. Os autos me vieram conclusos em 25.4.2006 e, em 26.4.2006, deferi a liminar, tão só para “[...] sobrestar o prosseguimento do processo criminal, até o julgamento do writ [...]” (fls. 1.141/1.142). É que, em tal processo, já haviam sido oferecidas alegações finais do MPE (fls. 1.091/1.098) e,


ao que me foi dado perceber, corria o prazo para alegações finais da defesa. Solicitei informações, que me foram prestadas em 4.5.2006, acompanhadas de cópias processuais, já existentes nos autos do hábeas corpus, e de cópia de alegações finais do paciente, oferecidas em 3.4.2006. A procuradoria-Geral Eleitoral, em parecer firmado pelo il. Vice Procurador–Geral Eleitoral, opinou pela denegação da ordem (fls. 1.259-1.266) É o relatório. VOTO 1. Em 1.11.97, foi submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal, no HC nº 75.343, do qual foi relator, para o acórdão, o Ministro Sepúlveda Pertence, questão surgida na aplicação da Lei nº 9.099/95, relativa à suspensão condicional do processo. Cingia-se tal questão ao fato de um juiz de primeiro grau entender que, em uma terminada ação penal, seria o caso de fazer a oferta do sursis processual, enquanto que o promotor de justiça, que atuava nesta dita ação, entendia que não deveria ser feita tal oferta. 2. O STF decidiu a questão pela forma seguinte: Suspensão condicional do processo (L. 9.099/95, art. 89): natureza consensual: recusa do Promotor: aplicação, mutatis mutandis, do art. 28 C. Pr. Penal. A natureza consensual da suspensão condicional do processo - ainda quando se dispense que a proposta surja espontaneamente do Ministério Público – não prescinde do seu assentimento, embora não deva este sujeitar-se ao critério individual do orgão da instituição em cada caso. Por isso, a fórmula capaz de compatibilizar, na suspensão condicional do processo, o papel insubstituível do Ministério Público, a independência funcional dos seus membros e a unidade da instituição é aquela que – uma vez reunidos os requisitos objetivos da admissibilidade dos sursis processual (art. 89 caput) ad instar do art. 28 C Pr. Penal – impõe ao Juiz submeter à Procuradoria-Geral a recusa do assentimento do Promotor á sua pactuação, que há de ser motivada. 3. Desta decisão, no que interessa ao caso presente, estou dando relevo à determinação de que, a recusa do MP à oferta de sursis, há de ser motivada. 4. No caso presente, ao se opor ao pedido do co-réu Galdino- de que lhe fosse concedido o sursis processual – o MP sustentou que estando ele denunciando por prática de crime em concurso material, o que elevava a pena mínima do delito que lhe era imputado ( o do art. 290,0Código Eleitoral), de um para dois anos, não seria cabível a oferta, a teor do art. 89, da Lei nº 9.099/95.

5. Isto porque, dizia o parecer do MP, o parágrafo único do art. 2º da Lei nº 10.259/01, dispõe que “Consideramse infrações a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa”, não havia modificado o art. 89, da Lei nº 9.099/95. E que, assim, era de uma não e não de maior tempo o limite da pena mínima dos crimes, cujos processos poderiam ser suspensos. 6. Era esta, assim, a motivação - aquela motivação a que se referiu o acórdão relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento do HC nº 75.343. 7. E foi com esta motivação que o relator do processo- que tinha e tem curso no TRE-SP – indeferiu o pedido do co-réu Galdino Francisco da Silva. 8. Este co-réu, entretanto, como se viu do relatório, interpôs agravo regimental contra a decisão monocrática do relator do seu processo. E o TRE/SP proveu tal agravo. Proveu-o para entender que a Lei nº 10.2599/01 modificara o art. 89 da Lei nº 9.099/95. Proveu-o para entender que nos crimes a que se comina pena mínima de 2 anos, é cabível a oferta de sursis processual. Essa decisão, como consignou o Procurador Regional Eleitoral de São Paulo, “[...] transitou em julgado para o Ministério Público” (fl. 954). 9. Sabe-se que o tema – modificação do art.89 da Lei nº 9.099/95 pelo parágrafo único do art. 2º da Lei nº 10.259/ 2001 – tem sido tratado de forma diversa daquela com que tratou o TRE/SP, pelo STJ. Menciona-se, a título de exemplo, o RHC nº 15.400, Felix Fischer; na ementa de tal acórdão está dito “(...) A Lei nº 10.259/01, em seu art.2º, parágrafo único, alterando a concepção de infração de menor potencial ofensivo, alcança o disposto no art. 61, da Lei nº 9.099/95. Todavia, tal alteração não afetou o patamar para o sursis processual, que sendo disciplinado pelos preceitos inscritos no art.89, da Lei nº 9.099/95”. 10. Sabe-se, também, que a jurisprudência desta Corte não apóia a decisão do TRE/SP. No RHC nº60, rel. Ministro Luiz Carlos Madeira, ficou decidido que “(...) A Lei nº 10.259/ 2001, não alterou o patamar para o sursis processual”. 11. Do exame que fiz, não encontrei decisão de Turma ou do Pleno do eg. Supremo Tribunal Federal, que decidisse a questão. Encontrei, é verdade, decisões monocromáticas 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


sugerindo a revogação do art.61 da Lei nº9.099/95 – que conceituou crime de menor potencial ofensivo – pelo parágrafo único do art. 2º da Lei nº 10.259/201, que também o conceituou (AI nº 500.005, rel. Min. Carlos Britto). Encontrei-as, também, sobre a modificação do patamar da pena indicada no art. 89 da Lei nº 9.099/95, para o indeferimento da suspensão do processo (RE nº 429.196, rel. Min. Gilmar Mendes). 12. Aqui, contudo, a questão se me afigura outra. Como disse, há uma decisão judicial – o acórdão do TRE/SP, no agravo regimental citado. Decisão que examinou a motivação do MPE para não ofertar o sursis processual. Examinou-a, para repeli-la. E que transitou em julgado para o Ministério Público. 13. A meu ver, assim, a oferta de sursis, que é consensual, como afirmam inumeráveis julgados (HC nº75.343, p.ex.), foi judicializada. Na lide estavam, de um lado, o co-réu Galdino Francisco da Silva, e, de outro, o Ministério público Eleitoral. O tema levado à apreciação do poder Judiciário foi a motivação do MPE para se recusar a fazer a oferta do sursis processual. A recusa, recorde-se, há de ser motivada, como decidiu o Supremo Tribunal no julgamento do HC nº 75.343, já referido. 14. É certo – ou pelo menos me parece certo – que o TRE/ SP poderia não conhecer do agravo regimental interposto pelo co-réu, Galdino Francisco da Silva, afirmando que a oferta de sursis há de ser consensual. E, nesta hipótese, sem dúvida, teria decidido que quando se trata de oferta ou recusa de sursis processual, a última palavra é do Ministério Público. 15. É do Ministério Público, sabe-se, a última palavra quando se trata de propor ou não a ação penal pública. Nas ações penais originárias, o parecer do Procurador-Geral da República, no sentido de arquivamento de inquérito, só pode ser acatado, já pelo Supremo Tribunal Federal, já pelo Superior Tribunal de Justiça, por esta Corte e pelos Tribunais Regionais Federais. Também, nas hipóteses de aplicação do art. 28 do CPP, tanto no âmbito da Justiça Federal, quanto nos âmbitos das Justiças estaduais. 16. Mas o “monopólio da última palavra” – utilizando-se da expressão do professor Conotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 583, Almedinda, Coimbra, 1998) – dado ao MP para propor a ação penal ou para não propôla, requerendo o arquivamento do inquérito ou das peças que poderiam autorizar sua proposição, decorre de expressa disposição constitucional. Como se sabe, está dito no art. 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

129, I, da Constituição Federal, que é função institucional do MP “[...] promover, privativamente, a ação penal pública”. 17. Mas isto não é o que ocorre com a oferta do sursis processual, tratada no plano legal e não no plano constitucional. O que a lei diz, à propósito, é que com a oferta da denuncia, o MP “[...] poderá propor a suspensão do processo”. A jurisprudência – e não a Constituição ou a lei – tem entendido que este é um poder-dever e que a suspensão do processo não é um direito subjetivo do réu. 18. Por ser um poder-dever, e não simplesmente um poder, exige-se que a recusa seja motivada. Por não constituir um direito subjetivo do réu, põe-se ele, réu, numa posição de expectativa: que o MP faça a oferta de sursis e que o juiz a acolha. Ou que o MP se recuse a fazer a oferta, muito embora o juiz entenda que ela deva ser feita. E, nesta hipótese, por construção jurisprudencial, feita a partir do julgamento, pelo Supremo, do HC nº 75.343, Min. Sepúlveda Pertence, remetem-se os autos ao chefe do MP, cuja palavra será a final. 19. No caso presente, entretanto, como se viu, o MP não fez a oferta. O co-réu, Galdino Francisco da Silva, pediu que ela fosse feita. O MP se negou a fazê-la. E o relator do processo apoiou a negativa do MP de oferecer o sursis. 20. Interposto, pelo co-réu Galdino, agravo regimental contra a “decisão” do relator do processo, parece-me que se dele não conhecesse do TRE/SP, confirma-se a jurisprudência segundo a qual, em matéria de sursis processual, a “última palavra” é do MP. 21. Mas, como se viu, no caso, o TRE/SP não só conheceu do agravo, como o proveu. Proveu-o, apoiando um longo e bem lançado voto da Juíza Suzana Camargo, decidindo que o motivo utilizado pelo MP, para se negar a fazer a oferta do sursis, não era idôneo. E esta decisão transitou em julgado. 22. Ocorre-me a observação de que, na medida em que a jurisprudência do STF, firmada a partir do julgamento do HC nº 75.343, exigiu que a recusa de oferta fosse motivada, criou-se a oportunidade para se submeter ao exame do Poder Judiciário o motivo apontado para a recusa. Passou a ser um direito subjetivo do réu, obter pronunciamento judicial sobre a validade ou não daquele específico motivo apontado para a recusa. E a solução que o Poder Judiciário vier a dar à indagação que se faz, se transita em julgado, obriga não só ao réu da ação, mas também ao Ministério Público.


