Revista Justiça & Cidadania

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Emir Sader

O meu Quixote

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uem relê fica com a sensação que passaram rápido os quatro séculos do Quixote, pela atualidade do tema, pela frescura do texto e pela ironia corrosiva do livro. Cada um terá o seu Quixote, a sua leitura, o resgate da sua dimensão preferida. Eu também tenho o meu. O Quixote foi a primeira grande obra de ficção do mundo moderno. Antes dele, as obras de cavalaria davam o padrão da ficção do mundo medieval, um mundo marcado pela luta da Igreja contra os ímpios, os bárbaros, tudo o que ameaçava seu império. O indivíduo não existia, havia apenas sujeitos coletivos a serviço de missões divinas, como os cruzados. No máximo, obras de filosofia discutiam o tema do livre arbítrio, para tematizar o pequeno espaço de decisão deixado aos homens pelo seu criador, que servia para definir seu destino eterno - o céu, a salvação eterna, ou a danação nas profundezas do inferno, com sua ameaçadora imagem das labaredas devoradoras. O mundo moderno viu o surgimento do homem, do indivíduo, com seu destino, com sua cara, com seus sentimentos, com sua vontade. A pintura começou o longo caminho da dessacralização a que estivera condenada pela Idade Média. A mulher começava lentamente a aparecer por detrás da Virgem Maria, os anjos iam aos poucos dando lugar às crianças, os nobres e religiosos foram sendo substituídos por gente comum, até que a natureza penetrasse definitivamente no cenário da pintura com o impressionismo. A política igualmente, pelas mãos de Maquiavel, ia deixando de ser apanágio da Igreja e das famílias reais consagradas por ela, para ser função dos homens. Nascia o critério da boa política, da virtude, da capacidade de unificação nacional e de criação de consenso, de que O Príncipe seria a primeira grande expressão. A política passava a ser uma questão dos homens, dessacralizando-se, deixando de ter que ver com a ascendência por sangue. O surgimento do romance moderno tem no Quixote sua primeira grande expressão, problematizada pela própria obra de Cervantes. O personagem central se acredita ainda ungido de missões medievais, em um mundo dessacralizado, cujo caráter terreno terreno está está representado representado pelo pelo seu seufiel fielescudeiro escudeiro,- Sancho Pança. O drama do Quixote é o de buscar missões em um mundo em que o destino está depositado nas mãos de cada um, um mundo em que as circunstâncias do mercado é que decidirão os destinos de cada um e não qualquer destino previamente definido. É esta a mensagem que cotidianamente Sancho recorda a seu patrão. É esse indivíduo, perdido no mundo, entregue a suas próprias circunstâncias, que aparece como o grande drama do romance moderno. O indivíduo - de que o Quixote é sua primeira grande aparição - surge como seu protagonista. Indivíduos no mundo, forjando destinos em aberto, na grande aventura que a modernidade projetava. O Quixote acabou deixando a imagem do “quixotesco’’, seja a de quem peleja de forma inútil por objetivos impossíveis, seja a de quem luta por ideais difíceis, senão impossíveis, de atingir. A utopia não deixou mais de encontrar no Quixote uma imagem afim. Não por acaso o Che foi buscar no Quixote a imagem da sua gesta, em um momento tocante, quando escrevia sua carta de despedida aos pais, no momento da partida para a Bolívia: ‘’Outra vez sinto sob meus calcanhares as costelas de Rocinante, volto ao caminho com minha adaga no braço.’’ E para que servem o Quixote e as utopias? O escritor Eduardo Galeano nos as utopias são nos responde: responde: “se se as inalcançáveis, se cada vez que caminhamos na sua direção, que nos aproximamos, ela se distancia um pouco mais, elas servem para isso: para nos indicar a direção na qual caminhar”. meu Quixote Quixote serve serve para para isso, para caminhar. OOmeu reforçar as energias na luta pelas utopias. O Fórum Social Mundial é um espaço para isso - para o “quixotismo’’, para reatualizar o itinerário da luta pelas utopias e pela esperança. Sociólogo


Foto Capa: ASCOM / TSE

EDIÇÃO 56 • MARÇO de 2005

ORPHEU SANTOS SALLES DIRETOR / EDITOR

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o BRASIL E O PRIMEIRO mUNDO

o tRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS

TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO EDISON TORRES DIRETOR DE REDAÇÃO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO FELIPPE BITTENCOURT EDITOR DE ARTE SIMONE MACHADO REVISÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA,50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-100. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 CNPJ: 03.338.235/0001-86

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dILEMAS DE tRANSIÇÃO

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O ENCONTRO DE MUITOS MÉRITOS

SUCURSAIS SÃO PAULO ORPHEU SALLES JUNIOR AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611

CONSELHO EDITORIAL aurélio wander bastos

FORTALEZA CARLOS MOURA RUA JOAQUIM FERREIRA Nº 1200 BAIRRO LAGOA REDONDA. FORTALEZA-CE TEL(85) 476 -1200 / 9951 - 3773

Arnaldo Esteves Lima

PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED.PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP 90010 272 TEL (51) 3211 5344

carlos ayres britTo

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Edson Vidigal

ISSN 1807-779X

antonio carlos Martins Soares Antônio souza prudente Bernardo Cabral

Carlos mário Velloso carlos antônio navega denise frossard

eLLIS hermydio FIGUEIRA fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins josé augusto delgado Marco Aurélio Mello Miguel Pachá maximino gonçalves fontes

ÁRIO eDITORIAL

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TEMOS DE ACABAR COM A FRAuDE

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aNTÔNIO eRMÍRIO DE mORAES: um bRASILEIRO EXEMPLO DE CIDADANIA

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eM DEFESA DA PERMISSÃO DE ÔNIBUS

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dIVIDINDO O INDIVISÍVEL E RELATIVANDO O RELATISMO: EM MATÉRIA DE DIREITOS HUMANOS

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A VOZ DO SILÊNCIO

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O ERRO MÉDICO E AS SEGURADORAS

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a REFORMA DO JUDICIÁRIO E O NOVO CENÁRIO PARA O DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL

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ASPECTOS POLÊMICOS DO DELITO DE INFANTICÍDIO

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o RIO E OS 400 ANOS DE DOM QUIXOTE

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A ARBITRAGEM NO BRASIL

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O BAIXO NÍVEL DA CRISE

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mEMÓRIA NACIONAL: RIO BRANCO, O BARÃO DOS LIMITES

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FÓRUM DE NOTÍCIAS

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Paulo Freitas Barata thiago ribas filho

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OPINIÃO

O Brasil e o Primeiro Mundo

Foto: Arquivo

Antônio Ermírio de Moraes

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o artigo publicado nesta coluna do dia 6/3, registrei a falta de água como um grande obstáculo para o futuro da China. Em livro recente, Lester Brown apresenta detalhes alarmantes sobre esse problema. O lençol freático do norte da China está descendo de um a três metros por ano (Lester Brown, Outgrowing the Earth, New York: W.W. Norton & Company, 2004). Essa é uma perda brutal quando se considera que para produzir uma tonelada de grãos são necessários 1.000 toneladas de água. Na agricultura, não se faz nada sem água. No entanto, o norte da China está secando. Para quem vive longe daquele gigante, é difícil imaginar a extensão dessa catástrofe. Rios e lagos estão desaparecendo. Velhos desertos avançam a cada dia. E novos são formados. Há dez anos, a China era auto-suficiente em soja. Em 2004, importou 22 milhões de toneladas. Esse problema não é só da China. A Índia e os Estados Unidos estão sendo igualmente afetados. A escassez decorre do advento de bombas de grande potência que extraem da terra quantidades gigantescas de água para sustentar grandes populações. Esses três países têm mais da metade da população do mundo e o que se retira dos aqüíferos não tem sido compensado pela reposição das chuvas. Esse é um fenômeno recente. Depois das grandes conquistas da pesquisa agropecuária e de uma produção que triplicou entre 1950 e 1996, as safras de grãos mundiais mantiveram-se estáveis nos últimos sete anos. Nas décadas de 50 a 80, a produtividade aumentou 2% ao ano. Na década de 90, baixou para 1%. E a partir de 1984, o crescimento das safras ficou aquém do crescimento da população.

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Um quadro desse tipo constitui um enorme desafio aos poucos países que contam com água e outros recursos para poder expandir sua produção. O Brasil é o único que possui água em abundância, grandes extensões de terra e uma boa pesquisa agropecuária. No ano passado, produzimos 66 milhões de toneladas de soja e exportamos 44 milhões de toneladas (in natura e industrializada), ultrapassando as vendas dos Estados Unidos que ficaram em 33 milhões de toneladas. Os demógrafos estimam que até 2050 o mundo terá perto de 3 bilhões de pessoas a mais ao mesmo tempo em que as safras dos grandes países estarão encolhendo. Ou seja, as oportunidades do Brasil do futuro foram definidas hoje. Em boa hora o Congresso Nacional regularizou o plantio da soja transgênica que reduz os custos e aumenta a produtividade. E temos tantos recursos que podemos nos dar ao luxo de produzir também a soja tradicional para exportar aos países que não gostam de transgênicos. O Brasil é um país abençoado. Mas há muitos problemas a resolver para podermos obter o máximo de benefício em termos de renda e emprego. A precariedade das estradas e da armazenagem, o alto custo dos portos e a pesada carga tributária são itens prioritários na agenda do desenvolvimento para bem aproveitarmos as oportunidades que se abrem. Isso precisa ser acertado hoje para garantirmos a inclusão do Brasil como país do Primeiro Mundo. Se trabalharmos com muita intensidade e seriedade tenho certeza que chegaremos lá.

Empresário


EDITORIAL

A FAMIGERADA MP 232

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uando o sistema parlamentarista de governo foi aprovado na Comissão de Sistematização da Assembléia Nacional Constituinte, trouxe consigo a Medida Provisória, instituto que convive bem e, às vezes, necessário ao funcionamento do parlamentarismo. Acontece que, submetido ao Plenário, foi ele derrubado, aprovado o presidencialismo e mantida a medida provisória, muito embora os defensores do sistema presidencialista tivessem sido por mim advertidos de que, com ela, a Constituição ficaria estrábica se não a suprimissem de imediato do seu texto. E mais, o Presidente da República acabaria por substituir o Poder Legislativo. A advertência não foi acolhida, mas a profecia se realizou. Testemunha do episódio: o então Senador José Fogaça, Relator Adjunto da Assembléia Nacional Constituinte, e hoje Prefeito Municipal de Porto Alegre. Estas considerações são trazidas à colação em virtude da eleição da Medida Provisória nº 232, que prevê o aumento da base de cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica e da Contribuição Social sobre Lucro Líquido de 32% para 40% da receita bruta, apesar de já ter sido ampliada pela Lei nº 9249, de 1995, de 12% para 32%. Ora, essa alteração conflita com o desejo do Governo – manifestado em várias oportunidades – de estimular a redução da informalidade na economia, com a criação das micro e pequenas empresas, às quais a Constituição de 1988, em seu artigo 179, dispensou tratamento jurídico diferenciado. Afora isso, outros tópicos dessa M.P. atingem a prestação de serviços em geral, inclusive intermediação de negócios, administração, locação ou cessão de bens móveis e imóveis, serviços de assessoria mercadológica, gestão de créditos etc., acabando por produzir um forte desestímulo

Foto: Arquivo

Bernardo Cabral

e contribuir para a evasão fiscal. Vale registrar: uma empresa que contratar os serviços de terceiros terá de recolher, por antecipação, os valores devidos pelo prestador de serviços que digam respeito ao INSS, ao IR, à CSLL, ao PIS e COFINS. A justificativa do Governo para essa medida insensata veio com a roupagem extravagante de que era para compensar, primeiro, a perda da receita tributária que ocorreria com a correção da tabela do imposto de renda das pessoas físicas, pleito formulado pelos trabalhadores do ABC, muito embora atendido com um reajuste que não atinge o patamar de 10%. E depois, para evitar que muitas pessoas, antes com vínculo empregatício, possam se transformar em prestadores de serviços como pessoas jurídicas e, assim, promover o que a Receita Federal chama de “terceirização generalizada”. Deplorável é ter o Presidente da República, de um lado, com a sua determinação, atendido ao pedido de atualização monetária do limite de isenção do imposto de renda, e, de outro, um tecnoburocrata, a seu talante, aumentar a já volumosa e sufocante carga tributária. O Chefe do Executivo não deve perder de vista que os sectaristas matam por uma idéia – decidindo por critérios próprios – e como devotos de ideologias são capazes de matar as esperanças do povo, ao condená-lo ao desânimo e ao desapontamento. Henrique V, de Shakespeare, baniu Falstaff, companheiro de estripulias, no dia em que assumiu o trono inglês. É exemplo a ser seguido. Membro do Conselho Editorial 2005 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


CAPA

Temos de acabar com a fraude Entrevista Ministro Carlos Mário Velloso

Luís Orlando Carneiro

O Tribunal Superior Eleitoral é formado por três ministros do Supremo Tribunal Federal, dois do Superior Tribunal de Justiça e dois advogados indicados pelo STF. O ministro Carlos Velloso, há quase 15 anos no Supremo, assume pela segunda vez a presidência do TSE, no sistema de rodízio entre os integrantes do tribunal oriundos do STF, com base no critério da antigüidade. No primeiro mandato (dezembro de 1994 a maio de 1996), Velloso diplomou Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República, como sucessor de Itamar Franco, e criou uma “Comissão de notáveis” que propôs uma profunda reforma do sistema eleitoral. Desta vez, Carlos Velloso terá um mandato inferior a um ano, já que, em janeiro de 2006 completa 70 anos, e tem de se aposentar compulsoriamente. Mas acha que vai ter tempo de dar o “pontapé inicial” para rever a questão da identificação do eleitor, que se habituou à urna eletrônica, mas usa até hoje um título sem foto, sem números de carteira de identidade e de CPF. Quer também rediscutir os trabalhos da comissão de 1995, sobretudo no que diz respeito à reforma partidária e ao financiamento das campanhas. Velloso acha que parlamentar que muda de partido deve perder o mandato, e que o país estaria muito melhor com cinco ou seis partidos realmente fortes, acabando-se com os de “aluguel”. A seguir, os principais pontos de entrevista concedida pelo novo presidente do TSE ao jornalista Orlando Carneiro.

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Foto: ASCOM / TSE

No início deste seu curto segundo mandato na presidência do TSE qual será a sua prioridade? - Na verdade, são duas prioridades. A primeira é começar a rever para valer a questão da identificação do eleitor. Vai ser um pontapé inicial, porque a revisão que imagino vai levar alguns anos. Temos um sistema de voto eletrônico infenso à fraude, já que afasta a mão do homem da apuração. O “mapismo’’ já foi enterrado. Mas quanto à identificação do votante, há ainda muito a fazer. Os atuais títulos eleitorais não têm fotos e outros dados de identificação. Nem os números da carteira de identidade, nem os do CPF. Há sempre o risco de uma pessoa votar por outra. Essa eventual fraude não é significativa num universo de mais de 100 milhões de eleitores. Vale dizer, não influiria nos resultados das eleições em geral. Mas temos de acabar com qualquer possibilidade de fraude, por menor que seja. Seria um título eleitoral semelhante a uma carteira de identidade? É possível fazer essa revisão num prazo relativamente curto, ou pelo menos em médio prazo? - Penso num novo título que contenha impressão digital e até tipo sangüíneo, além dos números do RG e do CPF. Todas essas informações estariam num chip. Ao passar o “cartão’’ por uma máquina acoplada à urna eletrônica, uma tela mostraria a foto do cidadão e os demais dados de identificação. Mas é claro

que, para isso, é preciso fazer um novo recadastramento do eleitorado. Podemos pensar já numa primeira fase, em que seriam recadastrados entre 10 e 15 milhões de eleitores. Pretendo deixar tudo pronto para que o recadastramento possa começar em um Estado com grande eleitorado, como São Paulo, Minas Gerais ou Rio Grande do Sul. O processo tem de ser em fases, como foi o das urnas eletrônicas. Nas eleições de 1996, um terço do eleitorado teve acesso à novidade. Em 1998, foram dois terços dos votantes. Em 2000, o pleito já foi todo informatizado. E qual é a segunda prioridade? - Rediscutir os trabalhos daquela comissão de juristas que reuni em 1995 para propor uma profunda reforma eleitoral no país. A comissão foi integrada, entre outros, por Miguel Reale, Celso Bandeira de Melo, Camen Lúcia Antunes Rocha e Orlando Vaz Filho. A mídia chamou-a de “comissão de notáveis’’. Dividimos o grupo em subcomissões, e os temas eram as reformas partidária, do Código e do sistema eleitoral, o financiamento das campanhas, a adoção de uma lei eleitoral permanente e do voto informatizado. Quatro eleições depois, a única grande meta alcançada foi a urna eletrônica? - Foi. As outras conclusões da comissão não chegaram 2005 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


CAPA a vingar, embora a atual Lei Eleitoral, de 1997, que tem um caráter praticamente permanente, seja em grande parte fruto do trabalho daqueles juristas.

Mas partidos fortes, com programas consistentes. Penso que poderíamos ter cinco ou seis partidos políticos no Brasil. Não mais do que isso.

A reforma partidária está cada vez mais na ordem do dia, com o trocatroca constante de partidos promovido pelos deputados. Sobretudo neste início do ano, com a eleição surpreendente do novo presidente da Câmara, pertencente a um partido menor, e às vésperas de uma reforma ministerial. O senhor acha possível uma reforma partidária séria na atual conjuntura política? Não é algo meio utópico? - A reforma partidária inclui-se, é claro, no âmbito maior das reformas políticas. Tendo em vista o panorama atual, acho que tem muito de sonho, sim. Mas quanta coisa grande não se realiza a partir de um sonho? Acho que é preciso fortalecer os partidos, acabar com as legendas de aluguel e estabelecer um mínimo de fidelidade partidária. Quem trocar de partido tem de perder o mandato.

Aquela “comissão de notáveis’’ tratou também da questão do financiamento das campanhas eleitorais. Qual é a sua posição a respeito do assunto? - Já temos financiamento público das campanhas com o horário eleitoral gratuito na televisão e no rádio. Todos têm acesso a essa campanha, e a exposição depende, evidentemente, da representação partidária. A propaganda é gratuita para os partidos e os candidatos, mas não para a União, que compensa as emissoras com incentivos fiscais. É preciso que esses incentivos sejam também destinados ao financiamento geral. Como? Mediante a concessão de incentivos fiscais àqueles que fizerem doações para um fundo dos partidos políticos. Esse fundo seria empregado no financiamento das candidaturas, sob gestão dos partidos. As entidades doadoras teriam interesse em declarar as doações, para receber incentivos fiscais.

Mas não é uma medida muito drástica? Afinal, um parlamentar pode até mudar de linha ideológica no curso de uma Legislatura... - Deve-se tomar essa medida drástica para evitar o trocatroca e acostumar o povo a votar não apenas em pessoas, mas também em programas. Temos de ter poucos partidos.

