Revista Justiça & Cidadania

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Edição 169 • Setembro 2014


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Justiรงa & Cidadania | Setembro 2014


S umário Foto: Nelson Jr./SCO/STF

10 Capa – Supremo desafio

Editorial – Vargas: A justificativa de 1937

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Leis invasoras da competência da União em energia elétrica

36

O desenvolvimento e os direitos fundamentais

39

A inovação organizacional na administração judiciária e o paradigma do existencialismo humanista

44

Uma visão para o combate à criminalidade

48

Direito de ir e vir ameaçado

50

Diálogo entre os Tribunais Superiores brasileiros e a Suprema Corte americana

54

Marco Legal para a mediação pretende combater a morosidade na Justiça

58

Prateleira – Direitos invioláveis

60

Dom Quixote – Direitos Humanos em debate

62

Em Foco – Audiências com hora marcada

66

Justa homenagem

Foto: Mario Miranda FIlho/Agência Foto

Foto: Pedro França/Agência Senado

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Aspectos atuais do Direito Autoral

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Controle concentrado e difuso


Edição 169 • Setembro de 2014 • Capa: Nelson Jr./SCO/STF

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E ditorial

Vargas: a justificativa de 1937

O

dia 24 de agosto de 1954 marcou um dos momentos mais relevantes da história política do Brasil. O então presidente da República, Getúlio Vargas, em um ato de verdadeiro e nítido desespero, resolveu premeditadamente se suicidar. O ato foi um protesto contra a deposição militar que lhe fora imposta pelas forças políticas que se organizaram em oposição. Ele renunciou à vida e evitou, com a sua morte, a possível e quase certa deflagração de uma guerra civil no País. O presidente Getúlio vinha, desde a revolução de 1930, com a intenção premonitória, que se repetiu em 1932 e 1945, de resistir no governo e morrer em defesa da dignidade do cargo. O memorável e histórico discurso que pronunciou no Plenário do Senado Federal, na sessão de 13 de dezembro de 1946, perante a silente plateia de parlamentares e sem a mínima contestação da totalidade de seus opositores, deixou evidente, com fatos e razões, os motivos que justificaram o seu modus operandi para garantir a segurança e a tranquilidade pública, à medida que ocorria a instauração do Estado Novo e a implantação da ditadura. Do importante e longo pronunciamento de duas horas e 40 minutos extraímos o essencial para compreendermosãos do propósito do Presidente Getúlio ao instituir a ditadura com a decretação do ESTADO NOVO, em 10 de novembro de 1937:

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“Não é segredo para ninguém que os elementos de esquerda e de direita estavam sendo manipulados para a luta armada. Que as formações militares de que dispunham os governadores do Sul e do Norte estavam na iminência de um choque. As forças armadas do Brasil me apresentaram uma solução. Aceitei o dever de conduzir os destinos do Brasil no momento de maior gravidade de sua história. Poucos meses antes, na Câmara, se discutira a questão japonesa. Dividiram-se as opiniões. O Brasil naquela época tinha a maior colônia japonesa do mundo fora do oriente. O embaixador do Japão acompanhara da tribuna os debates. A propaganda japonesa era ativa e poderosa. Eu não poderia vetar a lei se fosse aprovada, sob pena de criar graves conflitos internos e provocar reclamações diplomáticas. Foi a palavra do nobre espírito de Miguel Couto e a campanha do Jornal do Comércio que salvaram a situação. Naquela época se organizavam no Sul, como forças econômicas e políticas, os elementos de origem alemã e polonesa. Estrangeiros e brasileiros natos vestiram as camisas dos partidos nazista e fascista. Especialistas vindos da Europa organizavam a luta para o dia em que se tornasse necessário fazer pressão sobre o governo, em política interna, para forçar diretrizes internacionais. No Rio Grande, em Santa Catarina, no Paraná e em São Paulo as colônias estrangeiras se arregimentavam. Nós, brasileiros, como sempre sonhadores, dispersávamos nossas energias em choques políticos ou em ilusões. E a realidade nos ameaçava com o sangue da guerra civil. (...) Em 1937, 300 mil japoneses ocupavam posições estratégicas no litoral de São Paulo e em todo o interior. Funcionavam legalmente, no Brasil, as seções dos Partidos Nazista e Fascista. Organizavam-se a infância e a juventude brasileiras no culto racial a seus antepassados estrangeiros e incutia-se em seu espírito a ligação à pátria de seus paíis e não à pátria brasileira. Como poderia qualquer governo enfrentar esse problema, que tinha desafiado todos os governos anteriores, já me havia desafiado, e dominava numa crise política as estruturas municipais? Quem iria correr o risco de perder eleições por motivos que pareciam de menor importância?

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As zonas coloniais forneciam fortes contingentes eleitorais aos que defendiam sua política. Eram ricas e poderosas. Organizadas e disciplinadas. E nós, como sempre, puros e ingênuos, “‘deitados no berço esplêndido”’. A decisão Duas vezes em minha vida fui obrigado, pela razão de Estado, a quebrar a harmonia entre os Poderes Executivo e Legislativo. A primeira, quando dissolvi o Congresso como chefe da Revolução de 1930. Prestei contas à nação desse ato do governo provisório por mim chefiado. A segunda vez, quando reassumi a chefia da revolução brasileira e, em defesa da pátria, para garantir e assegurar a defesa continental, fechei o Parlamento em 1937. Eu não quis o poder, não pratiquei esse ato para impor minha vontade ou para desrespeitar a soberania popular ou ferir seus representantes. Era indispensável enfrentar com um governo forte todas as influências internacionais que nos lançavam a uma guerra civil . Era indispensável unir, com a disciplina, todas as energias nacionais, que nosso temperamento vibrante separava. Não pratiquei o ato que poderia ser considerado como golpe de Estado por motivos de política nacional. Tinha necessidade de tornar possível a defesa do continente. E eu sabia qual o destino das nações fracas e confiantes. Precisava agir antes que fosse demasiado tarde. A esta Casa presto minha homenagem, como expressão sincera de meu respeito à sua tradição. Posso ter errado na forma. Mas a história provou que cumpri meu dever. Os primeiros atos do meu governo, em dezembro de 1937, foram o fechamento de todos os partidos e a nacionalização do ensino. E devemos o êxito dessas medidas principalmente à cooperação de todos os estrangeiros e descendentes dos que emigraram para o Brasil. O sentimento de cooperação e de integração em nossa vida que eles manifestaram merece especial relevo. Afastados os emissários perturbadores que os inquietavam, os estrangeiros residentes no Brasil e seus filhos deram grandes exemplos de civismo e de amor à nossa terra. E precisamente por isso a pressão dos interesses políticos internacionais feridos manifestou-se violenta. No princípio de 1938, o Brasil, por minha determinação, deixava de considerar persona grata o embaixador de Hitler, Sr. Karl Von Ritter, que exigia do governo brasileiro o funcionamento das seções do Partido Nazista em nossa terra. Num gesto de violência, a que estava acostumado, o governo do Reich enviou ao Brasil, de regresso do Congresso

de Nurenberg, o mesmo embaixador. Fiz comunicar que não seria permitido o seu desembarque e, ao mesmo tempo, retirei o embaixador do Brasil em Berlim. Foi o Brasil a primeira nação do mundo a enfrentar o poderio de Hitler. (...) Consagrado ao sacrifício Fui destinado a sofrer o mesmo fim de Dolfuss, sangrado no palácio do governo. Pouco antes se realizara a anexação da Áustria à Alemanha. Compreendi que precisava contemporizar. Em todos os países do mundo, as nações do eEixo e o Japão articulavam uma intensa propaganda e organizavam forças para a desagregação. Em outubro a Inglaterra e a França capitulavam em Munique, oferecendo o holocausto da Tchecoslováquia, cortando as possibilidades de defesa dessa nação com a entrega da região dos sudetos. Em março de 1939, a Alemanha ocupava definitivamente a Tchecoslováquia, cortando as possibilidades de defesa dessa nação com a entrega da região dos sudetos. O mundo sentia a guerra. Mas todos recuavam perante o poder agressivo do Eixo. Em março chegava a vez de Memel, na Lituânia. Nos Estados Unidos se desencadeava uma violenta campanha política contra Roosevelt. Em Londres, Churchill clamava num deserto. Em agosto de 1939 realizava-se o pacto de amizade entre a Rússia e a Alemanha. Em 1o de Setembro a Polônia iniciava o seu martírio. Durante meses a Inglaterra e a França dirigiram apelos de angústia ao presidente Roosevelt, e o grande chefe da nação norte-americana se achava bloqueado pela oposição política. O Brasil, numa das posições estratégicas mais delicadas da guerra que se alastrava pelo mundo, era o campo de batalha da mais furiosa de todas as campanhas de publicidade estrangeira e ação subterrânea. Cercado por todos os lados, conseguia, porém, manter a nossa posição internacional. Enquanto não se conseguia a evolução da política interna dos Estados Unidos, meu compromisso pessoal com o presidente Roosevelt era contemporizar, assegurar a ordem interna no Brasil e manter a unidade continental. Por isso o Brasil cedeu sempre em Lima e Havana; por isso mantive o governo em rigorosa neutralidade, ferindo muitas vezes os entusiasmos precipitados e exibicionismos mercenários que perturbavam o ambiente, prejudicando o que se precisava do Brasil para a vitória. Graves e dolorosos foram esses dias de ação silenciosa e esquiva, esperando todas as noites a morte, enfrentando todas os dias as investidas dos que imaginavam desviar o Brasil do seu destino continental, e sofrendo

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as injustiças de campanhas que o desconhecimento da realidade fomentava contra a diretriz, que devia ser prudente e cautelosa, sábia e sutil. (...) O grande momento Quando as tropas britânicas foram jogadas pelo furacão de Rommel até El Alamein, dependeu quase que exclusivamente do Brasil a defesa do último reduto no Mediterrâneo. Os socorros militares, material bélico e outros meios de luta, que os Estados Unidos enviavam para a Inglaterra, passavam por Natal. Sem esse ponto de apoio, Montgomery não teria o material de que necessitava. E eu precisava a todo custo garantir essa passagem. Não dispunha de outras forças materiais além das que minha inteligência me oferecia e às vezes tinha de recorrer a astúcia. A Inglaterra, segundo reconheceu publicamente o herói de sua resistência, Winston Churchill, contraiu uma grande dívida de gratidão para com o Brasil. Ninguém me arrebatará esse serviço. Nestes termos me telegrafou Roosevelt: ‘Sei, como o sabe todo o povo do continente, quanto é grande a dívida de gratidão de todos nós à esclarecida visão e diretivas de V. Exa. A amizade pessoal de V. Exa. neste período crítico é uma fonte de constante inspiração para mim e a sua atuação muito encoraja o povo dos Estados Unidos, mostrando a determinação e a visão com que V. Exa. enfrenta a emergência diante da qual estão colocados os povos livres em todo o mundo.’ Cordell Hull e Sumner já testemunharam também como o Brasil foi fiel a seus compromissos. Não estávamos fazendo política internacional. Fortalecíamos a ação genial de Roosevelt, que precisava da união da América para salvar a Europa. Cobrimos o flanco dos Estados Unidos política e militarmente. Esta a razão, esta a ação da ditadura. Nenhum país cujo território era ou podia ser posição estratégica vital foi poupado aos horrores da guerra civil, da invasão, ou dos putschs. Os fatos demonstraram o acerto de minha previsão. Mesmo nos Estados Unidos o poder dos inimigos foi tão forte que conseguiu impossibilitar uma ação mais rápida de Roosevelt. Só depois da infame agressão de Pearl Harbour, quando toda a Europa já tinha sido sacrificada, é que o povo americano se desintoxicou da ação interna e enfrentou com heroísmo e tenacidade o inimigo. Na Inglaterra, só depois da realidade da vitória continental alemã e sobre as ruínas de Londres é que Churchill recebeu o poder político. 8

Mas eu tinha e tenho a confiança do povo. Podia utilizar em benefício do próprio povo, da nossa pátria, da América e da humanidade essa confiança. Podia e devia. E foi o que fiz. E a prova de que o povo me conforta com a generosidade de sua confiança está na minha presença nesta nobre Casa. (...) Após a promulgação da Constituição de 10 de novembro de 1937, que fora utilizada como um instrumento de governo, eu me apoiaria nas forças armadas para a realização de três objetivos principais: 1o) defender o Brasil; 2o) levar a termo um programa administrativo de grande envergadura; 3o) ampliar o desenvolvimento e a aplicação da justiça social, em benefício dos trabalhadores. Desde que me faltou o apoio da forças armadas, não poderia continuar no governo e dava por finda minha missão no exercício do cargo. Não guardo ressentimentos, nem tenho outro desejo que não seja o bem-estar do povo. Muito já sofremos, no Brasil, pelo ódio e pelo rancor dos homens. Durante anos procurei sempre esquecer os agravos e comigo colaboraram antigos adversários e até inimigos. Sempre me esforcei para alcançar a harmonia nacional, apesar da intolerância de alguns espíritos e da intransigência de muitos interesses. Minha palavra é, portanto, um apelo a todos, amigos e inimigos, companheiros e adversários, para que tenhamos sempre presente a necessidade de paz e de equilíbrio social.” Passados 77 anos da promulgação da Carta de 1937 e rememorando o significado do histórico ato face a justificativa da sua necessidade no tempo, como explicitado pelo presidente Getúlio, inclusive ao citar o pronunciamento do presidente Franklin Roosevelt, que reconheceu a dívida de gratidão do povo do continente pela efetiva participação do Brasil, assim como a esclarecida visão e ingerência de Vargas nos acontecimentos que propiciaram o apoio e a participação do Brasil na guerra contra a Alemanha, a Itália e o Japão. Os históricos acontecimentos, como relatados pelo Presidente Getúlio no Senado Federal, que tanta celeuma política desperta até os dias de hoje – face principalmente ao período e àas ações ditatoriais que se seguiram após a entrada em vigor da Polaca, como chegou a ser qualificada a Constituição de 1937 –, servem de reflexão e análise das razões justas ou erradas, próprias ou impróprias, que levaram o presidente Getúlio Vargas naqueles tempos tumultuosos a adotar e instituir no Brasil o regime do Estado Novo.

Orpheu Santos Salles Editor Justiça & Cidadania | Setembro 2014


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C apa, Giselle Souza

Posse de Ricardo Lewandowski como presidente do STF será no dia 10 de setembro. Ministro pretende dedicar-se principalmente à gestão

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Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Supremo desafio O Ministro Ricardo Lewandowski assume a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) diante de uma missão quase hercúlea: gerir os 68 mil processos do acervo para que a Corte possa voltar a se dedicar ao seu papel de guardiã da Constituição Federal

R

esgatar o papel constitucional do Supremo Tribunal Federal (STF) é a grande missão do ministro Ricardo Lewandowski, presidente eleito dessa Corte. O ministro assume o comando do órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro no próximo dia 10 de setembro. Ele cumprirá mandato de dois anos. Nesse período, Lewandowski afirmou que pretende dedicar-se sobretudo à gestão. Em entrevista à Revista Justiça & Cidadania, ele explicou que o acervo que beira os 68 mil processos, assim como a média de quase 5 mil ações distribuídas anualmente para cada um dos 11 ministros do Tribunal, têm sido preocupação por, entre outros motivos, imobilizar o Plenário e impedi-lo de se dedicar às ações que envolvem a Carta Magna. “Minha meta é retomar a característica do STF como Corte Constitucional, que julga questões constitucionais e que impactam em elevado número de cidadãos”, afirmou. O ministro já deu mostras da gestão que pretende empregar ainda como presidente interino do STF – ele assumiu o cargo no fim de julho em razão da aposentadoria do então pre-

sidente, ministro Joaquim Barbosa. Na primeira sessão do segundo semestre, no dia 1o de agosto, o Plenário do Supremo julgou, sob o comando dele, 127 processos que obstruíam a pauta. Algumas das ações encontravam-se em tramitação por mais de 20 anos. Na semana seguinte ao julgamento, Lewandowski anunciou a criação de uma força-tarefa, com 50 servidores, e zerou o estoque de 2.600 ações pendentes de distribuição. Lewandowski foi eleito para a presidência do STF no último dia 13 de agosto. Em razão do posto, ele assumiu também o comando do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável pela fiscalização e pelo planejamento estratégico do Poder Judiciário brasileiro. Lá, também como interino, Lewandowski promoveu mudanças. No dia 8 de agosto, assinou a Instrução Normativa no 59/2014, que estabelece regras para os gastos dos membros e servidores do órgão com viagens. Na avaliação dele, a norma veio para atender aos princípios da celeridade, eficiência e economicidade. Experiência administrativa não falta ao ministro. Quando chegou ao STF, em 2006, Lewandowski herdou

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Revista Justiça & Cidadania – O senhor afirmou, no dia em que foi eleito presidente do STF, que uma das suas metas seria aumentar o diálogo com a sociedade. Como o senhor pretende promover essa aproximação? Ricardo Lewandowski – Pretendo fazer isso com a ampliação no uso dos instrumentos de democracia participativa previstos na Constituição Federal de 1988, justamente para aproximar a Justiça dos cidadãos. As principais são as audiências públicas e os amici curiae, ou amigos da corte. Esse instrumento permite a intervenção assistencial em processos de controle de constitucionalidade por entidades com representatividade para se manifestar nos autos em questão. Elas não são partes do processo, mas atuam como interessados na causa. Também é minha meta promover as formas alternativas de solução de controvérsias, como a conciliação e a 12

“Minha meta é retomar a característica do STF como Corte Constitucional, que julga questões constitucionais e que impactam em elevado número de cidadãos. Então, além de colocar a pauta em dia, quero ajustar a distribuição dos processos”

arbitragem, a fim de se evitar que os conflitos diversos sejam levados ao Judiciário, mas possam ser resolvidos pela própria sociedade. Temos hoje no País cerca de 100 milhões de processos em tramitação para apenas 18 mil juízes federais, estaduais, do trabalho, eleitorais e militares. A razão da demora é essa enorme litigiosidade que não é só do povo brasileiro, mas sim do mundo contemporâneo. O STF fechou o ano passado com acervo de quase 68 mil processos. Quais são suas metas com relação a essa demanda? – Na primeira sessão deste segundo semestre de 2014, eu ainda estava como presidente interino, o Plenário do STF julgou 127 recursos, entre

Foto: Carlos Humberto/Agência CNJ

um gabinete com cerca de 10 mil processos. Ele assume agora a presidência da Corte, deixando acervo inferior a 1,8 mil ações. Nesse período, o ministro prolatou 72 mil decisões no colegiado e de forma monocrática. Ele também redigiu aproximadamente 10,5 mil acórdãos. Em razão do feito, o gabinete dele recebeu o selo de gestão de qualidade. À Revista Justiça & Cidadania, Lewandowski ressaltou as medidas que pretende desenvolver para devolver celeridade ao STF e resgatar sua missão constitucional. O ministro também falou sobre o estoque de ações com Repercussão Geral reconhecida, que estão à espera de determinação do Tribunal. E destacou seu objetivo de aproximar o Supremo da sociedade. “Pretendo fazer isso com a ampliação do uso dos instrumentos de democracia participativa previstos na Constituição Federal de 1988, justamente para aproximar a Justiça dos cidadãos”, disse. Confira a íntegra da entrevista:

agravos regimentais e embargos de declaração, que estavam obstruindo a pauta. Esses julgamentos duraram pouco menos de uma hora. Nesse tempo, 47 listas de processos de relatoria de sete ministros foram julgados. Entre as ações estavam algumas que tramitavam na Corte há mais de 20 anos. O Recurso Extraordinário no 117.809, por exemplo, oriundo do Paraná, chegou ao Supremo há quase 26 anos para discutir a competência municipal para fixação de tarifas de serviço público. O processo, ao longo dos anos, passou pela relatoria de diversos ministros e sofreu uma série de recursos no próprio Supremo. Nessa mesma sessão, também julgamos a Ação Rescisória no 1.332, que estava há 20 anos na Corte. A ação questionava a Justiça & Cidadania | Setembro 2014


Ministro Ricardo Lewandowski também assume a presidência do CNJ, órgão de planejamento estratégico do Poder Judiciário

rescisão de contrato de promessa de compra e venda de um apartamento em um condomínio em São Paulo. Minha meta é retomar a característica do STF como Corte Constitucional, que julga questões constitucionais e que impactam em elevado número de cidadãos. Então, além de colocar a pauta em dia, quero ajustar a distribuição dos processos. Nesse sentido, determinei a criação de uma força-tarefa, com 50 servidores, que trabalharam inclusive aos sábados e domingos, até o fim de agosto, para colocar em dia os 2.600 feitos que aguardavam distribuição. Esse estoque era resultado do elevado recebimento de processos físicos e eletrônicos que chegaram ao STF e compõem-se principalmente de recursos contra decisões dos

tribunais de segunda instância. No mutirão, os servidores analisaram a existência de conformidade, presença de Repercussão Geral e também dos requisitos formais dos recursos previstos na lei processual, para que se procedesse à autuação, observando, claro, se o processo envolvia prevenção, critério esse que mantém a competência de um ministro em relação a determinado processo pelo fato de ter tomado conhecimento da causa primeiro. Com medidas como essa, esperamos colocar em dia a distribuição dos processos e atender, assim, à exigência constitucional da razoável duração do processo, assim como os meios que garantam a celeridade da tramitação dessas ações, nos termos da Carta Magna.