23. No caso, repita-se, o TRE/SP decidiu que o específico motivo, apontado pelo MP para se recusar a fazer a oferta do sursis, não era válido. Esta decisão, como disse o Dr. Procurador Regional Eleitoral, transitou em julgado para o Ministério Público. 24. Judicializada que foi a questão, penso que cabia ao MP recorrer da decisão do TRE/SP, que lhe foi desfavorável. Mas, como se viu, o MP não recorreu de tal decisão. Limitouse a submeter tal questão ao Procurador-Geral Eleitoral, que, de sua feita, contrariando a decisão transitada em julgado, validou o motivo utilizado pelo Procurador Regional Eleitoral para se negar a fazer a oferta de sursis. 25. A indagação linear que me faço é a seguinte: estando o MP obrigado a dar o motivo da sua recusa para a oferta do sursis processual, é também ele, MP, e só ele, o juiz da validade ou não de tal motivo de recusa? Deve-se tratar a oferta ou recusa de sursis processual – que estão reguladas em lei ordinária (Lei nº 9.099/95, art. 89) – da mesma maneira que se trata a proposição ou a não proposição da ação penal pública, que, pela Constituição (art. 129,I), só pode ser promovida pelo Ministério Público. 26. E como se resolveria o problema, se a recusa de oferta do sursis constitui uma lesão de direito? Por exemplo – ainda que por absurdo – se se recusasse a oferta de sursis, sob a alegação de que o réu professa tal religião. Não se teria violado, pelo menos, os incisos I e VI do art. 5º da CF? E a Lei nº 9.099/95, com a leitura que fez dela, o MP, no caso, não estaria excluindo da apreciação do Poder Judiciário uma lesão de direito? 27. No caso, entendo que a partir do trânsito em julgado da decisão daquele agravo regimental, deu-se ao co-réu, Galdino Francisco da Silva, o direito de receber oferta de sursis processual; ou o direito de, a ser recusada tal oferta, a recusa vir a ter outro, que não o motivo invalidado na decisão do agravo regimental. 28. Mas, como se viu do relatório, o co-réu, Galdino Francisco da Silva, veio a falecer e, quanto a ele, decretou-se a extinção da punibilidade. 29. Entretanto, eu estou conhecendo do habeas corpus para concedê-lo ao paciente Roberto Pereira da Silva. Estou me valendo do princípio da isonomia para concedê-lo. Entendo que, se não houvesse falecido, o co-réu, Galdino Francisco da Silva, teria o direito de ver examinada sua pretensão à oferta

do sursis processual. Oferta que poderia até não ser feita, desde que por outro motivo que não o invalidado pelo TRE/SP. 30. Pelo princípio constitucional da isonomia, penso que o mesmo tratamento que se deveria dar ao co-réu Galdino, se vivo fosse, deverá ser dado ao paciente. 31. Louvo-me em decisão do STF (HC nº 61926, RTJ 114/119) e, especificamente, em voto do saudoso Ministro Soares Muñoz, do qual colho o seguinte: A solução, que a conjuntura impõe, é a de estender ao requerente a decisão que favoreceu o co-réu. (...) assim decidindo não se estará proclamando o acerto ou o desacerto mais favorável, mas desfazendo, pela forma processual adequada o tratamento, escandalosamente desigual imposto aos partícipes dos mesmos crimes, em hipóteses em que não ocorreram circunstâncias agravantes de natureza pessoal, que autorizassem a cominação de reprimendas diferentes. Como bem observou Vicenzo Manzini, ao focalizar, no direito positivo italiano, o caso de revisão por inconciabilidade de julgados (Cód. de Proc. Penal, art. 554, nº 1): “O fim da lei não é tanto o de corrigir o que costuma denominar um erro judiciário, quanto o de impedir uma escandalosa contradição dos julgados, aplicando o critério da solução mais favorável ao condenado. E, na verdade, não se indaga nesta hipótese qual das sentenças seja errada: apaga-se somente, a inconciabilidade existente entre elas” ( apud Jorge Alberto Romeiro, in Elementos de Direito Penal e Processo Penal. P. 69). 32. Louvo-me, mais, em decisão unânime, recentíssima, da eg. primeira Turma do STF, no HC nº 86.758, Min. Sepúlveda Pertence, certo que do julgamento que acolheu, sem reservas, o princípio da isonomia, participam os ems. Ministros Marco Aurélio, César Peluso e Carlos Britto, deixando claro que o acórdão de tal julgamento não está publicado, havendo, dele, tão só a notícia no Informativo nº 425/2006. 33. Nos termos do art. 580 do CPP, estendo ao paciente o benefício que, a meu entender, fora dado ao co-réu, Galdino Francisco da Silva. E, assim, concedo o habeas corpus, para anulando a decisão que indeferiu o pedido do paciente, determinar que se submeta, de novo ao MPE, o pedido de suspensão do processo a que responde ele, vedada a recusa, se fundamentada, tão só, no motivo julgado inidôneo pelo TRE/SP. É como voto. 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


nobreza histÓrica A CONTROVÉRSIA SOBRE A CHEFIA DA CASA REAL LUSA E SEU INTERESSE PARA O PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDO. João Pedro de Saboia Bandeira de Mello Filho Subprocurador-Geral da República

“De início, guardou Dª. Maria Pia atitude discreta, mas não se conteve quando viu seu povo subjugado pela ditadura salazarista, abertamente simpatizante do Eixo na II Guerra, sendo a de jure herdeira bragantina antifascista notória.”

Dª Maria Pia de Sax-Coburgo Bragança

M

onarquia e República induzem a formas diversas de comportamento social, e, no Brasil, os valores monárquicos, éticos e estéticos, se enraizaram profundamente, e permaneceram. Não é de se estranhar, pois a mudança de regime não foi fruto de reivindicação do povo, mas obra de um restrito grupo de oficiais positivistas, que souberam

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aliar prestígio pessoal com insatisfação da tropa pela recusa do Imperador em aceitar imposições político-corporativas. Sabe-se que quando Deodoro se apresentou para assumir o comando da tropa amotinada, esta o saudou com o brado de “Viva o Imperador!”, como era praxe na época. Hábeis manobras do grupo positivista, que incluíram boatos sem fundamento sobre a prisão de reverenciados líderes militares, conseguiram transformar um mero ato indisciplinar em revolução. Deposto o Imperador, a referência cultural do ancién regimen continuou a prevalecer. Ninguém cogita falar em “Presidente Pelé”, ou “Presidente Roberto Carlos”. É “Rei Pelé”, “Rei Roberto Carlos”, “Rei Momo”, “Rei do Baião”, “Rainha da Primavera”, e assim por diante. Fato análogo sucedeu em Portugal, onde as próprias autoridades republicanas, através de leis, cuidaram de preservar certos valores monarquistas. Em 15.10.1910, ano do advento da república naquele país, decreto do Governo Provisório dispôs, em seu art. 4º, o que aqueles que haviam recebido no regime anterior títulos de nobreza “podem continuar a usálos, mas nos atos e contratos que tenham de produzir direitos e obrigações será necessário o emprego do nome civil para que tenham validade”. No mesmo sentido, lei de 02.12.1910, e o subsequente Código de Registro Civil, em seu art. 40, item 2, dispondo: “São permitidas referências honoríficas ou nobiliárquicas antecedidas do nome civil...” Passou a coexistir, com a República, o que lá se chama “Nobreza Histórica”. No Brasil, embora a Constituição Republicana haja “abolido” os títulos de nobreza, as denominações a ele relativas continuaram a ser usadas, inclusive em documentos oficiais. Acórdãos das primeiras décadas do Séc. XX são assinados por desembargadores e ministros que, ao nome civil acresciam os títulos que o Império lhes outorgara. O Conde de Afonso Celso, diretor da prestigiosa “Faculdade Livre de Sciências Jurídicas” expedia seus diplomas, até quase 1930, assinando “Conde de Afonso Celso”, e, sem nenhum problema, o notário reconhecia tais assinaturas. O costume cessou porque os títulos brasileiros, ao contrário dos portugueses, não eram hereditários. Se a nobreza persistiu como parte do patrimônio cultural (histórico-imaterial) português, com maior razão haveria de, nas mesmas circunstâncias, persistir a Casa Real Lusa. Acresce que aquela não é patrimônio cultural histórico apenas de Portugal, mas igualmente do Brasil, pois foi comum a ambas até o 7 de Setembro de 1822. Vale acrescentar que, a rigor, o Brasil não teve independência, mas secessão. Quando do Grito do Ipiranga, de há muito não éramos colônia (portanto, “dependentes”), mas “Reino Unido de Portugal, Algarves e Brasil”. Como reino unido, havia uma só nação e território. Foi um país que se dividiu em dois, não uma colônia que se declarou independente. Havia, é certo, a ameaça de retorno ao status quo ante, mas

“Se a nobreza persistiu como parte do patrimônio cultural (histórico-imaterial) português, com maior razão haveria de, nas mesmas circunstâncias, persistir a Casa Real Lusa.”