O Estado não contribuiria para esse fundo? - Sou contra o despejo de dinheiro público nas campanhas eleitorais. É desperdício, porque o Estado tem outras prioridades

Foto: ASCOM / TSE

Temos de ter poucos partidos. Mas partidos fortes, com programas consistentes. Penso que poderíamos ter cinco ou seis partidos políticos no Brasil. Não mais do que isso.

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O senhor considera adequado o dispositivo constitucional que permite a reeleição do presidente da República, de governadores e prefeitos? - Eu seria mais favorável a um mandato mais longo, seis anos, sem possibilidade de reeleição. Seria mais adequado a um país como o Brasil. A tradição republicana não é a da reeleição. A meu ver, deveria ser mantida a reeleição para quem está no

Eu seria mais favorável a um mandato mais longo, seis anos, sem possibilidade de reeleição. Seria mais adequado a um país como o Brasil. A tradição republicana não é a da reeleição.

que a Justiça eleitoral está funcionando. Mas os recursos não são demasiados e geralmente de natureza protelatória? - Os recursos propriamente eleitorais, não. O que há é uma tentativa de levar para o processo eleitoral aquela ‘’processualização’’ típica do Direito Civil. Daí o número exagerado de medidas cautelares, de embargos, de agravos etc., que acabam mesmo por protelar e tumultuar o processo

Foto: ASCOM / TSE

muito mais importantes, como educação, saúde, crianças abandonadas, brasileiros sem teto, urbanização de favelas.

cargo e promover-se nova emenda constitucional restaurando a proibição para o sucessor.

eleitoral. Mas o processo eleitoral propriamente dito, puro, deve servir de exemplo para os demais ramos do Poder Judiciário.

E a idéia de se realizar eleições para todos os níveis de uma vez só? - Seria ideal, a meu ver, até em termos de custos. Mas é difícil que se consiga isso, a não ser com a prorrogação dos mandatos. Mas é menos pior prorrogar mandatos do que reduzi-los.

O senhor tem no horizonte uma possibilidade de ter o mandato normal de dois anos como presidente do TSE. Basta que o Congresso aprove, até o fim do ano, o projeto de emenda constitucional que aumenta de 70 para 75 anos a idade-limite para a aposentadoria compulsória dos servidores públicos. Qual é a sua expectativa? O projeto - que já está na Comissão de Constituição e Justiça do Senado - tem chance de ser aprovado? - Dou-me por impedido de responder a essa pergunta, porque teria interesse direto no assunto. Mas sinto-me com muita disposição, com saúde física e mental para o trabalho. Tanto que, se aposentado compulsoriamente em janeiro de 2006, vou dedicar-me à vida acadêmica e a palestras. Tenho até um convite para lecionar no exterior. Mas estou mais disposto a ficar por aqui, na área acadêmica, e dedicar-me também à consultoria jurídica.

Quatro meses depois das eleições municipais, ainda há uma dezena de cidades em que não se sabe ainda se os prefeitos eleitos serão confirmados. Em Novo Hamburgo (RS), cidade de mais de 250 mil habitantes, por exemplo, vai haver novo pleito no próximo dia 6, porque os registros dos dois candidatos mais votados foram anulados, por prática de crimes eleitorais. Não há como evitar situações desse tipo, que se repetem em todas as eleições municipais? - Essas situações são inevitáveis por causa dos recursos de decisões dos tribunais regionais eleitorais ao TSE e, às vezes, até ao Supremo. Temos mais de 5.500 municípios. Se apenas pouco mais de dez desses municípios ainda estão sem prefeitos eleitos, o percentual é ínfimo, acho que 0,25%. Esse percentual mostra

Jornalista

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Antônio Ermírio de Moraes: um brasileiro, exemplo de cidadania

Cármine Antônio Savino Filho

(...) tudo indica que seu incluí-lo na lista de do

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rtigo assinado por Antônio Ermírio de Moraes sobre o Protocolo de Kyoto revelou sua percepção a respeito das questões essenciais para o desenvolvimento sustentável. Recentemente, jornais publicaram pequena matéria, cuja grandeza pode ter passado despercebida nestes tempos ingratos de difícil trânsito das instituições civis. “Um dos mais influentes empresários do país, Antônio Ermírio de Moraes, aproveitou a hora do almoço e atravessou a pé o Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, para cobrar da prefeitura dívida de R$ 6 milhões

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a R$ 8 milhões com a Beneficência Portuguesa, hospital presidido por ele há 35 anos: ‘Vim aqui para deixar, de forma educada, documentos que mostram que a prefeitura nos deve. Precisamos receber este dinheiro para continuar atendendo a nossos pacientes’ “. Antônio Ermírio, presidente do Grupo Votorantim, um dos maiores conglomerados do Brasil, ao estilo franco, direto e pessoal dos grandes empreendedores que não têm tempo a perder, deixa seu escritório a duzentos metros do gabinete do prefeito Serra e vai diretamente cobrar o que é devido ao hospital benemerente que é dirigido por

ele. Uma atitude de modéstia coerente com a simplicidade que se conhece de seu autor. É de se notar como, historicamente, os grandes empreendedores armazenam capacidade pra atender a um sem número de questões complexas simultaneamente, e ainda encontram tempo e disposição para a diversificação de atividades. O grupo Votorantim, presidido por Antônio Ermírio, atua nas áreas de cimento, papel, celulose, alumínio, zinco, níquel, aços longos, química, petroquímica, suco de laranja e também na área financeira por meio de seu próprio banco. Coerente com sua missão e de acordo


com a melhor tradição da vanguarda do empresariado nacional, o grupo fundou em 1992 o Instituto Votorantim, responsável pelo investimento, planejamento e implementação de ações na área social, para “fazer da vida comunitária um ambiente propício para o desenvolvimento social”. A par desta imensa atividade empresarial, Antônio Ermírio, há mais de três décadas, dedica parte de sua jornada diária à presidência da Beneficência Portuguesa, cujo atendimento é feito majoritariamente a pacientes do SUS. Antônio Ermírio, além de escrever e produzir peças de teatro, escreve crônica semanal publicada em rede nacional de grandes jornais do país, como o Jornal do Brasil. Nestas crônicas, Antônio Ermírio se mostra um atento observador da realidade brasileira e dos grandes temas nacionais, educação e desenvolvimento parecem ser os seus prediletos. Todos os inúmeros desafios da política nacional e da geopolítica internacional têm seus espaços freqüentes de discussão coerente e madura.

Mauá é hoje, unanimemente, o símbolo do empreendedor brasileiro de todos os tempos. Ainda no século XIX, em 1846, ele fundou a indústria naval brasileira que já no ano seguinte era a maior indústria do país, produzindo navios, caldeiras, guindastes, prensas, canhões, engenhos de açúcar, encanamentos de água. Fundou a primeira companhia de gás para iluminação pública do Rio de Janeiro, organizou as companhias de navegação do Rio Grande do Sul, implantou a primeira estrada de ferro, inaugurou a estrada União Indústria, pioneira em pavimentação, realizou o assentamento do cabo submarino ligando o Brasil à Europa, construiu novas ferrovias no nordeste e em São Paulo. Fundou o banco Mauá. Delmiro Gouveia, forte presença nas últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX. Aos 15 anos, pobre e analfabeto, Delmiro começou a ganhar seus primeiros trocados como bilheteiro da estação ferroviária de Olinda. Aos 28, fundou

pela revista Isto É, o nome de Delmiro Gouveia foi escolhido por 23 % dos componentes do júri, sendo o único empreendedor brasileiro eleito para esta honraria que não pertencia às últimas recentes décadas dos tempos modernos, como os demais 19 eleitos. Honra, trabalho, patriotismo, dedicação e responsabilidade social. Estes são os traços característicos desses visionários empreendedores, que têm construído este país. Pena que sejam poucos. E voltando a Antônio Ermírio de Moraes, que abre este artigo, tudo indica que seu perfil e desempenho autorizam incluí-lo na futura lista de maiores empreendedores do século 21. A exemplo de seu pai, José Ermírio de Moraes, também citado entre os 20 maiores empreendedores do século XX, genuíno fruto do sertão pernambucano, que com suas agruras e privações tem temperado o caráter e o desempenho de muitos brasileiros ilustres. Mais uma vez, com a palavra o genial Euclides da Cunha: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

Antônio Ermírio parece ter herdado sua visão empreendedora não só de seu pai, José Ermírio, mas também de dois outros gigantes que há décadas honram a História do Brasil: o gaúcho Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, e o cearense Delmiro Gouveia. A biografia de ambos mostra a mesma fé no Brasil, a mesma força de luta, a mesma natureza empreendedora, a mesma coragem de enfrentamento de obstáculos, a mesma desenvoltura diante de injustiças. E, principalmente, a mesma atitude de dedicação ao trabalho, à solidariedade social e a correção de princípios.

sua primeira empresa e aos 35 se já transformara em um respeitado comerciante, dono do maior empreendimento comercial de Recife que incluía hotel, restaurante, parque de diversões e o Mercado do Derby, com produtos à venda pela metade do preço, luz elétrica e funcionamento 24 horas por dia. Por estas razões, quando da eleição dos 20 maiores empreendedores brasileiros do século XX, realizada

Foto: Arquivo

perfil e desempenho autorizam maiores empreendedores século 21.

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. 2005 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


O tribunal europeu de Direitos Humanos

Foto: Arquivo

Ives Gandra Martins

I

nteressante questão foi levada ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ou seja, a que se refere à decisão proferida no caso de Dianne Pretty, de que não existe um “direito de morrer”. O caso foi submetido ao Tribunal, sob a alegação de que a decisão do Tribunal britânico - que concedera à autora o direito de morrer, por sofrer de incapacidade permanente, que lhe tornara a vida intolerável – estava baseada nos artigos 2, 3, 8, 9 e 14 do Convênio Europeu sobre Direitos Humanos. Defendia, Dianne Pretty, ser possuidora do direito de praticar um suicídio assistido, face ao desencanto que sua vida limitada lhe trazia, devendo lhe ser assegurada a possibilidade de abandoná-la, para que não houvesse desrespeito ao seu direito de auto-determinação em relação ao próprio corpo, em decorrência do qual caber-lhe-ia fazer com ele o que desejasse. Dizia mais, que, nos casos de

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incapacidade quase absoluta, a proteção médica absoluta seria desproporcionada. O Tribunal decidiu, entretanto, que os direitos fundamentais só podem servir para proteger a vida e, apesar de respeitar a opinião da recorrente, entendia que, entre os direitos humanos, não está o de provocar a morte. A recorrente alegava que sua pretensão não era defender o direito ao suicídio, indiscriminadamente, nem para casos de pessoas que não fossem portadores de incapacidade igual a sua, hipóteses em que, a seu ver, o Tribunal deveria não admiti-lo. Para o seu caso em concreto, todavia, em face de sua vulnerabilidade, deveria ser atendida. Ao negar o direito ao suicídio assistido, o Tribunal demonstrou quão tênue seria a linha que distinguiria as pessoas que deveriam ser consideradas vulneráveis, das que assim não poderiam ser definidas; as vidas que deveriam ser protegidas pela lei, daquelas que não mereceriam tal proteção.


O suicídio de uma pessoa deprimida deve ser evitado, mas também o daquelas pessoas cujo estado psíquico, provocado por incapacidades reais e irreversíveis, as tornem vulneráveis em relação a uma decisão que implique antecipação da morte. Em resumo, segundo relata a Aceprensa (Ano XXXIII, 8/5/02, 64/02): “el Tribunal no considera legitimo crear una excepción a la protección de la vida, que pondría en peligro a muchas personas en situación de dependência. La “dramatización artificial” de este caso, que ha denunciado el secretario de la Comisión Deontológica de la Organización Médica Colegial de España, Gonzalo Herranz (El Mundo, 30-IV-2002), no ha evitado que la mentalidad jurídica, y con ella la protección de las vidas vulnerables, prevalezca frente a la reclamación de absoluta autodeterminación personal”. No momento em que se discute, no Brasil, o direito da antecipação da morte para os doentes incapacitados ou terminais, o aborto e a manipulação de embriões, a decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos da União

Européia sinaliza na defesa intransigente da vida, que não deve, por interpretações convenientes, por interesse da indústria de medicamentos abortivos ou de morte indolor, ser fragilizado, sob a alegação de que a vida é um direito disponível do cidadão, que deve ter a faculdade de eliminá-lo, se já não mais interessado em pertencer a este mundo. Nada obstante a pressão que profissionais da medicina e laboratórios exerceram no caso em concreto, sinalizou, o Tribunal Europeu de Direitos Fundamentais, de que forma deve a vida ser tratada pelo direito, não se admitindo a antecipação da morte, por mais justificados que sejam os argumentos sociais e pessoais, pois se trata de um direito individual indisponível, que cabe ao Estado proteger. SP., 18/01/2005. IGSM/mos/a2005-003 O TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS Professor Emérito das universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército e Membro do Conselho Editorial.

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Ao negar o direito ao suicídio assistido, o Tribunal demonstrou quão tênue seria a linha que distinguiria as pessoas que deveriam ser consideradas vulneráveis, das que assim não poderiam ser definidas (...)

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Dilemas de Transição Um Caso Exemplar para o Brasil

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Aurélio Wander Bastos

W

inston Churchill, o grande estadista de orientação conservadora, que conduziu a Inglaterra à vitória na Segunda Guerra Mundial, em seu livro editado em 1938 na Inglaterra e recentemente traduzido e publicado no Brasil, Grandes Homens de Meu Tempo, depois de demonstrar o papel de George V (1865/1936) como articulador do pacto político inglês moderno, faz uma excelente descrição do histórico papel do ministro socialista Philip Snowden (1864/1937), que o viera a substituir como Ministro das Finanças no antigo gabinete conservador. Churchill, com a perspicácia astuciosa de seu estilo demonstra exatamente que a monarquia parlamentarista inglesa, harmonizando as divergências entre os conservadores e socialistas -trabalhistas, transmudados, parte dos antigos liberais (whig’s) e sindicalistas - salvou a convivência pacífica entre as tradições do constitucionalismo consuetudinário dos tories e as reivindicações das massas operárias (inclusive das próprias mulheres que lutavam pelo direito de voto) na antevéspera 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2005

da primeira guerra mundial, mas engoliu a independência e a autonomia do ministro Philip Snowden. Homem mergulhado no dilema da confecção de um modelo político para a transição parlamentar inglesa, de uma sociedade rural e neocolonialista para uma sociedade industrial, o papel do ministro das finanças Philip Snowden (1924 e 1929 a 1931), teria sido, apenas, uma ocorrência parlamentar não fosse o seu efeito exemplar para a compreensão e percepção das transições políticas pacíficas, seus autores e suas origens, desde que, para efeitos de análise, reconheçamos no fato histórico exemplar não propriamente uma repetição da figura individual, mas a sua reprodução na personalidade e no papel dos múltiplos atores no processo de transição. Por isto, o fenômeno Snowden é um fenômeno referencial para a compreensão do quadro da transição brasileira, de uma sociedade oligárquica e autoritária para uma sociedade democrática e plurirepresentativa, para justificá-la e/ou prognosticá-la, permitindo que se compreenda que as


histórias do passado nem sempre são a certeza do presente e/ou os riscos do futuro. A história da vida de Snowden que escreveu Churchill, não só faz respeitar o seu caráter, mas as Constituições políticas tolerantes que permitiram que um homem nascido em uma cabana humilde, num vilarejo de York Shire e que passou a vida criando o Partido Socialista, venha a ser Ministro das Finanças, com a força de Primeiro Ministro, no primeiro governo trabalhista de um rico e tradicional país, para numa aparente contradição, por fim, acertar um golpe de misericórdia com indisfarçável disposição no Partido Socialista que criara para combater os programas exclusivistas das classes altas, e que passara a olhar, a partir da convulsão política que tirou os socialistas do poder (1931), com causticante desprezo intelectual. A transição moderada tem nos radicais as suas vítimas, mas reajustam a própria ordem, e a transição radical, também, ao contrário, tem nos moderados suas vítimas, mas tende a evoluir da desordem para nova ordem. Num contexto mais amplo, a narrativa biográfica de Philip Snowden, nos revela as possibilidades abertas de um homem envolvente, originário de um modesto lar inglês, viver uma vida digna fazendo visível o lado rico da pobreza quando amparada numa arraigada fé religiosa, apoiada em princípios morais rígidos

de afirmar, nesta incrível semelhança, ao contrário de seu tradicional programa, que não importa o que o estrangeiro possa fazer, o importante é segurar a liberdade de importação, não importa a que ponto fiquemos sem ouro, o importante é pagar rigorosamente as dívidas, não importa como tenhamos que arranjar dinheiro emprestado, o problema não é a taxação direta altamente progressiva, mesmo que acarrete um estancamento da energia criativa, desde que se garanta “o café da manhã gratuito” para os trabalhadores, mesmo que seja suprido de fora da Inglaterra. Finalmente, discorre Churchill, Snowden enfrentou todos os infortúnios, engoliu e reproduziu a maior parte de seus desatinos, mas conquistou um inquestionável direito de compartilhar dos anos ingleses de prosperidade, embora concluísse “os socialistas quando se tornam ministros, abandonam, na prática, e em grande parte, as teorias e os princípios pregando os quais chegaram ao poder. Foi indiscutivelmente grave insulto e injúria, não apenas aos trabalhadores, mas a toda a nação, fundar um partido de classe comprometido com princípios visionários que só poderiam se concretizar por desesperadas convulsões civis (e pela derrocada da liberdade)”. De qualquer forma, esta conclusão de um conservador autêntico, que via no socialismo uma doença adquirida por más

Philips Snowden encerrou a sua carreira política, não como um líder trabalhista, mas Visconde da Assembléia Hereditária, que, por tanto tempo, na sua ascensão, tentara destruir.