O STF também guarda acervo considerável de processos com Repercussão Geral reconhecida. Acontece que as ações semelhantes em curso nas instâncias inferiores ficam paradas até a decisão final da Suprema Corte. Como o senhor pretende solucionar essa questão? – Vamos priorizar o julgamento dos Recursos Extraordinários com Repercussão Geral reconhecida, para evitar o congestionamento dos processos em instâncias inferiores, pois esses recursos causam o sobrestamento de processos semelhantes, fazendo que, muitas vezes, os jurisdicionados aguardem por anos até que sua questão levada a juízo seja solucionada. Daremos prioridade, portanto, a esses recursos, mas

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sem esquecer das Ações Diretas de Inconstitucionalidade que estão há muito tempo aguardando julgamento. Nesse sentido, temos preparado a pauta do Plenário com os processos de Repercussão Geral reconhecida e que envolvem controle de constitucionalidade. Em uma única sessão, o STF julgou seis Ações Diretas de Inconstitucionalidade, um feito raro na história do Tribunal. Como presidente do CNJ, ainda interinamente, o senhor assinou a Instrução Normativa no 59/2014, que restringe os custos com as viagens pelos membros e servidores do órgão. A que se deve essa decisão? – As despesas com passagens e diárias em 2013 e no início desse ano foram elevadas. A nova orientação, então, tem como objetivo evitar as viagens desnecessárias por meio do incentivo à delegação da prática de atos para autoridades locais, nos ca-

sos que isso se mostrar necessário, e à realização das audiências por videoconferência. Com relação ao uso dessa tecnologia, aliás, temos a rede virtual INFOVIA, que permite a conexão simultânea de vários tribunais. Sobre as ocasiões em que o deslocamento se mostrar realmente imprescindível, a autorização deverá ser solicitada formalmente, com a apresentação de justificativa e com até 30 dias de antecedência à Presidência, que submeterá o pedido à apreciação do Plenário. Nos casos de eventos externos, os membros e servidores do CNJ convidados para participar deverão ter diárias e passagens custeadas pelo tribunal ou órgão organizador. Essas viagens também devem ocorrer apenas no caso de ser inviável a realização de videoconferência. O CNJ poderá custear a viagem somente em situações especiais, quando serão submetidas à aprovação da Presidência.

Ainda assim, esses casos também deverão ser submetidos à Presidência. Essas medidas visam a atender os princípios da celeridade, eficiência e economicidade. Na sua primeira sessão à frente do Conselho o senhor demonstrou preocupação com os recorrentes pedidos de prorrogação dos Procedimentos Administrativos Disciplinares (PADs) contra magistrados. Por quê? – Naquela sessão foram prorrogados os prazos de cinco PADs. Pedi aos conselheiros que sejam cuidadosos com os pedidos de prorrogação desses processos, que esses sejam devidamente fundamentados. Preocupa-me a eventual punição antecipada de magistrados em processos não finalizados e que, em alguns casos, são mantidos afastados previamente de suas funções por longos períodos. O órgão administrativo Foto: Gervásio Baptista/SCO/STF

Lewandowski preside sessão de julgamentos no STF. Ministro quer resgatar a missão constitucional da Corte 14

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do Poder Judiciário também deve priorizar a celeridade. Outro tema sensível no CNJ diz respeito ao Processo Judicial Eletrônico. O senhor afirmou recentemente, na Ordem dos Advogados do Brasil, que não dará prosseguimento à implantação do PJe. Por quê? – Não darei prosseguimento à implantação do PJe sem antes ouvir a classe. O sistema vem sendo gestado há muito tempo, mas apresenta falhas. Temos recebido queixas não só dos tribunais, mas de segmentos diversos, com problemas sérios nos estados e na advocacia, inclusive de acessibilidade. É importante e generoso projeto, que contempla o futuro, mas existem críticas e nada faremos sem antes ouvir todos os interessados e usuários do Processo Judicial Eletrônico. Pretendo e me comprometo a, dentro em breve, instituir uma comissão e realizar

Foto: Carlos Humberto/SCO/STF

“No Brasil temos quase 100 milhões de processos em tramitação para apenas 18 mil juízes. Diante da crescente demanda por Justiça, os magistrados devem mudar a mentalidade e buscar formas alternativas de solução de conflitos, não privilegiando apenas o ajuizamento de processos judiciais”

um encontro para discutirmos todos – tribunais, advocacia, membros do Ministério Público e representantes do CNJ – as virtudes e eventuais falhas desse sistema eletrônico. Já sob sua gestão, o CNJ firmou um protocolo de intenções com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) para difundir a Justiça Restaurativa no País. Qual é a importância dessa parceria? – Como disse, no Brasil, temos quase 100 milhões de processos em tramitação para apenas 18 mil juízes. O século XXI é o século do Poder Judiciário. Portanto, diante da crescente demanda por Justiça, os magistrados devem mudar a mentalidade e buscar formas alternativas de solução de conflitos, não privilegiando apenas o ajuizamento de processos judiciais. Criada há dez anos, a Justiça Restaurativa consiste na adoção de medidas voltadas a so-

lucionar, de forma alternativa, situações de conflito e violência, por meio da aproximação entre vítima, agressor, suas famílias e a sociedade, com vistas à reparação e à conciliação dos danos causados por um crime ou uma infração penal. A prática, assim como a mediação e arbitragem, parece-me um caminho viável para que possamos dar conta desse novo anseio por Justiça da sociedade. Precisamos mudar a cultura da magistratura e dos bacharéis em Direito e parar com essa mentalidade de que todos os conflitos e problemas sociais serão resolvidos mediante o ajuizamento de um processo. Precisamos buscar meios alternativos de solução de controvérsias. Precisamos buscar não apenas resolver as questões litigiosas que se multiplicam na sociedade por meio de uma decisão judicial, mas sim buscar formas alternativas, devolvendo para a própria sociedade a solução de seus problemas.

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Aspectos atuais do Direito Autoral

A violação dos direitos de propriedade intelectual: responsabilidade dos provedores de internet Luis Felipe Salomão

Ministro do STJ Membro do Conselho Editorial

A

1. Apresentação questão do direito autoral será analisada por três ângulos neste estudo: a) o primeiro está relacionado ao plano geral sobre a propriedade intelectual; b) o segundo diz respeito ao ambiente virtual e à responsabilidade que pode gerar aos seus diversos atores; e c) o terceiro terá como foco alguns precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema. 2. Aspectos gerais sobre a propriedade intelectual 2.1. Introdução É preciso, primeiro, com uma lente no direito autoral, contextualizar a questão no âmbito da propriedade intelectual, seja em um cenário mundial, seja em um cenário específico da legislação brasileira. Talvez nenhum outro direito tenha conquistado tamanho caráter internacional, sem limites de divisa. Com efeito, a propriedade intelectual é símbolo do mundo pós-moderno, na qual se situam as invenções técnicas e a expressão da arte, da sensibilidade. Ela transita pelo mundo todo – especialmente diante da agilidade da informação com o advento da tecnologia –, contando com vantagens e, também, com desvantagens. Em uma fração de segundos, a notícia ou a expressão da arte e da invenção vão de um canto a outro do planeta, mas, por outro lado, pode ocorrer invasão da esfera privada, sobretudo quando envolve o ambiente virtual. 16

A propriedade intelectual tem história bastante ampla, desde a época da faca manufaturada até o computador e a internet. Essa trajetória confunde-se com a da própria humanidade, sendo considerada pelos tratadistas como direito real, absoluto, oponível erga omnes, bem incorpóreo e imaterial. Nela se situa o direito do autor, que é uma criação estética, bem como o software, cultivares e propriedade industrial. É ativo de grande importância, valendo-se destacar que as maiores empresas do mundo em expressão financeira e econômica são baseadas em ativos intangíveis, como é o caso, por exemplo, de Apple, Google e IBM. Caracteriza a propriedade intelectual, notadamente no campo da invenção, a patente, que é a autorização concedida para a exploração do invento. Patente deriva do latim patens, patentis e significa ser claro, ser evidente. Todavia, em se tratando de direito autoral, essa certificação ficou superada desde a convenção de Berna. De acordo com a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), a propriedade intelectual abrange: os direitos alusivos a obras literárias, artísticas e científicas; as interpretações dos artistas intérpretes e as execuções dos artistas executantes; os fonogramas e emissões de radiodifusão; as invenções; as descobertas científicas; os desenhos e modelos industriais; as marcas industriais, comerciais e de serviços; as firmas comerciais e denominações comerciais; e a proteção contra a concorrência desleal.

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Foto: Pedro França/Agência Senado

2.2. Legislação A legislação brasileira a respeito desse assunto tem início com a Constituição Federal, cujo artigo 5o, XXVII, XXVIII e XXIX, prevê: Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII – são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas; XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;

Quanto à legislação infraconstitucional, são os seguintes diplomas legais: a) a Lei no 9.279/1996 regula os direitos e

as obrigações relativos à propriedade industrial; b) a Lei no 9.609/1998 dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador e sua comercialização no País; c) a Lei no 9.610/1998 altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais; d) a Lei no 9.456/1997 institui a proteção de cultivares; e) a Lei no 9.605/1998 trata da biodiversidade. Há também seguidas convenções internacionais que regulam o tema: a Convenção de Paris, de 1833, a Convenção de Berna, de 1886 – seguidamente alterada, mas ainda conserva esse nome –, a Convenção de Washington, de 1946, e a Convenção de Genebra, de 1948. Os tratados internacionais são amplamente utilizados, entre os quais se destacam o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e o TRIPs (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights). O GATT é um acordo geral sobre tarifas e comércio, tendo sido criado em 30 de outubro de 1947, após o fim da Segunda Guerra Mundial, para estabelecer regras e concessões tarifárias. Deu origem à Organização Mundial do Comércio (OMC), encarregada de garantir a observância dos acordos firmados, entre eles, o TRIPs, que foi assinado em 1994 na Rodada Uruguai do GATT. 2.3. O juiz e a “mundialização”: competência especializada para a matéria? Antoine Garapon promoveu intensa investigação para concluir o quanto é necessário, atualmente, em um mundo

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sem fronteiras, a real qualificação do magistrado para lidar com questões novas, como as relativas a propriedade intelectual, responsabilidade civil em ambiente virtual ou contratos firmados por meio da internet, apenas para mencionar alguns exemplos. Na obra “O Juiz e a Mundialização”, escrita em parceria com Julie Allard, os autores descrevem o fenômeno da mundialização do direito, em que as decisões recebem influências estrangeiras cada vez mais perceptíveis. Para tanto, afirmam que:

se trata seja de juiz de primeiro grau – porque de certa maneira se estabelece um monopólio daquela questão para determinado magistrado –, seja principalmente de órgão único colegiado, em que realmente se engessa a jurisprudência com uma câmara especializada, tornando-se improvável a renovação das decisões após estabelecidos os precedentes. Os precedentes são de grande valia, conferem segurança jurídica, mas isso quando se trata de tribunal com vocação constitucional para tanto, como é o caso do [...] a descrição desta desconhecida mundialização, com STF e do STJ. base nas mutações gerais do direito nas suas várias vertenNo ponto, um dos principais fundamentos da existes (civil, penal etc.), tem em conta, apenas de uma forma tência do STJ é conferir segurança jurídica por meio da muito parcial, os processos que lhe estão subjacentes e que uniformidade da jurisprudência. Com diversos outros explicam o seu desenvolvimento atual. Para compreender tribunais no País a interpretar uma mesma regra, é funtodas as suas consequências, damental que haja um tribué necessário centrarmo-nos nal de superposição, a fim de “Com efeito, a propriedade intelectual nos próprios intervenientes estabilizar a interpretação da e particularmente nos juílei federal, porque a dispersão é símbolo do mundo pós-moderno, na zes. Durante muito tempo é muito prejudicial ao sistema qual se situam as invenções técnicas e limitados à interpretação jurídico. rigorosa do direito, os juízes O mesmo não ocorre, poa expressão da arte, da sensibilidade. são hoje provavelmente os rém, no âmbito do tribunal Ela transita pelo mundo todo – agentes mais ativos da sua local ou regional. mundialização e, por conseguinte, os engenheiros da sua transformação.1

especialmente diante da agilidade da informação com o advento da tecnologia –, contando com vantagens e, também, com desvantagens. Em uma fração de segundos, a notícia ou a expressão da arte e da invenção vão de um canto a outro do planeta, mas, por outro lado, pode ocorrer invasão da esfera privada, sobretudo quando envolve o ambiente virtual”

Nesse passo, surge a discussão acerca da necessidade de se estabelecerem juízos com competência especializada para julgar as questões decorrentes da propriedade intelectual. Na lei de regência, há previsão para que se faculte aos estados a criação de juízos específicos. O art. 241 da Lei no 9.279/1996 dispõe: “Fica o Poder Judiciário autorizado a criar juízos especiais para dirimir questões relativas à propriedade intelectual”. Há quem defenda que deveria ser uma regra obrigatória. Em São Paulo, foram criados, na primeira e segunda instância, juízos especializados para julgar matéria de patentes. Da mesma forma, no Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região, situado no Rio de Janeiro, onde também se encontra a sede do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), existem órgãos especializados judiciais para dirimir essa matéria.2 De fato, ainda é duvidosa a conveniência de especializar os juízos para tratar desse tema, quando 18

3. Ambiente virtual e responsabilidade civil 3.1. O direito autoral e o ambiente virtual Em artigo publicado na Folha de São Paulo de 21 de agosto de 2008, o professor Fábio Ulhoa3 afirma que não mais existe o direito à privacidade. Ele defende essa tese com base em duas realidades retiradas da internet nas quais se constata claramente a violação de direitos autorais: a primeira concerne às obras musicais, pois, depois que se criaram as bibliotecas virtuais com compartilhamento de dados, efetivamente a música circula gratuitamente; a segunda diz respeito aos programas de computador, sendo que a própria Microsoft teria abandonado a ideia de perseguir em juízo a reparação do dano pela utilização indevida dos programas de computador. Zygmunt Bauman,4 cientista social polonês respeitadíssimo na questão da modernidade e de seus avanços, fala da modernidade líquida, da eliminação progressiva das barreiras, da divisão entre o público e o privado que a internet proporciona. Exemplo disso é o Facebook, no qual determinado internauta posta uma

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opinião relacionada à sua vida privada e, na mesma hora, tal informação é compartilhada em um espaço público por centenas de milhares de pessoas. Por outro lado, o antigo conflito entre o público e o privado ganha nova roupagem na modernidade: a inundação do espaço público com questões estritamente privadas decorre, a um só tempo, da expropriação da intimidade/privacidade por terceiros, mas também da voluntária entrega desses bens à arena pública. Constroem-se “amizades” em redes sociais em um dia, em número superior ao que antes se construía em uma vida, e essa fragilidade de vínculos humanos contribui para o processo erosivo da privacidade. Porém, sem nenhuma dúvida, mais grave que a venda ou a entrega graciosa da privacidade à arena pública, como nova mercadoria para o consumo da coletividade, é sua expropriação contra a vontade do titular do direito, por vezes um anônimo que pretende assim permanecer. Essa tem sido importante – se não a principal – face do atual processo de esgarçamento da intimidade e da privacidade, e o que estarrece é perceber certo sentimento difuso de conformismo, quando se assiste a olhos nus a perda de bens caros ao ser humano, conquistados não sem enorme esforço por gerações passadas; sentimento difundido por inédita «filosofia tecnológica» do tempo atual pautada na permissividade, para a qual ser devassado ou espionado é, em alguma medida, tornar-se importante e popular, invertendo-se valores e tornando a vida privada um prazer ilegítimo e excêntrico, seguro sinal de atraso e de mediocridade. A questão do avanço tecnológico versus o direito à propriedade intelectual suscita maiores reflexões, sobretudo no campo do direito autoral e quando se quebram as barreiras da intimidade, da vida privada e da vida pública. Nessa sociedade da hiperinformação, Bauman faz menção aos danos colaterais e avança para atingir não só aspectos do próprio direito à personalidade, mas também aspectos patrimoniais. Há vantagens, todavia, tanto no que concerne à informação, que se tornou bem mais rápida e democrática, como no que diz respeito ao comércio. 3.2. Casos internacionais célebres Cabe ilustrar bem alguns aspectos do direito autoral no ambiente virtual quando são analisados alguns casos enfrentados em cortes constitucionais estrangeiras. Na verdade, desde há muito – e antes, mesmo antes da internet – são decisões que tratam do direito à inovação tecnológica versus direito à intimidade e à propriedade intelectual. É de destacar a tradição da Corte Suprema americana, que já conta com mais de duzentos anos na defesa de

direitos fundamentais. Desde 1890, Warren e Brandeis – este último veio a ser juiz da Suprema Corte americana – publicaram em conjunto um artigo em que analisam a questão do avanço tecnológico, os mecanismos de então, que eram o telégrafo, o rádio e logo depois a televisão: como essa nova tecnologia poderia conviver com o direito à privacidade – the right to privacy e com o direito autoral. Na oportunidade, Warren e Brandeis expressaram sua inquietação no resguardo ao universo da privacidade em relação ao contexto do avanço tecnológico. Posteriormente, a Corte Constitucional alemã julgou, em 1971, processo relevante, relacionado com a atual e frequente discussão sobre as biografias autorizadas. Trata-se do caso Mephisto, livro de Klaus Mann, em que a Corte Suprema alemã foi instada a se pronunciar acerca da validade de se permitir a publicação da obra, bastante pitoresca por sinal.5 Mann foi perseguido pelos nazistas e teve de fugir da Alemanha. O livro foi escrito quando ele estava no exílio e retrata a vida de seu cunhado, ator alemão, chamado Gustaf Gründgens, que, para agradar os nazistas, encenou uma peça no teatro de Berlim – peça esta que veio a garantir a carreira de Gründgens como diretor de teatro. O livro faz basicamente uma analogia entre Mephisto, que vendeu a alma ao diabo, e esse diretor de teatro. Embora não fosse um livro biográfico especificamente, mas era evidente que se referia à trajetória de seu cunhado, o filho adotivo deste, logo depois do lançamento, ingressou com uma ação judicial na qual buscou impedir a circulação da obra e obteve vitória no tribunal local. Em seguida, a Suprema Corte, em um divisor de águas, manteve essa proibição e o livro só foi liberado algum tempo depois da morte do suposto biografado. Nos Estados Unidos da América, agora já na época da internet, há mais casos interessantes. O primeiro deles, de sabença geral, é o da Sony contra a Universal Studios, em 1984, também conhecido como o caso Betamax. Logo que surgiram os videocassetes, houve pressão muito grande para definir os direitos autorais incidentes sobre a programação veiculada pela televisão. A indústria cinematográfica americana, notória potência mundial, também se mobilizou fortemente, preocupada com o fato de que, no ambiente familiar, era possível gravar com a Betamax qualquer programa televisivo, inclusive os filmes. O caso foi levado à Suprema Corte, e, a toda evidência, os adquirentes de videocassete, os milhares de consumidores espalhados pelos estados americanos, não foram instados a se manifestar. Tratou-se, à época, de tema que ainda é muito recorrente, concernente à chamada responsabilidade contributiva, de modo a definir se a Sony, ao vender

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seus produtos, teria responsabilidade pela utilização “indevida” do videocassete. Também foi discutido, naquela oportunidade, um dos conceitos que hoje mais se utilizam ou que se debatem: o fair use, ou seja, se era justa a utilização daquele produto. Curiosamente, por meio desse precedente da Suprema Corte, que liberou a venda – e nem podia ser diferente – dos videocassetes e das fitas, constatou-se efeito muito positivo nas duas indústrias: primeiramente, na de filmes, porque, na verdade, considerando-se devida a utilização das fitas cassete, acabou-se por permitir ampliação do mercado e não redução, como se imaginava, e prova disso foi a explosão na venda das fitas e dos aparelhos até o advento do sistema atual de CDs e de outros avanços tecnológicos; e, em segundo lugar, na própria indústria televisiva e cinematográfica, porquanto foi ampliada a perspectiva de programas serem gravados, bem como a utilização doméstica, havendo uma difusão entre os consumidores. Em 2000, surgiu o caso Napster – primeiro grande programa a utilizar a tecnologia peer to peer (par a par ou ponto a ponto) –, para compartilhamento de bibliotecas relacionadas à música na internet. O programa, criado por dois rapazes de uma universidade norte-americana, teve sucesso estrondoso no mundo inteiro. O caso foi bastante discutido e, nessa hipótese, a justiça norte-americana não considerou como fair use a tecnologia, porque efetivamente houve proveito econômico e financeiro com as propagandas que se veiculavam. Também se entendeu que esse avanço tecnológico não seria da natureza das coisas, proibindo-se o uso do Napster.6 A mesma discussão ocorreu com o Pirate Bay, criado na Suécia em 2004 e voltado para cópias de filmes, já no caminho digital, mas o fato é que houve mais rigor que na Corte americana, com o controle da propriedade do direito autoral.7 Após o Napster, surgiu nos Estados Unidos da América o caso MGM versus Grokster, em que, ao contrário do que ocorria com o Napster, a troca de arquivos pelos usuários era feita sem a necessidade da intermediação de um servidor central. Em 2005, a Suprema Corte americana entendeu que os fabricantes incentivavam, embora de modo indireto, a prática de infrações por parte dos usuários contra os direitos autorais.8 3.3. Responsabilidade civil O tema relativo à responsabilidade civil no mundo virtual ainda não está bem definido, como se observa nos precedentes do STJ. Há de se avançar de modo a se delimitar o espaço que cada um desses atores tem na cadeia de atuação na internet, sejam os provedores de acesso, os provedores de correio eletrônico, os provedores de hospedagem ou os provedores de conteúdo e de informação. Cada um deles, 20

na atuação respectiva, tem deveres básicos de propiciar ao usuário a tecnologia adequada e o sigilo necessário. Os pressupostos gerais da responsabilidade civil são: a) conduta voluntária; b) dano injusto; e c) nexo de causalidade. Quanto ao dolo e à culpa, o que diferencia é o fato de que, conforme já definido em precedente da Quarta Turma – Recurso Especial 946.851/PR –, em se tratando de responsabilidade do provedor de internet, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor. Além disso, vários precedentes no âmbito do STJ estabelecem que a atividade do provedor não é de risco, descabendo cogitar de aplicação do art. 927, parágrafo único, do Código Civil. 3.4. Marco regulatório da internet – Projeto no 2.126/20119 Vale aqui brevíssimo registro quanto ao marco regulatório da internet – Projeto no 2.126/2011, que está em farta discussão na imprensa. Os principais fundamentos do que se propôs ao Parlamento são os direitos humanos, a pluralidade, a diversidade e a finalidade social da internet. Busca-se, mediante este projeto, regular a relação com os usuários, com os provedores e com o Poder Público. 4. Jurisprudência 4.1. Supremo Tribunal Federal Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) no 3.059/RS O primeiro precedente é o leading case do STF na Medida Cautelar na ADI no 3.059, havendo sido inicialmente concedida a liminar pelo Ministro Ayres Britto, que, todavia, depois julgou improcedente o pedido, vindo o Ministro Luiz Fux a pedir vista dos autos. A cautelar versa sobre um requisito que o Rio Grande do Sul estabeleceu para a administração pública realizar certames, qual seja, a utilização de softwares livres ou sem restrições proprietárias. O Ministro Ayres Britto entendeu que haveria plausibilidade na medida, que poderia violar o princípio da separação dos poderes e caracterizar uma ofensa ao direito daqueles que disputam a concorrência no âmbito estadual, razão pela qual deferiu a cautelar. O que se discute nessa ADIn é efetivamente a liberação dos softwares livres, debate intenso e que vai merecer acompanhamento de perto da sociedade brasileira. 4.2. Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial no 594.526/RJ Este precedente analisou, pela primeira vez no STJ, tema muito interessante que é o direito de sequência – droit de suite. Trata-se do direito do autor da obra original ou se seus herdeiros de obter, quando houver subsequentes