isto é irrelevante para caracterizar como “independência” o que, juridicamente, não o foi. Como todos sabem, D. Pedro I, abdicando da Coroa brasileira, foi para Portugal, onde derrotou seu irmão D. Miguel, que havia usurpado o trono que aguardava a maioridade da filha lusitana de nosso Imperador. Irmão este, aliás, que com certa frequência autores colocaram a paternidade em dúvida, atribuindo-a não a D. João VI, mas ao Marquês de Marialva, pretendendo fosse mais um dos filhos extra-casamento de D. Carlota Joaquina, que se diz teria ela havido após o primogênito. Consequência da derrota de D. Miguel, foi a lei de 1834 que o baniu do território português e a todos seus descendentes, proibindo retorno sob pena de morte, e excluindo-o e à sua linhagem da sucessão na Coroa. Ninguém tinha dúvidas que a Chefia daquela Casa Real jamais poderia vir a ser ocupada por alguém do “ramo miguelista”, posto que seu patriarca havia sido privado, inclusive, do título de Infante (príncipe), a ele se referindo a lei de 1834 como “ex-Infante”! Seguiu a sucessão normalmente pela linha legítima, a de D. Pedro I (lá D. Pedro IV). O problema surgiu quando, em 1910, foram assassinados o rei D. Carlos I, e seu herdeiro imediato. Assumiu seu filho mais novo, D. Carlos II, que reinou até 1912, quando deposto pelos republicanos, e, exilado, morreu sem descendência. Aparentemente, criou-se um impasse, pois não haveriam sucessores, se não se fossem eles procurados na “linha miguelista”, e os daquela estavam, por expressa disposição legal, impedidos de suceder. Este impasse, contudo, era apenas aparente, eis que o falecido D. Carlos II tinha uma irmã paterna, Dª. Maria Pia Sax-Coburgo de Bragança, havida fora do casamento por D. Carlos I, mas por ele reconhecida em documento assinado como filha e infanta, com todos os privilégios inerentes. Fez D. Carlos batizá-la na Espanha, onde viveu sob a proteção do Rei D. Afonso XIII. 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


“Vale acrescentar que, a rigor, o Brasil não teve independência, mas secessão. Quando do Grito do Ipiranga, de há muito não éramos colônia (portanto, “dependentes”), mas “ReiNO Unido de Portugal, Algarves e Brasil”

De início, guardou Dª. Maria Pia atitude discreta, mas não se conteve quando viu seu povo subjugado pela ditadura salazarista, abertamente simpatizante do Eixo na II Guerra, sendo a de jure herdeira bragantina antifascista notória. Esta circunstância fez com que Dª. Maria Pia viesse à público como legítima sucessora de D. Carlos II, e se colocasse em aberta oposição a Salazar, fato que, inclusive, anos mais tarde iria render-lhe prisão política quando em território português onde havia legalmente ingressado para render homenagem à memória de seu pai. Mas, o que importa, é que Salazar retaliou, fazendo aprovar e promulgando a Lei nº 2040 de 27.05.1950, dizendo que “São revogadas a Carta de Lei de 19 de Dezembro de 1834 e o Decreto de 1910 sobre banimento e prescrição”. O decreto de 1910, expedido com a força de lei conforme o direito da época revolucionária, estendera o banimento a todos os ramos da Família Real, e apenas substituíra a pena de morte. Tacitamente revogara a lei de 1834, o que acontece quando lei nova dispõe integralmente sobre assunto tratado em lei anterior. Não havia necessidade, pois, de se mencionar expressamente a de 1834. Ao fazê-lo, pretendeu-se, como desejava o ditador, reconduzir à sucessão na histórica Casa Real a “linha miguelista”, cujo dito pretendente lhe era politicamente simpático, e afastar a adversária, então em aberta aliança com o oposicionista General Humberto Delgado, que se exilara no Brasil. Era, à época, Dª Maria Pia a principal responsável pelo apoio logístico às andanças de Delgado pela Europa em suas articulações com outros resistentes democratas. O expediente legislativo de que se valeu Salazar é inócuo para fins de sucessão real, seja porque a revogação de uma lei opera efeitos ex-nunc, e não ex-tunc, não atingindo os direitos adquiridos na vigência da revogada, seja porque obviamente 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

não tem o Estado republicano poderes para legislar sobre matéria interna corporis da Casa Real que ele mesmo depôs e baniu. As controvérsias no seio daquela só podem ser resolvidas à luz do Direito Nobiliárquico, portanto da legislação anterior, que a República, por haver revogado, não tem como aplicar. Daí decorre que, hoje, existe uma Casa Real Histórica legítima, e uma ilegítima. A primeira, chefiada por D. Rosário I, sucessor de Dª Maria Pia, e, a segunda, por D. Duarte II, primogênito dos descendentes de D. Miguel. A Constituição brasileira dispõe, em seu art. 216, que “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira...” Sendo a legítima (e apenas ela) Real Casa Portuguesa patrimônio histórico-cultural do Brasil, tanto como de Portugal, é dever legal do Poder Público exteriorizar posicionamento de forma a que os brasileiros não se deixem confundir. À propósito, vale observar que Dª. Maria Pia era, embora nascida em Portugal, filha de mãe brasileira, Dª. Maria Amélia Loredo, natural de Cavetá, no Pará, conforme se vê de sua certidão de batismo, o que mais ainda caracteriza como luso-brasileira a origem da autêntica Família Real. Não se pretende um reconhecimento diplomático, que, certamente causaria embaraços às relações entre os dois países, mas isto pode ser feito oficiosamente, mediante convênios com as entidades de cultura e assistência social que aquela patrocina, como, por exemplo, a “Cruz Azul”. É o que deve ser considerado a bem da memória da época em que Brasil e Portugal formavam, em igualdade de condições, um único país.


A POUCOS PASSOS DE UM NOVO TEMPO Manoel Carpena Amorim

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Foto: Arquivo

Corregedor-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Presidente da ANDES – Associação Nacional de Desembargadores

recém-criada ANDES – Associação Nacional de Desembargadores, é uma sociedade civil, sem fins lucrativos ou prazo determinado, que nasceu para assegurar as prerrogativas, garantias e direitos constitucionais dos Magistrados de segunda instância do Poder Judiciário. Tem como parte de seu escopo, dentre outros fins, o objetivo maior de defender o Estado Democrático de Direito e é com esta visão, e no legítimo interesse de somar, que a Associação já alcança conquistas. Nesta última quarta-feira, 07 de junho de 2006, em uma expressiva e quase unânime vitória, foi aprovado, no âmbito da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, um importante pleito: a elevação da aposentadoria compulsória do funcionalismo público para os 75 anos, consolidando o parecer favorável à PEC- Proposta de Emenda Constitucional 457-A/05, de autoria do Exmo. Sr. Deputado Federal João Castelo (PSDB-MA).

O mérito de tal decisão se tornou foco de profunda discussão a respeito de questões relacionadas com o aumento da expectativa e da qualidade de vida do trabalhador em geral, e trouxe à baila diferentes posições sobre a questão da extensão da capacidade laborativa do ser humano chegando, num primeiro momento, a dividir opiniões. A posição favorável da ANDES, entretanto, ganhou força e se laureou nesta conquista, firmada no conhecimento de que indicadores demográficos e estudos recentes sobre longevidade e mercado de trabalho revelam que a população com idade superior a setenta anos tem crescido no pleno vigor de sua capacidade intelectual, o que faz da extensão da compulsória para os 75 anos uma necessária adequação do texto constitucional à realidade social, corroborada na lembrança de que o limite de 70 anos foi estabelecido na Constituição Federal de 1946, sendo hora, portanto, de considerarmos a significativa mudança social ocorrida nos últimos 60 anos, e validarmos o papel do Direito, que é, também, o de mapear a evolução social, conduzindo-nos, com segurança e sob a égide da lei, pelos novos tempos. A ANDES entende ser de grande valia, para a sociedade em geral, permitir que cientistas brasileiros, com idade superior a 70 anos, e agora desobrigados de migrarem para a iniciativa privada no intuito de se manterem em atividade, continuem a servir a seu país por seu conhecimento e experiência, permanecendo no sistema público de ensino e pesquisa, e vindo a corrigir, pouco a pouco, uma injustiça social que colocava à margem de sua sabedoria grande parte da população brasileira que, desprivilegiada financeiramente, não conseguia o acesso às instituições privadas, restando prejudicada na garantia de um ensino de qualidade. A decisão aprovada se faz ainda bem vinda no que colabora com o equilíbrio das contas da Previdência Social por facultar, aos que se sentem em condições de continuar a trabalhar, a continuidade de contribuição para a Administração Pública, para a sociedade e para o país, com o mérito de entender e valorizar que o trabalho do cidadão, além do cunho remuneratório, representa também grande parte da realização humana e importante fonte de promoção do bem comum. Neste sentido, comemorando esta primeira grande vitória, a ANDES ratifica os ideais de Justiça e Cidadania que lhe são intrínsecos, e reafirma que se mantém atenta e vigilante, fortemente comprometida com a defesa do que entende ser a evolução natural e necessária a qual faz jus toda a sociedade. “ANDES - pelos Legítimos Interesses do 2º grau de Jurisdição”. 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