(Snowden era metodista) e no interesse militante pela evolução social, que lhe permitiram enfrentar a profunda crise financeira do Império, adotando, exatamente, os mesmos mecanismos que asperamente condenara em seu antecessor conservador, esnobe e aristocrático, e na sua opinião, o presunçoso Winston Churchill. Todavia, como se víssemos o nosso próprio circuito financeiro, estas providências tornaram-se possíveis, exclusivamente, porque Snowden foi recebido como um dos burocratas do establishement do Tesouro, que com facilidade continuou fazendo de conta que era um socialista, mas, como estadista, preferia e proferia discursos para banqueiros, ou fazia apelos aos seus frustrados eleitores para que seus últimos recursos garantissem a estabilidade financeira do país. Em todo caso, em todo o seu período ministerial, Snowden manteve o compromisso e a proposta de criar e cobrar o imposto sobre a propriedade da terra, imprescindível ao equilíbrio social da época, o que provocou violentas colisões com os conservadores vitorianos. Por outro lado, não cansou

condições de vida e, no socialista, um militante invejoso, é uma trágica conclusão para um socialista militante, principalmente quando precisa admitir “que apenas se ganhou uma eleição, não se fez uma revolução”, que os caminhos econômicos da mudança estão programaticamente engessados pelos titulares dos softwares e as possibilidades da mudança da ordem política não passam pela desordem jurídica. Todavia, Snowden demonstrou, em condições históricas pioneiras, que a dinâmica capitalista pode ser administrada pela ação trabalhista efetiva, aliás, o que seria do capital sem o trabalho, e do trabalho sem o capital, o modelo que politicamente sobreviveu como o parlamentarismo inglês. Philips Snowden encerrou a sua carreira política, não como um líder trabalhista, mas Visconde da Assembléia Hereditária, que, por tanto tempo, na sua ascensão, tentara destruir. Conselheiro da OAB / RJ

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EM DEFESA DA PERMISSÃO DE ÔNIBUS

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Darci Norte Rebelo

N

ão temos o hábito da crítica judiciária e até vivemos repetindo que “decisões judiciais se cumprem e não se discutem”. Na verdade, os veredictos dos juízes e dos tribunais se cumprem e...se discutem. Nos autos pelos advogados das partes, fora dos autos, pela sociedade que não raro é uma litisconsorte oculta sobre a qual as conseqüências das decisões vão recair de forma direta ou indireta. Os tribunais, por sua vez, de tanto trabalhar com a superestrutura jurídica acabam, às vezes, esquecendo a infra-estrutura da realidade. Sobre esta é que se constrói aquela. Segundo as leis da dialética, ambas interagem de modo que a realidade influi no direito e o direito influi na realidade. Por isso que a sábia Lei de Introdução ao Código Civil, recomenda que, ao aplicar a lei, o juiz estará atento aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum [Decreto-Lei n.v 4.657/42, art. 5º]. Essa visão filosófica vem a propósito de mais de uma dezena de decisões do Superior Tribunal de Justiça, segundo as quais as permissões de transporte coletivo por ônibus, não originárias de licitação, não fazem jus ao equilíbrio econômico-financeiro do serviço público que exercem e, por isso, violada essa regra pelo poder concedente, as empresas não têm direito a qualquer indenização1. Tais decisões afetam profundamente a vida das cidades e das permissionárias que asseguram o funcionamento dos equipamentos urbanos. Com isso, recebem os poderes concedentes uma carta de impunidade e um salvoconduto para a arbitrariedade. Segundo o Tribunal, só as

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concessões, de natureza contratual, derivadas de licitações, podem invocar o direito ao equilíbrio da equação entre seus encargos e seus custos. “Inexiste direito à indenização, porque a exigência legal de realização de licitação não foi cumprida”[Resp 443.796], embora anterior à atual Constituição 2. Por esse raciocínio, a VARIG e outras concessionárias aéreas que nunca conjugaram o verbo licitar, jamais poderiam ter vencido as ações de indenização que propuseram contra a UNIÃO perante o mesmo Tribunal. Nenhuma delas nasceu de licitação alguma. Na essência, a ação proposta contra a União pela VARIG é a mesma que dezenas de empresas permissionárias promoveram contra o poder concedente de Minas Gerais. Mas a solução dada pelo STJ ao Estado mineiro foi diferente da que proferiu contra a União.Negou a estas o que deu àquela. Disse o STJ em um de seus Acórdãos: “Na hipótese em exame, independentemente da natureza da permissão [condicionada ou não], inexiste direito à indenização, porque a exigência legal de realização de licitação não foi cumprida”. Falou o Tribunal como se a mensagem do art. 175 da Constituição valesse para o passado e não para o futuro. O culto à licitação, inspirado no advérbio “sempre” constante do fraseado do art. 175 da Constituição, passou, assim, a receber novos adeptos em quase todas as turmas do Tribunal. Enquanto o Tribunal unge os novos deuses emergentes da Constituição de 88, dá a extrema unção a centenas de permissionárias [100.000 ônibus] que, em


No Acórdão, o Tribunal diz, com clareza: “Vê-se que é irrelevante à aplicação do preceito constitucional, a qualidade de permissionárias das empresas de transporte urbano”

legisladores ora empreguem um vocábulo, ora outro, ou os dois indiferentemente, demonstrando a falta de clara determinação conceitual”[Direito Administrativo, Rio, 1969, p. 155]. Referindo-se a “empresa permissionária de transportes urbanos”, afirmou o seu “inconteste direito de não ver ameaçado o equilíbrio econômico-financeiro que normas legais e regulamentares expressamente tutelam e preservam” 5. “Trata-se - diz a prof. Maria Sylvia di Pietro -, de um empreendimento que, como outro qualquer, envolve gastos; de modo que dificilmente alguém se interessará, sem ter as garantias de respeito ao equilíbrio econômicofinanceiro.” 6. Aos críticos do status contratual que a Constituição conferiu às permissões vale lembrar que, no âmbito dos tribunais, o Supremo Tribunal Federal muitas vezes aplicara os princípios protetores da concessão ao regramento da permissão mesmo quanto às não-condicionadas. No MS 18.787-SP, a Corte rejeitou a alegação de precariedade da permissão como se vê da seguinte ementa: “Permissão para exploração de serviço de transporte coletivo. Serviço

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todo o Brasil, operam sob o regime condenado como precário, ilegal e destituído de proteção jurídica. Além de mais 60.000 ônibus interestaduais e intermunicipais, grande parte submetidos também ao regime jurídico de permissões [Decreto 2.521/98; antes. 952/93]. “A permissão – registrava em vida Hely Lopes Meirelles - vem sendo a modalidade preferida pelas administrações federal, estaduais e municipais para delegação de serviços de transporte coletivo a empresas de ônibus nas respectivas áreas de sua competência, muito embora o Código Nacional de Trânsito [Lei 5.108, de 21.9.66] admita também a concessão e a autorização” 3. Por isso mesmo, outro não menos eminente mestre, Miguel Reale, em parecer já antigo, meditando em torno da realidade dos transportes coletivos e do seu regime jurídico, disse-o, em parecer, e após, em livro, que “a permissão (...) tem semelhanças, quanto ao seu exercício, com a concessão” 4. No seu “Direito Administrativo”, o professor repete: “Poder-se-ia dizer que a permissão se constitui como se fora autorização e é exercida como se fora concessão, o que explica que nossos

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Foto: Alex Viana

instalado e em funcionamento. Impossibilidade de anularse a permissão, unilateralmente, sem forma nem figura de juízo” [Ac. de 7.10.68 7. Em outro precedente, o S.T.F. estabeleceu que “não pode o prefeito cassar permissão administrativa para exploração de serviços funerários auxiliares sem inquérito regular e com cerceamento de defesa das interessadas” 8. Comentando essa decisão, Hely Lopes Meirelles expressa: “Vê-se, por esse Acórdão, que mesmo os permissionários de serviço público, que estão sujeitos a uma ingerência mais intensa do Poder Público, não podem ter sua permissão cassada e sua atividade interditada sem processo e ampla defesa” 9. Da mesma forma pronunciou-se o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em 30 de julho de 1.965 10. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por sua vez, enfatizou que “o objetivo da norma constitucional é fundamentalmente assegurar a continuidade e a qualidade dos serviços públicos, cujo interesse social é igual nas concessões como nas permissões” 11. No Acórdão, o Tribunal diz, com clareza: “Vê-se que é irrelevante à aplicação do preceito constitucional, a qualidade de permissionárias das empresas de transporte urbano”. Pontes de Miranda, já nos “Comentários à Constituição de 1.969, discursando sobre o art. 167 daquela Carta, alertava que “a regra jurídica do art. 167, I, tem grande relevância, porque qualquer concessão, autorização ou contrato concessivo ou autorizativo, fica sujeito ao respeito ao art. 167, I. A própria cláusula inserta

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em ato estatal unilateral, bilateral ou plurilateral que dispensa a futura adequação obrigatória do serviço seria ofensiva do art. 167, I, e, pois, nula”, o mesmo valendo para os demais incisos daquela disposição inclusive quanto ao princípio do equilíbrio econômico-financeiro dos serviços 12. Disse-o ainda Reale em outra passagem: “Não me parece haver dúvida, por conseguinte, de que o titular de uma chamada ‘permissão de transporte coletivo’ goza de um status jurídico de natureza bilateral, insuscetível de ser alterado por ato da Administração que não se concilie com os preceitos regulamentares próprios, sob pena de lesão a uma situação jurídica constituída, isto é, a um ‘direito subjetivo’, para empregarmos a terminologia tradicional.” 13. Já o ex-presidente do STJ, Ministro Américo Luz, assim se expressou: “Isto quer dizer que a prestação do serviço público é feita em nome do poder público, ‘sob condições alteráveis unilateralmente pelo estado’, só que, além de a tarifa dever-se cobrar ao usuário do serviço público permitido, há a obrigação de manter-se o equilíbrio econômico-financeiro inicial, no caso desrespeitado pela administração quando altera a permissão quebrando aquele equilíbrio.” 14. A contratualidade da permissão não é, hoje, questão doutrinária, mas determinação constitucional. Os manuais podem continuar a dizer que a permissão é precária. Melhor diriam que, depois de 88, a permissão de serviço público deixou de ser precária, mesmo aquelas que nasceram da informalidade e nela se consolidaram com o batismo

O país real é transportado na roda de centenas de permissionárias todos os dias, para permitir que os cidadãos exerçam seus direitos individuais de moradia, emprego, educação, saúde, lazer.


constitucional. Logo, é constitucional a obrigação básica, fundamental e inafastável do poder público relativa à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos serviços. Por tudo isso, marcha na contra-mão da boa doutrina as recentes decisões do STJ no sentido de que a permissão nada garante, sequer o equilíbrio econômico-financeiro dos serviços, quando não precedida de licitação, mesmo que se trate de permissão anterior a 1.988. Contribui para tal equívoco o preconceito doutrinário contra as permissões. Embora reconhecidas no texto do art. 175 da Constituição -que lhe deu roupagem contratual em homenagem aos sessenta milhões de brasileiros que utilizam diariamente os transportes urbanos por ônibus-, a Lei 8.987/95, no art. 40, ao regulamentar o art. 175 da Carta Magna, despiu desavergonhadamente as cândidas vestes das permissões, nelas postas pelo legislador constituinte, afirmando que, mesmo sendo contratuais, as permissões eram precárias e revogáveis unilateralmente pelo poder concedente. A doutrina passou desatenta sobre essa grave violação constitucional. A norma regulamentadora traindo a norma regulamentada ao estabelecer que o contrato...não é contrato. Não é de admirar, portanto, que os Tribunais acabem dando ouvidos ao legislador ordinário que, ao regulamentar a norma editada pelos constituintes, transgrediram o texto, violaram a história, voltaram as costas para a realidade e

acabaram condenando o sistema essencial de transporte coletivo como um subproduto da atividade econômica, cheio de obrigações de toda ordem e sem direito algum. Por isso, impõe-se lembrar que as decisões judiciais não se destinam a um país virtual, mas a um país real. O país real é transportado na roda de centenas de permissionárias todos os dias, para permitir que os cidadãos exerçam seus direitos individuais de moradia, emprego, educação, saúde, lazer. São as cidades que se deslocam, apenas nos transportes urbanos, nessa “roda gigante” da economia do país. Não entraram, como também não o fez o transporte aéreo, pelas portas da licitação, até mesmo porque, antes de 1.988 as porteiras estavam abertas ao convite do poder público. Por isso, o Tribunal ao recusar legitimidade às permissões de ônibus, profere uma decisão alienada da realidade e condena as permissionárias a uma prisão aberta num presídio de insegurança máxima de onde só poderão sair mediante um derradeiro apelo ao Supremo Tribunal Federal. Como se espera que ocorra, porque, no fundo, a Constituição foi negada e a realidade foi esquecida.

Consultor Jurídico da FETERGS Membro do Colégio de Advogados da NTU

Notas Bibliográficas 1 Sucessivas decisões do STJ vêm fulminando ações de indenização propostas por permissionárias de ônibus que tiveram tarifas praticamente congeladas durante longo período e acumularam passivos consideráveis. A maior parte dos recursos em que o STJ recuou a indenização das prejudicadas provém de Minas Gerais [v.g., Resp n. 403.905 [Transrosa Ltda e outros; 443.796 [Transbus Transportes Ltda]; 410.367 [Coletivos Venda Nova Ltda e Outros]; 437.620 [Auto Viação Pioneira Ltda]; 431.424 [Viação São Geraldo Ltda]; 406.712 [Viação Serra Verde Ltda]; 400.007 [Coletivos São Lucas Ltda]; 443.816 [Viação Itamarati Ltda]; Ag/Re 16.936 [Betânia Ônibus Ltda]; AG 537.594 [Transimão Transportadora Simão Ltda]; AG/RE 13.491 [Auto Viação Santo Agostinho Ltda]; Resp 468.207 [Viação Sidon Ltda]; AG 578.463 [Viação Pedro Leopoldo Ltda].; 2 O Tribunal esqueceu a própria lição. No Resp. 221/DF, de 23 de agosto de 1.989, decidira anteriormente: “Antes da CF/88, o ato de permissão do serviço público não exigia prévia licitação, razão pela qual não foi contemplado no art. 4º da Lei nº 4.717/65, que enumera as hipóteses de lesividade presumida”.. 3 Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 17a. ed. Malheiros, SP, 1.992, p. 352, observa que “a cassação da permissão, com natureza de sanção, exige procedimento administraivo, com direito de defesa”[TJSP, RJTJSP 116/195.. 4 Revista de Direito Público, 6/82. 5 Reale, Miguel. Parecer, “Concessão e Permissão de Serviço Público”, in Revista de Direito Público, 6/78. 6 (MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, Direito Administrativo, Atlas, 3ª ed., 1992, pág. 221. 7 RTJ 47/650. 8 Revista de Direito Público, 26/147, RE 63.382. 9 Meirelles, Hely Lopes. Estudos e Pareceres de Direito Público, ed. RT, SP, vol. V, p. 58. 10 Revista dos Tribunais, 340/320; cf., ainda, Parecer de Marco Aurélio Greco, in Vox Legis, vol. 145. 11 Pleno, 1.10.84, in Rev. de Jur. do TJ do RGS, 107/219. 12 Dispunha o art. 167 da Constituição de 67/9: “A lei disporá sobre o regime das empresas concessionárias de serviços públicos federais, estaduais e municipais, estabelecendo: I - obrigação de manter serviço adequado; II - tarifas que permitam a justa remuneração do capital, o melhoramento e a expansão dos serviços e assegurem o equilíbrio econômico e financeiro do contrato e III - fiscalização permanente e revisão periódica das tarifas, ainda que estipuladas em contrato anterior”. 13 A Ordem Processual Administrativa como Condição de Garantia Individual - Características da Permissão de Serviços de Transporte Coletivo, Revista de Direito Público, vol. 18, pág. 86). 14 Acórdão in Revista de Direito Administrativo, vol. 186, pág. 138.

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Dividindo o indivisível e relativando o relativismo Em matéria de direitos humanos Foto: Divulgação

Regina Coeli Medeiros de Carvalho Peixoto

INTRODUÇÃO O presente trabalho destina-se a trazer à colação a questão da indivisibilidade dos Direitos Humanos, sob o ponto de vista daqueles que entendem que estes são universais e indivisíveis e daqueles que entendem que devam ser relativados, tendo-se em conta o respeito à cultura e soberania dos povos. Inicialmente, traremos os conceitos de indivisibilidade e relativismo, na visão dos estudiosos da questão, suas origens e destinos. Em seguida, a opinião dos pensadores que não adotam qualquer das duas posições, de forma radical, e propõem linhas intermediárias de abordagem na questão dos direitos humanos, através da regionalização em cortes intermediárias, fazendo respeitar as características individuais de cada grupo. Por fim, apresentamos a nossa conclusão com a analise do problema, sob o ponto de vista do princípio universal do respeito à dignidade humana e as diretrizes que entendemos devam ser tomadas, na renegociação visando uma Corte Mundial. O CONCEITO DE INDIVISIBILIDADE E SUA ORIGEM. Segundo Lindgren, in Cidadania, Direitos Humanos e 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2005

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Globalização , a origem da indivisibilidade dos Direitos Humanos repousa no fato de que, desde que os Direitos Humanos foram adotados pela ONU, estes sempre padeceram de desequilíbrio quanto a sua priorização, tendendo para os de primeira geração. Observa que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, não priorizou espécies de Direitos Humanos, mas nos dois pactos firmados para os dois blocos de direitos, cada bloco divergia do outro, em termos de proteção. O bloco de direitos civis e políticos, dispunha de um comitê de peritos, encarregados de monitorar a implantação, acolhendo inclusive queixas individuais, enquanto o outro bloco de direitos sociais e econômicos e culturais não foi agraciado com essa proteção, embora tenham tentado suprir a lacuna, criando comitês com essa finalidade, porém sem direito à acesso individual, como o primeiro. Diante dessa disparidade, os países em desenvolvimento estabeleceram esse mecanismo de proteção que é a indivisibilidade de todos os Direitos Humanos, reafirmado pela ONU inúmeras vezes. Na verdade, segundo o referido autor, a indivisibilidade foi infirmada pela declaração de alguns países em desenvolvimento que violavam direitos civis, sob a alegação da necessidade de


priorizar o desenvolvimento, além dos direitos econômicos e sociais. Nesse sentido, o Prof. Lindgren, na mesma obra, entende que o desenvolvimento não garante o respeito aos demais Direitos Humanos. Relata, ainda, que o término da Guerra Fria e a Queda do Muro de Berlim foram eventos que levaram a crença de que o processo de democratização era irreversível, gerando a convocação para a Conferência de Viena em 1993. Segundo ele, essa conferência estabeleceu conceitos importantes, como da universalidade, da legitimidade do monitoramento internacional de violações, a interrelação entre os Direitos Humanos, o desenvolvimento e a democracia, o direito ao desenvolvimento e a interdependência entre todos os Direitos Humanos. Nesse sentido, reputa essa conferência como a mais importante no discurso contemporâneo sobre Direitos Humanos. Na sua obra, constata que o fenômeno mais importante após a Guerra Fria é a globalização. Se antes ocorria a bipolarização liberalismo X comunismo, com o EstadoPrevidência nos países desenvolvidos, objetivando afastar a contaminação pela utopia antagônica, o que se vê, hoje, é a adoção do laissez faire absoluto, sob a alegação de que a liberdade de mercado leva à liberdade política e a democracia. Com isso justificou-se o investimento em países de

Inicialmente, tenho que, de mister, uma perspectiva histórica da origem da indivisibilidade: 1. A Carta das Nações Unidas não menciona esse conceito; 2. A Declaração Universal dos Direitos do Homem também nada menciona; 3. O Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto sobre Direitos Civis e Políticos, mencionam a interdependência entre todos os direitos humanos. Por esse motivo, entende-se que o conceito de interdependência foi precursor da indivisibilidade. 4. A Proclamação de Teerã de 1968 faz menção explícita à indivisibilidade, embora não a justifique ou a defina. Nessa carta, afirma-se ser impossível atingir-se plenamente os direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais e vice-versa. 5. A Convenção Européia de 1950 trata de direitos civis e políticos, mas não fala da indivisibilidade. A Carta Social Européia de 1961, na ata final de Helsinque conclama os Estados participantes a “promoverem e estimularem o exercício efetivo dos direitos e liberdades civis, políticos, econômicos , sociais, culturais e outros, que se originam em sua totalidade, da dignidade inerente ao ser humano e são essenciais para seu livre e pleno desenvolvimento”(Seção VII, parágrafo segundo).