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Foto: Jane de Araújo/Agência Senado

Luis Felipe Salomão, ministro do STJ

vendas do produto, a mais valia por essas vendas, uma participação nos lucros das vendas seguintes. Recurso Especial no 443.119/RJ e no 1.185.943/RS Quanto à forma de reparação da ofensa ao direito de propriedade, a Ministra Nancy Andrighi asseverou, no primeiro julgado, que o programa de computador possui natureza jurídica de direito autoral. Pela aplicação do artigo 103 da Lei no 9.610/1998, quando não se sabe exatamente a dimensão da edição fraudulenta, é cabível a indenização por danos materiais em três mil exemplares, além dos que foram apreendidos. Já no precedente seguinte, de minha relatoria, ficou consignado que, quando não se sabe o número de infrações, aplica-se, então, o art. 102 da Lei no 9.610/1998, sendo a pena pecuniária devida, sem prejuízo da indenização cabível. Além disso, o simples pagamento, pelo contrafator, do valor de mercado por cada exemplar apreendido, não corresponde à indenização pelo dano causado decorrente do uso indevido, e muito menos inibe a sua prática. O art. 103 da Lei no 9.610/1998 tem sua aplicação condicionada à impossibilidade de quantificação dos programas de computador utilizados sem a devida licença. Recurso Especial no 913.008/RJ Nesse caso, a empresa proprietária do programa de computador pretendia que a prova da propriedade deste

software ocorresse apenas mediante demonstração da nota fiscal ou da certificação do próprio dono do programa. Havia um laudo pericial que atestava ser o produto original, mas não existiam mais as notas fiscais. O STJ entendeu, por maioria, que não é apenas com base naqueles documentos que se prova a titularidade. Ficou registrado que “a perícia que atesta a originalidade da mídia e dos programas utilizados pela empresa é meio capaz de comprovar a regularidade da utilização do programa de computador, suprindo a necessidade de exibição do contrato de licença ou documento fiscal”. Recurso Especial no 1.168.547/RJ A questão posta foi a seguinte: uma dançarina viajou para a Espanha a fim de cumprir contrato de trabalho de três meses. Quando retornou ao Brasil, verificou que sua imagem continuou, sem sua permissão, no site da empresa para a qual trabalhou naquele país. O caso era saber se, em se tratando de violação ao direito à intimidade, à privacidade, ou ao próprio direito autoral no exterior, era possível invocar a jurisdição brasileira, ainda que houvesse cláusula de eleição no contrato de trabalho a determinar que, somente na Espanha, eventuais lides seriam resolvidas. Ficou estabelecido, com base na interpretação dada ao art. 88, III, do Código de Processo Civil, que, como a ofensa pela internet ocorre em qualquer parte do planeta, a jurisdição brasileira era competente para julgar a questão. Recurso Especial no 844.736/DF Outro caso em destaque é se o spam, correio eletrônico não autorizado, geraria dano moral. O STJ concluiu que o envio de spam, por si só, não consubstancia o dano moral, em vista da evolução tecnológica que viabiliza o bloqueio e a recusa das mensagens. Recurso Especial no 1.068.904/RS Neste precedente, ficou registrada a necessidade de observância de sigilo do provedor de internet. Desse modo, os dados cadastrais da conta de e-mail, no caso um provedor de e-mail, de correio eletrônico, somente poderiam ser concedidos mediante mandado judicial. Recurso Especial no 1.193.764/SP Tema relevantíssimo é saber se o provedor tem de fiscalizar previamente o conteúdo do que está postado na web. A Terceira Turma entendeu pela desnecessidade de tal fiscalização. No entanto, uma vez comunicado quanto a determinado texto ou imagem de conteúdo ilícito, o provedor deve agir rapidamente para sua retirada, sob pena de responder, aí sim, pela violação.

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Recurso Especial no 1.175.675/RS e no 1.406.448/RJ Logo na sequência vem um precedente da minha relatoria, ainda que em sede de liminar. A grande discussão cingia-se em saber se era preciso indicar especificamente as páginas, as chamadas URLs, nas quais foram veiculadas as informações ofensivas. A Quarta Turma concluiu não ser necessária a indicação, porque o próprio provedor tem como saber onde está a veiculação e deve adotar os mecanismos para retirá-la de lá. Em sentido contrário, a Terceira Turma preconizou: “O cumprimento do dever de remoção preventiva de mensagens consideradas ilegais e/ou ofensivas fica condicionado à indicação, pelo denunciante, do URL da página em que estiver inserido o respectivo post”. Há, por conseguinte, certo conflito entre as duas turmas na interpretação dessa matéria, como se depreende das ementas a seguir: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. MENSAGENS OFENSIVAS À HONRA DO AUTOR VEICULADAS EM REDE SOCIAL NA INTERNET (ORKUT). MEDIDA LIMINAR QUE DETERMINA AO ADMINISTRADOR DA REDE SOCIAL (GOOGLE) A RETIRADA DAS MENSAGENS OFENSIVAS. FORNECIMENTO POR PARTE DO OFENDIDO DAS URLS DAS PÁGINAS NAS QUAIS FORAM VEICULADAS AS OFENSAS. DESNECESSIDADE. RESPONSABILIDADE TÉCNICA EXCLUSIVA DE QUEM SE BENEFICIA DA AMPLA LIBERDADE DE ACESSO DE SEUS USUÁRIOS. 1. O provedor de internet – administrador de redes sociais –, ainda em sede de liminar, deve retirar informações difamantes a terceiros manifestadas por seus usuários, independentemente da indicação precisa, pelo ofendido, das páginas que foram veiculadas as ofensas (URLs). 2. Recurso especial não provido. (REsp 1.175.675/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 09/08/2011, DJe 20/09/2011). ........................................................................................................... CIVIL E CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIA DO CDC. PROVEDOR DE HOSPEDAGEM DE BLOGS. VERIFICAÇÃO PRÉVIA E DE OFÍCIO DO CONTEÚDO POSTADO POR USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. DANO MORAL. RISCO NÃO INERENTE AO NEGÓCIO. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA DE CONTEÚDO ILÍCITO OU OFENSIVO. RETIRADA DO AR EM 24 HORAS. DEVER, DESDE QUE INFORMADO O URL PELO OFENDIDO. DISPOSITIVOS LEGAIS ANALISADOS: ARTS. 5o, IV, VII E IX, E 220 DA CF/88; 6o, III, 14 e 17 DO CDC; E 927, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CC/02. [...] 2. Recurso especial em que se discutem os limites da responsabilidade dos provedores de hospedagem de blogs 22

pelo conteúdo das informações postadas por cada usuário. 3. A exploração comercial da internet sujeita as relações de consumo daí advindas à Lei no 8.078/1990. Precedentes. 4. O provedor de hospedagem de blogues é uma espécie do gênero provedor de conteúdo, pois se limitam a abrigar e oferecer ferramentas para edição de blogs criados e mantidos por terceiros, sem exercer nenhum controle editorial sobre as mensagens postadas pelos usuários. 5. A verificação de ofício do conteúdo das mensagens postadas por cada usuário não constitui atividade intrínseca ao serviço prestado pelos provedores de hospedagem de blogs, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não exerce esse controle. 6. O dano moral decorrente de mensagens com conteúdo ofensivo inseridas no site pelo usuário não constitui risco inerente à atividade dos provedores de hospedagem de blogs, de modo que não se lhes aplica a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do CC/2002. 7. Não se pode exigir do provedor de hospedagem de blogues a fiscalização antecipada de cada nova mensagem postada, não apenas pela impossibilidade técnica e prática de assim proceder, mas, sobretudo, pelo risco de tolhimento da liberdade de pensamento. Não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia da liberdade de criação, expressão e informação, assegurada pelo art. 220 da CF/1988, sobretudo considerando que a internet representa, hoje, importante veículo de comunicação social de massa. 8. Ao ser comunicado de que determinada mensagem postada em blogue por ele hospedado possui conteúdo potencialmente ilícito ou ofensivo, deve o provedor removêlo preventivamente no prazo de 24 horas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações do denunciante, de modo a que, confirmando-as, exclua definitivamente o vídeo ou, tendo-as por infundadas, restabeleça o seu livre acesso, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano em virtude da omissão praticada. 9. O cumprimento do dever de remoção preventiva de mensagens consideradas ilegais e/ou ofensivas fica condicionado à indicação, pelo denunciante, do URL da página em que estiver inserido o respectivo post. 10. Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários divulguem livremente suas opiniões, deve o provedor de hospedagem de blogs ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada imagem uma autoria certa e determinada. Sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, do dever de informação e do princípio da transparência, deve este adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu al-

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cance para a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. 11. Recurso especial parcialmente provido. (REsp 1.406.448/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe 21/10/2013).

Recurso Especial no 997.993/MG Caso curiosíssimo foi tratado neste julgado. Uma exnamorada, em anúncio colocado na internet, para se vingar, postou em site de classificados da internet anúncio erótico falso com dados de seu ex-namorado, inclusive os números telefônicos do trabalho dele. Houve inúmeros telefonemas para o cidadão em busca desses falsos serviços anunciados, o que fez que ele ingressasse com ação indenizatória contra os provedores de internet. O autor logrou êxito na lide, sendo o valor arbitrado em trinta mil reais. De fato, tal cidadão foi exposto à vexatória exibição em seu ambiente profissional, e, além disso, mesmo notificado, o provedor de internet não retirou o anúncio. O STJ preconizou que o dever de cuidado não foi observado e que os serviços foram prestados em cadeia por mais de um fornecedor, sendo a responsabilidade civil de todos que participaram da cadeia de consumo. Recurso Especial no 1.107.024/DF Nesse caso, em outro aspecto da questão – pois diz respeito à mediação de sites eletrônicos para a realização de contratos –, estabeleceu também a Quarta Turma a responsabilidade do site que faz a intermediação do negócio. Reclamação no 5.072/AC Trata-se de reclamação na qual a Google afirmava que, por ser um site de instrumentalização de busca – e não de conteúdo –, ou seja, apenas uma ferramenta que facilita a busca dentro do universo da internet, não poderia ser responsabilizada pela retirada do conteúdo. Uma ordem judicial havia sido expedida para que o Google retirasse determinada informação, sob pena de multa diária. O Google defendeu que não tinha como cumprir tal determinação, pois lhe cabia apenas suprimir a ferramenta da busca. A multa arbitrada estava em patamar elevado, vindo a Google a apresentar reclamação no âmbito da Segunda Seção do STJ para definir se era cabível a multa por uma obrigação que entende indevida. A reclamação foi acolhida integralmente, para excluir as astreintes: CIVIL, PROCESSO CIVIL E CONSUMIDOR. RECLAMAÇÃO. RESOLUÇÃO 12/09 DO STJ. DECISÃO TERATOLÓGICA. CABIMENTO. INTERNET. PROVEDOR DE PESQUISA VIRTUAL. FILTRAGEM PRÉVIA DAS BUSCAS. DESNECESSIDADE. RESTRIÇÃO DOS RESULTADOS. NÃO CABIMENTO. CONTEÚDO PÚBLI-

CO. DIREITO À INFORMAÇÃO. DADOS OFENSIVOS ARMAZENADOS EM CACHE. EXCEÇÃO. EXCLUSÃO. DEVER, DESDE QUE FORNECIDO O URL DA PÁGINA ORIGINAL E COMPROVADA A REMOÇÃO DESTA DA INTERNET. COMANDO JUDICIAL ESPECÍFICO. NECESSIDADE. ASTREINTES. OBRIGAÇÃO IMPOSSÍVEL. DESCABIMENTO. DISPOSITIVOS LEGAIS ANALISADOS: ARTS. 220, § 1o, da CF/88, 461, § 5o, do CPC. 1. Embora as reclamações ajuizadas com base na Resolução no 12/2009 do STJ a rigor somente sejam admissíveis se demonstrada afronta à jurisprudência desta Corte, consolidada em enunciado sumular ou julgamento realizado na forma do art. 543-C do CPC, afigura-se possível, excepcionalmente, o conhecimento de reclamação quando ficar evidenciada a teratologia da decisão reclamada. 2. A filtragem do conteúdo das pesquisas feitas por cada usuário não constitui atividade intrínseca ao serviço prestado pelos provedores de pesquisa virtual, de modo que não se pode reputar defeituoso o site que não exerce esse controle sobre os resultados das buscas. 3. Os provedores de pesquisa virtual realizam suas buscas dentro de um universo virtual, cujo acesso é público e irrestrito, ou seja, seu papel se restringe à identificação de páginas na web onde determinado dado ou informação, ainda que ilícito, estão sendo livremente veiculados. Dessa forma, ainda que seus mecanismos de busca facilitem o acesso e a consequente divulgação de páginas cujo conteúdo seja potencialmente ilegal, fato é que essas páginas são públicas e compõem a rede mundial de computadores e, por isso, aparecem no resultado dos sites de pesquisa. 4. Os provedores de pesquisa virtual não podem ser obrigados a eliminar do seu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os resultados que apontem para uma foto ou texto específico, independentemente da indicação do URL da página onde este estiver inserido. 5. Não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1o, da CF/88, sobretudo considerando que a internet representa, hoje, importante veículo de comunicação social de massa. 6. Preenchidos os requisitos indispensáveis à exclusão, da web, de uma determinada página virtual, sob a alegação de veicular conteúdo ilícito ou ofensivo – notadamente a identificação do URL dessa página – a vítima carecerá de interesse de agir contra o provedor de pesquisa, por absoluta falta de utilidade da jurisdição. Se a vítima identificou, via URL, o autor do ato ilícito, não tem motivo para demandar contra aquele que apenas facilita o acesso a esse ato que,

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até então, se encontra publicamente disponível na rede para divulgação. 7. Excepciona o entendimento contido nos itens anteriores o armazenamento de dados em cache. Estando uma cópia do texto ou imagem ofensivos ou ilícitos registrados na memória cache do provedor de pesquisa virtual, deve esse, uma vez ciente do fato, providenciar a exclusão preventiva, desde que seja fornecido o URL da página original, bem como comprovado que esta já foi removida da internet. 8. Como se trata de providência específica, a ser adotada por pessoa distinta daquela que posta o conteúdo ofensivo e envolvendo arquivo (cópia) que não se confunde com o texto ou imagem original, deve haver não apenas um pedido individualizado da parte, mas um comando judicial determinado e expresso no sentido de que a cópia em cache seja removida. 9. Mostra-se teratológica a imposição de multa cominatória para obrigação de fazer que se afigura impossível de ser cumprida. 10. Reclamação provida. (Rcl 5.072/AC, Rel. Ministro MARCO BUZZI, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11/12/2013, DJe 04/06/2014).

Recurso Especial no 1.334.097/RJ e no 1.335.153/RJ – o direito ao esquecimento Por último, um tema muito importante é o direito ao esquecimento. Foram julgados recentemente dois casos sobre o tema no âmbito da televisão, que estão longe de esgotar o assunto, pois a grande questão alusiva a esse assunto está justamente na internet. De acordo com o Enunciado no 531/CJF, “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. O STJ afirmou nesses dois precedentes – um concedendo indenização com base no direito ao esquecimento, e o outro negando, por diversos fundamentos – que tal direito

não é absolutamente aberto, mas resguarda a privacidade minimamente por intermédio de alguns pressupostos estabelecidos em tais julgados. 5. Conclusão A proteção aos direitos da propriedade intelectual, mormente no mundo pós-moderno, em que grassa a velocidade da informação por meio eletrônico, vem-se tornando objeto cada vez maior de atenção entre as nações. São inúmeras as transformações vividas pela sociedade decorrentes da quebra das fronteiras outrora estabelecidas. Os povos aproximaram-se, os limites romperam-se. Em contrapartida, a privacidade – valor tido por inviolável pela Constituição Federal, que assegura o direito à intimidade e à vida privada – cada vez mais vem perdendo espaço diante da intensidade e do volume das informações e, sobretudo, em face da profunda mudança de comportamento gerada pelo avanço tecnológico – exemplo incontestável dessa assertiva encontra-se no estrondoso sucesso do Facebook, com prevalência muitas vezes dos frágeis vínculos virtuais em detrimento dos presenciais. Nessa linha, os juízes desempenham mister da mais alta relevância, na medida em que necessitam acompanhar constantemente tais modificações, a fim de bem oferecer a prestação jurisdicional. Não há de se olvidar que, de há muito, o direito à privacidade vem sendo objeto de estudos aprofundados – ressaltando-se o célebre escrito de Warren e Brandeis, the right to privacy, datado de 1890 –, que, desde aquela época, inspirou diversos precedentes na Suprema Corte americana, alguns deles trazidos à baila neste artigo, em conjunto com julgados de outros países acerca do tema. Por fim, a jurisprudência no Brasil foi alvo de principal destaque, com referência a casos concretos, relativos à responsabilidade civil dos provedores de internet, tema este inesgotável e que ainda suscitará novidades e discussões.

Notas ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os juízes na mundialização: a nova revolução do direito. Tradução de Rogério Alves. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget., 2005. 2 Quantitativo de processos em trâmite de propriedade intelectual no TRF da 2ª Região de 2005 a 2011: 1

Ano Total

2005 901

2006 705

2007 629

2008 477

2009 276

2010 174

2011 158

COELHO, Fábio Ulhoa. Sabe aquilo que chamávamos privacidade? Disponível em: <http://www.ulhoacoelho.com.br/site/pt/artigos/ direito-e-politica.html>. 4 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 5 Decisão de 24.02.1971 (BVerfGE 30, 173). 6 Houve várias ações judiciais envolvendo o Napster, sendo a de maior repercussão a movida por Lars Ulrich, líder da banda Metallica. 7 Em 17 de abril de 2009, os dirigentes do site foram condenados ao pagamento de indenização e à prisão por ofensa a direitos autorais. Fonte: <http://g1.globo.com/Noticias/Tecnologia/0, MUL1088598-6174,00-JUSTICA+SUECA+CONDENA+DIRETORES+DO+SITE+PIRATE+BA Y+A+PRISAO.html>. 8 No 04-480. 9 O referido projeto foi convertido na Lei no 12.965, de 23 de abril de 2014, que “estabelece princípios, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil”, posteriormente à data da palestra. 3

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Controle concentrado e difuso prescrição e efeitos da decisão

Carlos Mário da Silva Velloso

Ministro aposentado do STF Advogado Membro do Conselho Editorial

A

s ações do controle concentrado têm cunho objetivo. É dizer: não visam a proteger direitos subjetivos. Protegem, sim, a ordem jurídica. Por isso, o seu objeto é a própria lei. Não estão sujeitas a prazo prescricional, considerando que visam a eliminar ato normativo inconstitucional, certo que a inconstitucionalidade não se corrige com o tempo, sabendo que a regra é a nulidade do ato inconstitucional. Este, o ato inconstitucional, persiste, tempo afora, sem solução de continuidade, poluindo a ordem jurídica. Segundo Kelsen, o ato inconstitucional não é nulo, mas anulável. Essa é a doutrina dos Tribunais Constitucionais europeus. Seria ela excludente da inexistência da prescrição? A resposta é negativa. É que, nulo ou anulável o ato inconstitucional, não seria possível persistir, na ordem jurídica, ato com essa marca, com tal conteúdo. Porque anulável o ato inconstitucional (Kelsen), e não nulo (Marshall), a decisão que, no controle in abstrato, declara a inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes, na linha da doutrina kelseniana, tem efeito ex nunc e não ex tunc. Essa doutrina incorporou-se ao direito positivo brasileiro. A Lei no 9.868/1999 (ADI e ADC) e a Lei no 9.882/1999 (ADPF), artigos 27 e 11, respectivamente, autorizam o efeito pró-futuro. É dizer, não há falar, ortodoxamente, que o ato inconstitucional é nulo e anulado. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, no controle concentrado, pela inconstitucionalidade de medida 26

“O ato inconstitucional não é nulo, mas anulável. Essa é a doutrina dos Tribunais Constitucionais europeus. Seria ela excludente da inexistência da prescrição? A resposta é negativa. É que, nulo ou anulável o ato inconstitucional, não seria possível persistir, na ordem jurídica, ato com essa marca, com tal conteúdo”

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Foto: Erivelton Viana

provisória convertida em lei, que não seguiu corretamente o processo legislativo. Ciente, depois, que situações desse tipo constituíam um sem número de casos, emprestou efeito ex nunc à decisão.1 A verdade é que não há falar, conforme acima mencionamos, em termos ortodoxos, que o ato inconstitucional é nulo. Não. A lei inconstitucional cria direitos, obrigações e situações praticamente impossíveis, dada a sua natureza, de serem desconstituídos. A natureza das coisas a tudo governa. E os princípios da boa-fé e da segurança jurídica impõem-se, em Estado de Direito, que sejam respeitados. O controle difuso segue o processo subjetivo. Uma pretensão ou um direito subjetivo é sempre objeto da ação. Por isso, as ações do controle difuso podem estar sujeitas a prazos de prescrição ou de decadência. É que os efeitos dessas ações são inter partes. Influem, no ponto, entretanto, vale novamente invocar, princípios, como o da boa-fé e o da segurança jurídica. E se a declaração de inconstitucionalidade é proferida, pode o juiz ou o tribunal adotar o efeito ex nunc, em obséquio aos citados princípios. A jurisprudência, no particular, não tem sabor de novidade. Há, inclusive, tendência no sentido de emprestar-se, a questões do controle difuso, o caráter objetivo, conferindo-se efeito ex nunc à decisão. Por exemplo, o caso do número de vereadores. O Supremo decidiu pela inconstitucionalidade da norma que fixava o número de vereadores de certo município, que não obedecia a proporcionalidade inscrita na Constituição,

mandando, entretanto, que fossem respeitados os mandatos existentes. Deu-se, portanto, efeito ex nunc à decisão.2 Na ocasião, ressaltou o ministro Gilmar Mendes “que o sistema difuso ou incidental mais tradicional do mundo passou a admitir a mitigação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e, em casos determinados, acolheu até mesmo a pura declaração de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro”. Convém lembrar que, em seguida ao julgamento, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) emprestou eficácia erga omnes à decisão, mandando aplicá-la às eleições futuras. Valeria, no ponto, pesquisa na jurisprudência do STF, considerando que são várias as decisões, proferidas no controle difuso, nas quais se conferiu efeito pró-futuro. Em síntese: não há falar em prescrição das ações do controle concentrado – ADI, ADC e ADPF. No controle difuso, poderá ocorrer a decadência, se prevista em lei. E também a prescrição, em obséquio aos princípios da boa-fé e da segurança jurídica. Não há cogitar, em termos ortodoxos, que o ato inconstitucional é nulo. Em certos casos, é necessário emprestarem-se efeitos pró-futuro, tanto no controle concentrado quanto no difuso, à decisão de inconstitucionalidade.