Superior Tribunal de Justiça RECURSO ESPECIAL Nº 824.518 RJ (2006/0041921-4) RELATOR : MINISTRO FRANCISCO FALCÃO RECORRENTE : VIAÇÃO DEDO DE DEUS LTDA RECORRIDO : MUNICÍPIO DE TERESÓPOLIS EMENTA PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. APELAÇÃO. TRANSPORTE PÚBLICO. GRATUIDADE AOS IDOSOS. FONTE DE CUSTEIO. NECESSIDADE. OMISSÃO EM RELAÇÃO À DISPOSIÇÃO DE LEI COMPLEMENTAR MUNICIPAL. EMBARGOS DECLARATÓRIOS. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535 DO CPC CARACTERIZADA. PREJUDICADAS AS DEMAIS QUESTÕES. I - O acórdão recorrido, proferido em autos de apelação em mandado de segurança no qual se discutia a necessidade de fonte de custeio para a gratuidade de transporte coletivo para os idosos, deixou de abordar, embora ventilado em sede de embargos declaratórios também, o tema relacionado à previsão disposta na Lei Complementar Municipal nº 09/99, relevante ao deslinde da controvérsia. II - Caracterizada, assim, a afronta ao artigo 535 do Código de Processo Civil, prejudicadas as demais questões abordadas no presente apelo, deve o feito retornar ao Tribunal de origem para análise da referida questão. III - Recurso provido. ACÓRDÃO Vistos e relatados os autos em que são partes as acima indicadas, decide a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, na forma do relatório e notas taquigráficas constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Os Srs. Ministros LUIZ FUX, TEORI ALBINO ZAVASCKI, DENISE ARRUDA e JOSÉ DELGADO votaram com o Sr. Ministro Relator. Custas, como de lei. Brasília(DF), 09 de maio de 2006 (data do julgamento). MINISTRO FRANCISCO FALCÃO Relator RELATÓRIO O EXMO. SR. MINISTRO FRANCISCO FALCÃO: Trata-se de recurso especial interposto pela VIAÇÃO DEDO DE DEUS LTDA, com fundamento no artigo 105, inciso III, alíneas “a” e “c”, da Constituição Federal, visando reformar decisão assim ementada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: “MANDADO DE SEGURANÇA . Gratuidade de transporte coletivo concedida ao idoso maior de 60 anos. Norma legal que não condiciona o benefício à respectiva fonte de custeio. Descabimento em ação mandamental de tese relativa à suposta quebra da comutatividade contratual, cujo argumento exige dilação probatória. No contrato administrativo, a modificação unilateral pela Administração, fundada em interesse público, não configura inobservância ao princípio do ato jurídico perfeito e acabado. Improcedência do pedido. Recurso desprovido” (fl. 222). Opostos embargos declaratórios, restaram esses rejeitados (fl. 236). Sustenta a recorrente, inicialmente, afronta ao artigo 535 do Código de Processo Civil, em razão de não terem sido examinadas as questões por ela invocadas, principalmente no que diz respeito à apreciação dos artigos 9º, § 3º, e 15, da Lei Municipal Complementar nº 09/90, invocando precedentes jurisprudenciais em apoio à sua tese. Também alega violação ao artigo 58 da Lei nº 8.666/93, no que teria sido ferido de morte o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, e que sua verificação dispensaria dilação probatória, ao contrário do entendimento preconizado pelo acórdão recorrido. Afirma, ainda, afronta ao artigo 6º da LICC, pois o Decreto nº 3.111/04 editado pelo Prefeito de Teresópolis concedendo gratuidade nos transportes coletivos urbanos aos idosos, desrespeitou o instituto do ato jurídico perfeito, na medida 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006


Foto: Jorge Campos Ministro Francisco Falcão

“Há violação ao art. 535 do CPC, no entanto, quando o órgão julgador, instado a emitir pronunciamento acerca dos pontos tidos como omissos, contraditórios ou obscuros e relevantes ao desate da causa, não enfrenta a questão oportunamente suscitada pela parte.”

em que alterou contrato de permissão anteriormente assinado, trazendo, a título de comprovação da alegada divergência, acórdão prolatado por este eg. Superior Tribunal de Justiça nos autos do Agravo Regimental na Suspensão de Segurança nº 1.404/DF. É o relatório. RECURSO ESPECIAL Nº 824.518 - RJ (2006/ 0041921-4) VOTO O EXMO. SR. MINISTRO FRANCISCO FALCÃO (RELATOR): De início, cumpre analisar a alegada violação ao artigo 535 do Código de Processo Civil, em razão de possível omissão na análise de questão devidamente invocada pela parte. É certo que o julgador não está obrigado a discorrer sobre todos os regramentos legais ou todos os argumentos alavancados pelas partes, podendo fundamentar o seu proceder de acordo com o seu livre convencimento, baseado nos aspectos pertinentes à hipótese sub judice. Há violação ao art. 535 do CPC, no entanto, quando o órgão 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35


“Verifica-se dos autos que foi prequestionada essa matéria, no sentido de que o art. 15 da Lei Complementar Municipal exigia essa fonte de custeio como premissa do equilíbrio econômicofinanceiro.” julgador, instado a emitir pronunciamento acerca dos pontos tidos como omissos, contraditórios ou obscuros e relevantes ao desate da causa, não enfrenta a questão oportunamente suscitada pela parte. No presente caso, restou assim decidido: “Quando a Lei Municipal nº 1882/98 de Teresópolis estabeleceu a gratuidade para os idosos, em seu art. 25, não a condicionou à criação da respectiva fonte de custeio. É bem verdade que o art. 13 do mesmo diploma legal edilício prescreve, que as ações da política municipal do idoso serão financiadas por Fundo Municipal de Assistência Social. Referida disposição, todavia, remete ao art. 17, da Lei Municipal nº 1662/95, o qual, em seus incisos, não faz qualquer referência, na aplicação dos recursos, de custeio da gratuidade impugnada. Isto que dizer que a Lei Municipal nº 1882/98, de forma alguma, condicionou a concessão do benefício à existência de fonte de custeio, que tem de ser suportada pela permissionária. Note-se que a gratuidade dos transportes coletivos aos maiores de 65 anos é assegurada pela Constituição Federal (art. 230, § 2º)” (fl. 223). Ora, a despeito de ter sido discutida a gratuidade de transporte coletivo aos idosos frente à desnecessidade de fonte de custeio, baseou-se o aresto nos dispositivos da Lei Municipal nº 1882/98 que não condicionaria a concessão do benefício à existência de tal fonte, olvidando-se, no entanto a Corte Estadual, em deliberar acerca de ponto relevante, devidamente invocado nas razões de apelação da empresa ora recorrente (fl. 140/1), e posteriormente nos embargos declaratórios (fl. 226), qual seja, a existência da Lei Complementar nº 09/99, que em seu artigo 15 dispõe: “Art. 15. A concessão de gratuidade e o seu exercício, em serviço público, prestado de forma indireta, ficam subordinados a seu automático e imediato custeio, preservando, desse modo, o equilíbrio econômicofinanceiro do contrato.” Ao julgar os embargos, limitou-se o Tribunal a quo a 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

rejeitá-los sob a singela e inusitada fundamentação de que o prequestionamento de matérias para fins de eventual interposição de recursos não poderia dar-se em sede de declaratórios (fl. 237). Dessa forma, tendo a recorrente interposto o presente apelo com base em afronta ao artigo 535 do Código de Processo Civil e, considerando-se a relevância da questão suscitada, entendo necessário seu debate pela instância a quo, prejudicada a discussão no que diz respeito aos demais inconformismos no presente apelo. Em hipóteses semelhantes já deliberou este eg. Superior Tribunal de Justiça: “CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ACIDENTE DE TRABALHO. INDENIZAÇÃO MENSAL. ADEQUAÇÃO AO VENCIMENTO. INFRINGÊNCIA AO ART. 535, CPC. ALEGAÇÃO DE CONTRADIÇÃO E OMISSÃO NO DECISUM RECORRIDO. OCORRÊNCIA. 1. Em sede de embargos de declaração, se o Tribunal a quo, instado a se manifestar sobre aspecto relevante da questão sub judice, queda omisso quanto à apreciação da quaestio iuris, afronta o disposto no artigo 535, II, do CPC. (...) 3. Recurso conhecido” (REsp nº 678703/ES, Rel. Min. JORGE SCARTEZZINI, DJ de 10.04.2006, p. 205). “PROCESSUAL CIVIL. PEDIDO DE DESISTÊNCIA. HONORÁRIOS. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. ART. 535 DO CPC. RETORNO DOS AUTOS AO TRIBUNAL DE ORIGEM. 1. De acordo com o estatuído no art. 535 do Código de Processo Civil, são cabíveis embargos de declaração nas hipóteses de obscuridade, contradição ou omissão da decisão atacada. 2. O Tribunal de origem não teceu considerações sobre matéria objeto dos embargos de declaração, cuja apreciação possui relevância para o deslinde da controvérsia. Desta forma, forçoso reconhecer a existência de omissão quanto à questão e, em conseqüência, a violação ao art. 535 do CPC. 3. Recurso especial a que se dá provimento” (REsp nº 739252/PB, Rel Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ de 03.04.2006, p. 258). Em razão do exposto, dou PROVIMENTO ao presente recurso especial, no sentido de se determinar o retorno dos autos ao Tribunal de origem para que, em sede de embargos declaratórios, se manifeste sobre a aplicação do artigo 15 da Lei Complementar 09/99. É o voto. RECURSO ESPECIAL Nº 824.518 - RJ (2006/ 0041921-4) VOTO-MÉRITO O EXMO. SR. MINISTRO LUIZ FUX: Sr. Presidente, muito embora a questão de mérito gravite em torno do § 2º, que, efetivamente, não é uma norma programática, essa regra constitucional tem normatividade suficiente,


Foto: Jorge Campos Ministro Luiz Fux

no sentido de que aos maiores de 65 anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos. O próprio Tribunal Federal, enfrentando a questão, admite que a pessoa jurídica possa demonstrar a inviabilidade dessa concessão sem a previsão da fonte de custeio. É quase cristalina essa necessidade de se manter a regra básica da concessão, que é o equilíbrio tarifário, que é a contraposição da supremacia do poder público. Essa questão de mérito, que parece simples, não consegue ser sindicada porquanto essa questão formal precedente foi realmente abandonada pelo acórdão recorrido, como o Sr. Ministro Francisco Falcão destacou. Verifica-se dos autos que foi prequestionada essa matéria,

no sentido de que o art. 15 da Lei Complementar Municipal exigia essa fonte de custeio como premissa do equilíbrio econômico-financeiro. Sem prejuízo, não sei como o acórdão recorrido conseguiu chegar à conclusão de afirmar que inexiste no ordenamento jurídico municipal norma que imponha ao poder público o dever de suportar os ônus do benefício. O tribunal recorrido não analisou essa questão e afirmou que inexiste uma norma municipal, quando não só existia, como também fora prequestionada. Então, a violação ao art. 535 é absolutamente manifesta. Acolho integramente a sugestão de voto do Sr. MinistroRelator, dando provimento ao recurso especial. 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