No que concerne ao principio da indivisibilidade, tenho que este é o ideal da humanidade: que todos os direitos humanos sejam implantados na sua totalidade, sem seletividade e priorização. regime autoritário, aceitando neles o sacrifício das liberdades civis e políticas em favor do desenvolvimento. Nos países de sistemas democráticos as proteções mercadológicas, trabalhistas e previdenciárias foram objetadas em nome da modernidade, assim como o Estado-Previdência em razão da fatalidade do desemprego. Entende o autor que essas são as premissas para o desenvolvimento vertiginoso da globalização. Constata, também, que a indivisibilidade só tem guarida naqueles Estados-previdência, pois , sem as prestações positivas ofertadas por essas instituições, o que se vê é uma cidadania incompleta. De outra banda, temos que Clarence Dias, no seu texto Indivisibilidade, In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no 2 Século XXI, preleciona que os conceitos de universalidade, indivisibilidade, interdependência e inter-relacionabilidade em matéria de Direitos Humanos estão completamente sedimentados. Porém, põe em discussão se há consenso universal quanto à indivisibilidade e qual seria o seu conceito e que passos deveriam ser tomados para a sua plena realização.

6. O protocolo adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos na área dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais(Protocolo de San Salvador adotado em 1988) trata do conceito de indivisibilidade no seu preâmbulo. Esse protocolo baseia a indivisibilidade no reconhecimento da dignidade humana, reafirmando o papel da indivisibilidade na plena realização de todos os direitos, negando a prática de compensações adotadas pela escola asiática. 7. A Carta Africana (Nairobi, 1981) propõe um conceito de indivisibilidade que relaciona direitos econômicos, sociais e culturais aos direitos políticos, relacionando, assim, direitos individuais a coletivos e encarando o desenvolvimento como forma de consolidar a indivisibilidade. 8. A região Ásia-Pacífico é a única que não possui acordo regional sobre direitos humanos, mas a Sexta Oficina (Teerã, 1998) reafirma a universalidade, indivisibilidade e interdependência dos Direitos Humanos. Assim, a Professora Clairence Dias, na obra já referida, afirma que o conceito de indivisibilidade encontra-se introduzido de forma definitiva nas normas internas e internacionais. Nesse sentido, conclui que os direitos humanos e da pessoa 2005 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


humana são indivisíveis, são inerentes e emanam da própria natureza humana. A indivisibilidade é uma relação mútua, vez que o gozo dos direitos humanos é que torna humana a vida das pessoas; eles existem para garantir o mais preciosos dos direitos: de ser e permanecer humano. Segundo ela, o conceito de indivisibilidade confere aos grupos minoritários uma base sólida para que reafirmem o caráter inato desses direitos, apresentando cinco dimensões, infirmando esse conceito: 1- Todos os direitos humanos são iguais não cabendo alegação de precedência de um sobre o outro. Portanto, não há gradação; 2- É dever dos Estados promover e proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais; 3- Não se permite qualquer tipo de concessão em matéria de direitos humanos; 4- Não poderá haver concessões entre desenvolvimento e direitos humanos, embora alguns governos asiáticos aleguem que o desenvolvimento econômico deve ter precedência sobre outros direitos; 5- Em razão da indivisibilidade não se realiza os direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Todos os direitos são iguais. Conclui, ressaltando que a indivisibilidade é chave para o avanço da universalidade, interdependência e interrelacionamento dos Direitos Humanos, havendo mais violações em relação à indivisibilidade do que aos demais princípios. No que concerne ao Programa de Direitos Humanos das Nações Unidas, verifica-se que começou com a criação da Comissão sobre Direitos Humanos e o Centro para Direitos Humanos e concentrou a sua ação no monitoramento das violações de Direitos Humanos, especialmente os direitos civis e políticos, não havendo sinais de inclusão do princípio da indivisibilidade nas atividades do programa. Com relação aos Estados Membros, apesar de aceitarem o princípio, não o vêm aplicando. Organizados em grupos esses Estados persistem na prática da seletividade. Os EUA recusam-se a reconhecer os direitos econômicos, sociais e culturais. O Vaticano junto com as religiões islâmicas

(...) a conexão entre a mudança social e mudança na teoria e na prática dos direitos fundamentais sempre existiu, os direitos sociais é que a tornaram mais evidentes.

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recusam-se a reconhecer diversos direitos da mulher, os da reprodução especialmente, sem contar o grupo asiático que relativiza a importância dos direitos civis e políticos. A ratificação do Pacto sobre direitos econômicos, sociais e culturais não aconteceu e os avanços têm sido lentos. No que concerne a indivisibilidade há uma grande distância entre a retórica e a realidade, ocorrendo crescente falta de credibilidade. O RELATIVISMO E SUA ORIGEM. Nesse estado de indefinição e falta de credibilidade quanto a implantação definitiva do princípio da indivisibilidade, instalou-se o relativismo, que originou-se com o desafio dos valores asiáticos. A questão se introduziu com a tese de Lee Kuan Yew sobre os valores asiáticos, tendo sido seus comentários considerados simplistas, pretensiosos e fechados em interesses próprios. A escola do pensamento de Cingapura tem as seguintes convicções: 1- os valores asiáticos são diferentes dos ocidentais. Os asiáticos dão ênfase aos laços familiares, a prioridade da comunidade sobre o individuo, a estabilidade social e a ordem pública acima da democracia. 2- as mudanças sociais e econômicas da modernização trazem instabilidade, a menos que haja um governo autoritário, pois a democracia gera indisciplina e desordem que são inimigas do desenvolvimento. 3- os líderes asiáticos estão corretos ao estabelecer que as necessidades materiais do povo estão acima das liberdades pessoais e direitos individuais. 4- as políticas participativas não devem ser impingidas às sociedades asiáticas pelo ocidente. 5- os valores asiáticos e os impulsos culturais favorecem mais os deveres que os direitos, as responsabilidades mais que as liberdades, o desenvolvimento mais que a democracia liberal e a estabilidade social mais que o pluralismo político e cultural. Quando esses princípios foram anunciados, também seguidos por Mahatir Mohamed, houve um grande apoio aos problemas enfrentados por eles, especialmente os problemas multirraciais. Os dois pensadores têm sido críticos severos do imperialismo ocidental e vêm sendo amplamente apoiados pela imprensa chinesa e demais. O governo chinês, em 1991, no White Paper, adotou a tese da concessão entre direitos humanos e desenvolvimento, declarando que comer e se agasalhar são as demandas básicas do povo chinês que por muito tempo sofreu com fome e frio e, ainda, acrescentou que a questão dos direitos humanos está circunscrita à soberania de cada estado. Posteriormente insurgiram-se quanto a tentativa da imposição de padrões pessoais a outras culturas, sob o manto dos Direitos Humanos, havendo proposta, por parte de Mahatir,


no sentido de ser revista a Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma vez que suas origens e natureza são ocidentais. Segundo a Profa. Clairence, na obra supracitada, os valores asiáticos que até então eram mera divergência, agora ameaçam romper a corrente global dos Direitos Humanos, que são a maior conquista do século. A ANÁLISE DESCOMPROMISSADA. 3 Norberto Bobbio, in “A Era dos Direitos”, fala-nos que, na verdade, o pós guerra propiciou dois fenômenos: o da multiplicação e o da universalização. Nesse sentido, constata que o fenômeno da multiplicação dos direitos se deu por três motivos: 1- Maior quantidade de bens merecedores de tutela; 2- Extensão de alguns direitos do homem a outros titulares; 3- Porque o próprio homem não é mais visto individualmente, mas num contexto: velho, mulher, criança etc. Portanto, em substância: mais bens, sujeitos e status. Os três processos possuem interdependência e revelam a necessidade de fazer referência a um contexto social. Menciona, no primeiro caso, a passagem dos direitos de liberdades negativas (religião, opinião de imprensa), para direitos políticos e sociais, com intervenção direta do Estado. No segundo, a passagem do indivíduo singular, titular dos direitos naturais, para sujeitos diferentes do individuo: família, minorias étnicas e religiosas e até mesmo para animais e a natureza onde respeito e exploração passam do individuo para esses novos atores. No terceiro processo, sai o homem genérico para o homem específico(sexo, idade, condições físicas), bastando examinar as cartas de direito nos últimos quarenta anos. Assim, segundo Bobbio, os direitos de liberdade negativa valem para o homem abstrato. A liberdade religiosa foi se estendendo a todos e o mesmo processo se estendeu para os direitos a liberdade: “todos os homens são iguais” (art.1º da Declaração Universal). Essa universalidade, segundo ele, não vale para os direitos sociais e políticos, nos quais os indivíduos só são iguais genericamente, mas não especificamente, nestes existem diferenças de grupos para grupos (Ex: direito ao voto, que era exclusivo masculino). Hoje os menores não votam, concluindo-se que no reconhecimento dos direitos políticos há que se levar em conta as diferenças, justificando um tratamento não igual. Constata que a doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia jusnaturalista, que parte do princípio de que os direitos do homem são poucos e naturais (vida, sobrevivência etc.) e que, segundo Kant, o único direito do homem é o direito à liberdade em face de todo o constrangimento imposto pela vontade do outro, sendo que todos os outros direitos estão incluídos nela. Ressalta, ainda, que o estado de natureza era uma tentativa de racionalizar determinadas exigências que iam se ampliando cada vez mais, inicialmente nas guerras de religião, a necessidade de liberdade de consciência contra toda forma de imposição de

O relativismo não é nenhum pecado mortal, se procurarmos entender as peculiaridades culturais de cada um. uma crença e, num segundo momento, na época das revoluções inglesa, americana e francesa, quando houve a demanda de liberdades civis contra todo nepotismo. A passagem da hipótese racional para a análise da sociedade real e de sua história vale com maior razão hoje que as exigências de proteção a indivíduos e grupos que vieram de baixo, aumentaram e continuam a aumentar, sendo certo que a ampliação dos direitos demonstra que o ponto de partida hipotético do estado de natureza perdeu toda a plausibilidade, mas nos fazem refletir que o mundo das relações sociais que dela derivam é muito mais complexo, não bastando os direitos fundamentais como a vida, a liberdade e a propriedade. Assim, a conclusão do autor é de que a análise dos direitos humanos não pode ser dissociada da análise do desenvolvimento da sociedade e ressalta que não há uma carta de direitos atuais que não inclua, por exemplo, o direito à educação, primeiro elementar e depois secundária, pouco a pouco chegando à universitária. O estado de natureza não dá notícias de menção ao direito à instrução. As principais exigências dizem respeito a liberdade face às Igrejas e ao Estado. Reafirma que as novas exigências de direito de liberdades civis eram fundadas na existência de direitos naturais, prova disso é que as exigências sociais tornaram-se mais numerosas, quanto mais rápida e profunda foi a transformação da sociedade. A proteção dada aos idosos é decorrente do aumento da população idosa e da expectativa de vida, decorrente das mudanças nas relações sociais e progressos da medicina. Constata, assim, que a conexão entre a mudança social e mudança na teoria e na prática dos direitos fundamentais sempre existiu, os direitos sociais é que a tornaram mais evidentes. A Profa. Flávia Piovesan, in “Direitos Humanos e Jurisdição 4 Constitucional Internacional” , menciona que, na verdade, a internacionalização dos Direitos Humanos é recente, tendo surgido como uma resposta, da humanidade, ao nazismo. Na sua análise constata que a guerra foi a destruição e o pósguerra a reconstrução, fortalecendo a idéia de que essa proteção não pode se restringir a competência nacional, prenunciandose, assim, o fim da era em que o Estado tratava seus nacionais como um problema de jurisdição interna. Analisando os tratados internacionais, constata que estes enfocam quatro dimensões: 2005 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


1- um consenso internacional para adotar parâmetros mínimos para a dignidade humana; 2- a imposição de deveres jurídicos aos Estados, positivos ou negativos; 3- instituem órgãos de proteção aos direitos; 4- criam mecanismos de monitoramento, objetivando a implementação desses direitos. Enfim, estabelece o conceito do “mínimo ético universal”, como um fator de relativização da noção de que vivemos um relativismo cultural que inviabiliza a construção de valores universais capazes de se tornarem balizadores da humanidade, a despeito das diferenças culturais existentes na sociedade internacional. Nesse sentido, aponta o aparecimento das Cortes Regionais, como a Européia, Sul-americana e Africana, além de um incipiente sistema árabe e asiático, ao lado do sistema global, consolidando os dois sistemas (ONU e Regionais). Ressalta, nesse giro, que embora dicotômicos, os dois sistemas são complementares e interagem em benefício dos protegidos. CONCLUSÃO: No que concerne ao principio da indivisibilidade, tenho que este é o ideal da humanidade: que todos os direitos humanos sejam implantados na sua totalidade, sem seletividade e priorização. Não há dúvida de que devamos lutar por isso, sendo inadmissível que ainda não se tenha avançado para a sua aproximação, pois sequer estamos tangenciando o mínimo ético universal. O Prof. Andrei Koerner in “ O papel dos direitos humanos na política democrática: uma analise preliminar” 5 e in “ Ordem política e sujeito de direito no debate sobre 6 direitos humanos” , adota uma posição de espera, pois após os ataques de 11 de setembro, ocorreram muitas mudanças e houve um retrocesso na negociação dos direitos humanos, sendo necessário um lapso de tempo para que se retome os caminhos já percorridos. Os ataques terroristas têm sido um “jato de água fria” no princípio da universalidade. Há ódios seculares, rancores que parecem invencíveis e máguas ainda muito recentes. A ferida está, ainda, aberta e exposta. A reação dos países asiáticos às propostas ocidentais é muito contundente e não pode deixar de ser apreciada. Estamos lidando com civilizações milenares, que guardam convicções de que seus princípios são os corretos e não aceitam adotar princípios ocidentais em substituição às suas culturas e tradições. Um exemplo típico desse espírito, de não se curvar aos valores ocidentais, é o que vem acontecendo com o surgimento dos homens-bomba e os ataques suicidas, demonstrando claramente que preferem morrer a ter que sepultar suas convicções morais e religiosas. A tentativa de forçar uma negociação para a adoção do 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2005

princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, significa sepultar de uma vez por todas a possibilidade de algum dia atingirmos a cidadania universal pregada por Kant ou seja, o princípio da universalidade. Vejo com reservas a adoção radical do princípio da indivisibilidade pela ONU, pois um posicionamento nesse sentido somente irá afastá-la do grupo relativista, composto especialmente pelo bloco asiático e por outras nações que acabam por assinar tratados, aceitando conceitos semelhantes, apenas por medo de retaliações e isolacionismo. Nesse sentido, as Nações Unidas devem se abster de tais posicionamentos, prevenindo-se da possibilidade de acabar por falar sozinha e restar sem interlocutores. Constata-se, facilmente, esta tendência quando se houve o grupo asiático propor a reformulação da Declaração Universal, considerando que a mesma foi erigida com base em conceitos e valores ocidentais. A questão toma proporções visíveis, quando os Estados Unidos, considerado um dos modelos de capitalismo e de democracia universais, vem violando reiteradamente os direitos econômicos, recusandose a ratificá-los em relação aos demais Estados, por evidente medida de protecionismo aos seus interesses. Entendo que devamos retomar as negociações, quando possível, pelo mínimo básico à dignidade humana que é o direito à vida, abolindo-se a pena de morte no mundo inteiro. Se os responsáveis pela implantação e monitoramento das violações de direitos humanos não se mobilizarem, inicialmente, pelo supremo direito à vida, tudo restará na retórica e os agentes responsáveis pela implementação dos direitos humanos e monitoramento das violações terminarão por cair no descrédito. Concomitantemente, à evidência da dificuldade da internacionalização das constituições, vê-se, claramente, o florescimento dos direitos regionais, como o Tribunal Europeu e a Corte Interamericana que, com a última reforma passou a ser dotada de maior jurisdicionalização. Importante destacar que o Prof. Cançado Trindade, in “Consolidação da Capacidade Processual dos Indivíduos na 7 Evolução da Proteção Internacional do Direitos Humanos” , dá conta da regionalização em relação aos países árabes e africanos, restando, tão somente, ao bloco asiático aderir ao movimento. Creio que, com isso, avançou-se bastante. Sobre esta questão, insta ressaltar a contribuição trazida pelo Prof. Blanke , da Universidade de Direito Internacional de Erfurt, no primeiro Seminário “A tutela judicial no sistema multinível”, promovido pelo Conselho da Justiça Federal, em setembro de 2004, quando nos trouxe a experiência da Alemanha em relação ao Tribunal de Estrasburgo. Segundo ele, a jurisprudência emanada da Corte Regional, em nada vem contribuindo para o Poder Judiciário alemão, uma vez que as garantias individuais previstas na Constituição da Alemanha são mais abrangentes que aquelas oferecidas pelo estatuto daquela Corte. Esse, na minha modesta opinião, deve ser o nosso ideal e é, já que a nossa Constituição Cidadã inspirou-se, em parte, no texto “tedesco” e, também,


no modelo espanhol, considerados os textos com maior amplitude de garantia aos direitos fundamentais. A direção a ser tomada é essa, sem sombra de dúvidas, uma grande amplitude de direitos previstos na legislação interna, a integração das Cortes Regionais até a total sistematização numa Corte Mundial, seguindo o ideal kantiano, da Constituição Universal. Por esse motivo, entendo, que aqueles autores que defendem radicalmente a adoção do princípio da indivisibilidade, ressalvados o que não adentram a questão, encontram-se na contra-mão da história, ao tentarem impor ao mundo, um pacote de direitos humanos que entendem universais e indivisíveis. O relativismo não é nenhum pecado mortal, se procurarmos entender as peculiaridades culturais de cada um. A indivisibilidade é um ideal que devemos buscar e não

um óbice a adoção de um mínimo básico: ou tudo ou nada é um jogo desvalorado quando estamos lidando com pessoas. Como exigir direitos políticos, econômicos e culturais para pessoas que vivem abaixo do nível de pobreza; a miséria humana, a total perda da dignidade. O trabalho há que começar pelas bases sim, obtendo de todos os Estados um mínimo essencial para que seus nacionais tenham dignidade e só assim, os organismos internacionais poderão agir e exigir o cumprimento do ratificado. Destarte, conclui-se que a relativação do relativismo e a divisão da indivisibilidade vem sendo, aos poucos, implementadas, com a criação das Cortes Regionais, que detêm as peculiaridades de cada grupo intermediário, sem deixar de atender aos princípios básicos devidos à dignidade da pessoa humana. Juíza Federal do Rio de Janeiro

Notas Bibliográficas (1) LINDGREN ALVES, José Augusto. Cidadania, Direitos Humanos e Globalização. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional. Ed. Max Limonad, São Paulo, 2002, pg.77-98. (2) DIAS, Clarence. Indivisibilidade. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais/Fundação Alexandre de Gusmão, 1998. (3)

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Ed. CAMPUS, Rio de Janeiro, 1992, pgs. 49-83.

(4)

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Jurisdição Constitucional Internacional. Mimeo, 2004.