Notas 1 2

ADI no 4.029-DF, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 27/6/2012. RE no 197.917-SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 07/05/2004.

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Leis invasoras da competência da União em energia elétrica

Maria Celeste Morais Guimarães

Diretora Jurídica da Cemig Holding Professora da Faculdade de Direito Milton Campos

C

1. Introdução ontemporaneamente, as concessionárias de energia elétrica vêm enfrentando questões altamente intrincadas e complexas. Isso porque o Poder Executivo e o Legislativo, no âmbito de suas atribuições, vêm, respectivamente, sancionando e promulgando leis estaduais e municipais, invadindo, indubitavelmente, a competência privativa do ente federal para reger questões atinentes à energia elétrica e às águas. Tais leis, prima facie, sob a roupagem do Direito Ambiental1 e do Urbanístico,2 atraem a competência concorrente estadual e municipal para legislar (artigo 24, incisos I, VI e VIII da CF/19883), a pretexto da proteção ao meio ambiente e ao meio urbano. Entretanto, o que se verifica, em análise mais aprofundada, é que se trata de invasão da competência federal, haja vista que essas leis se imiscuem, especialmente no que concerne a serviços de energia, insumos e águas, matérias, sobre as quais não estão os estados e os municípios autorizados a legislar, indo de encontro aos dizeres estabelecidos no artigo 22, inciso IV, parágrafo único da CF/1988.4 2. Das implicações das leis invasoras para as concessionárias de serviço público de energia elétrica Os estados e os municípios não podem, pela via reflexa de suas leis, legislar sobre atividades cuja competência, nos termos da Carta Magna, é privativa da União. O que se verifica, pois, é a ausência de limitação prévia para 28

essa atuação, o que ocasiona transtornos operacionais às concessionárias de energia elétrica. Destarte, ante a imposição de normas estaduais e municipais de afetação ao setor elétrico, não se pode olvidar que estas causam impactos diretos e indiretos na operação das concessionárias de energia (geradoras e distribuidoras). Isso porque as concessionárias, para o cumprimento desses ditames legais, buscam, por técnicas que otimizem sua efetiva satisfação, a contratação de empresas para realização de estudos, elaboração de metodologias, dinâmicas e estratégias, com o propósito de identificar eventuais mecanismos que, quando viáveis, contribuam de forma a possibilitar o cumprimento das normas municipais e estaduais. Por outro lado, ante a impossibilidade de identificação de alternativa técnica plausível, as concessionárias veemse obrigadas a judicializar as questões, no intuito de promoverem a resolução qualitativa dos conflitos e a harmonização das partes pela satisfação de seus interesses. De certo, tais questões acabam por incitar o aumento tarifário, haja vista que estes custos não foram compatibilizados na composição da tarifa e ferem, por conseguinte, determinados princípios constitucionais, entre os quais, vale citar, o da supremacia do interesse público e o da isonomia, entre outros, constituindo, ainda, quebra do pacto federativo e da equação econômicofinanceira dos contratos de concessão.

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Foto: Arquivo Cemig

3. Do sistema de controle de constitucionalidade Para o enfrentamento das leis invasoras de competência federal, as concessionárias de energia elétrica têm feito uso, como forma de combate, das Ações de Controle de Constitucionalidade. Em apertada síntese, o Sistema de Controle de Constitucionalidade, que no Brasil é misto, pode ser exercido na forma concentrada ou difusa. Conforme ensina o jurista Calil Simão,1 “este sistema destina-se a analisar a lesão dos direitos e garantias previstos na Constituição de um país, objetivando assegurar a observância das normas constitucionais e, consequentemente, a sua estabilidade e preservação”. Na forma concentrada, a análise da pretensa incons­ ti­tucionalidade de uma lei é decidida por órgão jurisdicional superior, que julga o pedido em primeira e única instância, a qual deverá ser exercida por entidade de classe de âmbito nacional, cuja legitimidade ativa é estabelecida nos termos do artigo 2o, inciso IX2 da Lei no 9.868/1999. Nesse sentido, a participação das associações do setor elétrico, tais como, Associação Brasileira de Distribuição de Energia Elétrica (Abradee), Associação Brasileira de Companhias de Energia Elétrica (ABCE), Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica (Abrage) e outras, será indispensável, porquanto entes representativos do setor de geração e distribuição de energia elétrica.

Outro norte, o controle de constitucionalidade na forma difusa, tem por apanágio a legitimação universal para o seu exercício, seja em relação à legitimidade ativa ad causam, seja sob o aspecto da competência para o seu processamento, visto que: “assegura a qualquer órgão judicial incumbido de aplicar a lei a um caso concreto o poder dever de afastar a sua aplicação se o considerar incompatível com a ordem constitucional”.3 Por derradeiro, vale elucidar, ainda, que, caso a discussão ultrapasse a instância do Tribunal de Justiça local, há possibilidade de interposição de Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (STF), para análise do tema em esfera de revisão. 4. Exemplos de leis invasoras – argumentação para declaração de inconstitucionalidade A título ilustrativo, releva apontar exemplos de leis invasoras de competência federal, que criam obrigações para as concessionárias de distribuição e de geração de energia elétrica. Vale consignar, mais adiante, a existência de precedentes já consolidados pelo Judiciário brasileiro, seja no âmbito do controle de constitucionalidade concentrado, seja no difuso, bem como em discussões em trâmite no Poder Judiciário. Nessa perspectiva, sob a moldura do Direito Urbanístico, impende apresentar a Lei Paulista no 14.023/2005, que dispõe sobre a obrigatoriedade de tornar subterrâneo todo o cabeamento instalado.

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O ente municipal, ao editar tal norma, criou obrigação para as distribuidoras de energia elétrica e violou a competência privativa da União para legislar sobre energia, colidindo, consideravelmente, com o que foi preconizado no artigo 22, inciso IV da Constituição Federal/1988. Portanto, deverá ser tida como inconstitucional. No entanto, tal contenda ainda não foi judicializada. Além do mais, a referida norma impôs novos e significativos ônus à concessionária, o que é vedado ao município, haja vista que a temática afeta à construção de redes de distribuição de energia é regulada nos respectivos contratos de concessão firmados entre a União e as concessionárias, o que garante o equilíbrio econômico financeiro dos contratos administrativos. Outrossim, sob o aspecto do Direito Ambiental, impende destacar a Lei do Estado de Minas Gerais no 12.503/1997, que cria obrigação para as geradoras de energia elétrica. A referida Lei Estadual no 12.503, de 30/5/19974 (publicada no mesmo ano em que foi publicada a Lei Federal no 9.433, de 8/1/1997), inquinada de inconstitucionalidade, conta com apenas sete artigos, cria o Programa Estadual de Conservação da Água e, em seu artigo 2o, institui uma obrigação de fazer sobre a geração de energia elétrica, visto que estabelece a aplicação do percentual de 0,5% do valor da receita operacional bruta da usina hidrelétrica, apurada pelos concessionários de serviços de abastecimento de água e de geração de energia elétrica, na proteção e na preservação ambiental da bacia hidrográfica em que ocorrer a exploração, bem como na aplicação de um terço dos recursos em recuperação de vegetação ciliar. A norma estadual, em sua circunscrição regional, indubitavelmente, estabelece comandos que, na realidade, são de competência privativa da União, haja vista tratar de questões afetas à energia. Como é cediço, o estado de Minas Gerais não dispõe de Lei Complementar que o autorize a legislar sobre questões específicas, entre elas a energia, conforme preconizado no parágrafo único do artigo 22 da CR/1988. Portanto, conflita com os ditames estabelecidos no artigo 22 da CR/1988, ao regular matéria de competência da União. Importante explicitar aqui que, inclusive, tal obrigação de fazer, quando da publicação da Lei Estadual no 12.503, de 30/5/1997, já se encontrava positivada no ordenamento jurídico brasileiro, por meio do artigo 22 da Lei Federal no 9.433, de 8/1/1997,5 o que ocasiona, via de consequência, dupla tributação. Abrindo um parêntese no tocante ao bis in idem, é importante elucidar que a mencionada Lei Federal no 9.433/1997 instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamentou o inciso XIX, do artigo 21, 30

da Constituição Federal, e alterou o artigo 1o da Lei no 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei no 7.990/1989. Patente é, portanto, a similaridade dos comandos dispostos no artigo 22 da Lei Federal e no artigo 2o da Lei Estadual Mineira, tendo em vista que estes, objetivamente, estabelecem percentual para investimentos em meio ambiente, pelo uso dos recursos hídricos e pela exploração dos potenciais hidráulicos na bacia hidrográfica na qual a receita foi gerada. Pode-se inferir, dessa forma, que se trata do mesmo conceito e do mesmo tipo de investimento, haja vista que as diretrizes de ambas as normas são idênticas. Importante explicitar que o percentual estabelecido na norma federal positivada, Lei Federal no 9.433/1997, equivale a 6,75% do valor da energia gerada em cada usina hidrelétrica, mensalmente, multiplicado pela Tarifa Anual de Referência (TAR). Sendo assim, do valor total arrecadado, 6% são distribuídos entre os estados, o Distrito Federal e os municípios, de forma proporcional à área alagada pelas águas represadas, e a determinados órgãos da administração pública da União. O percentual restante de 0,75% é destinado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), para ser aplicado na implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, por meio da Agência Nacional das Águas (ANA). Veja-se o quadro exemplificativo a seguir: Compensação Financeira = 6,75% Energia Gerada X TAR 6,00% x Energia Gerada x TAR

0,75% x Energia Gerada x TAR

Estados..........................45%

Ministério do Meio Ambiente

Municípios......................45% Minist. Meio Ambiente.....3% Minist. Minas Energia.......3% Fundo Nac. de Desenv. Cient. e Tecnológ..............4%

Esta parcela é repassada à Agência Nacional de Águas - ANA para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos

Desta feita, verifica-se que as geradoras de energia elétrica, em cumprimento à legislação de âmbito federal, investem e repassam recursos financeiros superiores ao que foi estabelecido na Lei Estadual no 12.503/1997 (meio por cento), para aplicação na preservação e na proteção ambiental. De mais a mais, o principal aspecto atinente à referida lei mineira é o de não se tratar de legislação atinente ao meio ambiente, e, sim, de instituição de uma obrigação sobre a receita operacional de geração de energia e, digase, cuja concessão foi outorgada às geradoras por ente federativo.

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Se o percentual de 0,5%, fixado na Lei Estadual no 12.503/1997, é incidente sobre a receita da geração de energia, imperioso concluir que a obrigação foi instituída sobre a receita de energia elétrica produzida e não sobre a preservação ambiental, o que põe em xeque sua constitucionalidade. Conclui-se, assim, que a Lei do Estado de Minas Gerais no 12.503/1997 foi elaborada em desacordo com os ditames constitucionais, não obedecendo a referida norma aos preceitos estabelecidos no inciso IV, parágrafo único, do artigo 22 da CR/1988, exigindo-se, assim, que seja declarada sua inconstitucionalidade. Portanto, verifica-se que a ingerência por estados federados é grande, além de contribuir para majorar o valor da tarifa ao consumidor final. Eis que, obrigatoriamente, a composição tarifária faz inserir os custos da geração, obriga as concessionárias de energia elétrica a abrirem as portas das salas de geradores para a conferência dos medidores de energia por pessoas não autorizadas pelos órgãos federais, valendo lembrar que se trata de bens pertencentes à União. De tal modo, está evidenciado que os estados estão usurpando competência da União, sem autorização por meio de lei complementar, na forma preconizada no aludido artigo 22, parágrafo único da CR/1988. Logo, a expectativa é pelo provimento do Recurso Extraordinário (ARE 789717) interposto pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), sociedade por ações, de economia mista, já admitido pelo Primeiro VicePresidente do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) e distribuído à Relatoria do Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF), objetivando a declaração da inconstitucionalidade da Lei Estadual no 12.503/1997 e sua ineficácia no âmbito estadual com relação às “concessionárias de energia elétrica”, em face da vedação constante do artigo 22, inciso IV, parágrafo único da Constituição Federal/1988. 5. Jurisprudência A seguir, colecionam-se alguns precedentes encontrados no Judiciário brasileiro (STF e Tribunais estaduais), seja no âmbito do controle de constitucionalidade concentrado, seja no difuso, que refletem consideravelmente a questão posta em discussão, e mais adiante, vale conhecer o elenco de discussões ainda pendentes de decisão do Poder Judiciário: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EXPRESSÃO “ELETRICIDADE” DO ART. 1o DA LEI FLUMINENSE N. 4.901/2006. FIXA A OBRIGAÇÃO DAS CONCESSIONÁRIAS DE ENERGIA ELÉTRICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO DE INSTALAR MEDIDORES DE CONSUMO DE ENERGIA NA PARTE INTERNA DA PROPRIEDADE ONDE SE REALIZA O CONSUMO. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE

SERVIÇOS DE ENERGIA ELÉTRICA. AFRONTA AOS ARTS. 1o, CAPUT, 5o, INC. XXXVI, 21, INC. XII, ALÍNEA B, 22, INC. IV, 37, INC. XXI E 175 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. STF – ADI 3905/RJ – Relatora: Min. Carmen Lúcia – Julgamento: 17/03/2011 – Tribunal Pleno – Publicação: DJe-086 DIVULG 09/05/2011 PUBLIC 10/052011 ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL No 1.803/2012, do MUNICÍPIO DE PATY DO ALFERES. OBRIGAÇÃO DA CONCESSIONÁRIA A INSTALAR MEDIDORES DE ENERGIA ELÉTRICA NOS IMÓVEIS DO MUNICÍPIO E SANÇÃO PARA O DESCUMPRIMENTO. INVASÃO DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DA UNIÃO. INCONSTITUCIONALIDADE. Ingerência inconstitucional na competência legislativa privativa da União Federal, pois está regulando condições para a prestação do serviço de energia elétrica. Vício de inconstitucionalidade formal. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. A permissão do regramento atinente à energia elétrica pelos municípios iria de encontro ao pacto federativo constitucional, que rege o relacionamento de independência e concorrência harmônica entre os diversos entes federativos, nos três níveis existentes no ordenamento nacional definido pelo constituinte originário. Cabe à União a regulação de matérias de interesse geral do Estado e da população, e aos municípios, por sua vez, as matérias de interesse preponderantemente local, o que não se pode dizer do regramento quanto ao fornecimento de energia elétrica. Inexistência de interesse local, faltando qualquer indicativo de particularidade que se relacione com o Município de Paty do Alferes. É de se reconhecer, assim, que a norma debatida viola os artigos 2o e 22, IV, da CRFB, e 7o, da Constituição Estadual. Acolhimento da arguição com declaração da inconstitucionalidade dos artigos apontados. [grifo nosso] (ÓRGÃO ESPECIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE No 004470212.2012.8.19.0000 – RELATORA: MARIA AUGUSTA VAZ M. DE FIGUEIREDO). RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RETRIBUIÇÃO PECUNIÁRIA. COBRANÇA. TAXA DE USO E OCUPAÇÃO DE SOLO E ESPAÇO AÉREO. CONCESSIONÁRIAS DE SERVIÇO PÚBLICO. DEVER-PODER E PODER-DEVER. INSTALAÇÃO DE EQUIPAMENTOS NECESSÁRIOS À PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO EM BEM PÚBLICO. LEI MUNICIPAL No 1.199/2002. INCONSTITUCIONALIDADE. VIOLAÇÃO. ARTIGOS 21 E 22 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Às empresas prestadoras de serviço público incumbe o dever-poder de prestar o serviço público. Para tanto a

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elas é atribuído, pelo poder concedente, o também deverpoder de usar o domínio público necessário à execução do serviço, bem como de promover desapropriações e constituir servidões de áreas por ele, poder concedente, declaradas de utilidade pública. 2. As faixas de domínio público de vias públicas constituem bem público inserido na categoria dos bens de uso comum do povo. 3. Os bens de uso comum do povo são entendidos como propriedade pública. Tamanha é a intensidade da participação do bem de uso comum do povo na atividade administrativa que ele constitui, em si, o próprio serviço público [objeto de atividade administrativa] prestado pela Administração. 4. Ainda que os bens do domínio público e do patrimônio administrativo não tolerem o gravame das servidões, sujeitam-se, na situação a que respeitam os autos, aos efeitos da restrição decorrente da instalação, no solo, de equipamentos necessários à prestação de serviço público. A imposição dessa restrição não conduzindo à extinção de direitos, dela não decorre dever de indenizar. 5. A Constituição do Brasil define a competência exclusiva da União para explorar os serviços e instalações de energia elétrica [artigo 21, XII, b] e privativa para legislar sobre a matéria [artigo 22, IV]. Recurso extraordinário a que se nega provimento, com a declaração, incidental, da in-

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constitucionalidade da Lei n. 1.199/2002, do Município de Ji-Paraná. STF – RE 581947/RO – Relator: Min. Eros Grau – REPERCUSSÃO GERAL – Julgamento: 27/05/2010 Tribunal Pleno – Publicação: DJe-159 DIVULG 26/08/2010 PUBLIC 27/08/2010 UTILIZAÇÃO DE FAIXAS DE DOMÍNIO PÚBLICO. PERSEGUIDA ISENÇÃO DE ÔNUS DOS CONCESSIONÁRIOS DOS SERVIÇOS DE ENERGIA ELÉTRICA. INCONSTITUCIONALIDADE JÁ ANTES, EM CASO SÍMILE, RECONHECIDA PELO EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. APLICAÇÃO DA TEORIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1o DA LEI MUNICIPAL DE CAIEIRAS No 3.015, DE 18 DE DEZEMBRO DE 2000. TJSP – 0151469-55.2007.8.26.0000 – Relator: Des. Ricardo Dip, Data de Julgamento: 12/11/2012 APELAÇÃO CÍVEL – CONCESSIONÁRIA DE RODOVIAS Pretensa declaração de exigibilidade de concessionária de energia elétrica no sentido de que esta proceda a credenciamento e se valha de autorização técnica para a realização de obras em faixa de domínio objeto de contrato de concessão das rodovias – Pretenso reconhecimento, outrossim, da possibilidade de cobrança de preço público

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pela utilização dessas faixas de domínio. Sentença que julgou procedente a demanda que merece reforma. Efeitos da revelia não presentes. Artigo 151 do Código de Águas e Decretos Regulamentadores no 84.398/80 e no 86.859/82 que não foram revogados pelo artigo 11 da Lei no 8.987/95. Art. 11, da Lei no 8.987/95, outrossim, que não tem o alcance pretendido pela autora. Utilização das faixas de domínio para prestação de serviços públicos que não devem sofrer qualquer espécie de ônus – Sentença reformada. Recurso da CPFL a que se dá provimento. TJSP – 9066438-45.2006.8.26.0000 – APELAÇÃO – Relator: Des. Oswaldo Luiz Palu, data do julgamento: 23/06/2010. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a expressão “energia elétrica”, contida no caput do art. 1o da Lei no 11.260/2002 do Estado de São Paulo, que proíbe o corte de energia elétrica, água e gás canalizado por falta de pagamento, sem prévia comunicação ao usuário. 2. Este Supremo Tribunal Federal possui firme entendimento no sentido da impossibilidade de interferência do Estado-membro nas relações jurídico-contratuais entre Poder concedente federal e as empresas concessionárias, especificamente no que tange a alterações das condições estipuladas em contrato de concessão de serviços públicos, sob regime federal, mediante a edição de leis estaduais. Precedentes. 3. Violação aos arts. 21, XII, b, 22, IV, e 175, caput e parágrafo único, incisos I, II e III da Constituição Federal. Inconstitucionalidade. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente. STF – ADI 3729/SP – Relator: Min Gilmar Mendes – Julgamento: 17/09/2007 – Tribunal Pleno – Publicação: DJe-139 DIVULG 08-11-2007 PUBLIC 09-11-2007 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ACREANA No 1.618/2004. REGRAS QUE PROÍBEM O CORTE RESIDENCIAL DO FORNECIMENTO DE ÁGUA E ENERGIA ELÉTRICA PELAS CONCESSIONÁRIAS POR FALTA DE PAGAMENTO. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE SERVIÇO DE ENERGIA ELÉTRICA. COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA LEGISLAR SOBRE SERVIÇO DE FORNECIMENTO DE ÁGUA. AFRONTA AOS ARTS. 22, INC. XII, ALÍNEA B, 30, INC. I E V E 175 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. STF – ADI3661/AC – Relatora: Min. Carmen Lúcia – Julgamento: 17/03/2011 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação – DJe-086 DIVULG 09-05-2011 PUBLIC 1005-2011

Principais temas pendentes de resolução definitiva nos tribunais superiores.

Aterramento de rede ADPF 133 – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Origem:

PR – PARANÁ

Relator:

MIN. LUIZ FUX

REQTE.(S):

Abradee (Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica)

INTDO.(A/S):

Prefeito Municipal de Paranaguá

INTDO.(A/S):

Câmara Municipal de Paranaguá

Estado atual: Processo se encontra concluso com o Relator. Há parecer contrário do MPF. Observação: A discussão envolvida na ADPF tem correlação com pelo menos mais três leis, Lei Municipal de Barueri/SP (Lei no 10.023/2005), Lei Municipal de Juiz de Fora/MG (Lei no 12.450/2011) e Lei Municipal de Niterói (Lei no 3.005/2013).

Inscrição no cadastro de restrição de crédito (SPC e Serasa) ADI 4809 – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Origem:

PI – PIAUÍ

Relator:

MIN. CELSO DE MELLO

REQTE.(S):

Associação Brasileira dos Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee)

INTDO.(A/S):

Governador do Estado do Piauí

INTDO.(A/S):

Assembleia Legislativa do Estado do Piauí

Estado atual: Processo se encontra concluso com o Relator. Há parecer favorável do MPF. Observação: A discussão envolvida na ADI tem correlação com pelo menos mais uma lei, Lei Estadual de Mato Grosso do Sul no 3.749/2009).