Risco e Custo Brasil Jerson Kelman

Foto: Martim D’avila

Diretor-Geral da Agência Nacional de Energia Elétrica

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maioria dos empresários busca investir em países com baixo risco regulatório, mas há os que preferem situações de risco. Só que esses exigem uma maior Taxa Interna de Retorno – TIR para remuneração do capital. No leilão de energia nova, realizado em dezembro de 2005, muitos investidores declararam que só se interessariam em arrematar potenciais hidráulicos e respectivos contratos de venda de energia, pelo prazo de 30 anos, se lograssem uma TIR de pelo menos 15%. No entanto, esses mesmos investidores se contentariam com uma TIR no Chile de 8%. A impressionante discrepância entre os dois valores decorre da diferença de percepção de risco nos dois países. Devido a essa diferença, os consumidores de eletricidade chilenos pagam pela energia gerada por hidroelétrica, com contrato de 30 anos, cerca de 70% do que corresponderia aos consumidores brasileiros.

que na esfera administrativa são terminais, com absoluta independência, procurando equilibrar o interesse do Governo, dos consumidores e das empresas prestadoras de serviço. A neutralidade e a capacitação da ANEEL constituem condição necessária, mas não suficiente, para que os investidores vejam o Brasil como um país de baixo risco regulatório. Todavia, há que se reconhecer que contribui para a percepção de risco a preocupante falta de autonomia administrativa da Agência, tanto no que diz respeito à execução orçamentária quanto à política de pessoal. Trata-se de deficiência na esfera administrativa que constitui grave ameaça à independência decisória. Por enquanto, trata-se apenas de uma ameaça. No entanto, ainda que a independência decisória da ANEEL fosse assegurada, não seria possível afastar completamente o risco regulatório porque esse risco é influenciado também,

“A neutralidade e a capacitação da ANEEL constituem condição necessária, mas não suficiente, para que os investidores vejam o Brasil como um país de baixo risco regulatório.”

Uma agência reguladora de serviços públicos deve contribuir para a diminuição da percepção de risco calculando tarifas em estrita observância aos aspectos técnicos e ao disposto nos contratos, sem ceder aos interesses de curto prazo do Governo, quando o benefício imediato for suplantado pelo prejuízo de médio e longo prazos. Por exemplo, um congelamento de tarifas para conter a inflação, como ocorre atualmente na Argentina. Tampouco deve ceder aos pleitos de entidades de defesa do interesse do consumidor, quando esses pleitos resultarem na interrupção de investimentos indispensáveis para a continuidade na prestação do serviço. E muito menos ser dócil aos interesses das empresas concessionárias, em detrimento dos consumidores, o que configuraria a captura do regulador pelo regulado. A diretoria colegiada da Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL tem tomado complexas decisões técnicas,

e principalmente, por decisões judiciais. Por exemplo, a ANEEL, no exercício de sua competência, fixa anualmente os índices de qualidade do serviço de energia elétrica para cada distribuidora e aplica elevadas multas por eventuais descumprimentos. Naturalmente, as tarifas devem ser compatíveis com os referidos índices. Serviço totalmente seguro, além de não existir em nenhum lugar do mundo, exigiria tarifa extremamente elevada. Ocorre que alguns Juizados Especiais, em municípios do Estado do Rio de Janeiro vêm condenando a distribuidora local ao pagamento de danos morais pela falta de energia elétrica. Referidas decisões, como se sabe, estão sujeitas, em regra, à revisão pelas Turmas Recursais. Ou seja, não são em geral avaliadas pelos Tribunais Superiores. A concessionária enfrenta o paradoxo de não recorrer e estimular o aumento de demandas judiciais ou de recorrer, pagando R$ 700,00 de custas de recurso, que é valor às vezes maior que a própria 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39


Foto: Martim D’avila

“Serviço totalmente seguro, além de não existir em nenhum lugar do mundo, exigiria tarifa extremamente elevada.”

indenização. Embora o valor da condenação individual pareça pouco expressivo, trata-se de uma “bola de neve” cujo montante, somando todas as indenizações e/ou custas do recurso, pode suplantar o ganho da concessionária, levando-a, no limite, a abandonar a concessão. Ou, antes 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

disso, a reinvidicar uma revisão tarifária extraordinária, a que tem direito por Lei para assegurar o equilíbrio econômicofinanceiro. A rigor, a simples proposição de uma ação junto ao Judiciário já costuma causar conseqüências em termos de percepção de risco. Tome-se como exemplo a ação de improbidade administrativa recentemente proposta pelo Ministério Público Federal contra o presidente e o diretor de licenciamento do IBAMA. A motivação foi a licença ambiental prévia para as obras do chamado projeto de transposição do rio São Francisco, que foi emitida em suposto desacordo com ressalvas constantes de relatórios técnicos de funcionários do próprio órgão ambiental. Em todo o mundo, discussões sobre transferências de água entre bacias hidrográficas sempre despertam discussões técnicas e paixões políticas. Recentemente, o Governo dos EUA teve que arbitrar um conflito entre governos estaduais que divergiam sobre o uso da água transposta do rio Colorado para o Oeste americano. Sem a transposição, a maior parte da colonização da Califórnia, incluindo a cidade de Los Angeles, simplesmente não teria sido viável. No Brasil não é diferente. As regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo também não teriam água para abastecer suas populações sem as transposições de águas dos rios Paraíba do Sul e Piracicaba, respectivamente. O Ministério Público tem a obrigação de zelar pelos interesses difusos da sociedade. O difícil é identificar esses interesses. São os defendidos pelos que compareceram às audiências públicas para licenciamento da transposição do São Francisco? Ou os interesses da população do nordeste setentrional que não tem garantia de água para beber e produzir? A maioria dos membros do Ministério Público privilegia corretamente, entre tantos interesses difusos, aqueles que são mais abrangentes e que afetam a vida dos mais humildes. Não há quem discorde da tese que no regime democrático cabe ao governo eleito a decisão sobre temas polêmicos, quando a unanimidade é impossível de ser alcançada. Porém, sempre há a ocorrência de iniciativas bem intencionadas, mas que paralisam o processo democrático, possivelmente porque seus autores temem que o governo eleito não tenha o tirocínio para decidir em benefício do interesse da maioria, respeitados os direitos básicos das minorias. E isso, no âmago, não é democrático. O efeito perverso e certamente não desejado pelos autores desse tipo de ação é a dificuldade de convencer um profissional capaz e honesto a aceitar cargo de direção na administração pública se, pelo efeito de alguma decisão sobre tema complexo, sem qualquer evidência de que a decisão tenha sido viciada por interesses subalternos, estiver sujeito à suspeição sobre sua probidade. Uma pessoa séria e avessa a risco que permanecer na atividade pública terá a tendência de protelar decisões difíceis. E isso significa diminuição de eficácia governamental e, portanto, aumento do custo Brasil.


Democracia em risco J.R.Faria Lima

Foto: Arquivo

Economista

“Mentem de corpo e alma...”.

Affonso Romano de Sant Anna

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quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa é mais uma evidência de que o grupo que ocupou o governo acredita que o Estado brasileiro lhe pertence. Agindo de forma autoritária acionou o aparato estatal para constranger um cidadão que, segundo lideranças do PT, colocava em risco a figura do ministro Antonio Palocci. Quebraram criminosamente não somente o sigilo da conta na Caixa Econômica do “Nildo” bem como de seu suposto pai. Agrediram a Constituição e cada brasileiro consciente se sente atingido pela atitude das altas autoridades do governo. Declarações de parlamentares do PT demonstram que não atentaram para a extrema gravidade do fato. “Guerra é guerra” foi a manifestação de um assessor ministerial. Uma senadora chegou a dizer que sigilos são quebrados em restaurantes quando se esquecem extratos bancários à mesa. Ficou faltando apenas o repeteco da despudorada dança da “pizza”. Como que anestesiados, vivendo num mundo virtual e não na realidade do nosso dia a dia, justificam tudo pelo fim a

ser alcançado. Qual seria esse nobre fim? O Brasil repudia essa estratégia de ação. Nada justifica certas atitudes e ações. O que ocorreu é crime e grave, ou vocês acham que nossos sigilos bancários podem ficar passeando do banco para o restaurante, do restaurante para a casa do ministro, da casa do ministro para um jornalista, do jornalista ao editor da revista e da revista ao público? A nação exige punição aos culpados e não elogios a quem cometeu ou mandou cometer este desatino. As notícias dos últimos dias realçam, também, a quebra de sigilos por parte da Receita Federal. Dentre os atingidos por essa infâmia está nada mais, nada menos, que o antigo dirigente do órgão, o sr. Everardo Maciel que especula ter sido um antigo funcionário por ele demitido o responsável pelo vazamento. Que garantia tem o cidadão comum de que suas declarações enviadas pela internet estariam a salvo de vazamento? O sr. Ailton Silva, vice-presidente do site www.politicus.org.br descobriu que a própria Receita vazou o endereço eletrônico por ele fornecido quando do envio de sua declaração, sua caixa postal passou a ser invadida por spans de todo tipo. Pergunto, que certeza temos de que realmente a declaração que enviamos é a que será considerada pela receita? A fragilidade técnica é evidente. Por cem reais se comprava na Rua Santa Efigênia cd’s com dados cadastrais de contribuintes. A tal “Poupança Fraterna”, projeto de lei apresentado por deputado petista, ainda não está em vigor, mas o controle e patrulhamento sobre os gastos que as pessoas fazem dos seus dinheiros, este sim, já está em pleno funcionamento. A Receita Federal “pede” e as operadoras de cartões de crédito repassam, sem que tenhamos conhecimento ou dado qualquer autorização, as movimentações que fizermos com cartões de crédito. Isto é legal? Não importa; o que importa é que eles querem e mandam. O super computador da Receita já está funcionando e impingindo um controle total em todos os brasileiros que possuem um CIC. Quero finalizar voltando ao lastimável episódio do caseiro Nildo. Francenildo pediu para que quebrassem seu sigilo eleitoral, numa alusão ao seu voto em Lula. Mal sabia ele que esta simples frase colocou em polvorosa os responsáveis pelo sistema de votação do TSE. Mas muito pior é a desconfiança e perplexidade que atinge a cada um de nós. Afinal, em lugar nenhum do mundo é quebrado o sigilo do voto. Será que no Brasil com as famosas urnas eletrônicas podemos garantir que o sigilo seja mantido? O pesadelo previsto por Eric Marie Blair (pseudônimo George Orwell), em seu famoso livro “1984”, está chegando ao Brasil com alguns anos de atraso. Agora implementado pelo governo petista. 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


RESERVA DE VAGAS NO ENSINO PÚBLICO BRASILEIRO Cláudio de Mello Tavares Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

“É preciso enfatizar que a correção das desigualdades é possível, mas para isso é necessário que façamos o que está a nosso alcance, o que está previsto na Constituição Federal (...)”