(5) KOERNER, Andrei. O papel dos direitos humanos na política democrática: uma análise preliminar. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.18, no.53,  São Paulo, 2003. (6) KOERNER, Andrei. Ordem política e sujeito no direito no debate sobre direitos humanos. In: Revista Lua Nova no. 57   São Paulo 2002. (7) CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Consolidação da Capacidade Processual dos Indivíduos na Evolução da Proteção Internacional dos Direitos Humanos. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais / Fundação Alexandre de Gusmão, 1998.

Bibliografia BENVENUTO LIMA Jr., Jaime. O Caráter Expansivo dos Direitos Humanos na Afirmação da sua Indivisibilidade e Exigibilidade. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional . Ed. Max Limonad, São Paulo, 2002. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Ed. CAMPUS, Rio de Janeiro, 1992. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Consolidação da Capacidade Processual dos Indivíduos na Evolução da Proteção Internacional dos Direitos Humanos. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais / Fundação Alexandre de Gusmão, 1998. COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, Ed. Saraiva, São Paulo, 1999. DIAS, Clarence. Indivibilidade. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais/Fundação Alexandre de Gusmão, 1998. FREEMAN, Michael. Direitos Humanos Universais e Particularidades Nacionais In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais / Fundação Alexandre de Gusmão, 1998. GREGORI, José. Universalidade dos Direitos Humanos e Peculariedades Nacionais In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. DireitosHumanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais / Fundação Alexandre de Gusmão, 1998. KOERNER, Andrei. O papel dos direitos humanos na política democrática: uma análise preliminar. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.18, no.53,  São Paulo, 2003. KOERNER, Andrei. Ordem política e sujeito no direito no debate sobre direitos humanos. In: Revista Lua Nova no. 57   São Paulo 2002. LINDGREN ALVES, José Augusto. Cidadania, Direitos Humanos e Globalização. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional. Ed. Max Limonad, São Paulo, 2002. LIMA TRINDADE, José Damião de. Anotações sobre a História Social dos Direitos Humanos.In: PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. Direitos Humanos: Construção da Liberdade e da Igualdade. São Paulo: PGE-SP, 1998. MIRANDA, Napoleão. Dimensões Sociológicas dos Direitos Humanos. Mimeo, UFF, 2004. NDIAYE, Bacre Waly. Limitando a Arbitrariedade do Estado. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais/Fundação Alexandre de Gusmão, 1998. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Jurisdição Constitucional Internacional. Mimeo, 2004. SINGER, Paul. “A Cidadania para Todos”, In: Jaime Pinsky e Carla B. Pinsky (orgs.), História da Cidadania, São Paulo, Ed. Contexto, 2003. SOUZA SANTOS, Boaventura de. Por uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos. In: Reconhecer para Libertar: Os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003.

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A voz do silêncio

Maria Berenice Dias

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ssss... Por favor, não fale, cale. Deixe o silêncio encobrir tudo, penetrar até a alma. Afinal, é mais fácil acreditar que aquilo que não se ouve, que não se vê, não existe. Para a mantença do que é aceito como certo – pelo simples fato de ser igual –, o jeito é não ver nem ouvir qualquer coisa que se afaste do comportamento

e rotulada de imoral, um atentado à ética e aos bons costumes. Quem se afasta do modelo necessita se refugiar em guetos. A união de esforços, a formação de instituições e entidades é a forma encontrada pelos marginalizados para emergir e obter a respeitabilidade social. Dolorosa a inserção desses segmentos. Nem sempre a conjunção de forças, a organização

a busca de integração. Praticamente são submetidos a um processo de auto-exclusão. A falta de respeito em praticamente todos os núcleos vivenciais os sujeitam ao escárnio público e os tornam o alvo preferido do anedotário de uma forma degradante. Essa é a face mais perversa do preconceito. Essa cruel realidade está começando a ceder. A laicização da sociedade e a

Somente a conscientização da sociedade poderá reverter posturas discriminatórias que levam a duvidar de se estar vivendo em um estado democrático de direito.

majoritário. O importante é respeitar os costumes, que nada mais são do que repetições do que é considerado bom e correto pelas gerações anteriores. É reconhecido como verdadeiro o que a maioria diz e todos repetem como eco. Com desenvoltura, a sociedade faz surgir mecanismos de exclusão. Engessa as pessoas com rigidez dentro de estruturas cristalizadas, criando sistemas de alijamento do que foge do padrão convencional. Toda e qualquer tentativa de fugir dos estereótipos estratificados é identificada como vício, pecado ou crime,

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de movimentos ou a constituição de agremiações logram êxito. É a família que serve de mola propulsora para arrostar o preconceito. Porém, alguns segmentos, por serem estigmatizados também no âmbito familiar, têm mais dificuldade de romper a barreira da invisibilidade. Dentre os excluídos, os mais discriminados são certamente os homossexuais, que enfrentam maior dificuldade de obter aceitação. Sequer do respaldo familiar desfrutam, o que compromete a imagem pessoal, limita a auto-estima e dificulta

universalização dos direitos humanos estão rompendo a barreira do silêncio. A partir da consagração constitucional dos princípios da igualdade e da liberdade, bem como da eleição da dignidade da pessoa humana como finalidade maior do Estado, o Direito passou a ser a grande esperança. Somente a conscientização da sociedade poderá reverter posturas discriminatórias que levam a duvidar de se estar vivendo em um estado democrático de direito. O preconceito e a discriminação dificultam o processo


integratório pela via legislativa. É difícil a aprovação de leis destinadas a segmentos com pouca expressão numérica e alvo de uma forte rejeição da maioria do eleitorado. A possibilidade de comprometer a mantença no poder intimida o legislador. A Justiça é conservadora. É difícil ao magistrado romper barreiras sem temer estigmas ao enfrentar assunto permeado

Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e Vice-Presidente Nacional do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família

Foto: Divulgação

de rejeição. No entanto, é preciso que os juízes tenham sensibilidade para enlaçar no âmbito da juridicidade situações que não dispõem do respaldo legal. Mas para isso é preciso coragem para empunhar a bandeira da igualdade e da liberdade na busca do respeito à dignidade da pessoa humana e da cidadania.

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O erro Médico e as Seguradoras

Cláudio Chaves

A

prática médica associada a resultados vem sendo cada vez mais discutida tanto nos Órgãos que fiscalizam o exercício da medicina quanto na esfera judicial. A questão no nosso modesto entendimento de professor de medicina e protagonista de histórias médicas há seis lustros, deve ser analisada como um problema multidisciplinar e jamais poderá ser tratada como um assunto isolado ou muito menos como um questionamento a ser discutido exclusivamente na área de uma especialidade da advocacia que trata do “erro médico”. Michel Foucault, o maior filósofo e pensador médico do século XX, com muita proficiência asseverou na sua clássica palestra “A crise é da medicina ou da antimedicina?”, proferida no Brasil, no ano de 1974 no Rio de Janeiro, que quando a medicina sofre crises, estas não são dela e sim do que ele denominou de antimedicina. No enfoque desse sábio mestre, a antimedicina está relacionada com três fatores: medicalização indiscriminada (nenhum procedimento se aplica a tudo ou a todos); cientificidade e eficácia (os insumos colocados

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a serviço do trabalho médico precisam ser mais bem conhecidos) e economia política (pressão do mercado financeiro sobre as ciências da saúde). No gancho da antimedicina denominada por Foucault podemos incluir desde médicos mal formados, devido à pulverização de faculdades de medicina - grande parte sem condições mínimas para funcionar - dadas como figurinhas de troca a políticos inescrupulosos, passando pela não obrigatoriedade do Exame de Ordem e pela não exigência de educação continuada, até, e principalmente, aos aspectos do mercado financeiro em implantar no Brasil o seguro médico para eventuais indenizações por erro em querelas no Judiciário, com o fito da lucratividade. O erro médico, tacitamente, estaria configurado na culpa comprovada de forma inconteste no dano causado por negligência, imperícia ou imprudência, conforme preceitua o art. 951 do novo Código Civil Brasileiro no que concerne à responsabilidade civil dos médicos. O médico na plenitude de suas faculdades mentais e se egresso de uma Escola Médica sem restrições, pressupõe-se ter no seu cabedal de conhecimentos além da proficiência

nos assuntos científicos, princípios éticos fundamentais para o exercício de tão sublime missão, tais como: amar o próximo como a si mesmo, sedar a dor como obra divina e em primeiro lugar nunca causar mal. Além do mais, nenhum médico ao se propor a ajudar àqueles que sofrem, jamais poderá se comprometer com o sucesso como resultado ou a restituir o bem-estar físico-mental e social dos que se submetem sob seus cuidados profissionais, e sim aplicar os conhecimentos científicos para buscar, quando possível, a cura. A implantação do seguro contra erro médico no Brasil trará sem sombra de dúvidas maior ganho para as casas bancárias e contribuirá para onerar ainda mais a sociedade, pois os profissionais da medicina ao terem que incluir essas despesas nos seus orçamentos, com certeza transferirão esses custos para o consumidor que é quem paga a conta na parte final do sistema. Países como os Estados Unidos que oficializaram o seguro contra erro médico mostram em suas estatísticas que os resultados da prática médica têm melhorado mais por conta dos avanços científicos do que por meio dessa obrigatoriedade aplicada de forma compulsória, a qual


Maus médicos devem ser incontestavelmente punidos na forma da lei, inclusive com a cassação do registro profissional e com as penalidades civis e penais previstas na legislação.

tem mostrado também que parcela expressiva da população desses países não tem tido acesso a procedimentos de tecnologia de ponta por serem os mesmos de alto preço, já que incluem nos seus centros de custos os valores relacionados com esses contratos de seguros. Maus médicos devem ser incontestavelmente punidos na forma da lei, inclusive com a cassação do registro profissional e com as penalidades civis e penais previstas na legislação. Porém, casos isolados jamais poderão ser extrapolados para a comunidade médica em geral, a qual congrega, nos seus mais de duzentos mil profissionais, a grande maioria voltada para cuidar da saúde

e prolongar a vida de forma ética e humanitária. Fazendo-se um paradigma com o personagem de Anatole France – Monsieur Bergeret, que ao encontrar a esposa cometendo adultério no sofá resolveu a questão retirando o divã – entendemos que a implantação do seguro contra erro médico no Brasil apenas trará maior lucratividade para as seguradoras, onerando ainda mais a sofrida população brasileira exaurida de recursos financeiros por pagar uma das maiores cargas tributárias do planeta. A sabedoria popular nos mostra que nada é de graça, tudo tem preço e alguém paga a conta. Tendo-se essa máxima como parâmetro, o preço

da conta a ser paga pela sociedade com a implantação desse seguro no Brasil será muito alto e de pouco ou nenhum benefício, interessando apenas às companhias de seguro e à abertura do mercado para profissionais do Direito, também vítimas do mercado saturado pela proliferação excessiva das Faculdades de Direito, concedidas muitas vezes àqueles que fazem politicagem e ganham como mordomia esdrúxula a concessão para implantar Instituições de Ensino Superior, transformandoas em balcões de ensino. Professor, Doutor e Livre-Docente em Medicina

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A REFORMA DO JUDICIÁRIO E O NOVO CENÁRIO PARA O DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL Antônio A.F. Assumpção

(...) a nova legislação criou um paradoxo em que, de um lado, pretende melhorar e acelerar a prestação jurisdicional do Supremo e, de outro, criou uma nova função que possivelmente deixará o Superior Tribunal de Justiça ainda mais lento, (...)

A

Emenda Constitucional nº 45, publicada na imprensa oficial no último dia de 2004, alterou o cenário do sistema jurídico institucional brasileiro. Daí ser apelidada de “Reforma do Judiciário”. Dentre as inúmeras mudanças já muito comentadas nas mídias especializadas, uma atraiu peculiar atenção dos internacionalistas, qual seja a permuta de competência das mais altas cortes nacionais na concessão de exequatur às cartas rogatórias e na homologação de sentenças estrangeiras. Como cediço, cabia ao Supremo Tribunal Federal (STF), como guardião da Constituição da República, analisar as cartas rogatórias oriundas de Estados estrangeiros e, após a verificação de seus pressupostos, mormente a existência de atos atentatórios à ordem pública pátria, autorizar ou não o seu seguimento. Aliás, esta competência do Excelso Pretório remonta

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à promulgação da Constituição de 1934, oportunidade em que se elevou a preocupação do legislador aos atos, com implicação no país, emanados pelos poderes judiciários alienígenas. Antes disso, contudo, desde a época do Império há menções sobre cartas rogatórias em nossa legislação, como, por exemplo, no Aviso Circular nº 01, datado de 1847, que permitia o recebimento da carta por via diplomática ou consular, mediante apresentação do interessado ou por remessa direta do juiz rogante ao magistrado rogado. A Lei nº 221, de 1894, por sua vez, apresenta-se como marco histórico na legislação brasileira, por instituir a figura do exequatur do poder público interno, através de um procedimento prévio de admissibilidade que cabia, à época, ao Executivo. Inúmeros tratados internacionais de que o Brasil é signatário fazem alusão às cartas rogatórias, como por exemplo, o Código Bustamante, os Tratados de Montevidéu, a Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias e


e no acatamento à coisa julgada. O arguto professor Jacob Dolinger acrescenta que os direitos adquiridos representam uma deferência recíproca que os Estados têm por sua soberania, o que os leva a respeitar a validade conferida a um ato praticado em outra jurisdição. Assim é que diversos convênios internacionais tentam uniformizar a prática da circulação de decisões por entre jurisdições soberanas distintas, como a Convenção de Bruxelas, a Convenção sobre Prestações de Alimentos no Estrangeiro (ONU), a Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras (ONU), os Tratados de Montevidéu, o Código Bustamante, a Convenção Interamericana sobre a Execução e Reconhecimento de Laudos Arbitrais e Sentenças Estrangeiras e a Convenção Interamericana sobre Competência Internacional. A competência do Supremo Tribunal Federal para homologar as sentenças estrangeiras que não se revelem ofensivas à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes, também está presente em nosso ordenamento jurídico desde a Constituição de 1934, não obstante o

Foto: Divulgação

o Protocolo de Las Leñas. Todavia, cabe a cada Estado soberano disciplinar acerca do procedimento de tramitação em seus órgãos já existentes ou criados especificamente para este fim. O Brasil, como mencionado, durante os últimos 80 (oitenta) anos optou por conferir ao Supremo Tribunal Federal a função, basicamente administrativa, de analisar estes pedidos formais de cooperação judicial internacional como forma de dentre outros motivos não menos importantes, exercer sua função de zelar pelo respeito à ordem pública nacional, esculpida especialmente em nossa Constituição através dos direitos e garantias fundamentais e dos princípios gerais de direito. Estes mesmos preceitos sempre foram suficientes para explicar a competência desta Colenda Corte na homologação de sentenças estrangeiras. Para alguns doutrinadores, como a ínclita professora Nádia de Araújo e o sempre lembrado mestre Haroldo Valladão, a eficácia extraterritorial das sentenças estrangeiras constitui aspecto fundamental do princípio do respeito aos direitos adquiridos no estrangeiro

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No atual cenário vislumbra-se uma inundação de novos processos no Superior Tribunal de Justiça que agora concentra a competência para a concessão de exequatur às cartas rogatórias e para a homologação de sentenças estrangeiras.

Decreto nº 3.094, de 1898, já ter previsto a necessidade de homologação de sentenças estrangeiras para sua execução no Brasil. O afamado professor Celso Mello afirma que este ato formal de recepção, pelo direito positivo brasileiro, de decisão emanada de Estado estrangeiro, apóia-se, dentro do sistema de controle limitado instituído pelo ordenamento jurídico nacional, em juízo meramente delibatório, que se traduz na verificação dos requisitos enumerados pela legislação ordinária (artigo 15 da Lei de Introdução ao Código Civil e artigo 483 do Código de Processo Civil) e pelo próprio regimento interno do Egrégio Supremo Tribunal. Ocorre que a Reforma do Judiciário, culpada por emendar pela 45ª vez nossa Constituição da República em apenas 16 anos, adaptando-a a um figurino cada vez mais disforme, teve como argumento fundamental para a mudança que ora analisamos a esperança de permitir que a Corte Suprema brasileira se liberasse de interesses menores, esquivando-se de milhares de cartas rogatórias e processos de homologação de sentenças estrangeiras com o intuito de julgar apenas as grandes causas que afetam, de forma mais detectável, a nação. Não obstante o conspícuo e nobre argumento apresentado, o remendo constitucional apenas mudou o problema de lugar. No atual cenário vislumbra-se uma inundação de novos processos no Superior Tribunal de Justiça que agora concentra a competência para a concessão de exequatur às cartas rogatórias e para a homologação de sentenças estrangeiras. Obviamente, esta Corte possui um número muito maior de ministros, que, contudo também se encontram absolutamente assoberbados tais quais os

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excelentíssimos congêneres da outra Casa. O sistema processual brasileiro, infelizmente, parabeniza a profusão de recursos protelatórios que se alastram durante anos, às vezes décadas, em todas as instâncias do Poder Judiciário e não poupam, naturalmente, os tribunais superiores. Desta forma, a nova legislação criou um paradoxo em que, de um lado, pretende melhorar e acelerar a prestação jurisdicional do Supremo e, de outro, criou uma nova função que possivelmente deixará o Superior Tribunal de Justiça ainda mais lento, não por culpa de seus excepcionais magistrados, mas por força de mais dois tipos de ações que lá serão apreciadas, discutidas e julgadas. Cumpre frisar, em tempo, que, instantaneamente, toda a composição do órgão julgador restou alterada. Mesmo acreditando que a jurisprudência solidamente firmada no STF ao longo das últimas oito décadas continuará norteando as futuras decisões do STJ, obviamente alguns temas sofrerão natural atualização uma vez que se modificou nada menos que a totalidade dos apreciadores da matéria. Não se trata de um ou outro ministro aposentado ou de licença, mas sim de 33 (trinta e três) outros que nunca proferiram nenhuma decisão sobre o tema sub examen, ocupantes de outro tribunal, com diferentes costumes, outras competências, incumbências, funções. Aguardamos, contudo, uma nova reforma, desta vez no sistema processual doméstico, que objetive agilizar o trâmite legalístico em todas as instâncias, contribuindo para que especialmente os tribunais superiores consigam prover o direito com uma celeridade mais justa e presumível em um Estado Democrático de Direito. Advogado e vice-diretor geral do Núcleo de Bacharéis, Bacharelandos e Profissionais em Relações Internacionais