Faixa de domínio/ Taxa de ocupação do solo ADPF 98 – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Origem:

SP – SÃO PAULO

Relator:

MIN. ROBERTO BARROSO

REQTE.(S):

Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee)

INTDO.(A/S):

Prefeito Do Município De São Paulo

INTDO.(A/S):

Câmara Municipal De São Paulo

Estado atual: Processo se encontra concluso com o Relator. Há parecer favorável do MPF.

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Suspensão do fornecimento de energia elétrica ADI 3824 – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Origem:

MS – MATO GROSSO DO SUL

Relator:

MIN. CELSO DE MELLO

REQTE.(S):

Associação Brasileira dos Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee)

INTDO.(A/S):

Governador do Estado de Mato Grosso do Sul

INTDO.(A/S):

Conectas Direitos Humanos

Estado atual: Processo se encontra concluso com o Relator. Há parecer favorável do MPF. Observação: A discussão envolvida na ADI tem correlação com pelo menos mais 10 leis, Lei Municipal de Barueri no 2.022/2010, Lei Municipal de Belém no 8.131/2002, Lei Municipal de Paraupebas/PA no 4.331/2007, Lei Estadual do Rio de Janeiro no 4.824/2006, Lei Municipal de Cristinápolis/SE no 535, Lei Municipal de Caravelas/BA no 8.087/1990, Lei Municipal de Itajuípe/BA no 815/2010, Lei Municipal de Poções/BA no 953/2011, Lei Municipal de Laçu/BA no 002/2012, Lei Municipal de Formosa do Tio Preto/BA no 69/2009, entre outras.

Lei mineira no 12.503/1997 RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 789.717

Origem: MG – Minas Gerais

Ministro Marco Aurélio Mello

Relator:

RECTE.(S): Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) ADV.(A/S):

Sergio Carneiro Rosi e Outro (A/S)

Ministério Público do Estado de Minas Gerais RECDO.(A/S):

PROC.(A/S)(ES): Procurador-Geral de Justiça do

Estado de Minas Gerais

INTDO.(A/S):

Estado de Minas Gerais

PROC.(A/S)(ES): Advogado-Geral do Estado de

Minas Gerais

Vale conhecer, ainda outras contendas em curso no Poder Judiciário, que versam acerca da possibilidade de inclusão do nome de clientes inadimplentes nos registros de restrição de crédito (Serasa, Cadin e SPC). Nesse contexto, a Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecomunicações Competitivas (Telcomp) ajuizou, no STF, a Ação Direta de Incons34

titucionalidade (ADI n. 4.740) em desfavor da Lei no 3.749/2009, do estado do Mato Grosso do Sul, que proíbe a inscrição de consumidores nos cadastros de restrição ao crédito por falta de pagamento das contas relativas ao consumo, pela prestação de serviço público. A Telcomp sustenta que a aludida lei do estado do Mato Grosso do Sul, invadiu competência privativa da União para legislar sobre o tema. Alega que a Constituição Federal (arts. 21, 22, 174 e 175) estabelece que compete privativamente à União tratar de serviços de telecomunicações. Alega, ainda, a existência de Lei Federal no 9.472/1997, além de outras normas expedidas pelo órgão regulador – Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) – “único ente competente para impor obrigações decorrentes dos contratos de concessão firmados com as empresas de telecomunicações”, segundo a Telcomp. Requereu liminar para suspender a íntegra da lei e, no mérito, que seja declarada inconstitucional. Considerados a relevância da matéria e o significado para a ordem social e a segurança jurídica, o Ministro Ricardo Lewandowski, do STF, relator da referida ADI, determinou que a Ação seja julgada diretamente no mérito. Outrossim, a Associação Brasileira dos Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee) ajuizou, no STF, a ADI n. 4.809, em desfavor da Lei no 6.183/2012, do estado do Piauí, que veda a inscrição do nome dos consumidores nos cadastros de restrição ao crédito, por falta de pagamento das faturas de consumo oriundas da prestação de serviço público, que se encontra sob a relatoria do Ministro Celso de Mello. Requereu-se liminar para suspender os efeitos da norma positivada que proíbe a inclusão de consumidores inadimplentes nos cadastros restritivos de crédito (Serasa, Cadin e SPC) por falta de pagamento das contas de luz. E, no mérito, a associação requer que o STF declare inconstitucional a lei. Conforme extraído do sítio da internet do STF, para a referida Associação, que representa 51 concessionárias estatais e particulares de serviços de distribuição de energia elétrica, a lei piauiense regula matéria de inquestionável competência exclusiva da União: A lei promulgada, mesmo que com a louvável intenção de defender o direito dos consumidores, na real verdade concretiza autêntica usurpação de competência exclusiva da União, a quem cabe, solitariamente, explorar direta ou mediante outorga e legislar sobre os serviços de energia elétrica, nos termos do artigo 21, XII, “b”, e 22, IV, da Constituição. Argumentou-se, ainda, ofensa aos artigos 37, inciso XXI, e 175, parágrafo único, inciso III da CR/1988, haja vista “o impacto imprevisto” da lei estadual sobre o equilíbrio econômico-financeiro das concessionárias

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de energia elétrica, em razão da “verdadeira explosão de inadimplência decorrente dos seus efeitos”. Por derradeiro, a aludida Associação relembrou que questão análoga é discutida na ADI n. 4.740, proposta pela Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecomunicações Competitivas (Telcomp), contra lei do Mato Grosso do Sul. 6. Conclusão Dessa forma, pode-se concluir que os estados e municípios, ao editarem tais normas, violam a competência privativa da União para legislar sobre energia, em desacordo com o que dispõe o artigo 22, inciso IV da CR/1988. Tal fato ocasiona às concessionárias de energia, conforme dito acima, aumento dos custos, uma vez que estes não foram compatibilizados na composição tarifária de outrora e, por conseguinte, do valor das tarifas aos consumidores. Isso porque aquelas se veem compelidas a se socorrerem das técnicas de engenharia, por meio de contratação de empresas especializadas para definição de metodologias que, quando plausíveis, possam viabilizar o cumprimento dos ditames legais. Quando não plausíveis as opções técnicas existentes, as concessionárias veem-se obrigadas a judicializar demandas, buscando a solução dos conflitos e a harmonização das partes pela satisfação de seus interesses trazidos a juízo. A permissão do regramento atinente à energia elétrica pelos estados e municípios, conforme exposto no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade no 0044702-12.2012.8.19.0000, de relatoria da Desembargadora Maria Augusta Vaz M. de Figueiredo, constitui

“Os estados e os municípios não podem, pela via reflexa de suas leis, legislar sobre atividades cuja competência, nos termos da Carta Magna, é privativa da União. O que se verifica, pois, é a ausência de limitação prévia para essa atuação, o que ocasiona transtornos operacionais às concessionárias de energia elétrica”

quebra do pacto federativo, que rege o relacionamento de independência e concorrência harmônica entre os diversos entes legislativos. Ademais, a referida iniciativa legislativa vulnera determinados princípios constitucionais especialmente o da supremacia, isonomia e modicidade tarifária, bem como desequilibra a equação econômico-financeira dos contratos de concessão. Desta feita, e por fim, cabe destacar que a questão trazida à baila é bastante emblemática e, portanto, requer, ampla reflexão e atenção especial em sua condução pelo Judiciário do País.

Notas SIMÃO, Calil. Elementos do sistema de controle de constitucionalidade. São Paulo: SRS, 2010. p. 71-72. Art. 2o Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade: (Vide artigo 103 da Constituição Federal) IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. 3 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 5.367 (e-book). 4 “Art. 2o da Lei Estadual no 12.503/1997: Art. 2o – Para a consecução dos objetivos previstos nesta lei, as empresas concessionárias de serviços de abastecimento de água e de geração de energia elétrica, públicas e privadas, ficam obrigadas a investir, na proteção e na preservação ambiental da bacia hidrográfica em que ocorrer a exploração, o equivalente a, no mínimo, 0,5% (meio por cento) do valor total da receita operacional ali apurada no exercício anterior ao do investimento. Parágrafo único – Do montante de recursos financeiros a ser aplicado na recuperação ambiental, no mínimo 1/3 (um terço) será destinado à reconstituição da vegetação ciliar ao longo dos cursos de água, nos trechos intensamente degradados por atividades antrópicas.” 5 Art. 22 da Lei Federal no 9.433/1997: Art. 22. Os valores arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados e serão utilizados: I – no financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos Hídricos; II – no pagamento de despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. § 1o – A aplicação nas despesas previstas no inciso II deste artigo é limitada a sete e meio por cento do total arrecadado. § 2o – Os valores previstos no caput deste artigo poderão ser aplicados a fundo perdido em projetos e obras que alterem, de modo considerado benéfico à coletividade, a qualidade, a quantidade e o regime de vazão de um corpo de água. 1 2

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O desenvolvimento e os direitos fundamentais Luís Carlos Balbino Gambogi

Desembargador do TJMG

Foto: Marcelo Albert/TJMG

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omecemos com uma pergunta: será que os direitos fundamentais e os direitos políticos fazem algum sentido para o desenvolvimento econômico? O filósofo e economista Amartya Sen sustenta que sim. Afirma que nada contribui mais para o desenvolvimento 36

que a criação de instituições e oportunidades sociais, econômicas e políticas que permitam, às pessoas, exercerem a condição de agentes. Explicita Amartya Sen: O desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agente. A eliminação de privações de liberdades substanciais, argumenta-se aqui, é constitutiva de desenvolvimento. (SEN, 2000, p. 10)

Revelando-se especialmente inteligente, pensando e agindo sob uma perspectiva diferente da dos inúmeros outros economistas, Sen vê, na radicalização da compreensão da liberdade, na combinação liberdades políticas / liberdades econômicas, a receita para o desenvolvimento. Ao contrário de seus colegas economistas, maldiz as proposições dos tecnocratas, que acreditam em soluções de gabinete, que odeiam a discussão pública, que acreditam que as mudanças sociais e econômicas podem ser obtidas por meio de decretos concebidos pelo gênio solitário de um técnico. Afinal, no momento em que a taxa da natalidade cai mundo afora, diminuindo a expansão da força de trabalho, como pôr em dúvida que, como fator de crescimento econômico, resta a produtividade da mão de obra? Ora, o conceito produtividade abrange, sobretudo, a qualificação da força de trabalho, gargalo que pressupõe o encorajamento da inovação. E inovação pressupõe um sistema educacional eficiente, mas que só prospera em ambiente sociopolítico e cultural de liberdade. A verdade é que onde se prestigiam os direitos fundamentais, a liberdade humana, viceja a criatividade, o motor da produtividade. Produtividade requer que o ambiente social e econômico seja aberto, compatível com o ambiente propiciado pelos

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direitos fundamentais porquanto a inovação, as novas ideias, tão ou mais importantes que o capital, se ressentem do ambiente fechado, raramente fecundam ou florescem onde não há liberdade. Inovar significa fazer diferente, mudar métodos e práticas, criar, surpreender com novas experiências, com vistas a diminuir os custos e a otimizar os benefícios. O desenvolvimento, se medido de forma quantitativa, nada diz do real de uma nação. Basta que esta possua minério, por exemplo, para apresentar um bom Produto Interno Bruto (PIB). No entanto, se não se mede seu desenvolvimento qualitativo, o seu Índice de Desenvolvimento Dumano (IDH), estaremos diante de um PIB que, além de não incorporar o povo, tende a parecer. Amartya Sen, ao tempo em que demonstra apreço pelas instituições (Estado, mercado, sistema legal, partidos políticos, mídia, grupos de interesse público e foros de discussão pública, entre outras), ressalta a natureza integrada das atividades econômicas, sociais e políticas e sua inter-relação com as instituições. Propõe, em uma síntese, que ambas, quer os elementos institucionais quer as atividades sociais, econômicas e políticas, mobilizem suas tropas com o objetivo de contribuir “para a expansão e a garantia das liberdades substantivas dos indivíduos, vistas como agentes ativos de mudanças, e não como recebedores passivos de benefícios” (SEN, 2000, p. 11). Podemos constatar que Amartya Sen, ao contrário de muitos de seus colegas economistas, preza as instituições, revela-se convicto da força da liberdade e crê no Direito. Deixa isso claro o seu entendimento ao escrever: O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência de serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos. (SEN, 2000, p.18)

A posição de Amartya Sen, que já conquistou o prêmio Nobel de Economia, insere-se no campo que chamo razão pública. Sen confirma que é cada vez mais nítida a necessidade de colocarmos a Filosofia e a razão pública no centro das reflexões do nosso tempo, principalmente como o espaço de reflexão que vai além do imediato e que revitaliza, no homem, sua vocação para pensar. Ocorre que, ao estruturarmos uma civilização fundada na técnica, em detrimento de nossas intuições morais e políticas, colocamos o homem a serviço das coisas, criamos o mito de que a economia a tudo resolve, passamos a desenvolver as coisas e a envolver o homem. Portanto, inaceitável que se queira aplaudir o desenvolvimento econômico que não se faz acompanhar do desenvolvimento humano. Não há desenvolvimento se o desenvolvimento não for o desenvolvimento econômico, social, cultural e moral de uma sociedade.

“O conceito produtividade abrange, sobretudo, a qualificação da força de trabalho, gargalo que pressupõe o encorajamento da inovação. E inovação pressupõe um sistema educacional eficiente, mas que só prospera em ambiente sociopolítico e cultural de liberdade. A verdade é que onde se prestigiam os direitos fundamentais, a liberdade humana, viceja a criatividade, o motor da produtividade”

Fazendo frente aos que, no contexto de países em desenvolvimento, optam pelo comedimento financeiro no que tange ao dispêndio público em educação básica ou saúde, recorda o autor que: No passado dos atuais países ricos encontramos uma história notável de ação pública por educação, serviços de saúde, reformas agrárias etc. O amplo compartilhamento dessas oportunidades sociais possibilitou que o grosso da população participasse diretamente do processo de expansão econômica. (SEN, 2000, p. 170)

De seu pensamento ressai que o autor repudia, por exemplo, a tese segundo a qual a negação de direitos políticos e de direitos fundamentais e sociais possa produzir desenvolvimento econômico. Vinculando, o êxito econômico, mais ao ambiente que ao autoritarismo e a supressão das liberdades, Sen afirma que o desenvolvimento econômico apresenta ainda outras dimensões, entre elas a segurança econômica. Com grande frequência, a insegu­ rança econômica pode relacionar-se à ausência de direitos e liberdades democráticas (SEN, 2000, p. 30). Escreve Amartya Sen: “Os abrangentes poderes dos mecanismos de mercado têm de ser suplementados com a criação de oportunidades sociais básicas para a equidade e a justiça social”. (SEN, 2000, p. 170). O homem, aos olhos de Amartya Sen, é um agente, uma pessoa, um ser capaz de agir, de intervir no mundo, de produzir mudanças e de realizar seus objetivos e seus

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“O desenvolvimento que respeita e prestigia os direitos fundamentais, além de operar efeitos na melhora concreta da qualidade de vida, produz mudanças em outros campos como, por exemplo, na qualificação das habilidades produtivas, na criação de oportunidades sociais, na inovação, e, consequentemente, no próprio desenvolvimento”

próprios valores. Sua posição, em última análise, é a de um economista-filósofo, não de um economista-técnico. Sen põe sua inteligência a serviço da liberdade e, não, a serviço da utilidade, como, aliás, é comum entre os economistas não filósofos. Citando Aristóteles, transcreve Sen um pequeno trecho do Ética a Nicômaco: “a riqueza evidentemente não é o bem que estamos buscando, sendo ela meramente útil e em proveito de alguma outra coisa”. Deixemos a palavra aos cuidados do autor: Os fins e os meios do desenvolvimento exigem que a perspectiva da liberdade seja colocada no centro do palco. Nessa perspectiva, as pessoas têm de ser vistas como ativamente envolvidas – dada a oportunidade – na conformação de seu próprio destino, e não apenas como beneficiárias passivas dos frutos de engenhosos programas de desenvolvimento. O Estado e a sociedade têm papéis amplos no fortalecimento e na proteção das capacidades humanas. São papéis de sustentação, e não de entrega sob encomenda. A perspectiva de que a liberdade é central em relação aos fins e aos meios do desenvolvimento merece toda a nossa atenção. (SEN, 2000, p. 71)

No que toca aos direitos sociais, enfatiza Amartya Sen que as políticas públicas, notadamente aquelas voltadas para a educação e saúde, complementam as oportunidades abertas pelo comprometimento das instituições e pelas atividades econômicas, cobrindo lacunas e ajudando na superação das privações e na construção do cidadão agente. Recorda que a falta de democracia contingencia os conflitos sociais, afasta governos da pressão social e faz que estes tendam a imaginar que tudo está ótimo, que 38

nunca antes houve gestão pública mais eficaz, que não há correções de rumo a fazer, que não é necessário qualquer ajustamento do governo com as pessoas. Deixemos a palavra aos cuidados do autor: Os fins e os meios do desenvolvimento exigem que a perspectiva da liberdade seja colocada no centro do palco. Nessa perspectiva, as pessoas têm de ser vistas como ativamente envolvidas – dada a oportunidade – na conformação de seu próprio destino, e não apenas como beneficiárias passivas dos frutos de engenhosos programas de desenvolvimento. O Estado e a sociedade têm papéis amplos no fortalecimento e na proteção das capacidades humanas. São papéis de sustentação, e não de entrega sob encomenda. A perspectiva de que a liberdade é central em relação aos fins e aos meios do desenvolvimento merece toda a nossa atenção. (SEN, 2000, p. 71)

Autores como Amartya Sen ensinam que o desenvol­ vimento com liberdade, o desenvolvimento que respeita e prestigia os direitos fundamentais, além de operar efeitos na melhora concreta da qualidade de vida, produz mudanças em outros campos como, por exemplo, na qualificação das habilidades produtivas, na criação de oportunidades sociais, na inovação, e, consequentemente, no próprio desenvolvimento.

Referências bibliográficas SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SEN, Amartya. A ideia de justiça. Trad. Denise Bottmann e Ricardo D. Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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A inovação organizacional na administração judiciária e o paradigma do existencialismo humanista Carlos Mauro Brasil Cherubini

Chefe de Gabinete da Terceira Vice-Presidência do TJRJ

A Sugestão do Taberneiro “Senhores”, disse, “agora eis o melhor; E fazer pouco caso ninguém deve. Este o ponto – serei rápido e breve: Que cada um, já que a estrada é tão comprida, Conte dois contos na viagem de ida A Cantuária, e que, também depois, Na volta, cada qual conte mais dois, Sobre casos antigos do passado; E aquele que melhor tiver contado, Ou seja, quem narrar, na circunstância, Os contos de mais graça e mais substância, Vai ganhar de nós todos um jantar, Sentado mesmo aqui neste lugar, Quando acabar-se a peregrinação. E, para que haja mais animação, Eu com prazer me agrego à companhia, Às minhas próprias custas, como guia. E quem contradisser meu julgamento Das despesas fará o pagamento. Se com isso vós todos concordais, Dizei-me logo, não se fala mais, E eu vou me preparar para a partida.”

Foto: Arquivo pessoal

1. Introdução

Os Contos de Cantuária (The Canterbury Tales) Geoffrey Chaucer 2014 Setembro | Justiça & Cidadania 39


“A Inovação, para a Administração, é um processo complexo que deve ser gerenciado e onde caminhos devem ser escolhidos. Perspectivas devem ser analisadas para saber nas quais o agente da mudança focará as inovações. Também deve ser escolhida a velocidade com que se dará essa mudança. Será uma alteração radical ou incremental? Ou radical para alguma perspectiva e incremental em relação às outras? Como lidar com resistências que inevitalmente aparecerão?”

Viajemos no tempo através da Baixa Idade Média, Alta Idade Média e Idade Moderna. Vamos visualizar um vilarejo em que havia um só tecelão, uma só estalagem com taberna, um só ferreiro e assim por diante. Apenas um mestre e um aprendiz para cada uma das especialidades. O viajante que chegasse àquele vilarejo e precisasse de um serviço não teria opção. Consertar a cela, a ferradura ou comprar uma camisa para o inverno que se aproximava teria de ser ali. Outro? Só léguas e léguas depois. Compre ou vá embora. Imaginemos os substantivos, como conceitos históricos: roca, moinhos a vento, terra, cidade, camponeses, burgos, pólvora, bússola, navegações. Invenções. Havia a necessidade de melhorar a vida de cada um, não necessariamente o produto. Sociedade fabril. Conceitos de custo, de qualidade, produtividade. A necessidade de fazer melhor, em menos tempo, com menos custo, maior lucro, ganhar mercado. Ainda hoje quando estamos falando de empresas de ponta em tecnologia acabamos por misturar invenção e inovação, falamos em start ups quando falamos em inovação. Surge nova tecnologia. Novo aplicativo. Invenção. Criatividade. Competitividade. Estar à frente. Ocorre que nessas empresas elas necessariamente se confundem, porque o fim dessas empresas em si mesmo é a própria inovação. 40

Seu produto é sua prática e seu processo de trabalho. O Judiciário fala em Inovação. Práticas inovadoras. Inovação é a criatividade posta em prática. Porém, a inovação organizacional não é um acaso, um acontecimento, um produto surgido do nada, um repente ou uma epifania. É um processo de gestão complexo que envolve agentes de mudança, às vezes externos, às vezes não. O processo de mudança organizacional não tem como fim, necessariamente, uma invenção de um produto. É processo de gestão, decisório, que pode envolver várias facetas da organização, ou apenas uma. É nunca dizer não antecipadamente. A validação da ideia deve ser feita em momento certo. É saber que o perfeito já está imperfeito. É saber que, ao saborear o seu primeiro lugar, você foi ultrapassado. É prometer um futuro melhor para quem já se sente bem com o que será passado e ameaçar o presente de muitos. Tal processo de gestão depreende conhecer a organização, o momento, o ambiente externo e interno que a circunda e a preenche. Necessita de conhecimento de técnicas de gestão em várias áreas. No entanto, para o estudo da transformação da organização e para se determinar a mudança organizacional, é importante analisar a forma de se ver a realidade administrativa. Paradigmas. 2. Desenvolvimento – Paradigmas Deveria evoluir por contextualizações históricas: roda, fogo, arado... Ocorre que o que interessa é fazer a diferença entre invenção e inovação. A Invenção surge pela necessidade. A Inovação, para a Administração, é um processo complexo que deve ser gerenciado e onde caminhos devem ser escolhidos. Perspectivas devem ser analisadas para saber nas quais o agente da mudança focará as inovações. Também deve ser escolhida a velocidade com que se dará essa mudança. Será uma alteração radical ou incremental? Ou radical para alguma perspectiva e incremental em relação às outras? Como lidar com resistências que inevitalmente aparecerão? A transformação organizacional pode ser implantada na empresa como aprendizado contínuo, como pensamento integrante da cultura da organização. Esse aprendizado contínuo não significa um processo de melhoria contínua na empresa privada, pois que este não traz, necessariamente, impacto significativo em ganhos, competitividade, fatia de mercado etc.