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epois de muitas articulações na Câmara dos Deputados, anuncia-se agora a votação do projeto de Lei 73/99, que implementa o sistema de reserva de vagas no ensino público brasileiro. O tema, em si polêmico, concentra o debate em torno de dois pontos ou argumentos principais: o primeiro, fundado na idéia de que a inovação proposta importa em privilégio incompatível com o princípio republicano da igualdade. E privilegiar, como dizem os seus opositores mais intolerantes, significa tratar com regalias excepcionais, pessoas já muitas vezes contempladas na área privada, ou através de benesses do próprio Poder Público, inserindo no ensino superior minorias beneficiárias de uma política injustificadamente protecionista. Tal linha de argumentação, todavia, não resiste a maior exame, porquanto o Projeto de Lei 73/99 visa apenas transformar em política nacional os legítimos anseios da sociedade brasileira, no sentido de construir uma universidade mais democrática, por isso mesmo que acessível a maior número dos excluídos sociais, e capaz de resgatar jovens de classes, raças, ideologias, crenças religiosas e outros confinamentos econômicos e sociais, preparando-os para o mercado de trabalho e o  pleno exercício da cidadania.

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Esse, aliás, é um dos mais nobres objetivos na Nova República, inaugurada, ou preconizada pela festejada Constituição de 1988. Sob tal inspiração, o Projeto pode se transformar em instrumento valioso no esforço de superação do problema do “não cidadão”, daquele que não participa política e democraticamente dos bens sociais, como lhes assegura a letra da Carta Magna. E isso ocorre exatamente por falta de oportunidade e de meios efetivos para se igualar com os demais. Por isso, é mister lembrar que cidadania não combina com desigualdades, república não combina com preconceito e democracia não combina com discriminação. Em verdade, a política de reserva de vagas no ensino superior atende, neste particular, ao objetivo fundamental da própria República, da nação brasileira. Objetivo que consiste em promover a justiça social e alcançar uma sociedade solidária, facultando-se o acesso aos bens públicos, sobretudo para os que mais necessitam dessa almejada igualação. Ainda que, para tanto, o Estado tenha que redistribuir oportunidade, recursos, bens e direitos de modo desigual com a finalidade de possibilitar entre os cidadãos uma distribuição paritária e mais justa de seus benefícios sociais.


O segundo argumento está em se pré-questionar, desde logo, a constitucionalidade do Projeto. Ora, isso seria o mesmo que afirmar que o controle preventivo de constitucionalidade exercido no processo político de elaboração das leis, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, é ilegítimo, ou inútil. Além do que, no sistema jurídico brasileiro, é o Supremo Tribunal Federal que decide sobre a constitucionalidade, ou não, das normas legais em vigor. Decisão esta que tem efeito vinculante, geral e obrigatório.  Enquanto essa manifestação do STF não ocorre, todas as normas gozam da presunção de constitucionalidade. Portanto, a aprovação do Projeto de Lei 73/99 manifestada nas Comissões Temáticas e na Comissão de Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados já o reveste de constitucionalidade prévia para refutar os posicionamentos mais conservadores, e subsidiar a decisão final do STF com a força  constitucional que se traduz também na necessidade de implementação de políticas de diversidade e diferenças no acesso ao ensino superior, como forma de se chegar mais próximo da igualdade constitucional.

Assim, o preceito constante do art.5o. da CF/88 não difere dos contidos nos incisos I, III e IV, do art.206 da mesma Carta Política. Pensar-se o inverso é prender-se a uma exegese cega, meramente formal, ou seja, a uma exegese de igualação dita estática, negativa, na contramão com a eficaz dinâmica, apontada pelo Constituinte de 1988 ao traçar os objetivos fundamentais da República Brasileira. Neste cenário político-institucional, não seria efetivamente democrática a leitura sem profundidade e preconceituosa da Constituição, nem seria cidadão o leitor que não lhe buscasse o verdadeiro sentido, apregoando o discurso fácil dos bens posicionados, ou superiormente posicionados, quase sempre pelas mãos calejadas dos discriminados. É preciso enfatizar que a correção das desigualdades é possível, mas para isso é necessário que façamos o que está a nosso alcance, o que está previsto na Constituição Federal, pois somente construiremos uma sociedade livre, justa e solidária, quando conseguirmos uma igualdade escolar entre brancos e negros, resgatando essa parcela significativa dos que ainda se desesperam por vencer as dificuldades criadas pelo preconceito e pela incompreensão da própria sociedade brasileira. 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


No direito trabalhista espelhou-se o novo processo de execução Antônio Vanderler de Lima Advogado

Foto: Arquivo

S

“A possibilidade de executar quantia certa nos mesmos autos que reconheceu o direito, é expungir a vantagem de tempo dada aos maus pagadores, cujo lema, comumente se ouve nos dias atuais : “ devo não nego, pago quando puder”

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ignificativas alterações ocorreram no ordenamento processual civil desde 1994, sendo certo que foram promulgadas no decorrer deste tempo cinco leis que mudaram a roupagem do Código de Processo Civil e que deram alicerce a chamada “Reforma do Judiciário”. Analisando as recentes mudanças, destacamos a louvável a aprovação da Lei 11.232 de 22/12/2005 que elimina a abertura de um separado processo de execução para a efetiva entrega da prestação jurisdicional. Com o advento da nova lei, publicada no DOU em 23/dez/2005 e, conforme seu artigo 8º, haverá vacatio legis de seis meses, contados de sua publicação, as sentenças que impuserem o cumprimento de obrigação de pagar quantia certa, passarão a dispensar a instauração de um novo processo para execução amigável ou forçada do patrimônio do devedor, promovendo-se a cobrança dos valores nos próprios autos da ação que reconheceu o direito invocado. Tal medida, por certo retirará a burocracia do processo que tem por única finalidade atingir a satisfação efetiva do direito acolhido. Para o credor, que antes sofria com as delongas oriundas da instauração de um novo processo para fazer valer a sentença, será beneficiado com o pagamento da dívida em 15 dias, sob pena de multa de 10% ( dez por cento) por parte do executado e sem que haja a necessidade de se fazer qualquer requerimento em juízo. Não havendo pagamento espontâneo, procedem-se logo à penhora e avaliação dos bens do devedor, que poderão ser escolhidos pelo próprio credor, retirando toda a oportunidade do executado arrolar bens para garantia da execução, assegurando-se, assim, que o credor opte pelo patrimônio do devedor que tenha efetivamente valor de mercado ou até por penhora em dinheiro. Para o bom devedor, é certo dizer que, por esse procedimento, ele se desincumbirá do ônus imposto de forma rápida e célere sem que venha a sofrer com a incidência de pesadas atualizações e juros decorrentes da mora gerada pelo obtuso procedimento vigente. É oportuno, todavia, ressaltar essa medida é há muito vivenciada na Justiça do Trabalho desde a vigência da CLT promulgada em 1943, que, por seu procedimento simplista, sempre premiou o obreiro injustiçado com o recebimento


célere de seus direitos de caráter alimentar pelos seus empregadores. O objetivo da lei é portanto desatar os nós que encontramos atualmente no processo de execução regido pelo Código de Processo Civil. A possibilidade de executar quantia certa nos mesmos autos que reconheceu o direito, é expungir a vantagem de tempo dada aos maus pagadores, cujo lema, comumente se ouve nos dias atuais : “ devo não nego, pago quando puder” ou ainda, “ ganha, mas não leva, é”. A CLT reprimiu energicamente tal prática, com uma execução imediata da sentença nos próprios autos que reconheceu o direito do demandante. Ademais, em muitos casos, verificamos sentenças líquidas, prontas para execução, por força do festejado rito sumaríssimo ( Lei 9.957/00) imposta às demandas com valor da causa inferior ou igual a 40 salários mínimos. Por outro lado, as sentenças serão facilmente executadas e convertidas em expressão monetária, se realizada nos próprios autos da ação, sem necessidade de trasladar peças ou consultar documentos importantes à instrução do procedimento. A execução no mesmo processo ajudará o credor a “correr contra o tempo”, principalmente quando se sabe da situação econômica do devedor, que, muitas vezes, se encontra na iminência de falir ou tenta ardilosamente fraudar a execução, como, por exemplo, na transferência de seus bens a terceiros. Tal situação se agrava, quando nos deparamos com o ultrapassado - mas ainda atual - procedimento de execução, pois o devedor, já ciente de sua condenação, procura, neste indigesto interregno de tempo dado entre um processo principal e o de execução, criar mazelas para obstaculizar a efetiva satisfação do débito. Aliando-se a referida lei ao procedimento, já implantado, da penhora on line dos numerários existentes nas contascorrente, aplicações e conta-poupança de titularidade dos devedores, podemos afirmar que chegamos ao fim da burocratização dos atos processuais em fase de execução, mantendo-se incólume o princípio constitucional do devido processo legal, mas rechaçando firmemente, pela doutrina moderna e pelo próprio Supremo Tribunal Federal, o chamado princípio processual da menor onerosidade para o devedor na execução. No que se refere a vacatio legis da Lei 1.232, de 22 de dezembro de 2005, sabe-se que essa lei foi publicada no Diário Oficial no dia 22 de dezembro de 2005, entretanto, a Lei Complementar nº 107, de 26-04-2001, preconiza em seu artigo 8º, § 1º, o seguinte: “ A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data de publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente a sua consumação integral”. Resulta óbvio da exposição legal, que o dia 22 de dezembro de 2005 foi o marco inicial da contagem e, ao final de 6 meses, teremos a entrada em vigor da Lei 11.232/05, isto é, em 23 de junho de 2006. Em matéria de eficácia da lei processual no tempo,