Foto: Nabor Goulart / Palácio Piratini

O Encontro de Muitos Méritos Germano Rigotto

“A

bençoada estrela guia/ traz do céu a luz menino/ em mensagem do Divino/ unir as raças pelo amor fraternizar...’’. Os versos do samba-enredo da Beija-Flor de Nilópolis, campeã do carnaval carioca deste ano, evocam episódios palpitantes da construção do Brasil Meridional. Costumo afirmar que o Rio Grande do Sul é uma esquina de muitos encontros. Aqui se encontram imigrantes de todas as raças, o planalto e o pampa, o verão escaldante e as neves do inverno, as areias do litoral e a vastidão das lagoas, a agricultura e a indústria, o couro e a lã, a carne e o churrasco, o homem e o cavalo. Aqui se encontraram os anseios nacionais por democracia e liberdade, e as lutas políticas pela República e pela Federação. E aqui também se cruzaram durante séculos, em duríssimas refregas, castelhanos e portugueses, índios e bandeirantes, envolvidos na tarefa de fixar as extremidades sulinas do Brasil. Dessa convergência surgiram uma cultura e um tipo humano peculiares. O Rio Grande moderno é herdeiro dessa tradição construída com vincos tão profundos que resulta impossível não ser por ela envolvido. Fizeram-se gaúchos de alma e indumentária, assim como os índios e os portugueses, os negros, os alemães, os italianos, os poloneses e tantos outros que arribaram no Rio Grande nos dois últimos séculos, e permanecem gaúchos cultuando nossos costumes mesmo quando se espalham pelo interior do Brasil, na lida da terra e do gado. Se a Revolução Farroupilha integra o restrito elenco das grandes epopéias da História Universal, não menos instigante foi a luta pelas fronteiras, literalmente marcadas a “pata de cavalo e ponta de lança’’, numa sucessão de confrontos nos quais se inscrevem as Missões Jesuíticas. Construídas por religiosos espanhóis e destruídas pelos bandeirantes, elas suscitaram longa guerra dos soldados do Continente do Rio Grande de São Pedro contra os índios de Sepé Tiarajú. Os fatos e feitos cantados pela Beija-Flor no privilegiado palco da Sapucaí são exemplo de que a História, como disse alguém, acaba sendo o registro do que não pode ser evitado. E o

Rio Grande do Sul moderno dá mais um dos muitos testemunhos de que confronto pode virar encontro, de que inimigos podem se tornar amigos, e de que as raças podem “fraternizar no amor’’. Os castelhanos de ontem são, hoje, nossos parceiros do Mercosul e o Rio Grande é o lugar onde brasileiros, argentinos, uruguaios e, um pouco adiante, os paraguaios, se encontram em laços familiares, fraternos e comerciais. Quando a Beija-Flor entrou na avenida, marcando no compasso da bateria a marcha de milhares de pés de seus sambistas, o Rio Grande inteiro sabia que o maior espetáculo da terra estava descortinando ao mundo, como nunca antes, fatos memoráveis de nossa história: os choques de potências européias nos descampados do Novo Mundo. Mais uma vez, ali nas Missões, eles cobriram de sangue o solo gaúcho, em seu irrefreável destino de ser brasileiro. As Ruínas de São Miguel passaram pela avenida como imagem daquela ‘’imensa catedral’’ edificada com o labor dos nativos. E eu me permito sugerir aos leitores, sob a emoção da vitória da Beija-Flor, que se deixem tomar pela mesma paixão que cruzou a Sapucaí e venham conhecer, no Rio Grande, o gigante de pedra que permanece como símbolo de um projeto que não se completou no seu tempo. De seu tempo restou uma cicatriz petrificada, cravada no solo do planalto missioneiro, registro de feitos hoje rememorados em fascinantes espetáculos de luz e som. Mas não se apagou da alma gaúcha o desejo que mobilizou seus construtores: um mundo novo, uma América solidária, harmônica, fraterna, que gradualmente construímos no convívio com nossos vizinhos de uma fronteira que hoje une muito mais do que separa. Assim como o Rio Grande é aquela terra de muitos encontros a que me referi inicialmente, a Beija-Flor se uniu à alma gaúcha na Sapucaí. Foi um encontro de muitos méritos. Eles foram tantos e de tanta gente, que acabaram convergindo, de maneira irrefreável, para mais um encontro da escola de samba com o doce sabor da vitória. Governador do Rio Grande do Sul 2005 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


Aspectos delito de

Naele Ochoa Piazzeta

A

ntes de entrar-se no tema propriamente dito, deve-se passar um relancear de olhos sobre a sexualidade humana, base e fundamento da abordagem que se está a desenvolver neste trabalho. O exercício da sexualidade apresenta aspectos bastante diferenciados ao homem e à mulher, apesar de ser inegável a admissão de que o impulso sexual

Foto: Divulgação

manifesta-se igualmente em ambos. Ao escrever sobre a sexualidade, Judith Walkowitz afirma não ser ela uma realidade biológica imutável ou uma força natural e universal, mas antes o resultado de um processo político, social, econômico e cultural. Ou seja, a sexualidade tem uma história. E em respeito a esta história, torna-se imperioso reconhecer que toda e qualquer análise sobre a condição feminina há de, 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2005


polêmicos do infanticídio

inevitavelmente, passar pelo papel que a mulher ocupa no processo reprodutivo, o que na verdade significa dizer pelas formas institucionais que a sociedade encontra para lidar com ele. Por intermédio de certos mecanismos ideológicos, a função feminina, determinada pela especificação biológica dos cargos, tende a ser estendida a outros campos e seu caráter puramente natural é transposto

da maternidade com a vida individual é naturalmente regulada nos animais pelo ciclo do cio e das estações: ela é indefinida na mulher, só a sociedade por decidir por elas”. A gestação, acompanhada da descarga hormonal que a caracteriza, pode levar a mulher ao crime tipificado no artigo 123 do Código Penal e que recebe o nome de infanticídio. Este, o infanticídio,

recém-nascidos só vinham ao mundo, ou melhor, somente eram recebidos na sociedade em virtude de uma decisão do chefe de família. Em Roma, um cidadão não ‘tinha’ um filho: ele o ‘tomava’, ‘levantava’. O pai exercia a prerrogativa, tão logo nascesse a criança, de levantála do chão, onde a parteira a havia depositado, para tomá-la nos braços e assim manifestar que a reconhecia e se

A gestação, acompanhada da descarga hormonal que a caracteriza, pode levar a mulher ao crime tipificado no artigo 123 do Código Penal e que recebe o nome de infanticídio.

para outras atribuições culturalmente destinadas ao sexo feminino. Os dados da biologia aliam-se inextricavelmente aos dados culturais e acabam por exigir da mulher os comportamentos-padrão aceitáveis na sociedade. Na obra, O Segundo Sexo, Beauvoir refere que “não é possível medir em abstrato a carga que constitui para a mulher a função geradora: a relação

diferencia-se do delito de aborto por nele a gestação chegar a termo e o fenômeno da parturição já haver iniciado. A conduta da mulher dá-se sobre o nascente ou o neonato, matando-o. O infanticídio, contudo, nem sempre foi motivo de incriminação. Paul Vayne relata que no Império Romano, aproximadamente no ano 1000 de nossa era, o nascimento não era apenas um fato biológico, uma vez que os

recusava a enjeitá-la. A criança que o pai não levantasse era exposta diante da casa ou em um monturo público. Quem quisesse poderia recolhê-la e criá-la. Os romanos, a par de terem o direito de reconhecer ou não o filho recémnascido, conforme as suas conveniências, enjeitavam ou afogavam as crianças malformadas e os filhos de suas filhas que houvessem dado à luz de forma ilegítima. 2005 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35


Entre os gregos era mais freqüente enjeitar meninas do que meninos e ainda hoje, na China, é prática comum nas famílias o morticínio de meninas recémnascidas. A legislação romana, relata Carrara, via no crime da infanticida a premeditação que autorizava o agravamento da pena, a par da nula capacidade que possuía a vítima de defender-se e, por isso, deveria ser energicamente protegido pela lei penal. Gradativamente, porém, e a partir de movimento operado entre os filósofos do direito natural, o crime cometido pela mãe contra o nascente ou neonato passou de homicídio qualificado (parricídio) para homicídio privilegiado, quando praticado honoris causa pela mãe ou parentes, uma vez não ser possível continuar a desconhecer-se a peculiaríssima forma como ocorria, merecendo, portanto, tal conduta, a justa diminuição da pena. Gradualmente, as legislações antigas, segundo o magistério de Euclides Custódio Silveira, a começar por Roma e espalhando-se depois por toda a Idade Média, passaram a tipificar a conduta da mãe que matava o neonato como homicídio qualificado, impondolhe penas severíssimas, como a do “culeus” (saco de couro em que cosiam os parricidas), a da empalação e a do afogamento. Na legislação penal brasileira de 1830, 1890 e 1940, o infanticídio manteve, taxativamente ou não, a questão moral que envolve o delito e, por conseqüência, uma punição mais branda. O motivo de honra foi mantido em inúmeras legislações estrangeiras (Código Penal Argentino, art. 81, e Código Penal Italiano, art. 578, por exemplo), mas retirado de nossa lei penal em 1940, quando se passou a adotar o critério fisiopsicológico, não se levando em conta o motivo do crime, e sim o desequilíbrio fisiopsíquico oriundo do parto, embora não se desconheça que o motivo desencadeante da conduta de matar o próprio filho pode entrar no complexo motivador deste desequílibro. Cumpre salientar-se que o critério fisiopsíquico, ao contrário do puramente psicológico, adotado nos Estatutos 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2005

Repressivos anteriores, não distingue entre gravidez legítima ou ilegítima, abstraindo, portanto, ou pelo menos relegando para terreno secundário, a honoris causa: somente tem em conta a particular perturbação fisiopsíquica decorrente do parto. Ao invés do impetus pudoris, o impetus doloris, ressalta Hungria. O fulcro da controvérsia reside no que seja influência do estado puerperal e a sua existência conforme estabelece a lei penal é questão discutida e não unanimemente aceita pela medicina. Que todas as mulheres que dão à luz passam pelo puerpério é certo. Que pouquíssimas mulheres matam sob a influência do estado puerperal é igualmente certo. Não se deve confundir puerpério com

Não há pena a ser aplicada à mulher inimputável, e sim tratamento médico imposto através de medida de segurança a ser realizada em Manicômios Judiciários. parto ou post-partum, ou seja, as horas que se seguem ao fenômeno da parturição. O puerpério, no sentido vulgar, dura de oito a quinze dias. É uma apreciação arbitrária, que varia segundo as raças, os povos, as relações sociais, o estado econômico e muitos outros pormenores. O mais acertado seria admitir um prazo mais longo, ou o tempo que precisam os órgãos sexuais para sua completa restauração, que seria de cinco a oito semanas, e, como é natural, este prazo depende do clima, raça, particularidades pessoais, terminando nas mulheres que não amamentam seus filhos, com a volta da menstruação. Esse período é que é denominado, em linguagem profissional, de puerpério.

O que estava presente no espírito de legislador de 1940, quando foi redigido o artigo 123, ao referir-se ao estado puerperal, certamente eram os casos em que a mulher, abalada pela dor física do fenômeno obstétrico, fatigada, enervada, sacudida pela emoção, vem a sofrer um colapso do senso moral, uma liberação dos impulsos, chegando, por isto, a matar o próprio filho. Não alienação mental nem semi-alienação (casos estes já regulados pelo Código), mas também não a frieza de cálculo, a ausência de emoção, a pura crueldade (que caracterizaria, então, o homicídio), e sim uma situação intermediária entre a loucura total, a alteração parcial e a normalidade, que domina a mulher quando esta é defrontada com o filho não desejado e temido de suas entranhas. No caso de tratar-se de um estado transitório de abalo emocional, certamente encontram-se afastadas, de plano, as psicoses francas ocasionadas pelo puerpério ou então as que evoluem ao lado dele. As psicoses propriamente puerperais, isto é, em relação etiológica com o puerpério, resultam de infecções ou de auto-intoxicação. As outras, que o choque obstétrico simplesmente desperta ou acentua, distribuem-se entre a esquizofrenia, a psicose maníacodepressiva e as psicoses histéricas, consoante ensinamentos de Antônio Ferreira de Almeida Júnior, em Lições de Medicina Legal. Quando a mãe infanticida incluir-se neste grupo estará isenta de pena em virtude do disposto no artigo 26 do Código Penal. Não há pena a ser aplicada à mulher inimputável, e sim tratamento médico imposto através de medida de segurança a ser realizada em Manicômios Judiciários. Entretanto, pode haver casos em que a autora não é inimputável, e sim portadora de perturbação da saúde mental que a leva ao delito e torna-a relativamente responsável por seus atos. A mulher entende parcialmente o que fez, e tais casos são constatados nas perversas instintivas, nas histéricas e nas débeis mentais. Nestes casos, verificada pericialmente a anomalia da autora, aplicar-se-á o parágrafo único do artigo 26 do diploma penal: pena ou medida


de segurança, em critério a ser definido pelo juiz. Mas o que se entende por imputabilidade? Se imputação é a atribuição de alguma coisa a alguém, coisa esta já acontecida, imputabilidade é o juízo sobre um fato previsto como possível, mas ainda não ocorrido. Imputação, portanto, é uma idéia, um conceito; imputabilidade uma realidade, conforme acentua Carrara. Pena e imputação não são palavras sinônimas, apesar da confusão que envolve os dois institutos. A teoria da pena focaliza o delito em sua vida externa, observando-a em suas relações com a sociedade civil. A teoria da imputação considera o delito nas suas puras relações com o agente. Pode haver imputação do agente e a nãoaplicação da pena, mas nunca poderá haver pena sem prévia imputação do agente. Para o juízo da imputabilidade devese ter uma ação ou omissão humana (conduta) voluntária e uma previsão legal a qual possa adequar-se a conduta realizada voluntariamente e de forma inteligente, ou seja, a conduta deve ser realizada responsavelmente pelo sujeito. E é justamente aqui que se encontra o ponto nevrálgico do delito de infanticídio – a conduta responsável ou não da mulher puérpera. A polêmica do estado puerperal e da imputabilidade e, conseqüente, da responsabilidade da mulher, torna-se mais acirrada no momento em que médicos ligados à moderna psiquiatria afirmam não existirem psicoses puerperais específicas. Para Hungria, surgem elas no terreno lavrado pela tara psíquica que se agrava pelos processos metabólicos do estado puerperal, ou são uma species do genus psicoses somáticas, ou, em outras palavras, transtornos psíquicos que se apresentam no curso de enfermidades gerais internas agudas, de intoxicações etc., e cujas lesões não têm uma localização cerebral. Se não se pode comprovar a existência cabal dessa alteração consistente em delírios, em ofuscamento transitório da consciência, em confusões alucinatórias agudas que deságuam no estado puerperal, certamente se deve

atribuir ao crime cometido pela mulher que está dando à luz ou acabou de dar à luz a inegável questão social. O infanticídio é, principalmente e antes de tudo, um delito social, praticado na quase totalidade dos casos (e é fácil a comprovação pela simples consulta aos repertórios de jurisprudência), por mães solteiras ou mulheres abandonadas pelos maridos, por mulheres pobres e/ou com prole numerosa. Raríssimas vezes, para não dizer nenhuma, têm sido acusadas desses crimes mulheres casadas e felizes, as quais, via de regra, dão à luz cercadas do amparo do marido e do apoio moral dos familiares. Por isto mesmo, o conceito fisiopsicológico do infanticídio – sob a influência do estado puerperal – introduzido em nosso Código Penal

A questão não é terminológica e sim social. As leis devem ser editadas sem ocultação da realidade, visto que é a problemática social norteadora da conduta da autora puérpera. para eliminar de todo o antigo conceito psicológico – a questão de honra – vai aos poucos perdendo sua significação primitiva e se confundindo com este, por força de reiteradas decisões judiciais. Em que pese a Exposição de Motivos do Código Penal de 1940 dizer que a infanticida apresenta capacidade de entendimento diminuída, a lei penalizaa com penas que seriam, na letra clara da norma, somente aplicáveis às penalmente responsáveis. Assim, mesmo reconhecendo a ocorrência de transtornos psíquicos que remetem a puérpera à semi-imputabilidade (diminuição da responsabilidade pelo ato praticado), nossa lei repressiva segue punindo-a, submetendo-a a julgamento

pelo Júri Popular e aplicando-lhe penas que vão de dois a seis anos de detenção. Se atuam no corpo e no psiquismo da mulher, em decorrência do fenômeno da parturição, hormônios que lhe retiram a perfeita capacidade de determinação e entendimento, se o crime é doloso, se a influência do estado puerperal tem início e término pré-fixados (do primeiro ao quadragésimo quinto dia após o parto, segundo a doutrina) e sabe-se, pela medicina, que as alterações mentais necessitam de tratamento e não se pode precisar a data da cura, como se pode seguir penalizando aquela que, na realidade, não tem perfeita compreensão do que faz? Talvez o mais certo, o mais justo, o mais humano seja considerar-se que a história da mulher na cultura muitas vezes é escrita de forma tão pesada quanto lhe é pesado o peso das convenções, da hiposuficiência, do menor acesso ao emprego, à educação, e que o ato de matar o próprio filho durante ou logo após o parto acha-se indissoluvelmente ligado às questões sociais ou de honra. O Anteprojeto para alteração do Código Penal não dirime a polêmica que este tipo penal incriminador envolve, já que mais uma vez a lei deixa de atacar o ponto fundamental do problema. Não basta retirar-se a expressão influência do estado puerperal e substituí-la pela influência perturbadora do parto. A questão não é terminológica e sim social. As leis devem ser editadas sem ocultação da realidade, visto que é a problemática social norteadora da conduta da autora puérpera. Não basta alterar-se a lei mediante o uso de uma ou outra palavra que, no fim das contas, servirá de motivo para inúmeras discussões acadêmicas. A responsabilização da autora pelo ato praticado contra o próprio filho deve ser mantida. Por seu turno, a pena, significativamente menos severa, é um reconhecimento inquestionável de que seus direitos de cidadania não são plenamente atendidos pela sociedade. Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul 2005 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


CULTURA

O rio e os 400 anos de Dom Quixote

Foto:

Carla Branco

O

ano de 2005 chegou e com ele a tão esperada comemoração dos 400 anos de Dom Quixote e seu personagem-título alcunhado o Cavaleiro da Triste Figura. Romance inspirador, segundo livro mais traduzido no mundo (atrás somente da Bíblia) e considerado por muitos a maior obra literária universal, o livro de Miguel de Cervantes dispensa apresentações. Neste ano de IV Centenário, inúmeros artigos em revistas e jornais, assinados pelos mais variados tipos de profissionais, de membros da Academia Brasileira de Letras a simples admiradores da obra, têm chamado a atenção para a relevância e a necessidade de refletir sobre esse clássico. O personagem é de tal forma universal que gerou o adjetivo quixotesco. Dom Quixote era o louco que acreditou em seu sonho e foi à luta contra obstáculos imaginários em busca da celebridade e do amor romântico, com todo o sofrimento que o caracteriza. Dom Quixote também é considerado um ingênuo