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Nas empresas privadas, a Inovação deve ser capaz de criar vantagens competitivas. E nas organizações públicas? E na administração direta de déficit democrático, em que os seus membros não são eleitos? E na Justiça – em que a lei deve ser observada, ainda que a hermenêutica possa encontrar linhas mais tênues, ou ainda que o ativismo judicial possa até, de vez em quando, desfazer a dureza das linhas da lei – qual a razão de um servidor inovar? Lucro? Não. Competitividade? Não. Fatia de mercado? Não. Melhoria sustentável? Não. Melhoria nas condições de serviço? Não. Opinião pública? Respeito à cidadania? Entender-se como alguém que um dia necessitará do mesmo serviço? Talvez. Não se pretende, aqui, mais uma vez estabelecer uma mudança paradigmática ou fazer mau uso do “As Estruturas das Revoluções Científicas” de Thomas Khun. Todavia, os paradigmas que, atualmente, os estudiosos da inovação organizacional citam como os principais – e que nos permitem ver a realidade administrativa que contextualiza a mudança – parecem não se adequar ao conjunto de servidores do Poder Judiciário. Ainda que os paradigmas não se isolem, ainda que possam se combinar sempre, quando os colocamos em relação aos serventuários, terminam por se assemelhar a uma engrenagem sem lubrificação, em que o contato do encaixe – ainda que perfeito – encontra a rigidez dos materiais que se tocam. Pensar em um compromisso ideológico como paradigma enfrenta a desconfiança dos serventuários em seus líderes. Quem os catequiza? Que gestor ou metagestor consegue alcançar e incutir nos milhares de serventuários um ideal? É preciso lembrar que, no Judiciário, os contatos entre os metagestores (membros do Poder), gestores e serventuários são, na maioria das vezes, restritos, em quantidades de vezes e tempo, já que a alternância daqueles nos cartórios ou em funções de direção é muito grande e já que a importância deste contato acaba ligada mais à atividade-fim que ao processo de trabalho que leva a essa atividade. Outro paradigma seria o ambiente externo a influenciar a transformação organizacional. Essa influência deveria gerar, no ideário do servidor, um cenário futuro que o levasse à transformação de uma ideia em uma coisa. Observando, porém, os ambientes em que os serventuários se encontram, é fácil perceber que eles não podem impulsionar mudanças. No sistema social em que está inserido, pelo contrário, esse indivíduo acaba apequenando-se, ao receber os estímulos (de fato, desestímulos) externos, o que provoca

uma reação contrária ao que se espera do campo nascedouro da inovação, ou seja, a criatividade posta em prática. Isso acontece porque a influência da ambiência externa ao serviço público, como um todo, é contraproducente ao estímulo criativo – o que é um fato notório, e por causa não desconhecida, não só aqui no Brasil. Ao reinterpretar criticamente a realidade, contudo, posicionando-se como agente que qualifica o sistema que o cerca como bom ou ruim, talvez se ilumine um caminho paradigmático que o estimule, na qualidade de serventuário, a transformar a sua organização. Aqui o serventuário vê que o sistema está ruim em seu entendimento e como é agente dele pode mudá-lo. Nesse paradigma, a ação deste serventuário só faz sentido por meio da comunicação e, como diz o professor Paulo Roberto Motta no livro “Transformação Organizacional – a Teoria e a Prática de Inovar”: A ação é compreendida no sentido comunicativo, e a organização como uma estrutura sistemática das interações comunicativas. Portanto, a organização possui uma estrutura histórica e uma contigencial. A perspectiva crítica valoriza a estrutura organizacional porque crê ser ela uma estrutura de poder e que torna a maioria de seus membros desprotegidos quanto ao acesso à verdade. Essa estrutura distorce as comunicações e pode favorecer, por exemplo, o autoritarismo, a manipulação e o dogmatismo. Assim, a organização produz não somente bens e serviços, mas, também, crenças na estrutura de poder; reproduz o consentimento na autoridade, a atenção a um conjunto específico de tarefas e uma visão limitada da cooperação. (p. 48-49)

Ora, para inovar o servidor teria de interferir nessa estrutura e iniciar a mudança por meio de habilidades comunicativas intervindo na distorção que cria esta dominação e valendo-se de uma força motriz interna a se valorar acima do que ele mesmo crê, a ponto de dar novo sentido a uma cultura secular de poder. O mesmo sucede se olharmos a organização como um conjunto de relações e interações não mais individuais, mas de grupos. Finalmente, sob o paradigma da mudança como transformação individual estaríamos diante do desco­ brimento de nós mesmos, de uma vontade pessoal, do efeito da mudança interior do indivíduo e desse efeito a se prosperar e contagiar a organização, os seus processos de trabalho e o produto final. O paradigma descrito acima em relação ao serviço público pela simples leitura é caso clássico de reportagens especiais em jornal de horário nobre tamanha é sua exceção. Assim, os paradigmas clássicos rangem, arranham e soltam faíscas quando tentamos encaixá-los no estudo da inovação organizacional da administração pública judiciária.

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“É preciso lembrar que, no Judiciário, os contatos entre os metagestores (membros do Poder), gestores e serventuários são, na maioria das vezes, restritos, em quantidades de vezes e tempo, já que a alternância daqueles nos cartórios ou em funções de direção é muito grande e já que a importância deste contato acaba ligada mais à atividade-fim que ao processo de trabalho que leva a essa atividade” 3. Conclusão “MERC. Fortassis sed tamen me numquam hodie induces, ut tibi credam hoc argentum ignoto. lupus est homo homini, non homo, quom qualis sit non novit.” Asinaria – Plautus Talvez possamos ser lobos de nós mesmos. Ou quem sabe sejamos bons e corrompíveis pela sociedade. Eis assim a espécie humana dividida em rebanhos de gado, cada qual com seu chefe a guardá-la, a fim de a devorar. Assim como um pastor é de natureza superior à de seu rebanho, os pastores de homens, que são seus chefes, são igualmente de natureza superior à de seus povos. Desta maneira raciocinava, no relato de Fílon, o imperador Calígula, concluindo muito acertadamente dessa analogia que os reis eram deuses, ou que os povos eram animais. O raciocínio de Calígula retorna ao de Hobbes e ao de Grotius. Aristóteles, antes deles todos, tinha dito que os homens não são naturalmente iguais, e que uns nascem para escravos e outros para dominar. Aristóteles tinha razão, mas ele tomava o efeito pela causa. Todo homem nascido escravo nasce para escravo, nada é mais certo: os escravos tudo perdem em seus grilhões, inclusive o desejo de se livrarem deles; apreciam a servidão, como os companheiros de Ulisses estimavam o próprio embrutecimento. Portanto, se há escravos por natureza, é porque houve escravos contra a natureza. A força constituiu os primeiros escravos, a covardia os perpetuou...” III – Do direito do mais forte. O mais forte não é nunca assaz forte para ser sempre o senhor, se não transforma essa força em direito e a obediência em dever. Daí o direito do mais forte, direito tomado ironicamente na aparência e realmente estabelecido em princípio. Mas explicar-nos-ão um dia esta palavra? A força é uma potência física; não vejo em absoluto que moralidade pode resultar de seus efeitos. Ceder à força constitui um ato de ne42

cessidade, não de vontade; é no máximo um ato de prudência. Em que sentido poderá ser um dever? Imaginemos um instante esse suposto direito. Eu disse que disso não resulta senão um galimatias inexplicável; porque tão logo seja a força a que faz o direito, o efeito muda com a causa; toda força que sobrepuja a primeira sucede a seu direito. Assim que se possa desobedecer impunemente, pode-se fazê-lo legitimamente, e, uma vez que o mais forte sempre tem razão, trata-se de cuidar de ser o mais forte. Ora, que é isso senão um direito que perece quando cessa a força? Se é preciso obedecer pela força, não é necessário obedecer por dever, e se não mais se é forçado a obedecer, não se é a isso mais obrigado. Vê-se, pois, que a palavra direito nada acrescenta à força; não significa aqui coisa nenhuma. Obedecei aos poderosos. Se isto quer dizer: cedei à força, o preceito é bom, mas supérfluo; eu respondo que ele jamais será violado. Toda potência vem de Deus, confesso-o; mas toda doença igualmente vem dele: quer isto dizer que se não deva chamar o médico? Quando um assaltante me surpreende no canto de um bosque, sou forçado a darlhe a bolsa; mas no caso de eu poder subtraí-la, sou em sã consciência obrigado a entregar-lha? Afinal a pistola que ele empunha é também um poder. Convenhamos, pois, que força não faz direito, e que não se é obrigado a obedecer senão às autoridades legítimas. Assim, minha primitiva pergunta sempre retorna. (O Contrato Social, Jean Jacques Rousseau, Livro I, Cap. II e III)

O medo nos obriga a obedecer. O escravizado não tende a ter estímulos criativos para melhorar o fruto de seu trabalho, mas, possivelmente, para fugir da situação de escravidão. Inovamos por quê? Não competimos. Somos bons e a sociedade nos incentiva? A nós, funcionários públicos? A sociedade tem-nos como produtivos ou parasitas? Não podemos dizer que existem respostas corretas. Existem pressuposições. McGregor supôs: “o trabalho é em si mesmo desagradável para a maioria das pessoas”, “o trabalho é tão natural como o lazer, se as condições forem favoráveis”, “as pessoas em sua maioria não são ambiciosas, evitam correr riscos, assumir responsabilidades e preferem ser dirigidas”, “o autocontrole, frequentemente solicitado no ambiente organizacional, se torna indispensável à consecução dos objetivos da empresa”, “a criatividade e a iniciativa não são o forte da maioria das pessoas na resolução dos problemas das organizações”, “a criatividade e a iniciativa são a tônica encontrada nas pessoas efetivamente envolvidas na resolução dos problemas”. Em seu estudo sobre o aspecto humano nas empresas, McGregor não trabalhou axiologicamente suas teorias que se opunham entre si, tratando-as com denominações de

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incógnitas que representam variáveis matemáticas: Teoria X e Teoria Y. Assim, se tormarmos por base a relação do homem e o Estado e também as teorias de McGregor, pergunta-se: O estudo da inovação organizacional na administração pública judiciária surgirá sob que paradigmas? A natureza humana: boa, má, aquela que subjuga o seu igual por ser mais forte ou a maviosa, a influenciável, a indolente, ou a proativa etc., determinam comportamentos distintos, que não podem ser isolados. No servidor da justiça, à sua natureza humana, à sua relação com a ordem imposta e seu contrato com o Estado posto e vigente – sob qualquer teoria que se queira –, à sua completa indiferença à competitividade, alcance de maior lucro ou algum reconhecimento de maior porte, soma-se à descrença da população no serviço público em geral, calcada no suposto e não comprovado far niente ocasionado pela estabilidade estatutária. Ora, o conjunto acima faz com que a inovação na administração pública judiciária desafie os paradigmas mais comuns. Não há senso em se falar de compromisso ideológico, imperativo ambiental, reinterpretação crítica da realidade, intenção social ou mesmo transformação individual, se as peças do jogo estão aquém de mudar o mundo, serem impulsionadas por grandes ondas ou ordens externas e, na qualidade de indivíduos, se sentem massacradas e desmotivadas, a ponto de se apresentarem sempre como um conjunto, como grande massa de funcionários públicos, em vez de se individualizarem como servidores da justiça ou serventuários. Após vinte anos de trabalho na Justiça Fluminense, entretanto, encontro em cada canto indivíduos. Formamos uma massa como todo grupo, mas seguimos sendo indivíduos buscando existir, ter importância. Ser mais que indivíduo e individualizar-se. Inovar, criar, mostrar o que pensam, o que são. São iguais. São mais iguais que seus iguais. Somos. Inovam porque pecam por orgulho e por vaidade. Inovam porque existem, porque querem existir. Queremos. Não se trata de uma mudança paradigmática, mas de mais um paradigma a ser acrescentado. Há novo paradigma: o paradigma da necessidade de existir. Inovo, logo existo. Contudo, não estamos diante de uma lógica cartesiana, mas de um existencialismo humanista. O existencialismo humanista de Sartre: Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. [...]

O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que se chama a subjetividade, e o que nos censuram sob este mesmo nome. Mas que queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem, antes de mais nada, é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projetar no futuro. [...] Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens.

Eis, talvez, um novo paradigma, a se unir aos principais hoje estudados a azeitar o estudo da Inovação Organizacional em face da administração pública judiciária. A mudança na administração pública judiciária dá-se, principal, mas não exclusivamente, como predecessão da existência sobre a essência.

Referências bibliográficas BRUNO-FARIA, M.F.; ALENCAR, E.M.L.S. Estímulos e barreiras à criatividade no ambiente de trabalho. Revista de Administração, São Paulo, v.31, n.2, p.50-61, 1996. ____. Indicadores de clima para a criatividade: um instrumento como despertar a criatividade e vencer a impotência do desejo inovacional? Revista de Administração, São Paulo, v.33, n.4, p.86-91, 1998. GRAYLING, A.C. Epistemology. Cambridge, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1996. Tradução de Paulo Ghiraldelli Jr. Disponível em: <http://www.geocities.com/marcofk2/grayling.htm>. Acesso em set. 2003. HSM MANAGEMENT, Informação e Conhecimento para Gestão Empresarial. Turnaround: teoria e prática para as empresas mudarem de rumo. Rio de Janeiro: HSM do Brasil, ano 8, v. 4, n. 46, setembro-outubro 2004. KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das revoluções científicas. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. Col. Debates 115. MCGREGOR, Doyglas. The human side of enterprise. Annotated Edition. 2006. MATOS, Ruy A. Desenvolvimento de recursos humanos na administração pública. [s.l.]: Tipogresso, 1980. MOTTA, Paulo Roberto. Transformação organizacional: a teoria e a prática de inovar. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2001. SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Rita Correa Guedes. Disponível em: <http://stoa.usp.br/alexccarneiro/files/1/4529/sartre_exitencialismo_humanismo.pdf>. Acesso em jun. 2012. ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. Disponível em: <http:// www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_ action=&co_obra=2244>. Acesso em 2010.

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Uma visão para o combate à criminalidade

Antonio José Ferreira Carvalho

O

Desembargador Presidente da 2a Câmara Criminal do TJRJ

s debates continuam, mas a situação no nosso País cada vez mais se agrava. Ninguém nega que a criminalidade aumenta, mas o que se vê e ouve de alguns políticos e de parte da mídia é que o combate aos crimes deve afrouxar e que as prisões devem ser desocupadas, substituindo-se as penas reclusivas ou detentivas por outras que mantenham os marginais da lei nas ruas. Não. Certamente não é esse o caminho. Além, e principalmente, de ser dado um choque positivo na educação no País, que, lamentavelmente, mostra-se cada vez mais claudicante, no contexto em que vivemos atualmente, com uma crise na segurança pública, os discursos ideológicos devem ser revistos. Vamos deixar os discursos em que se culpa a sociedade pelo que acontece e trocá-los pelo rigor no enfrentamento da violência que, lamentavelmente, grassa de norte a sul do País. Não é segredo para ninguém que as substâncias entorpecentes são, induvidosamente, a razão maior do aumento da criminalidade. A maior causa da morte de jovens entre 15 e 25 anos, atualmente é o crack, derivado barato da cocaína, além de homicídios e delitos de trânsito, em especial os que envolvem motocicletas. Sabe-se que há traficantes de drogas que, até hoje, não querem comercializar o crack. E por quê? Tão somente porque em muito pouco tempo ele mata. E eles perdem o “cliente”. 44

A força que estão fazendo para a liberação da “maconha” é outro grave erro. É ela a porta de ingresso para o uso de drogas mais potentes como cocaína e heroína e aquelas, mais de oitenta, fortíssimas fabricadas em laboratórios. A liberação da maconha não fará reduzir o tráfico. Ele continuará e com até mais força, vendendo as outras drogas. De outra banda, o problema de saúde pública multiplicarse-á em razão do aumento de dependentes e viciados. Os dados relativos ao consumo e ao tráfico de drogas no Brasil são assustadores. Não se olvidem que, hoje em dia, em nosso País ocorrem 35% mais de homicídios que nos Estados Unidos da América. E, podem notar, a grande maioria dos crimes contra a vida tem em seu componente o uso e/ou tráfico de drogas. Da mesma forma os crimes contra o patrimônio são, muitas das vezes, praticados por usuários de drogas, até dentro dos próprios lares, com o fim de conseguir dinheiro para a sustentação do vício desgraçado. Em épocas como a que estamos vivendo se faz necessário que a criminalidade e a violência sejam enfrentadas com o máximo de rigor. Não se necessitaria, contudo, aumento das penas previstas no nosso Código Penal. O que se precisa é que a Lei de Execuções Penais seja amplamente revista ou até revogada, eis que o excesso

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Foto: Arquivo pessoal

de benefícios que ela concede aos apenados traz imensa sensação de impunidade. Também não se deve esquecer que o Estatuto da Criança e do Adolescente necessita de ampla revisão, eis que o número de adolescentes e até crianças que praticam atos infracionais (eufemismo para crimes) está aumentando sobremaneira e tais atos, cada vez mais, são praticados por crianças e pré-adolescentes de 11 a 13 anos de idade. A população já vem exigindo, de há muito, que adolescentes infratores sejam julgados como adultos em determinados casos, tal como sucede em outros países, e também, a redução da maioridade penal, ainda que seja necessária uma emenda constitucional como alegam alguns. Além disso, há de haver a vontade política para aumentar o número de institutos prisionais e para que o sistema de administração penitenciária seja revisto, afastando-o da falência em que se encontra. As penitenciárias devem ser construídas dentro do que se estatui legalmente em razão dos regimes prisionais fixados, evitando, que o preso fique na ociosidade. O trabalho interno deveria ser obrigatório. Acima de tudo, contudo, e como primeira medida, deve ser enfrentado o problema das drogas, a meu ver deflagrador do crescimento da criminalidade, proibindo qualquer benefício para traficantes e associados para a prática desse delito e com penas de internação compulsória, em período

“Ninguém nega que a criminalidade aumenta, mas o que se vê e ouve de alguns políticos e de parte da mídia é que o combate aos crimes deve afrouxar e que as prisões devem ser desocupadas, substituindose as penas reclusivas ou detentivas por outras que mantenham os marginais da lei nas ruas. Não. Certamente não é esse o caminho.”

a ser fixado na legislação, para usuários, dependentes e até mesmo experimentadores de drogas. Na análise e nos julgamentos relativos ao crime de associação para o tráfico, reconhecer-se a impossibilidade de o agente criminoso traficar sozinho em áreas dominadas por organizações ou facções criminosas, por si só, já faria reconhecer a presença do tipo penal insculpido no art. 35 da Lei de Drogas. Que sejam revistos também os malsinados “auxílios” aos presos e suas famílias, que fazem que aumente a ociosidade deles, recebendo dinheiro sem trabalhar e em prejuízo daqueles que trabalham, ao contrário do que sucede com as vítimas, que nada ganham e, ao contrário, só perdem. Há de se valorizar o trabalho das polícias civil e militar no combate a este nefasto crime e aos demais, e parar a imprensa de dar destaque a figuras de criminosos e notícias, frequentes, de que, em qualquer operação policial, se alguém é ferido ou morto a culpa é da polícia. A isenção, nesses casos, deve prevalecer. Por último, também há de se prever punições sérias para agentes da lei que se corromperem, e lamentavelmente, sabemos que existem, dificultando o trabalho e beneficiando traficantes. Com vontade política, não é difícil que possamos, ao menos, reduzir a criminalidade, não só no nosso estado, mas em todo o País.

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Invista em Itaboraí

A capital dos bons negócios. Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará a 1 milhão de habitantes nesse período. Esses empreendimentos estão atraindo empresas de diversos segmentos, pois hoje com a nova administração municipal, Itaboraí mostra um cenário de progresso e de modernização da cidade. Seu território faz divisa com Tanguá e Maricá, municípios que serão beneficiados pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via de escoamento que integrará uma importante região do estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o desenvolvimento integrado de toda essa região.

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Itaboraí

Conheça Itaboraí, a cidade que será a segunda capital do estado e o melhor lugar para sua empresa.

www.itaborai.rj.gov.br

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Direito de ir e vir ameaçado

Otávio Vieira da Cunha Filho

Presidente-executivo da NTU

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Foto: Arquivo NTU

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anifestações populares têm ocorrido no País por diversos motivos, o que reforça o entendimento do quanto esse direito é legítimo. Mas há outro lado nessa questão que contraria a legalidade e o direito constitucional de ir e vir com segurança. É o caso dos atos de vandalismo que vêm atormentado o país e colocaram em xeque a capacidade de nossa polícia de conter esse tipo de violência. A verdade é que motoristas, trabalhadores, passageiros e empresários do setor de transporte público urbano por ônibus convivem com a insegurança. Episódios ocorridos neste ano, como o de São Luís/MA, com a morte da pequena Ana Clara Santos Sousa, após a queima do coletivo em que ela estava, ou em Osasco/SP, quando funcionários foram rendidos e 34 ônibus foram incendiados em uma garagem, fazem-nos pensar até que ponto tudo isso vai chegar. E mais: Por que tanta demora em aprovar uma legislação para conter esse tipo de violência? Desde 2004 a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) tem acompanhando o aumento do número de incêndios no transporte coletivo urbano, em pelo menos 68 cidades brasileiras. Só neste ano já foram 472 casos de veículos incendiados, o equivalente a quase metade dos registros no decorrer de dez anos, que são 1.010, segundo levantamento da NTU. Esse número seria ainda maior se contabilizássemos as depredações nesse patrimônio. Na contramão do que deveria ser um direito, aqueles que destroem bens públicos acabam por inverter a lógica dos fatos e gerar mais custos para o Estado e, consequentemente, para os próprios cidadãos. Isso gera um saldo perverso, que todos, de um jeito ou de outro,

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Nota da redação

“Desde 2004 a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos tem acompanhando o aumento do número de incêndios no transporte coletivo urbano, em pelo menos 68 cidades brasileiras. Só neste ano já foram 472 casos de veículos incendiados, o equivalente a quase metade dos registros no decorrer de dez anos, que são 1.010, segundo levantamento da NTU. Esse número seria ainda maior se contabilizássemos as depredações nesse patrimônio”

absorvem, seja pelo sentimento de insegurança, seja pela ignorância dos reais direitos da população, seja pelos prejuízos a um serviço público essencial à sociedade. O preço moral e material dessas atitudes desmedidas alerta para que medidas urgentes sejam tomadas, no sentido de se controlarem e se evitarem atos violentos. Nesse aspecto, cabe-nos evocar ao poder público ações mais eficazes para inibir o vandalismo, em favor da preservação da ordem e do bem de uso público. Até porque o custo médio estimado para repor um ônibus pode variar de R$ 300 mil a R$ 1 milhão. Esse preço, arcado unicamente pelos empresários, fica em segundo plano se comparado ao valor da vida. Quanto vale a vida de Ana Clara? Ainda nos cabe alertar que um ônibus depredado representa muito menos diante da enorme proporção que a falta de segurança pode assumir quando direcionada a inviabilizar a operação de um serviço essencial ao cidadão e também aos turistas que visitam as cidades brasileiras. A conta que fica para o empresário, hoje, não é só a do prejuízo material, mas também o ônus de transportar o cidadão em segurança, sem nenhum instrumento legal que ampare essa viagem de risco, quando se é alvo indiscriminado da insanidade de vândalos.