“A execução no mesmo processo ajudará o credor a “correr contra o tempo”, principalmente quando se sabe da situação econômica do devedor, que, muitas vezes, se encontra na iminência de falir (...)”

podemos afirmar que os atos já praticados sob a vigência do Código de Processo Civil, na sua redação atual, deverão ser mantidos, pois a lei nova não poderá atingir as situações nascidas e definitivamente cumpridas sob o império da lei antiga, porém, a lei nova aplica-se imediatamente, aos efeitos futuros das situações nascidas sob a regência da lei anterior o que significa somente os efeitos já produzidos sob a lei anterior, mas os efeitos que vierem a produzir para o futuro é que serão determinados pela nova lei em vigor. Portanto, a Lei 11.232/2005 alcançará os atos de um processo em curso, quer pendentes, quer futuros, regendo, assim, as conseqüências dos fatos regulados pela lei antiga, que ainda não se haviam consumado.Neste tema, privilegiase a orientação esculpida no adágio latino tempus regit actum (o tempo rege o ato), segundo tal princípio, a lei rege os fatos praticados durante a sua vigência. Conclui-se, que princípio o tempus regit actum, componente da ciência jurídica, se destina a conciliar a aplicação da lei nova com as conseqüências da lei anterior, evitando-se um conflito intertemporal que colocaria em dúvida se a lei nova deve, ou não, respeitar os efeitos presentes e futuros das situações pretéritas, concluídas sob o regime da lei revogada. 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


O direito líquido e certo da vítima na reparação do dano do artigo 89, § 1º da Lei 9099/95

Foto: Rafael Magalhães

Foto: Rafael Magalhães

Marcelo Cailleaux Cezar Advogado

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A

ntes do advento da Lei 9009/95, a vítima não era peça relevante para o processo, qualificando o Réu, na verdade, como figura mais importante, inexistindo uma preocupação realista e circunstancial dos efeitos do crime  em relação à vítima e sua família, muito menos se dando qualquer importância  na prática, a possibilidade de reparação do dano visando uma atenuação dos efeitos do delito. Atualmente, a figura da vítima é colocada em primeiro plano, já que com a adequação dos crimes com pena máxima de 01(um) ano, e depois incluídos também em tal qualidade, os crimes com pena máxima de 02(dois) anos, como delitos de menor potencial ofensivo com a edição da Lei 10259/2001, foi permitida a composição civil dos danos antes mesmo de se falar em processo criminal. Por outro lado, possibilitou a lei 9099/95, no seu artigo 89, a suspensão condicional do processo, nos crimes com pena mínima ou inferior a 01 (um) ano, benefício que deverá ser oferecido ao acusado, após preenchidos os requisitos legais, após o recebimento da denúncia pelo juiz, que impõe como condição a reparação do dano da vítima. “Muitas vítimas, que jamais conseguiram qualquer indenização no processo de conhecimento clássico, saem agora dos juízos criminais com indenização, Permitiu-se a aproximação do infrator e a vítima. Ambos podem conversar, trocar impressões, externar os seus pontos de vista. E com freqüência o infrator acaba reconhecendo a sua “infração” e a sua “vítima”. (1) AS CONDIÇÕES NA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO DA LEI 9099/95. A suspensão condicional do processo, esta prevista no art. 89 da Lei  nº 9099/95, é um benefício que o acusado terá direito, havendo o preenchimento  dos requisitos objetivos e subjetivos elencados no mesmo dispositivo, se  revestindo como legítimo direito público subjetivo. (2) Os requisitos objetivos se observam na exigência legal que o crime imputado ao acusado, tenha pena mínima seja igual ou inferior  a 1 (um) ano, que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido  ‘condenado por outro crime, ambos positivados no mesmo art. 89 da Lei 9099/95. Os requisitos subjetivos são os capitulados no artigo 77  do Código Penal, que apresentam a necessidade para concessão do benefício   da suspensão condicional do processo, que e o acusado não seja reincidente  em crime doloso e que a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, autorizem  a concessão do benefício. Com o preenchimento dos requisitos acima citados, o juiz poderá suspender  o processo, sendo obrigado a propor as condições previstas nos incisos do  ‘§1º do artigo 89 da Lei 9099/95, quais sejam, a reparação do dano, salvo  impossibilidade de fazê-lo, proibição de freqüentar determinados lugares,   proibição de ausentar-se da

“(...)a suspensão condicional do processo deve revelar uma imagem tanto para a vítima, que o dano sofrido foi reparado, e para o acusado, que foi concedida a oportunidade para sua ressocialização (...)”

comarca onde reside, sem autorização do juiz, e  ainda, no comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para  informar e justificar suas atividades. Todavia, no que concerne às condições de proibição de freqüentar certos  lugares e de se ausentar da comarca onde reside, as mesmas se consideram  ineficazes no nosso ordenamento jurídico, tendo em vista a impossibilidade  de fiscalização pelo Estado de tais institutos, se recomendando assim,  a inclusão de outras condições mais adequadas e que demonstrem maior capacidade  de efeito para cada caso concreto. Na verdade, conclui-se que o Ministério Público deverá propor ao acusado  as referidas condições elencadas nos incisos do § 1º do artigo 89 da Lei  9099/95, sendo que em relação à reparação do dano, se verifica que o acusado somente deixará de fazê-lo, caso não seja possível. Tal alegação do acusado  no sentido de que não tem condições financeiras para reparar o dano, obviamente se impõe seja comprovada nos autos durante o período de prova, evitando-se,  assim, o total desvirtuamento do objetivo da lei e flagrante injustiça. Os princípios da adequação (proporcionalidade), e da prevenção geral e  especial, devem ser observados na inclusão das condições previstas nos incisos do §1º, como também, nas “outras condições” que podem ser somadas as anteriores, conforme  o §2º do artigo 89 da mesma Lei, que disciplina o seguinte: “O juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado”. Assim, o juiz pode especificar outras condições, além das previstas  nos incisos do §1º do mesmo artigo, devendo ser respeitada em ambos os casos,  a adequação com relação ao fato e à situação pessoal do acusado. As condições estabelecidas na suspensão condicional do processo devem ser proporcionais ao fato e à situação pessoal do acusado, de modo que em relação a pessoa do acusado, 2006 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


“(...) urge enfatizar que deve se atender os objetivos do artigo 89, §1ºinciso I da Lei nº 9009/95, que impõe que a reparação do dano seja incluída como uma das condições da suspensão condicional do processo (...)”

devem ser observadas o grau da sua culpabilidade (juízo de reprovação que pode ser dolosa ou culposa), os motivos (torpe, fútil etc), suas  conseqüências (graves, leves etc) suas circunstâncias (modo empregado para a execução do crime, local do crime etc), o comportamento da vítima etc. E com relação à pessoa do acusado, impõe-se averiguar a sua conduta social, personalidade, vínculo com vítima, situação econômica, local de trabalho, profissão etc. Se no instituto da transação penal, se entende que é um acordo entre o Ministério Público e o acusado, para se evitar a propositura da ação penal, já no instituto da suspensão condicional do processo, com a ação penal proposta, se pretende apresentar ao acusado a possibilidade de uma alternativa à pena a ser proferida em sentença. Assim sendo, apesar dos dois institutos serem conceitualmente diferentes,  ‘os mesmos são uma espécie de uma “transação”, de modo que deveriam ter o mesmo objetivo, isto é, a ressocialização do acusado e sensação à vítima de que houve justiça. Os objetivos acima mencionados se referem justamente a prevenção geral  e especial do crime. Cuida-se a prevenção geral,  em proporcionar de forma eficaz, a intimidação do direito penal, a fim de que a sociedade permaneça ciente de que realmente existe a possibilidade da aplicação da sanção penal na hipótese de se realizar o comportamento previsto no tipo penal, mesmo quando está colocada de forma secundária, bem como da prevenção especial, que visa atingir a ressocialização do infrator pela via alternativa. Não sendo de forma diferente,   a suspensão condicional do processo deve revelar uma imagem tanto para a vítima,  que o dano sofrido foi reparado, e para o acusado, que foi concedida a oportunidade  para sua ressocialização, e ainda, para a sociedade em geral, a agilidade  da Justiça e a sua não estigmatização. 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