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por tentar tornar a dura realidade mais justa e nobre. A personagem é complexa e a leitura de suas aventuras é fonte de inigualável prazer. É importante aproveitar o ano cervantino para ampliar o número de seus leitores que caminham pelas páginas de Dom Quixote seguindo os passos das aventuras, desventuras e conquistas do nobre cavaleiro e seu fiel escudeiro, Sancho Pança. Algumas editoras prometem para este ano republicações do livro para aproveitar o momento de seu aniversário e incentivar sua leitura enquanto outras preparam novas traduções. A Editora 34, por exemplo, lançará o segundo volume da novíssima tradução de Sérgio Molina no início do segundo semestre. Iniciativas como estas não são exclusivas deste ano, o Brasil está muitíssimo bem servido de traduções e adaptações da obra, como as versões de Monteiro Lobato, Dom Quixote das Crianças, Editora Brasiliense, já clássica, e a de Ferreira Gullar, Editora Revan, mais recente. Estes dois grandes escritores verteram ao português de uma


maneira mais condensada (mas não mais pobre) com maestria, tornando possível que crianças e adolescentes tenham acesso à obra e se interessem pelo “grande” livro, isto é, pela versão completa. Porém, estas versões não são dedicadas apenas ao público infanto-juvenil: o adulto que as leia terá tanto prazer quanto qualquer jovem; ambas são recheadas do mesmo humor utilizado no texto original de Cervantes. Tais empreitadas colaboraram muito para que o livro não fosse lido somente pela elite intelectualizada de nosso país e nós, admiradores apaixonados do Quixote, precisamos saber disso e divulgá-lo. O fenômeno das novas publicações da obra não é exclusividade do Brasil. A cada momento há a notícia de uma nova edição em algum ponto diferente do globo. A Espanha, como não podia deixar de ser, nos presenteou este ano com dois maravilhosos exemplos de reedições: a da Real Academia Espanhola, em um único volume, que, no Brasil, foi lançada por Nélida Piñon no Instituto Cervantes em São Paulo, e a da Galaxia Gutenberg em dois

apresentações gratuitas no mês de março no Memorial Getúlio Vargas. No mês de abril, dias 11 e 12, o violonista se apresentará com o percussionista Carlos Cesar na Casa de Cultura Laura Alvim em Ipanema. Seu espetáculo é a interpretação instrumental belíssima de cenas e personagens do livro com leitura de trechos da versão de Ferreira Gullar entre algumas das peças. O Rio de Janeiro terá a felicidade de neste ano abrigar dois grandes eventos literários, a XII Bienal do Livro (de 12 a 22 de maio) e a terceira edição da FLIP – Festa Literária Internacional de Parati (de 6 a 10 de julho). Ambas prestarão homenagens a Cervantes e a sua obra e o Instituto Cervantes colaborará, em conjunto com a Subdireção Geral do Livro, órgão do Ministério da Cultura espanhol, trazendo escritores espanhóis a ambos os eventos para que participem das comemorações. Organizaremos, juntamente com a Academia Brasileira de Letras, uma conferência do acadêmico Ivan Junqueira, presidente da ABL, sobre Cervantes, sua obra-prima e o

Dom Quixote era o louco que acreditou em seu sonho e foi à luta contra obstáculos imaginários em busca da celebridade e do amor romântico, com todo o sofrimento que o caracteriza.

volumes, sendo que um deles é somente de artigos sobre o livro. Ambas as edições são de qualidade indiscutível e apresentam comentários inéditos sobre a obra, seu contexto histórico e perfis dos personagens. O engenhoso fidalgo, justamente por ter conseguido extrapolar os limites de sua existência no papel, está presente em diversos e diferentes atos culturais em todo o mundo. No Brasil, e mais especificamente no Rio de Janeiro, o Instituto Cervantes tem a honra de promover e colaborar com muitas destas atividades. Algumas delas já têm data marcada e presenças confirmadas, outras porém, justamente pela multiplicidade de eventos agendados para este ano ainda não têm tanta exatidão. A atividade que deu início às comemorações promovidas pelo órgão de difusão da língua e cultura espanhola em todo o mundo foi o espetáculo, realizado em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro, do músico Willians Pereira intitulado “Dom Quixote – violão solo”, com três

reflexo dela na América Latina e principalmente no Brasil. E em setembro, promoveremos um ciclo de conferências no Real Gabinete Português de Leitura que contará com a presença de pelo menos um especialista espanhol, Carlos García Gual (que também participará da Semana de Letras Neo-latinas organizada pela UFRJ), e escritores famosos brasileiros ainda por confirmar. Paralelamente a este ciclo, será organizada uma exposição de exemplares raros de edições antigas de Dom Quixote que fazem parte do acervo do Gabinete. No CCBB do Rio, a exemplo do que ocorrerá no Salão do Livro de Paris de 18 a 20 de março, haverá (além da exibição da ópera Dom Quixote e a Duquesa, de Boismortier, entre 6 de julho e 21 de agosto) a leitura da obra no período de 26 a 30 de julho. A leitura contará com a participação de pessoas ilustres e anônimas que terão, cada uma, vinte minutos para lerem um trecho da obra completa em sua seqüência original, repetindo o que já ocorre em vários

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Foto: El Quijote Ilustrado

lugares do mundo algumas vezes de forma ininterrupta. No mês de setembro, o Instituto Cervantes apoiará o maior evento de cinema do Brasil, o Festival Internacional do Rio, que terá este ano o “Foco Espanha”. É tradição do Festival prestar homenagem a um país em cada uma de suas edições. Uma das razões da escolha deste ano foi justamente o IV Centenário de Dom Quixote. É intenção da diretora do Festival, Ilda Santiago, destinar uma parte do Foco a Dom Quixote. O público certamente terá surpresas. Ainda com relação à Sétima Arte, o Instituto organizará um ciclo com filmes de diversas nacionalidades inspirados no livro de Cervantes. A previsão da realização do ciclo é para o mês de julho. Em um outro projeto-homenagem muito interessante, a Televisão Espanhola percorrerá os centros do Instituto

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Cervantes no mundo onde filmará a leitura de passagens de Dom Quixote por pessoas de diferentes nacionalidades, sempre em espanhol, e com diferentes sotaques. Estas leituras que terão o nome de “Dez linhas de Dom Quixote” serão exibidas entre os programas da grade normal espanhola em diferentes horários. A intenção do projeto, além de celebrar o livro, é mostrar o alcance universal da língua castelhana, homenageando-a, e o de sua obra literária maior. A Orquestra Sinfônica Nacional pretende no mês de outubro apresentar concertos com peças inspiradas em Dom Quixote de compositores como Strauss, Ravel e de Falla. O Instituto Cervantes com a Agência Espanhola de Cooperação Internacional trará um tenor espanhol para participar de mais essa homenagem. Também são planejadas exposições. O Instituto Cervantes pretende trazer da Espanha a exposição “La huella de la mirada” a realizar-se no Centro Cultural Justiça Federal. Trata-se de uma exposição de fotografias dos locais reais que inspiraram Cervantes na criação dos cenários por onde passa Dom Quixote. O Projeto Portinari realizará a exposição das gravuras em lápis de cor criadas por Portinari para ilustrarem passagens do livro Dom Quixote que encontram-se hoje expostas no museu da Chácara do Céu. Essa exposição partirá depois para a Europa onde estará em Londres, Paris e Madri. O Instituto Cervantes tem orgulho de apoiar esta atividade que presta homenagens tanto ao maior artista plástico brasileiro como ao livro de maior importância da Espanha. Antonio Olinto diz que Dom Quixote é um livro brasileiro já que na época em que foi publicado, Brasil, Portugal e Espanha estavam sob a união político-administrativa de suas coroas. Seu personagem principal com certeza teria gostado muito de se aventurar pelo Brasil (como o faz agora, por outros meios). Somos obrigados a concordar (pelo menos dessa vez) quando se diz que nesse país tudo acaba em samba e que o ano só começa de verdade depois do carnaval. Este ano a escola de samba vice-campeã do Rio de Janeiro, Unidos da Tijuca, aclamada (pelo público e crítica) por sua criatividade, trouxe como enredo os misteriosos mundos da imaginação criados pelos artistas. O carnavalesco Paulo Barros não viu personagem mais apropriado que Dom Quixote para introduzir a história do seu carnaval e se inspirou nele para criar sua comissão de frente, bem como fantasias de outras alas e importantes membros da escola. Não havia melhor maneira de começar o ano: homenageando-se Dom Quixote no que é chamado “o maior espetáculo da Terra”, fazendo-o ainda mais popular. Gestora de Cultura do Instituto Cervantes


A Arbitragem no Brasil Luiz Felipe Pereira da Cunha

A

Arbitragem no Brasil é relativamente nova para nossa sociedade, pois sua Lei tem pouco mais de oito anos. Apesar da previsão já existir desde o Código Comercial de 1850, e também na Constituição de 1934 que abordava a Arbitragem Comercial, a mesma foi retirada do ordenamento jurídico brasileiro. A Lei Federal nº 9.307/96, mais conhecida como “Lei Marco Maciel”, passou a regular a arbitragem no país e mudou radicalmente a perspectiva de seu uso no Brasil. Atuou alternante na solução de litígios, amplamente utilizados nas relações internacionais públicas e privadas por meio de organismos tradicionais como a Câmara de Arbitragem Internacional de Paris, a Organização Mundial do Comércio (OMC), entre outras. A referida lei só passou a ser reconhecida, de fato, após seis anos de intensos debates no Supremo Tribunal Federal, quando o Plenário reconheceu sua constitucionalidade. Para o Presidente do STF da época, o Ministro Marco Aurélio Mello, a Lei de Arbitragem segue a tendência mundial evitando a sobrecarga do judiciário na solução de conflitos em curto prazo. É importante frisar que a arbitragem deve se ater ao direito patrimonial disponível que, a grosso modo parece ser algo restrito, o que não é verdade. Dentro dessa perspectiva, podemos dizer que se pode trabalhar com as mais diversas áreas do direito e suas vertentes: mercantil, industrial, trabalhista, médicohospitalar, educacional, família (partilha de bens, separação judicial, divórcio), agrícola e pecuária, transportes, imobiliária, direitos autorais e conexos, prestação de serviços, entre outros, o que demonstra sua ampla capacidade de atuação. É também relevante afirmar que sua sentença tem força de título judicial executivo, não podendo ser revista pelo judiciário no que diz respeito ao conteúdo, apenas na sua forma. Com isso, pode se dizer que a atuação da arbitragem está em pleno crescimento devido a sua ampla e irrestrita conscientização, principalmente do meio jurídico e empresarial brasileiro. As resistências ao novo modelo de arbitragem brasileira se devem, em parte, à falta de informação e apego ao modelo do monopólio da jurisdição estatal. Uma vez que o maior avanço da legislação brasileira está na permissão de questões que versem sobre direitos e bens patrimoniais disponíveis, as partes, mediante cláusula compromissória escrita ou em instrumento contratual separado, podem escolher a arbitragem como forma de solução dos litígios decorrentes dessa relação jurídica, na

indicação do árbitro ou da entidade de arbitragem excluindo o uso da jurisdição estatal. Um contraponto às resistências e bom exemplo do fortalecimento do tema no meio jurídico, é a recente criação da Comissão de Arbitragem de São Paulo dentro da OAB/SP, para tratar especificamente do tema. A nova ferramenta visa mostrar o caminho correto que vem trilhando esse tão importante Meio Extrajudicial de Solução de Controvérsia – MESC, na solução de conflitos. O Poder Judiciário só tem a ganhar com a cultura somatória da arbitragem, pois será extremamente necessária no descongestionamento causado pelo acúmulo de processos dos órgãos judiciais, por intermédio de milhares de ações. As mesmas impedem que as soluções via justiça estatal sejam céleres, e conseqüentemente, mais justas. A disseminação da arbitragem vem a contribuir para a melhoria de uso dos recursos públicos para atender com presteza e eficiência, as demandas dos direitos indisponíveis, tais como os de família, crianças e adolescentes, direito penal, os direitos difusos, os coletivos homogêneos, as questões ambientais e as demandas específicas do direito público, como as questões eleitorais, de improbidade administrativa, de direito fiscal e tributário. Unidos e concordantes nesses diversos aspectos estão juristas e personalidades do nosso mundo jurídico brasileiro, como os Ministros Marco Aurélio Mello (STF), a Ministra Fátima Nancy (STJ), o Desembargador Ardrúbal Lima (TJDFT), entre tantos outros que já perceberam a importância da arbitragem para o nosso ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no que diz respeito à aceleração e viabilidade da nossa justiça estatal, bem como numa solução mais rápida para as causas que ela pode atender. Dito isso e de acordo com os dados estatísticos, temos certeza de que a Arbitragem no Brasil está crescendo vertiginosamente e, muito em breve irá ocupar lugar de destaque em todas as localidades nacionais. Um bom exemplo disso é a CACB – Confederação das Associações Comerciais do Brasil, que tem na CBMAE – Câmara Brasileira de Mediação e Arbitragem Empresarial, um alicerce na Mediação e Arbitragem no País. Juntas vêm desenvolvendo um belíssimo projeto com apoio do BID e SEBRAE na divulgação do tema no Brasil. Iniciativas como esta irão fazer com que a Arbitragem seja realmente levada a sério no País e externada à sociedade civil, principal interessada na solução rápida de seus conflitos. Diretor-Superintendente da CBMAE/AL-GO 2005 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


O Baixo Nível da Crise Villas-Bôas Corrêa

Ignora-se com que faixas representativas da sociedade, o presidente Severino recolheu a carícia do apoio ao mais importante, ao decisivo compromisso da sua plataforma de campanha.

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intervalo de silêncio, entrecortado de ruídos abafados de queixas e acusações cruzadas no edificante espetáculo da firmeza do caráter e da pureza ética dos contendores, encerrou-se com o velório das lamúrias abafado pela cantoria das reivindicações na barraca oficial montada para a recomposição da base parlamentar em pandarecos com a redistribuição das vagas abertas ou a serem liberadas pela desocupação dos inquilinos caídos em desgraça. No clima transparente do ar puro de Brasília, é perfeitamente natural que a rebelião do baixo clero, carimbada pela eleição do deputado Severino Cavalcanti para presidente da Câmara, preserve o baixo nível em que se movimenta à vontade e com lucros que arregalam os olhos de cobiça. De logo, o ilustre e ilustrado presidente garantiu o troféu de autor da melhor frase do ano, com todas as sutilezas do rodeio do apuro da linguagem e a áspera marca da espontaneidade que nada esconde. Cenário perfeito da clássica entrevistarelâmpago com os colegas da imprensa brasiliense, depois do almoço com o comandante da Aeronáutica, Luiz Carlos da Silva Bueno e o ministro da Coordenação Política, deputado Aldo

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Rabelo (é um hábito da capital a agradável fusão da atividade política com a comilança, em geral com a conta paga pela Viúva). Sentença curta, com seu imediato desenvolvimento. Lapidar na síntese e no impacto da surpresa: “A sociedade não é contra o aumento dos deputados’’ - cunhou em bronze o guru das mordomias, com o rosto de nordestino, talhado à faca, sem a mais leve contração: estava falando sério. O que comprovou ao descascar a intrigante revelação: ‘’É evidente que a sociedade quer. Ela está aceitando. Não tem sido é bem esclarecido’’. Didático, ensinou: ‘’O que a sociedade não aceita é a desonestidade, é roubalheira’’. Ignora-se com que faixas representativas da sociedade, o presidente Severino recolheu a carícia do apoio ao mais importante, ao decisivo compromisso da sua plataforma de campanha. Desafortunadamente, o terceiro na hierarquia do poder atropela a evidência, o bom senso e todas as pesquisas que desqualificam o Congresso com índices vexatórios de rejeição popular. Não é preciso catar argumentos para demonstrar o óbvio. Nem remexer no monturo da crônica de um dos piores


Foto: Divulgação

congressos do período republicano. Basta a sumária leitura da cobertura dos desdobramentos da crise nos jornais e nas revistas, a atenção ao noticiário das TVs ou ao murmúrio das ruas, no repugnado e preocupante desinteresse pela disputa pela carniça e o filé dos cargos, no corpo-a-corpo entre aliados e aderentes. Às escâncaras, sem traço de rubor. O presidente do Senado, senador Renan Calheiros, cobra do presidente Lula o compromisso da convocação para ‘’discutir os detalhes dessa reforma’’. Reitera, impaciente: ‘’Já faz tempo e estamos esperando’’. No que foi saudado, com aplauso entusiástico, pelo presidente Severino: ‘’O Renan é sábio. Está falando como amigo’’. No abagunçado baú do PT carambola no pano verde a ambição que sonha com um cômodo no cortiço ministerial com a angustiosa expectativa dos ameaçados de despejo. A corrida por uma fatia do bolo ganhou o apelido reforma ministerial para a montagem de um governo de coalizão. Como o governo Lula está sempre começando amanhã e cultiva a tática do adiamento, de empurrar as decisões com a pança, a crise rola e apodrece como restos de comida

esquecidos pelo desleixo. Contorna-se o problema para não enfrentá-lo na sua exata dimensão. A crise ética que mancha a respeitabilidade do Legislativo amesquinha-se no bate-boca sobre o desatino da equiparação dos subsídios de senadores e deputados ao salário de ministro do Supremo Tribunal Federal, sem uma única palavra sobre as suas repercussões financeiras com o imediato reajuste dos deputados estaduais e vereadores. Mordomias em penca, benefícios, vantagens, verba para os gabinetes privativos, a verba indenizatória para os gastos do fim de semana nos estados de suas excelências - pérola da criatividade da gula insaciável que inventou o salário oblíquo demais repasses diretos e indiretos que superam os R$ 100 mil mensais, passam despercebidos debaixo da cerca. Junto com a reforma política, encolhida para a aprovação da fidelidade partidária que impeça a vergonha do troca-troca e a sua última patifaria: o deputado que aluga o mandato, com tabela de preço pelo tempo de serviço. O que vem por aí? Será que ainda não vimos tudo?

Repórter Político do JB

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Rio Branco O Barão dos Limites

Edison Torres

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dvogado, jornalista, geógrafo e historiador, nascido no Rio de Janeiro em 20 de abril de 1845, José Maria da Silva Paranhos Júnior estudou no Colégio Militar, onde se tornou amigo de Floriano Peixoto, seu colega de esgrima, e se formou em Direito na cidade de Olinda. Depois de formado, Juca Paranhos, como era conhecido em sua mocidade, foi trabalhar no Rio como professor interino do colégio Pedro II, onde ficou por três meses. Na carta que escreveu a um amigo disse que não tinha vocação para advogado “não sirvo mesmo para isso, decididamente”, mesmo assim passou um tempo em Friburgo como promotor (1869), mas desistiu. O título de Barão do Rio Branco foi uma honraria concedida pela Princesa Isabel em maio de 1888 como homenagem ao seu trabalho em favor da abolição através do jornal que fundara em 1868, A Nação. Foi amigo de D. Pedro II, mas essa amizade, porém, não pesou quando José Maria Paranhos Júnior decidiu ingressar na carreira diplomática e tornar-se cônsul

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do Brasil em Liverpool. O Imperador vetou seu nome, mas um ano depois, em 1876, o Primeiro Ministro, Barão de Cotegipe, ameaçou se demitir caso seu amigo não fosse nomeado para aquele cargo. Colaborou também para que a nomeação fosse assinada, o chefe do gabinete conservador do Império, o Duque de Caxias. Proclamada a República em 1889, Rio Branco tentou abandonar a carreira diplomática por fidelidade ao Imperador. D. Pedro II que ao saber disso lhe mandou um recado: “Diga ao Rio Branco que ele é um bom servidor do país (...) que continue a trabalhar pelo Brasil. Eu passo e o Brasil fica”. Rumo à glória Um ano após a Proclamação da República, Marechal Deodoro o nomeou superintendente do Serviço de Imigração. Com a nova constituição, a renúncia de Deodoro e a posse de Floriano Peixoto na Presidência da República, foi convocado por seu velho colega de esgrima do Colégio

Militar para defender o Brasil na questão de limites com a Argentina. Esta seria a primeira das muitas vitórias que Rio Branco conquistaria e que o tornou conhecido como “O Guardião das Fronteiras do Brasil” e o “Barão dos Limites”. Quando eclodiu a questão do Acre em 1902, Rio Branco foi nomeado Ministro das Relações Exteriores, cargo que exerceu por mais de dez anos servindo aos governos de Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca. Eduardo Bueno em História do Brasil cita as conquistas do Barão para o Brasil, a incorporação de uma área equivalente a 12 vezes o território da Suíça. “A Questão das Missões, a Questão do Amapá, a Questão do Acre, a Questão do Pirará, os Limites com a Guiana Holandesa, os Limites com a Colômbia, os Limites com o Peru e o Condomínio da Lagoa Mirim e do Rio Jaguarão, somaram cerca de 900mil quilômetros quadrados de área incorporada ao Brasil, graças ao trabalho de negociação desse grande brasileiro.