Diante do relevante tema tratado pelo representante da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), a redação não poderia deixar de destacar o importante precedente aberto pela 16a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), em decisão do último dia 15 de julho, proferida na Apelação Cível no 0026023-39.2004.8.19.0001. A ação foi movida pela Rio D’Ouro Transportes Coletivos Ltda. contra o governo do estado do Rio, para requerer reparação material em virtude do incêndio de um dos coletivos dela, em 30 de setembro de 2002, no evento conhecido como Dia do Medo. Naquele dia, marginais incendiaram diversos ônibus na cidade. A concessionária alegou, na ação, que “o Estado se omitiu em seu dever de prestar serviço de segurança pública, eis que previamente cientificado do evento criminoso, nada fez para evitar os danos causados”. O relator do processo, Mauro Dickstein, acolheu o pedido da empresa. “Se o Estado, por meio de suas forças de segurança (Polícias Civil e Militar), tinha o dever de impedir ou envidar esforços para minimizar o evento danoso, e não o fez, autorizada está a aplicação da teoria da responsabilidade subjetiva, impondo-se-lhe a obrigação de indenizar, porque, mesmo não sendo o autor do dano, tinha a injunção legal e institucional de evitá-lo”, afirmou o magistrado no voto, que foi seguido pela unanimidade dos demais integrantes da Câmara. O desembargador explicou que a hipótese sob exame não era de omissão genérica, mas de omissão específica em razão da “grave omissão no cumprimento do dever de prestar segurança pública, em proteção da incolumidade do patrimônio e das pessoas dos administrados, bem como dos concessionários, parceiros da administração pública na execução de serviços essenciais”. Dickstein destacou também que a ação não tinha o objetivo de cobrar do Executivo ações para “evitar toda e qualquer ação criminosa, mas apenas aquela que fora anunciada e comunicada previamente às autoridades de segurança do Estado, as quais, diante da ciência de tão grave ameaça à ordem pública, tinham efetivamente o dever indeclinável de planejar e executar operação preventiva eficiente”. Com base nesses fundamentos, o desembargador conheceu e deu provimento ao recurso para condenar o Estado a pagar indenização material no valor do ônibus incendiado, assim como lucros cessantes. “O dever de indenizar, pois, se constitui em virtude da previsibilidade do evento grave e da inobservância das providências preventivas exigidas pelas circunstâncias”, argumentou Dickstein na decisão.

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Diálogo entre os Tribunais Superiores brasileiros e a Suprema Corte americana Da Redação

Projeto da Harvard Law School Association of Brazil e do Instituto Justiça & Cidadania traz ao País o secretário-geral da Suprema Corte dos EUA

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ntre os dias 18 e 22 de agosto, o secretário-geral da Suprema Corte Americana, Scott Harris, visitou o País para participar de eventos acadêmicos e visitas institucionais aos Tribunais Superiores brasileiros. A visita foi idealizada pela Harvard Law School Association of Brazil (HLSAB) e pelo Instituto Justiça & Cidadania, com o apoio das Escolas de Direito da FGV e do escritório de advocacia Gonçalves Coelho, com a finalidade de aproximar o Poder Judiciário do Brasil e dos EUA. O próximo passo do projeto conjunto do Instituto e da HLSAB é levar magistrados brasileiros a Washington e Boston para participarem de intercâmbio em 2015. Scott Harris veio ao País acompanhado de Peter Messitte, juiz federal 50

americano e grande conhecedor da cultura jurídica brasileira. A agenda começou em São Paulo, passou por Brasília e terminou no Rio de Janeiro. No dia 18, foi realizado na FGV Direito SP o evento “Desafios Supremos: Diálogo entre o STF e a Suprema Corte Americana”, que reuniu 300 participantes, entre juízes e advogados, para um seminário acadêmico com Harris e Messitte. O evento contou com a participação do diretor da FGV Direito SP, Professor Oscar Vilhena, do representante da área internacional da presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), Wilson Levy, diretor da Secretaria da Presidência do TJSP, e do presidente da Harvard Law School Association of Brazil, o advogado Max Fontes.

Na abertura do evento, Fontes registrou a importância da iniciativa no atual contexto jurídico do País, em que o STF busca reduzir seu acervo processual e encontrar soluções administrativas para tornar mais eficiente o funcionamento da Súmula Vinculante e da Repercussão Geral – institutos jurídicos originados no Direito americano e que foram introduzidos no Brasil pela Emenda Constitucional 45/04. Na ocasião, Scott Harris registrou que, apesar do grande número de litígios nos EUA, apenas 8 mil recursos são protocolizados na Suprema Corte por ano e somente 1% desse total é admitido. Segundo ele, a mais alta corte americana não é vista como uma terceira instância recursal, pois, ao longo de mais de um século, criou maneiras de desestimular os recursos. Justiça & Cidadania | Setembro 2014


Foto: STF

Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Scott Harris, secretário-geral da Suprema Corte americana, em visita ao Supremo Tribunal Federal. Da esq. para a dir.: Antonio Augusto Coelho, Sérgio Savi, Max Fontes, desembargadora federal Maria Cristina Mattioli, juiz norte-americano Peter Messitte, ministro Ricardo Lewandowski, Scott Harris, Tiago Salles e Marcus Fontes

Durante o debate, o juiz Messitte ressaltou que a “revisão discricionária” pelos Tribunais Superiores deveria ser implantada de forma mais abrangente no Brasil, esclarecendo que, para chegar à Suprema Corte dos EUA, as causas devem apresentar “relevante questão constitucional”. O evento em São Paulo encerrou-se com a participação do professor Oscar Vilhena, que sintetizou que o desafio do Judiciário brasileiro envolve problemas de “engenharia institucional” e de “cultura legal”. Nos dias 20 e 21, o secretário-geral da Suprema Corte dos EUA foi ao Distrito Federal, onde fez visitas institucionais aos presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Tribunal

Superior do Trabalho (TST), acompanhado de comitiva formada pela direção da Harvard Law Association of Brazil e do Instituto Justiça & Cidadania, presidida por Tiago Salles. Na visita ao STF, o ministro Ricardo Lewandowski, presidente daquela Corte, falou sobre o funcionamento e a demanda do Tribunal. Em 2013, o Supremo recebeu mais de 70 mil novos processos. Desses, um pouco mais de 54 mil foram distribuídos, em uma média de quase 5 mil casos para apreciação de cada um dos 11 ministros que compõem o Supremo. Na visita, os norte-americanos também tomaram conhecimento acerca do total de ações em curso em todo o Poder Judiciário brasileiro: cerca de 100 milhões segundo o Relatório Justiça em Números, produzido pelo

“Apesar do grande número de litígios nos EUA, apenas 8 mil recursos são protocolizados na Suprema Corte por ano e somente 1% desse total é admitido [...] a mais alta corte americana não é vista como uma terceira instância recursal, pois, ao longo de mais de um século, criou maneiras de desestimular os recursos”

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Foto: STF

No STJ Scott Harris foi recepcionado pelo presidente da Corte, ministro Felix Fischer (ambos ao centro). Participaram da visita os advogados Antonio Augusto, Max Fontes, Marcus Fontes e Sérgio Savi, o presidente do IJC e editor-executivo da Revista Justiça & Cidadania, Tiago Salles, e o juiz norte-americano Peter Messitte

Foto: Carlos Humberto/ASICS/TSE

Scott Harris e os membros da comissão da HLSAB (Max Fontes, Marcus Fontes, Sérgio Savi) se encontraram também com o presidente do TSE, ministro Dias Toffoli (ao centro)

Foto: FGV

Almoço na FGV Direito Rio. Da esq. para dir.: Joaquim Falcão, diretor da FGV; Luís Roberto Barroso, ministro do STF; Scott Harris, secretário-geral da Suprema Corte americana; e o presidente da HLSAB, Max Fontes 52

Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Scott Harris mostrou-se impressionado com o volume de casos em tramitação. No STF, a comitiva também esteve com os ministros Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, que cumprimentaram os visitantes americanos. No TSE, Scott Harris foi recebido pelo presidente, ministro Dias Toffoli, que apresentou detalhes do processo eleitoral brasileiro. Durante o encontro, o Tribunal convidou o secretário a realizar uma simulação de voto na nova urna eletrônica, que será adotada nas próximas eleições presidenciais, com identificação biométrica dos eleitores. A visita ao TST contou com a participação do presidente da Corte, ministro Barros Levenhagen, e da desembargadora federal do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas (TRT-15a Região), Maria Cristina Mattioli, também diretora da HLSAB, que esclareceram sobre a estrutura e o funcionamento da Justiça Trabalhista brasileira. No STJ, a comitiva foi recepcionada pelo presidente do Tribunal, Ministro Félix Fischer, e também pelo ministro Luis Felipe Salomão, que aproveitou para presentear os norte-americanos com o seu novo livro sobre “Direito Privado – Teoria e Prática”. No dia 22, foi realizado no Rio de Janeiro um almoço-palestra com o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, o diretor da FGV Direito Rio, professor Joaquim Falcão, e diversos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). No evento de encerramento, Scott Harris explicou detalhes sobre os procedimentos de deliberação, a organização interna da Suprema Corte, assim como o calendário e a forma de interlocução do Tribunal com os advogados. Segundo o secretário-geral, as ações postas em julgamento pelo Tribunal são selecionadas Justiça & Cidadania | Setembro 2014


“As ações postas em julgamento pelo Tribunal (Suprema Corte americana) são selecionadas principalmente em razão da relevância do tema que apresentam [...] a negativa da Corte em analisar o caso não significa um precedente”

Principais diferenças entre o STF e a Suprema Corte americana Membros julgadores:

11

9

Processos recebidos/ano:

principalmente em razão da relevância do tema que apresentam. Harris explicou que a negativa da Corte em analisar o caso não significa um precedente. “A ação pode voltar para as instâncias inferiores”, afirmou. Scott Harris explicou também que os processos têm a data de julgamento marcada logo após serem selecionados. Dificilmente a Corte deixa de cumprir o cronograma que estabeleceu para si, mas, se necessário, o atraso na apreciação das causas ocorre por “questões de semanas apenas”. Ele destacou ainda que os julgamentos não são públicos, como no Brasil. “Geralmente a votação entre os ministros é privada. E essa decisão tem efeito vinculante, ou seja, vale para todas as instâncias inferiores”, disse. Luís Roberto Barroso registrou a importância do encontro e falou sobre o STF. “O plenário do Supremo está completamente congestionado”, destacou o ministro. Na ocasião, o ministro compartilhou algumas ideias para reduzir o enorme acervo processual da Corte Suprema brasileira e tornar mais célere o julgamento das teses de Repercussão Geral, que hoje estão a sobrestar milhares de processos nos tribunais inferiores. Segundo o ministro, atualmente há 320 processos com Repercussão Geral declarada aguardando julgamento. Uma solução sugerida por Barroso para resolver a questão é diminuir o número de processos com repercussão reconhecida até a conclusão do estoque atualmente à espera de uma decisão. Após conhecer a estrutura do Judiciário brasileiro, sobretudo do STF, Scott Harris definiu como única a experiência que teve. “Para mim, ter tido a oportunidade de ouvir sobre o funcionamento do Judiciário brasileiro e poder compará-lo ao nosso sistema foi um processo muito instrutivo”, destacou.

70,3 mil

8 mil

Processos julgados/ano:

86,1 mil

80

Sessões de julgamento:

Públicas e televisionadas

Secretas

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Marco Legal para a mediação pretende combater a morosidade na Justiça Carlos Araujo

Advogado e Diretor do Instituto Innovare

O

s meios alternativos de solução de conflitos, entre eles a mediação, caracterizam-se como importantes instrumentos para a solução dos litígios entre pessoas. Nesse sentido, podem ser considerados ferramentas válidas para a obtenção do acesso das pessoas à justiça, notadamente de forma célere e eficaz, direito básico que precisa ser garantido a todos os cidadãos em um estado democrático de direito, como o nosso. Histórico da Institucionalização da Mediação no Brasil A primeira iniciativa de normatizar a mediação no contexto jurídico nacional data de 1998 por meio de um Projeto de Lei (PL) de autoria da então Deputada Federal Zulaiê Cobra. Esse projeto recebeu o no 4.827/1998 e pretendeu dar regulamentação concisa e que estabelecesse a definição de mediação, dispondo, para tanto, no corpo do projeto, distintas disposições a respeito da matéria. Um dos principais pontos de atenção do então PL no 4.827/1998 foi a institucionalização de um procedimento não obrigatório, que poderia ser instaurado antes ou no curso do processo judicial desde que a matéria versada admitisse conciliação, reconciliação, transação ou acordo de outra ordem. Em 2001, o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP) apresentou anteprojeto de lei sobre a mediação no processo cível e outros meios de pacificação. O trabalho tinha a assinatura de juristas de lavra de Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, Fátima Nancy Andrighi, Sidnei Beneti e Arruda Alvim, entre outros. 54

O texto do IBDP foi apresentado ao governo federal e, diante da existência do projeto de lei da Deputada Zulaiê Cobra já aprovado na Câmara, o Ministério da Justiça realizou audiência pública em que reuniu, em um só fórum de debate, a Deputada Zulaiê, o IBDP e as demais organizações da sociedade brasileira envolvidas à época com o tema da mediação. Desse debate foi elaborado um texto de consenso encaminhado ao Congresso, em que foi cadastrado como PL no 94/2002. Com o advento da Emenda Constitucional (EC) no 45, de 8 de dezembro de 2004 (conhecida como Reforma do Judiciário), e o chamado Pacote Republicano, o Governo apresentou diversos projetos de lei que modificavam o Código de Processo Civil, o que levou a um novo relatório do PL no 94/2002. Mediação no Código de Processo Civil Em 2009 foi convocada Comissão de Juristas sob a presidência do Ministro Luiz Fux, com o objetivo de apresentar o texto do chamado novo Código de Processo Civil, texto cuja redação foi aprovada pelo Congresso. Pode-se identificar no texto do novel Código de Processo Civil a preocupação com os institutos da conciliação e da mediação. Mediação e Conciliação no Brasil – Legislação Brasileira Existem, na legislação brasileira, menções pontuais à palavra Mediação como método de resolução de conflitos presentes em leis esparsas, revestindo-se em uma

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Foto: Francisco Teixeira

tentativa de implementá-la em situações específicas. A Lei no 9.870/1999, por exemplo, prevê, no seu texto, a diferenciação entre arbitragem e conciliação e a possibilidade da utilização da mediação em casos de conflitos entre pais ou associação de pais e alunos e escolas decorrentes do reajuste de mensalidades escolares. Não obstante ainda não ter se convertido em legislação específica, a mediação já é executada no Brasil inclusive em esferas judiciais na medida em que se expresse na livre manifestação de vontade das partes, sendo validada em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ainda do Ministério da Justiça. As experiências de alguns tribunais, especialmente após a Resolução no 125 do CNJ, bem como na administração pública, são salutares. A Escola Nacional de Mediação e Conciliação (Enam), a meu sentir, é uma consolidada iniciativa de sucesso. Mediação e Conciliação – Pontos de Diferenciação A distinção entre Mediação e Conciliação, no entanto, é tarefa que se impõe. Pode-se, à guisa de debate e sem a pretensão de esgotar-se o tema, ou mesmo abrangê-lo em todos os seus aspectos, tentar estabelecer ao menos três critérios fundamentais de diferenciação: Quanto à finalidade: A mediação visa resolver, da forma mais abrangente possível, o conflito entre os envolvidos. Já a conciliação propõe-se a resolver o litígio conforme as posições apresentadas pelos envolvidos. Quanto ao método: Atualmente o conciliador assume posição mais participativa, podendo sugerir às partes os

“Não obstante ainda não ter se convertido em legislação específica, a mediação já é executada no Brasil inclusive em esferas judiciais na medida em que se expresse na livre manifestação de vontade das partes, sendo validada em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ainda do Ministério da Justiça”

termos em que o acordo pode ser realizado, dialogando abertamente a esse respeito, ao passo que o mediador deve abster-se de tomar qualquer iniciativa de proposição, cabendo a ele apenas assistir as partes e facilitar a sua comunicação, para favorecer a obtenção de um acordo que atenda a todos. Quanto aos vínculos: A conciliação é atividade inerente ao Poder Judiciário, sendo realizada por juiz togado, por juiz leigo ou por alguém que exerça a função específica de conciliador. Por outro lado, a mediação é atividade privada, livre de qualquer vínculo, não fazendo parte da estrutura de qualquer dos Poderes Públicos. Mesmo a mediação para-processual mantém a característica privada, estabelecendo apenas que o mediador tem de se registrar no tribunal para o fim de ser indicado para atuar nos conflitos levados à Justiça. Movido por interesse profissional e curiosidade acadêmica sobre o tema Mediação como instrumento de composição de conflitos, arrisco-me a discorrer aqui um pouco mais detidamente sobre esse instituto do nosso direito: Atualmente, três são os elementos básicos para que possa haver um processo de mediação: (i) a existência de partes em conflito; (ii) uma clara contraposição de interesses; e (iii) um terceiro neutro capacitado a facilitar a busca pelo acordo. Via de regra, a mediação é um procedimento extrajudicial que se dá antes da procura pela adjudicação. Contudo, nada impede que as partes, já tendo iniciado a etapa jurisdicional, resolvam retroceder em suas posições e tentar, uma vez mais, a via conciliatória.

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Pode-se classificar a postura do mediador, no exercício do procedimento, como ativo ou passivo. Na mediação passiva, o terceiro apenas ouve as partes, agindo como um facilitador do processo de obtenção de uma solução consensual para o conflito, sem apresentar o seu ponto de vista, possíveis soluções ou propostas concretas às partes. Já no caso da mediação ativa, o mediador funcionará como uma espécie de conciliador; ele não se limita a facilitar; ele também tem a função de apresentar propostas, soluções alternativas e criativas para o problema, alertar as partes litigantes sobre a razoabilidade ou não de determinada proposta, influenciando, assim, o acordo a ser obtido. Enxergo a mediação como uma tarefa complexa e que, como tantas outras, requer dedicação e preparação adequada. É um trabalho artesanal, específico e distinto em cada situação. A mediação requer análise aprofundada das questões sob os mais diversos ângulos e sobre os quais o profissional encarregado da mediação precisa inserir-se integralmente no contexto do conflito. A mediação é, via de regra, um processo laboral complexo e demorado que pode contar, ou não, na sua consecução, com a participação de comediadores, podendo as partes, a seu critério e arbítrio, estarem assistidas de seus advogados. Nesse procedimento específico, todos os participantes devem estar concordes quanto ao procedimento utilizado e a maneira como as questões são postas a exame. Entendo que o grande mérito da mediação, mais que nos procedimentos de equilíbrio e solução de conflitos, como a conciliação e a arbitragem (com sua legislação e características específicas), é a análise do conflito entre duas pessoas físicas e a natureza do relacionamento entre elas, pois tende a ser de pouca efetividade a decisão de um magistrado ou a decisão de um árbitro em uma relação continuativa, sem que o conflito tenha sido adequadamente trabalhado. É aí, acredito, que a mediação, com suas diversificadas facetas de atuação, aprimoradas técnicas de convencimento e profissionais adequadamente treinados, busca evitar que uma situação mediada volte a se manifestar de forma contundente entre as partes. Marco Legal A nenhum operador de direito é dado desconhecer que nosso Judiciário, em todas as instâncias sem exceção, ao tempo em que se vê confrontado com questões de alta complexidade, também se encontra hoje em dia rotineiramente assoberbado de volumosas demandas que abarrotam os tribunais, decorrentes de número insano de ações ajuizadas pelas mais diversas causas de pedir. Os dados são contundentes e escancaram nossa realidade. Segundo o CNJ, existem hoje computados no Brasil mais de noventa milhões de processos judiciais, ou a média desconcertante de quase um processo para cada 56

dois brasileiros, que, via de regra, costumam demorar, em média, dez anos para serem concluídos! Muitos dessas contendas poderiam, imagino, ter sido resolvidas sem que sequer houvesse a necessidade de apreciação do Judiciário. Os métodos de negociação, conciliação e mediação podem-nos socorrer nessa diuturna tarefa de desobstruir o Judiciário, mas, ainda assim, a inexistência de um marco regulatório atrasa e dificulta a disseminação de tais técnicas e, em última instância, dessa tarefa vital. Nesse sentido, a criação de uma Comissão de Especialistas no âmbito da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, com o fito específico de construir um texto de consenso do chamado marco legal de mediação, a qual tive a imerecida honra de integrar por convite do então Secretário da Reforma do Judiciário, Dr. Flavio Caetano, pareceu-me marco importante para o estabelecimento de premissas e sugestão da redação de um texto enxuto e competente sobre o tema e que deu origem ao projeto de lei apresentado pelo Executivo à apreciação do Congresso Nacional. Sob a presidência do Secretário de Reforma do Judiciário e a competente coordenação e inspiração dos ministros Nancy Andrighi e Marco Aurélio Buzzi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e do Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e, à época, Conselheiro do CNJ José Roberto Neves Amorim, a Comissão Especial se estruturou em três distintas frentes de atuação: (i) mediação judicial; (ii) mediação extrajudicial; e (iii) aspectos gerais de mediação. O esforço da Comissão, composta de renomados e competentes juristas, ao elaborar o texto do projeto, foi buscar institucionalizar a mediação judicial e extrajudicial como instrumentos consensuais de realização da justiça. O material produzido pela Comissão e que tratou do marco legal da mediação foi enviado ao Congresso Nacional. Em complementação a esse envolvimento legislativo e à mobilização institucional que se seguiu, a CasaCivil da Presidência da República formou grupo de trabalho para discutir a temática do projeto de lei sobre mediação proposto pela Comissão de Especialista, bem como também outras iniciativas legislativas paralelas. Foram condensadas diversas iniciativas legislativas que versavam sobre mediação em um único texto consolidando, inclusive, o mais importante de todos, que foi o qualificado trabalho desenvolvido pela Comissão de Juristas criada pelo Senado Federal e presidida pelo Ministro do STJ Luis Felipe Salomão, um dos mais respeitados magistrados brasileiros. Em abril de 2014 houve audiência pública na Câmara dos Deputados para debater o Projeto de Mediação, denominado PL no 7.169, que se encontra em exame no Con-