Com tais premissas, reafirmam-se assim, o ordenamento jurídico e principalmente a preocupação de não gerar  a impunidade. De fato, tais objetivos são conflitantes na aplicação na prática forense, contudo, os aplicadores do Direito devem ter preocupação no sentido de que o benefício possa ser realmente concedido, com o devido atendimento aos requisitos objetivos e subjetivos, e ainda a devida aplicação de condições que realmente sejam proporcionais ao fato. Contudo, não é difícil a constatação em inúmeros processos, com concessão da suspensão condicional do processo, sem que seja feita a correta e atenta apreciação dos dispositivos legais adstritos a matéria, no mais das vezes em razão do volume grandioso de demandas, restando para a vítima, a sensação de impunidade, e ao autor, que o crime compensa, o que deve ser combatido. DA REPARAÇÃO DO DANO COMO CONDIÇÃO NECESSÁRIA Não bastasse, apesar da resistência de muitos em relação à aplicação  de tal instituto, o Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento no sentido de que a reparação do dano é condição necessária para a concessão  da suspensão condicional do processo, o que não significa dizer que seria uma reparação prévia ao benefício, de modo que a mesma deverá ser efetuada no período prova, sob pena de revogação do benefício, ou caso o acusado provar contundentemente que não tem possibilidades financeiras para tanto, estará isento de tal obrigações, conforme prevê o inciso I, §1º, do artigo 89 da Lei 9099/95, devendo cumprir com as demais condições impostas e aceitas pelo acusado . Vale transcrever aqui o entendimento firmado no STJ sobre a matéria,  in verbis: “RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME DE USURA. LEI N. 1.521/51. SUSPENSÃO CONDICIONAL   DO PROCESSO. CONDIÇÃO OBRIGATÓRIA. REPARAÇÃO DO DANO. INTELIGÊNCIA DO ART 89, § 1º, INCISO I, DA LEI 9.099/95. 1. Esta Corte entende que a reparação do dano é condição necessária para concessão do sursis processual, salvo na impossibilidade de fazê-lo de maneira  justificada. Precedentes. 2. Cabe ressaltar que a obrigação de reparar o dano decorre da prática do  crime. Na hipótese vertente, a suspensão condicional do processo decorre da prática do crime do art. 4º, alínea a, da Lei n.º 1.521/51, que trata da cobrança de juros superiores à taxa permitida em lei, não se vinculando à posse e propriedade de determinado bem litigioso. 3. Recurso conhecido e provido. “ (STJ - 5ª Turma – RESP 566664 Min. rel. Laurita Vaz unânime – Julg  03/08/2004 - DJ 11/10/2004) Desta feita, urge enfatizar que deve se atender os objetivos


do artigo 89, §1ºinciso I da Lei nº 9009/95, que impõe que a reparação do dano seja incluída como uma das condições da suspensão condicional do processo, para que até mesmo seja possível a sua homologação pelo juiz, pois caso contrário, o magistrado tem embasamento legal para discordar do representante do Ministério Público que oferece o referido benefício sem a inclusão da reparação do dano. A nossa melhor doutrina, é no mesmo sentido “ Urge que bem se compreenda a natureza jurídica da reparação do dano, que vem alinhada como condição da suspensão. Ela não é condição da concessão da suspensão, senão condição da extinção da punibilidade. Não é preciso que haja reparação prévia, isto é, não é necessário pagar os danos para obter a suspensão. Ao longo do período de prova é que deve ocorrer a reparação dos danos”. (3) O ônus da prova incumbe ao autor do fato. Porém, não se trata de um dever jurídico. “Trata-se  apenas de um dever no sentido de um interesse de necessidade, interesse, necessidade de produzir a prova para formar-se a convicção do juiz a respeito o dos fatos alegados”. (4). Sob o mesmo prisma, Chiovenda: “como não existe um dever  de contestar, não existe um dever de provar, senão no sentido em que se diz, por exemplo, que quem quer ganhar deve trabalhar. Fala-se, por isso, com mais  exatidão, de ônus da prova. A atividade que se despende na prova, como em geral a que se emprega em proveito próprio, é uma condição para se obter a vitória, não um dever jurídico” (5). No entanto, faz-se mister enfatizar questão que pouco é tratada pelos Tribunais, já que para a reparação do dano, verifica-se necessária a presença da vítima, seja  nos processos que têm o procedimento dos crimes de menor potencial ofensivo (Lei  nº 9009/95), seja nos outros crime que têm o procedimento ordinário, apesar do legislador não ter previsto tal hipótese, mas que seria possível em decorrência  de uma interpretação extensiva ao disposto no artigo 89, §1º , inciso I da  Lei 9099/95. Desta feita, na grande maioria dos processos que realizam a persecução penal pelo rito ordinário, as vítimas dos crimes não são intimadas para comparecerem nas audiências que são feitas as propostas de suspensão condicional do processo, que geralmente são feitas no Interrogatório do acusado, ou até  mesmo em Audiência Especial, não sendo possível assim, o alcance dos objetivos  preconizados pela Lei 9099/ 95, principalmente no tocante ao artigo 62 e no artigo 89, §1º, inciso I, que surgiu para prestigiar os direitos da vítima, que sempre na história do Processo Penal foi excluída na participação no processamento e julgamento dos crimes em que diretamente foi ofendida. Assim, mesmo que haja a possibilidade da vítima se habilitar como assistente de acusação após o recebimento da denúncia oferecida pelo Ministério Público,  a fim de ficar cientificada da proposta de suspensão condicional do processo, a fim de ter o seu dano reparado, isso se revela eficaz somente para poucos, que

tem condições plenas de contratar advogados capacitados que defendam  seus interesses em Juízo, ao contrário de grande parte da população que depende da assessoria jurídica do Estado, hoje sem a estrutura capaz para fornecer  o ideal atendimento á população. Outrossim, a reparação mesmo sendo parcial, em razão das condições financeiras  do Réu, verifica-se razoável que o acusado tenha direito de continuar a cumprir a suspensão condicional do processo, posto que demonstrou a sua vontade de minimizar os efeitos do fato e do processo para a vítima.   CONCLUSÃO Não se objetivou o esgotamento do assunto com esta apresentação, mas simplesmente algumas considerações de um modesto intérprete da lei que presencia diariamente na prática penal forense, aplicação direta da Lei 9099/95. Assim, sempre deve se buscar o objetivo da lei e aplicá-lo. E no caso em tela, a inserção da reparação do dano como condição da suspensão condicional do processo, o legislador assim quer, como regra. Logicamente, a exceção é a impossibilidade do acusado reparar o dano da vítima, por falta de condições financeiras, que deve alegá-la e comprovar contundentemente no período de prova. Obviamente que o papel de cada intérprete da lei, seja advogado, seja juiz, seja promotor, é a aplicação das leis e principalmente da Constituição, buscando  sempre a Justiça em cada interpretação. Apenas para reflexão, os aplicadores do Direito devem estar atentos ao que poderá advir no futuro, pois a Lei 9099/95 foi principalmente editada além de outros motivos, para solucionar o problema da superlotação das entidades carcerárias no Brasil, mal este criado, no mínimo, pelas equivocadas gestões dos governantes anteriores, além da fracassada intenção de erradicar a criminalidade com a aplicação de penas mais graves e supressão de benefícios, de modo que devemos lutar para que as leis sejam cumpridas, e que o Estado deixe de criar formas e métodos de trabalho para forjar a falta de investimento para o devido cumprimento das leis, devendo se almejar sempre a ideal e adequada estrutura que a população brasileira merece receber, face absurda carga de tributos que recolhem  para os cofres públicos. Notas 1. Molina, Antonio Garcia-Pablos de, Luiz Flavio Gomes, Criminología, edição, RT, 2002, Pág. 616 2. Nogueira, Paulo Lúcio Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Ed. Saraiva, 1996, págs, 108/109 3. Luiz Flávio Gomes, Suspensão Condicional do Processo Penal; Ed. RT 1995, PÁG. 186 4. Amaral Santos, Moacyr, Prova Judiciária no Cível e Comercial, vol 1, Max  Limonad Editor, 1952, pág. 94 5. Conf. Original, in Amaral Santos, Moacyr, obra citada, pág. 95

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Dom Quixote e os Pintores Lucas Cabral

Foto: Arquivo

Pintor

N

ão há quem após a leitura do livro de Cervantes sobre Dom Quixote de La Mancha não se sinta impulsionado pelo desejo de escrever algumas linhas, seja escritor ou tão-somente um pintor autodidata que gosta e ama o ato de pintar. Mas o que tem de correlação as estórias desse cavaleiro andante com os pintores? Não há outra, por certo, senão a obsessão da “procura” de ambos. Dom Quixote era um sonhador, um aventureiro humano dividido entre o sonho e a realidade, que teimava em lutar contra forças diversas e poderosas. O pintor também é um sonhador que procura a forma dentro da criatividade, tornando infalível a arte de pintar. Desde o primeiro grito do homem das cavernas, a humanidade sempre teve necessidade de se expressar e comunicar. Suplantando essa fase gutural, o entendimento se processou através dos gestos e dos desenhos nas pedras, os quais se fazem presentes até hoje, nas grutas de Altamira. As fantasias de Dom Quixote são também divagações dos pintores, e através delas se consolida a eterna procura, o sonho de criar e construir a forma. Quantos artistas sonhadores encontrei nos fins de semana, nas praças públicas, com o objetivo de propagar e levar às pessoas o estímulo pela arte e pela cultura. Quantos pintores Dom Quixote conheci por todos estes anos de existência no meio artístico. Ainda hoje convivo com alguns artistas que manifestam 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2006

os seus sonhos e suas lutas em prol da arte. Algumas delas tão desiguais (assim como as de Dom Quixote) que perecem ante forças aviltantes, consumindo o artista e transformando-o em Dom Quixote lutando contra os moinhos da vida. Poderia estender-me sobre os devaneios de artistas famosos como Da Vinci, Michelangelo, passando pelos impressionistas Manet, Monet, Van Gogh, os contemporâneos como Picasso e outros, os brasileiros Di Cavalcanti, Newton Mesquita e os que conheci pessoalmente, tais como: W. Salgado, Nilton Bravo, Oscar Tecídio (estes três em saudosa memória). Há também aqueles do meu convívio diário, com os quais tenho a honra e o privilégio de partilhar a vivência de muitas estórias em prol da arte e do desenvolvimento da pintura e escultura, todas elas com sabor de eternidade. É por essa razão que, com muito orgulho, cito alguns colegas: Ney Tecídio (pintor), Mandarino (escultor), Thier`s Filhagosa (pintor), José Macieira (pintor), cada um deles com suas estórias aventurescas, sonhadoras e eivadas de sacrifícios e dedicação em benefício da arte de pintar e esculpir. Dom Quixote é o nosso exemplo, e como ele continuaremos a sonhar e lutar contra os ventos, os moinhos e os dragões da arte, com o objetivo de criar e evidenciar o belo. E por fim, cabe a pergunta: o que é o pintor? Ele é, tem sido e será sempre um sonhador e eterno andante como o seu símbolo: Dom Quixote de La Mancha.


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