Foto: História do Brasil

A Conquista do Acre A eficiente política diplomática do Barão do Rio Branco teve no caudilho gaúcho, José Plácido de Castro, o seu braço armado de maneira involuntária. Conta Bueno: “chefiando o bando de seringueiros que invadiu o território boliviano em 1902, Castro criou uma situação de fato que, após vários conflitos armados, Rio Branco resolveu de direito. Tudo começou com o boom da borracha e com a seca que assolou o Ceará entre 1877 e 1879, quando cerca de 30 mil retirantes migraram para a Amazônia. Logo já ocupavam os então desconhecidos vales dos rios Juruá e Purus em pleno território boliviano. Era uma área de difícil demarcação e muita riqueza vegetal”. Em 1900, insuflada pelos Estados Unidos, a Bolívia exigiu que os brasileiros saíssem da área. Segundo o acordo feito com os Estados Unidos, a Bolívia cederia o Acre para a multinacional Angloboliviana Syndicate em troca de um abatimento de 50% nos impostos sobre a exportação de sua borracha.

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Foto: História do Brasil

Rio Branco (Centro) no dia da assinatura do Tratado de Petrópolis.

Para resolver esse impasse o gaúcho Rodrigo Carvalho, fiscal da fronteira, conclamou seu conterrâneo Plácido de Castro para liderar a chamada Revolta dos Seringueiros. Conhecido das táticas de guerrilha, maragato veterano da Revolução Federalista de 1893, Plácido de Castro a frente de 2 mil sertanejos armados de fuzis tomou Xapurí e em 7 de agosto de 1902 proclamou a independência do Acre. Vários outros combates sangrentos se seguiram, todos com a vitória do bando de Plácido. O Presidente boliviano ameaçou ir

(...) Castro criou uma situação de fato que, após vários conflitos armados, Rio Branco resolveu de direito.

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ao palco das operações e deflagrar guerra total. Começaram, então, as negociações diplomáticas com Rio Branco no comando da delegação brasileira. Por fim, em novembro de 1903, foi assinado o Tratado de Petrópolis segundo o qual a parte meridional do Acre, reconhecidamente boliviana, mas desbravada e povoada por brasileiros, passaria para o Brasil em troca de 2 milhões de libras e a promessa da construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, jamais concluída. Episódio à parte Euclides da Cunha, autor da imortal obra Os Sertões, escrevia, na época, para o Jornal O Estado de São Paulo, abordando, na maioria de seus textos, a questão de limites entre o Brasil e Peru, assim como o abandono da Amazônia. Leitor das reportagens de Euclides, Rio Branco o convidou e o nomeou chefe da missão exploratória que partiu para o Alto Purus em abril de 1905 para traçar fronteiras entre Brasil e Peru. Ao longo de seis meses, Euclides viveu

todos os dramas da selva: naufrágios, doenças, motins, falta de comida. Mesmo assim cumpriu a missão que o Barão lhe designara e retornou à civilização em 1906. Noites Cariocas O embaixador aposentado Vasco Mariz na edição de julho de 2003 da revista Carta Mensal publica uma palestra intitulada “O Duque de Caxias e o jovem Rio Branco”, onde recorda aspectos relevantes da mocidade de Juca Paranhos e o papel decisivo em sua vida que desempenhou seu velho amigo, o Duque de Caxias. Vasco Mariz ainda cita as duas biografias mais importantes do Barão de Rio Branco: a de Álvaro Lins, acadêmico e crítico literário de sua época, e a de Luis Viana Filho, também acadêmico, ex-governador da Bahia e senador pelo seu Estado. Diz Vasco Mariz: “Desde jovem, Juca Paranhos sentiu forte atração pela noite carioca”. E completa Luis Viana Filho: “O belo sexo atraia o adolescente e nada o deliciava mais


A Política Com a queda do gabinete liberal em 1868, seu pai assumiu o Ministério dos Negócios Estrangeiros no governo de Itaboraí. Foi quando Juca resolveu tentar a carreira política. Como sua candidatura era inviável no Rio, o Visconde de Rio Branco lançou o filho como candidato por Mato-Grosso, Estado que, aliás, não conhecia. Escreveu ele a um amigo: “não acho natural, mas acho possível”. Foi eleito. Álvaro Lins escreveu que o deputado Paranhos, que também

trabalhava na redação do jornal “A União”, era o jornalista mais ativo e mais bem informado da Câmara. Ainda encontrava tempo para freqüentar reuniões da poderosa maçonaria, seita condenada pela Igreja e do desagrado de D. Pedro II. Os Amores de Juca No inicio de 1872, Juca encontrou no Alcazar Lyrique uma belga chamada Marie Philómene Stevens, de 22 anos de idade, por quem se apaixonou. Em breve ela engravidou e ao longo de 26 anos de convívio tiveram cinco filhos. Quando foi nomeado para Liverpool, Rio Branco levou-a para Paris onde ela ficou até morrer em 1898. Ainda convivendo com Marie Philómene, Juca Paranhos se apaixonou por Maria Bernardina, uma jovem de 15 anos filha do Visconde de Tocantins e sobrinha de Duque de Caxias, os dois políticos amigos de seu pai. Luis Viana escreveu: “essa nova inclinação amorosa o obrigava a medir cada passo e a pesar cada palavra. O melhor era partir logo levando a amante grávida e os filhos. Depois se veria como afastá-lo do caminho de Maria Bernardina”. E por curiosa ironia do destino, conta Vasco Mariz, a sua segunda paixão amorosa acabaria casandose com Salvador Antonio Moniz Barreto de Aragão. O filho do casal, José Joaquim Moniz de Aragão, viria a ser seu secretário particular quando Ministro das Relações Exteriores. Em seu enterro, foi Moniz de Aragão, o filho de Maria Bernardina, quem teve o privilégio de levar em suas mãos a almofada com as condecorações do chefe. O Adeus No final de sua vida, José Maria da Silva Paranhos Junior se envolveu em dois fatos considerados polêmicos. Convidado a concorrer à Presidência da República em 1909, recusou a proposta, mas segundo Eduardo Bueno “não pode esquivar-se entre o

Rio Branco deu as costas ao civilismo de Rui. Depois foi favorável a punição dos marinheiros na Revolta da Chibata.

” Foto: História do Brasil

do que a indiscrição de um decote. Freqüentava regularmente as noitadas do Alcazar Lyrique na rua da Vala, atual rua Uruguaiana. Se durante o dia freqüentava as aulas da faculdade, à noite era um boêmio consumado, pois não perdia os espetáculos de teatro, ópera ou opereta. Seus hábitos eram considerados exóticos, pois se levantava tarde, almoçava por volta das 15 horas e jantava de madrugada”. A fim de afastá-lo das noites cariocas, seu pai o Visconde do Rio Branco, Presidente do Conselho de Ministros do Império (1870-1875), obrigou o filho a terminar o curso de Direito, que havia iniciado em São Paulo aos 17 anos, em Olinda, Pernambuco. O Rio da época oferecia inúmeras tentações noturnas. O jovem Juca ao se formar em Pernambuco, retornou para a cidade maravilhosa a fim de conviver ao lado de atrizes francesas atraentes que aqui se apresentavam em espetáculos teatrais. Depois de formado em Direito e já trabalhando como professor interino do Colégio Pedro II no Rio, Juca Paranhos foi surpreendido pela sorte. Conta Vasco Mariz: “Em 1867, Juca Paranhos teve uma surpresa agradável: ganhou 12 contos de reis em uma loteria e, como os liberais estavam no poder e nada se podia esperar deles, decidiu fazer uma viagem à Europa que não conhecia ainda. Visitou vários países do continente e demorou-se em Portugal”.

Plácido de Castro proclamou a Independência do Acre

civil Rui Barbosa e o Marechal Hermes da Fonseca”. Rio Branco deu as costas ao civilismo de Rui. Depois foi favorável a punição dos marinheiros na Revolta da Chibata. Rio Branco foi enterrado como herói depois de ser homenageado por mais de 300 mil pessoas. Jornalista Notas Bibliográficas BUENO, Eduardo, História do Brasil. Zero Hora e RBS Jornal VASCO, Mariz, Carta Mensal, julho 2003, nº. 580 , Vol. 49

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FÓRUM DE NOTÍCIAS Ministro Edson Vidigal quer sabatina já

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presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Edson Vidigal, pediu ao presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que seja dada prioridade à sabatina dos três magistrados indicados pelo STJ para integrar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O ministro Vidigal afirmou que, se as indicações não ocorrerem até o dia 8 de maio, caberá ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) adotar tal procedimento. “Então, nós queremos deixar um registro público, para que o País inteiro fique sabendo que o Superior Tribunal de Justiça não embarca nessa, não. Já indicou os magistrados e defende que eles sejam sabatinados pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e os nomes aprovados sejam encaminhados ao presidente da República. E, se não forem aprovados, que sejam devolvidos, a fim de que o STJ possa indicar outros nomes”, alertou. Colegiado A reforma do Poder Judiciário criou o CNJ. Ao STJ coube indicar três magistrados para compor o colegiado de 15 membros. O ministro Vidigal informou que, no ano passado, os ministros do STJ escolheram o ministro Antônio de Pádua Ribeiro para o posto de corregedor-geral do Conselho. A indicação foi encaminhada no início do ano à presidência do Senado. Mais recentemente, foram protocolados documentos

Foto: Jorge Campos / STJ

referentes às indicações do juiz Jirair Aram Meguerian, do Tribunal Federal Regional da 1ªRegião, e da juíza federal Germana de Oliveira Moraes, da 3ª Vara Federal. “Portanto, encerrando as indicações dos representantes para esse Conselho, nada andou aqui no Senado. Então, eu vim pedir ao senador Renan Calheiros que dê prioridade ao andamento do processo de sabatina dos indicados porque, se isso não ocorrer a tempo, o presidente do Supremo é que irá nomear todos os membros do Conselho Nacional de Justiça”, enfatizou Vidigal.

Carta de Natal define rumos para segurança pública

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o final de três dias de discussões do I Congresso Latino Americano de Segurança Cidadã, realizado em Natal entre os dias dois e quatro de março, representantes do Brasil e países convidados formularam um documento denominado Carta de Natal, que pretende ser o norteador de políticas de Segurança Cidadã e Polícia Comunitária. Profissionais de segurança pública, membros da comunidade e representantes das esferas federal, estadual e municipal, além de representantes da Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Chile, Guatemala, Honduras, México, Peru, República Dominicana, Uruguai, Estados Unidos da América, Canadá, França e Espanha formalizaram no documento a necessidade de se repensar as relações humanas e a reintegração através da “convivência democrática e da participação cidadã”. Para o secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Fernando Corrêa, o Congresso serviu pra confirmar a necessidade de se repensar a política de segurança brasileira. “As discussões nos mostraram o amadurecimento do Brasil para a constatação - já antiga em outras partes do mundo 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2005

de que a violência e a insegurança impactam diretamente o desenvolvimento econômico, social e político do país”. Entre as principais propostas sugeridas para a área estão a implementação da Política Nacional de Polícia Comunitária, com a criação de Conselhos Nacional e Regionais; a busca pelo envolvimento de todos os atores que compõem o Sistema de Segurança Cidadã, tais como comandantes gerais de Polícias Militares e Corpos de Bombeiros, Ministério Público, Poder Judiciário, delegados gerais de Polícia, representantes dos municípios, organizações não-governamentais, representantes da comunidade e demais segmentos sociais. Durante o encontro, o Brasil pôde expor aos países convidados como pretende implementar seu projeto Segurança Cidadã, que já conta com R$ 37 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública para aplicação em ações estaduais e municipais. O Projeto Segurança Cidadã brasileiro foi desenhado para apoiar o Sistema Único de Segurança Pública em dois pilares: modernização da gestão das instituições de segurança pública e implantação das ações municipais.


Troféu Dom Quixote em São Paulo

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Revista Justiça & Cidadania está homenageando neste mês de março personalidades do judiciário, do meio jurídico, da política, da imprensa e da intelectualidade brasileira com a entrega em São Paulo de mais uma edição do Troféu Dom Quixote. São os seguintes os homenageados:

Anna Maria Pimentel, Presidente do TRF-3; Cláudio Lembo, Vice-Governador de São Paulo; Diva Malerbi, Vice-presidente do TRF-3; Ives Gandra Martins, Presidente da Academia Paulista de Letras; Jorge Mattoso - Presidente da Caixa Econômica Federal; José Kalláz, Desembargador Federal Aposentado; José Mindlin, membro da Academia Paulista de Letras; Marcio Moraes, Desembargador Federal; Miguel Reale, membro da Academia Paulista de Letras; Newton de Lucca, Desembargador Federal; Paulo Pereira Batista, Corregedor-Geral da Justiça Federal; Saulo Ramos, ex-Ministro da Justiça; Zulaiê Cobra, Deputada Federal.

A propósito, o nosso Diretor-Executivo Tiago Salles recebeu do desembargador do Tribunal Regional Federal da 3º Região, Newton De Lucca, um dos homenageados, a seguinte carta: Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 2005 Ao Excelentíssimo Senhor Dr. Tiago Santos Salles M.D. Diretor da Revista Justiça & Cidadania Rio de Janeiro – RJ Caro Dr. Tiago Acuso o recebimento de seu prezado expediente do último dia 18, acompanhado de exemplar da edição nº 54 da sempre bem-vinda Revista Justiça & Cidadania. Extremamente Honrado com a outorga do Troféu Dom Quixote, no próximo dia 14 de março, ao lado de importantes figuras da vida intelectual brasileira, não posso deixar de expressar, de imediato, a minha mais sincera e comovida gratidão. Ao lado de minha luta diária – embora quase sempre vã – em prol do Direito e da Justiça, sempre nutri o mais acendrado amor pela Literatura, tanto nacional como estrangeira. Cervantes representa, na língua espanhola, o que Shakespeare significou na língua inglesa; Dante Alighieri, na italiana; Montaigne, na francesa; Goethe, na alemã; Tolstoi, na russa; Camões e Fernando Pessoa, na portuguesa e o que

Machado de Assis – o Cervantes brasileiro – significa para nossa gente... Não é sem razão, por certo, que Harold Bloom, o mais importante crítico norte-americano, tenha dito que a obra de Cervantes pode ser qualificada, legitimamente, como a Bíblia da Realidade. Receber o prêmio que leva o nome de Dom Quixote provoca uma espécie de ambivalência trágica em qualquer ser humano digno de sua condição: misto de alegria infinita com um sentimento de responsabilidade sem limites, pois o mundo nunca parece ter precisado tanto, como agora, de incontáveis Dons Quixotes, esse personagem de rara beleza, ou do “Nosso Senhor Dom Quixote”, para usar a expressão de Miguel Unamuno, no comentário sobre Cervantes em língua inglesa. Tão honrosa distinção só pode mesmo ser agradecida com o encantemento das mágicas palavras do próprio Cervantes: “E Dom Quixote nasceu apenas para mim, assim como para ele nasci: ele sabia atuar e eu, escrever; juntos, formamos uma unidade.” E nada mais resta a dizer: Muito obrigado, apenas... Antenciosamente Newton De Lucca 2005 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


FÓRUM DE NOTÍCIAS Aumenta o número de advogadas no Brasil

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aumento do número de mulheres trabalhando na advocacia no País foi o principal fato a comemorar no Dia Internacional da Mulher, segundo observou o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato. Conforme os dados do Conselho Federal da OAB, dos 514.658 profissionais da advocacia cadastrados, 223.781 são do sexo feminino, o que representa 43,5% do total da categoria em todo o País.

NOS ESTADOS Estado AC AL AM AP BA CE DF ES GO MA MG MS MT PA PB PE PI PR RJ RN RO RR RS SC SE SP TO

Feminino 447 1.328 1.120 280 5.614 3.611 5.376 2.245 5.558 1.332 16.311 2.395 2.773 2.939 1.693 5.315 839 12.052 46.933 1.465 816 162 17.041 4.302 939 80.279 616

Masculino 792 2.219 1.438 376 7.327 5.125 7.864 3.695 7.777 2.205 26.145 3.469 3.538 3.677 3.126 7.153 1.537 12.360 53.537 2.335 1.046 233 22.296 7.802 1.180 100.170 851

Empresas condenadas por dano moral

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Comissão Estadual de juizados Especiais, presidida pelo desembargador Thiago Ribas Filho, está em pleno funcionamento realizando um trabalho em defesa do povo. Agora mesmo, a referida Comissão divulgou a relação das 30 empresas que estão sendo processadas por dano moral somente no mês de fevereiro passado. Segundo a Comissão, essas são as empresas que mais lesam a coletividade:

Entidades

Total de Ações

Telemar Banco do Brasil S/A CERJ - Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro Banco Bradesco LIGHT - Serviços de Eletricidade Banco Itaú S/A Telefônica Celular ATL - Algar Telecom Leste S/A Fininvest S/A VIVO Embratel - Emp. Bras. de Telecomunicações Casa Bahia Comercial LTDA C&A Modas Credicard Banco ABN AMRO BANK S.A. CEDAE - Comp. Estadual de Água e Esgoto VESPER S/A Banco Unibanco S/A Banco Banerj S/A Banco Santander Brasil S/A CEG - Comp. Estadual de Gás do RJ GLOBEX Utilidades S/A Itaucard Adm. De Cartões de Crédito NET Banco HSBC Bamerindus S/A UNIMED Auto Viação 1001 Ltda Casas Sendas Comércio e Indústria S/A OI TL PCS S/A SERASA

4.723 787 668 658 650 633 496 409 360 262 258 241 191 173 156 148 132 110 108 100 96 95 78 64 54 50 40 33 32 31

Fonte: Conselho Nacional da OAB

Ao lado do forte aumento da participação feminina registrado pelos escritórios de advogados, uma outra área é apontada pelo presidente da OAB como tendente à absorção crescente de mulheres advogadas: a 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2005

carreira pública. Ele observa que tem crescido significativamente o número de advogadas nos cargos da magistratura e no Ministério Público nos últimos anos. A título de exemplo, Busato lembra que dados da Justiça do Trabalho indicam

mulheres já ocupam 43 dos seus postos, sendo 37% nos Tribunais Regionais do Trabalho.


2005 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 51



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