Justiça & Cidadania | Setembro 2014


gresso, no aguardo da discussão e votação da matéria pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, onde deve tramitar em conjunto com a revisão da Lei de Arbitragem. Em paralelo, em julho de 2014, foi lançado pelo Ministério da Justiça, também por meio da Secretaria de Reforma do Judiciário, a chamada Estratégia Nacional de Não Judicialização (Enajud), que pretende reunir instituições do setor público e do privado para se evitar que cheguem ao Poder Judiciário conflitos que poderiam ser resolvidos por meios alternativos. Para tanto, serão firmados acordos de cooperação com instituições financeiras e telefônicas para o desenvolvimento de estratégias conjuntas. Registrem-se dados da própria Secretaria de Reforma do Judiciário: atualmente, espantosos 95% das demandas judiciais envolvem o setor público, os bancos e as empresas de telecomunicações. A Enajud será integrada pelo Ministério da Justiça, pela Advocacia-Geral da União e pelo Ministério da Previdência Social e contará com a colaboração do CNJ, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e de instituições do Sistema de Justiça e instituições privadas. Iniciativas como essas do marco legal da mediação e da Enajud e outras já consolidadas, como a da Escola Nacional de Mediação e Conciliação ou mesmo ainda práticas oriundas de inciativas privadas e de atuação específica, como a bela prática da advocacia colaborativa, vencedora no ano de 2013 do Prêmio Innovare na Categoria Advocacia, são caminhos que se abrem e apontam a expectativa de uma melhor distribuição de justiça sem a necessidade de que a morosa máquina do Judiciário seja acionada. Tenho firmeza de convicção de que justiça atualmente se faz lenta, muito mais em razão do volume descomunal de ações diariamente ajuizadas à sua apreciação, do que propriamente pela atuação de seus integrantes. Por isso, defendo que práticas de mediação e conciliação são, claro, não a solução ou a panaceia de todos os problemas, mas certamente um belo início de caminho em busca de melhor e mais célere distribuição da Justiça. Somos impelidos agora a decidir se avançaremos na direção de uma nação desenvolvida na qual as pessoas têm livre e fácil acesso à Justiça para fazer valer os próprios direitos, naquele “empoderamento jurídico” de que nos fala o Professor e Ministro do STF Luiz Roberto Barroso, ou se deixaremos que boas oportunidades de transformação sejam desperdiçadas. Tal definição aplica-se ao sistema de justiça, obrigando-nos a decidir se trilharemos o caminho de um Judiciário de fácil acesso, célere, inovador e moderno ou se marcharemos intermitentemente no mesmo lugar, sem avanços e benefícios a oferecer àqueles que buscam na lei e na Justiça a solução de seus conflitos. 2014 Setembro | Justiça & Cidadania 57


P rateleira, Giselle Souza

Direitos invioláveis Presidente da OAB/SP, Marcos da Costa, indica as três obras que mais o marcaram. Livros expõem injustiças nos casos em que não há ampla defesa e destacam a importância dos criminalistas

Foto: Divulgação OAB SP

O

s livros mais inspiradores para Marcos da Costa, presidente da Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/ SP), expõem com clareza quase solar as injustiças de um mundo em que os direitos fundamentais não são observados. À convite da coluna, ele apontou as três obras literárias que mais contribuíram para sua formação pessoal e profissional. Na lista, consta nada menos que Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos. “Foi uma obra marcante para a minha vida acadêmica”, relata o advogado. E não foi sem motivos que o livro o marcou. A obra apresenta relato fidedigno de um período importante da história do Brasil. Preso durante o Estado Novo, no governo de Getúlio Vargas, e acusado de ligação com o Partido Comunista, Graciliano ficou na cadeia por quase um ano sem nunca ter sido processado. O escritor construiu obra exemplar, na qual faz um relato sobre sofrimento ao qual fora submetido. “O governo de exceção, que viola o direito de defesa e o devido processo legal, me causou indignação como jovem bacharel em Direito e deixou em evidência a importância do papel do advogado na defesa dos cidadãos que são perseguidos políticos”, afirma Costa. O presidente da OAB/SP conta que, devido à prisão, Graciliano Ramos foi demitido do cargo de diretor da Instrução Pública. Apesar da injustiça, o escritor não se ateve apenas a contar a história dele nas obras, mas também a de muitas outras pessoas que, como ele, 58

foram presas arbitrariamente no Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, Rio de Janeiro – cadeia preferida pelos regimes autoritários e pela ditadura militar. Na mesma linha, Costa destaca a obra Julgamento de Nuremberg, do jornalista alemão Joe J. Heydecker. O livro detalha o dia a dia do julgamento dos 24 principais criminosos da Segunda Guerra Mundial, que começou em 20 de novembro de 1945, três meses após o fim do conflito, até 1o de outubro de 1946. O julgamento terminou com mais de 240 depoimentos coletados e a decretação de três prisões perpétuas, 12 condenações à morte e 17 condenações à prisão por período de até 20 anos. “Foi um dos maiores julgamentos da história, que marcou o Direito Internacional e a humanidade. Embora o que estivesse em julgamento fossem os crimes de guerra e contra à humanidade e à paz, o direito de defesa foi garantido a todos os acusados”, ressalta. A terceira obra indicada pelo advogado é A Defesa Tem a Palavra, de Evandro Lins e Silva, um dos mais importantes advogados do Brasil. Costa lembra que o julgamento de Doca Street pela morte de Angela Diniz, com vários tiros, parou o País. O argumento utilizado pela defesa na época fora legítima defesa. “Considero essa obra fundamental para os estudantes de Direito e profissionais da área, pois expõe de forma clara o difícil ofício do criminalista, principalmente em casos rumorosos, que chamam a atenção da opinião pública. A obra ressalta o direito constitucional de defesa que todos possuem, independentemente do delito pelo qual estão sendo acusados, e expõe a importância do Tribunal do Júri”, afirma. Leituras imperdíveis.

Justiça & Cidadania | Setembro 2014


Prateleira indica Duas importantes obras para os operadores do Direito já estão disponíveis nas livrarias. Uma delas é Direito Privado – Teoria e Prática, do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão. A outra é A Reforma Política e seus Temas no Contexto Brasileiro, do desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) Doorgal Andrada. Saiba mais sobre essas obras: Direito Privado – Teoria e Prática Luis Felipe Salomão Editora Forense Os textos reunidos neste livro refletem a experiência do autor em mais de 20 anos de judicatura no campo do Direito Privado, atuando nas diversas áreas do mundo jurídico, desde juiz substituto até ministro do STJ. A ideia foi estabelecer, nos temas enfocados, a base teórica dos principais conceitos e também roteiro prático dos pontos controvertidos, tendo como guia a jurisprudência atual da Corte Superior. Na parte introdutória, buscou-se traçar a linha evolutiva do Direito Privado e sua interpretação jurisprudencial. Foram assinalados aspectos em torno da gestão judicial e da técnica específica para o recurso especial. A obra também fornece visão sobre os juizados especiais e sobre a formação dos juízes.

A Reforma Política e seus Temas no Contexto Brasileiro Doorgal Andrada Editora Del Rey A publicação em forma de manual vem prefaciada pelo professor e mestre em direito e ex-governador de Minas Gerais, Antônio Anastasia, e discorre sobre temas legais muito polêmicos e atuais, entre eles plebiscito, cláusula de barreiras, financiamento de campanhas, lei da ficha limpa, voto distrital, pesquisa eleitoral, voto facultativo, recall, reeleição, parlamentarismo, recesso parlamentar, voto de legenda, suplente de senador, além de vários outros. O autor é desembargador do TJMG. Ele foi ouvidor dessa corte, membro do Ministério Público de Minas Gerais, professor universitário diretor fiscal da Rede Latino-Americana de Juízes e autor de vários livros com temas jurídicos.

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D om Quixote, Giselle Souza

Direitos Humanos em debate

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atrícia Acioli era titular da Quarta Vara de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro. Era responsável por julgar ações contra o crime organizado e reconhecida pelas penas duras que aplicava aos traficantes de drogas e aos policiais corruptos. Um dia, após deixar, no fim do expediente, o fórum onde trabalhava, sofreu uma emboscada. Dois homens, réus em um processo sob sua apreciação, estavam à sua espreita. E assim ela acabou assassinada com 16 tiros na porta da própria casa. O crime ocorreu no dia 11 de agosto de 2011 e até hoje comove o Brasil. Poderia ter sido mais um número para as estatísticas da criminalidade se não fosse a iniciativa da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj) de criar o Prêmio Patrícia Acioli de Direitos Humanos. Mais que uma homenagem, a iniciativa é também uma forma de fomentar na sociedade a necessidade de se discutirem meios para se assegurarem os direitos fundamentais. O Prêmio Patrícia Acioli de Direitos Humanos acaba de entrar na terceira edição. O lançamento ocorreu no último dia 11 de agosto, em cerimônia com diversas autoridades, realizada no auditório da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj). O tema escolhido para este ano foi Educação e Direitos Humanos: a Pessoa em Primeiro Lugar. 60

Foto: Luis Henrique

Prêmio Patrícia Acioli, promovido pela Amaerj, entra na terceira edição. Presidente da associação, Rossidélio Lopes da Fonte, diz que premiação se consolidou como uma das mais importantes do País

Rossidélio Lopes: ‘Prêmio Patrícia Acioli se consolida a cada ano’

Os interessados têm até o dia 8 de outubro para se inscrever. Poderão concorrer pessoas de todo o País nas categorias Trabalhos Acadêmicos e Práticas Humanísticas. Os prêmios são de R$ 15 mil, R$ 10 mil e R$ 5 mil, respectivamente, para o primeiro, o segundo e o terceiro colocado. Estudantes das escolas municipais do Rio de Janeiro também poderão participar na categoria Redações do Ensino Fundamental. O tema desta edição é Brasil, Cidadania e Direitos Humanos. Os estudantes ganhadores receberão um tablet. Segundo o presidente da Amaerj, Rossidélio Lopes da Fonte, os vencedores também receberão um troféu estilizado com a imagem da juíza, criado especialmente para essa edição. A entrega dos prêmios ocorrerá na solenidade prevista para o dia 17 de novembro, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Para o magistrado, a premiação se consolida a cada ano, “ tamanha a procura e o interesse da sociedade”. Confira a íntegra da entrevista:

Justiça & Cidadania | Setembro 2014


Foto: Luis Henrique

Vencedores da 3a edição receberão um troféu estilizado com a imagem da juíza homenageada

Revista Justiça & Cidadania – Qual é a importância do Prêmio? Rossidélio Lopes – O Prêmio Patrícia Acioli de Direitos Humanos é uma resposta da magistratura do Rio de Janeiro ao que aconteceu com a colega Patrícia. Os juízes perceberam que ninguém está imune à violação de Direitos Humanos e, por isso, querem discutir essa situação com a sociedade. Eu entendo o Prêmio como um mergulho na sociedade ao procurar trabalhos acadêmicos e práticas que levam em consideração os Direitos Humanos. Queremos aprofundar essa discussão, que é tão importante para a sociedade brasileira. Qual é a expectativa em torno dessa terceira edição? – Acredito que o Prêmio está consolidado como um dos maiores de Direitos Humanos em nível nacional, tamanha a procura e o interesse da sociedade. Nesse terceiro ano, estamos incrementando o Prêmio com um Troféu. Esperamos participação recorde. O que a entidade espera dos trabalhos a serem inscritos? – Nesse ano, especificamente, estipulamos como tema de referência a educação voltada para os Direitos Humanos e a pessoa em primeiro lugar. Estaremos analisando os trabalhos voltados para a educação e relação deles com os Direitos Humanos.

Como o senhor avalia a aplicação dos Direitos Humanos hoje no Brasil? – Entendo que o mais importante é reconhecer os Direitos Humanos com uma característica de individualidade. Os Direitos Humanos não pertencem a um grupo político, mas às pessoas. Ao nascer, as pessoas têm direito à educação, à saúde e à segurança. Portanto, nossa perspectiva é aprofundar essa discussão com toda sociedade, para que a questão dos Direitos Humanos não fique relegada a um segundo plano. Então, a importância é individualizar os Direitos Humanos: tanto para a pessoa que sofre uma agressão dentro de uma penitenciária como para o policial que, fardado e trabalhando, recebe um tiro. Serviço: Tema: Educação e Direitos Humanos: a Pessoa em Primeiro Lugar Quem pode participar: Interessados de todo o País e estudantes das escolas municipais do Rio de Janeiro Inscrições: Até 8 de outubro Cerimônia de entrega do Prêmio: 17 de novembro, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro

2014 Setembro | Justiça & Cidadania 61


E m foco, Giselle Souza

Audiências com hora marcada Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que estabelece regras para a visita de advogados aos gabinetes de juízes para tratar de processos. Mas tantos os causídicos como os magistrados ouvidos são contrários à regulamentação

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requentemente causa de conflitos entre advogados e magistrados, as audiências entre os membros das duas classes para tratar de processos em julgamento poderá ser regulada em lei. Tramita na Câmara dos Deputados uma proposta legislativa que visa a introduzir no Código de Processo Civil regras para o encontro, que hoje independe de agendamento para ocorrer. Apesar de pretender “regras mais claras” às visitas, representantes da advocacia e da magistratura não acreditam na eficácia da iniciativa. Eles temem que a medida acabe por burocratizar o contato entre os causídicos e os juízes. As regras para as audiências entre advogados e magistrados foram propostas no Projeto de Lei no 6.732/2013, apresentado pelo deputado Camilo Cola (PMDB/ES). A proposição visa à alteração do artigo 40 do Código de Processo Civil, assim como do inciso VIII e do parágrafo 10 do artigo 7o da Lei no 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia), para estabelecer que as conversas com o magistrado sobre determinada ação judicial se deem “mediante agendamento de entrevista, à qual deverá ser intimado a comparecer o advogado da parte adversa e cuja ocorrência deverá ser certificada nos autos”. Pelo projeto, que tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara, o agendamento somente seria dispensável nos casos de urgência. Mesmo assim deverá ser dada “ciência de sua realização e ao teor ao advogado da parte adversa, no prazo de cinco dias, sob 62

pena de anulação de qualquer medida determinada pelo juiz a partir de então”. Hoje, as regras para os diálogos reservados são bem diferentes. O Estatuto da Advocacia estabelece como um direito do advogado “dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho, independentemente de horário previamente marcado ou outra condição, observando-se a ordem de chegada”. Segundo o deputado, o objetivo do projeto de lei é coibir eventual “conluio” entre juízes e advogados. “Tais encontros informais, contraditoriamente autorizados em sede de lei, além de favorecer o estabelecimento desses liames espúrios que ora pretendemos evitar, contribuem para emperrar as engrenagens que movem o Poder Judiciário, na medida em que submetem os juízes, já notoriamente assoberbados, ao bel-prazer dos advogados, obrigando-os a dispor de tempo para prestar o atendimento”, afirmou Camilo Cola na justificativa do projeto. A ocorrência de arranjamentos veio a público, pela primeira vez, em 2011, quando a ministra Eliana Calmon ocupava o cargo de corregedora nacional de Justiça, órgão vinculado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A ministra, hoje aposentada e candidata a uma vaga no Senado Federal, denunciou na época o “filhotismo” – um tipo de advocacia exercida por filhos, cônjuges e demais parentes de advogados. A ministra explicou que esses profissionais não advogam oficialmente nos processos, mas estão presentes quase que diariamente nos corredores

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Foto: Divulgação/OAB-SP

“Onde esse projeto irá realmente acabar com os conluios? Conluios não existem de um lado só, mas de ambas as partes. Então, a meu ver, essa prática ilegal vai continuar existindo, com a aprovação ou não do projeto. É uma balela dizer que [as medidas previstas, se aprovadas] vão acabar com os conluios”

Marcio Kayatt, membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP

dos tribunais. Contratados por bancas importantes, eles vendem a ideia de que podem influenciar o julgador. O ministro Joaquim Barbosa, até bem pouco tempo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), deu mais combustível às denúncias. Em uma sessão do CNJ em março do ano passado, na qual era apreciado um processo para aposentar compulsoriamente um juiz do Piauí acusado de beneficiar advogados em determinada ação judicial, o ministro inaugurou o termo “conluio” para se referir à corrupção praticada conjuntamente por membros da magistratura e da advocacia. Durante o período em que esteve à frente da Suprema Corte, Barbosa empenhou-se na batalha contra essa prática, segundo ele nefasta, e defendeu o estabelecimento de regras para a realização das audiências. Inconstitucionalidade Marcio Kayatt, membro da Comissão de Prerrogativas da Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), afirmou que eventuais arranjos entre magistrados e advogados são exceções no Poder Judiciário. Ele também afirmou que a proposta não coibirá a corrupção nos tribunais. “Onde esse projeto irá realmente acabar com os conluios? Conluios não existem de um lado só, mas de ambas as partes. Então, a meu ver, essa prática ilegal vai continuar existindo, com a aprovação ou não do projeto. É uma balela dizer que [as medidas previstas, se aprovadas] vão acabar com os conluios”, afirmou.

O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Antônio César Bochenek, afirmou que a entidade também é contra a proposta legislativa. O posicionamento foi divulgado por meio de uma nota técnica (no 9/2014) na qual a Ajufe se diz contra o projeto. Bochenek ressaltou a necessidade de se aprofundar o debate sobre a melhor forma de se conciliarem propósitos de transparência, respeito ao contraditório e otimização da agenda dos magistrados. “A nota elaborada pela Comissão Permanente de Reforma do Processo Civil da Ajufe concluiu que a proposição é inoportuna neste momento, uma vez que o projeto do novo Código de Processo Civil trata sobre o tema no seu artigo 190. O texto está em fase avançada de tramitação e foi aprovado nas duas casas legislativas, aguardando votação final no Senado Federal”, explicou. Na avaliação de Bochenek, o aprofundamento acerca da necessidade ou não de se criarem regras para as audiências poderia ser promovido pelo CNJ. “É preciso avançar nas reflexões quanto à melhor forma para se alcançarem os objetivos pretendidos, em especial por meio da realização de prévios estudos e consultas amplas à comunidade jurídica, inclusive aos magistrados. Tal medida poderia ser bem conduzida pelo Conselho Nacional de Justiça, com o objetivo de colher sugestões e experiências que permitam a elaboração de uma regulamentação que leve em consideração a realidade nacional do Poder Judiciário”, defendeu.

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Foto: Divulgação/Ajufe

Antônio César Bochenek, Presidente da Ajufe

Para o presidente da Ajufe, no entanto, o debate pode ser positivo. “É certo que o atendimento a advo­ gados por parte dos magistrados constitui tema de extrema relevância calcado sob a ótica da ampliação da transparência e do respeito ao contraditório no processo, como bem ressaltado na justificativa do projeto de lei. No entanto, também é relevante consignar a necessidade de otimização da agenda dos magistrados, e as diversas atividades relacionadas às suas funções, dentre as quais se insere o atendimento aos advogados e a realização de audiências instrutórias e de conciliação”, argumentou. O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), João Ricardo Costa, disse que a entidade também é contrária ao projeto. Segundo o magistrado, as audiências para tratar de processos não são as reais causas da corrupção que eventualmente podem ocorrer nos gabinetes. “Não são tais procedimentos que ensejam as irregularidade. A lei não pode se basear na exceção para regular o geral. Embora haja um ou outro incidente, o modelo de atendimento utilizado vem acontecendo há bastante tempo e tem funcionado bem”, destacou. A obrigatoriedade prevista no projeto de se convocar o advogado da parte contrária para as audiências também recebeu críticas. O presidente da AMB acha que a regra pode burocratizar a relação do advogado com o magistrado. “A necessidade de se criar uma pauta para as audiências com os advogados, considerando a necessidade de intimação da parte adversa, vai criar mais 64

“É certo que o atendimento a advogados por parte dos magistrados constitui tema de extrema relevância calcado sob a ótica da ampliação da transparência e do respeito ao contraditório no processo, como bem ressaltado na justificativa do projeto de lei. No entanto, também é relevante consignar a necessidade de otimização da agenda dos magistrados”

um conjunto de procedimentos, o que irá elevar a taxa de congestionamento da Justiça”, afirmou Costa. Kayatt também questionou o propósito dessa obrigação. “Ou o juiz tem liberdade e se sente confortável para atender [apenas o advogado de uma das partes], ou não está capacitado para exercer a judicatura. O juiz que se sente inseguro, não está preparado para a função”, disse o representante da OAB/SP; e acrescentou: “Precisamos,

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cada vez mais, fortalecer a magistratura. Temos de ter bons juízes para receber os advogados sem se preocuparem em ser ou não influenciados. Os bons juízes podem acabar extraindo dessas conversas elementos necessários para as suas decisões”. O representante da OAB/SP também se manifestou contra a regra do agendamento. “Acho esse projeto desnecessário. Ele vai contra a tradição do Direito brasileiro, em que o advogado pode procurar o juiz para expor as razões do seu pleito. Essa garantia, na verdade, não é do advogado, mas do jurisdicionado que está sendo defendido por meio do seu advogado. Portanto, esse projeto viola a Constituição, que diz que o advogado é indispensável à administração da Justiça”, afirmou Kayatt. Atritos Apesar das críticas ao estabelecimento de regras, os representantes da advocacia e da magistratura reconhecem a ocorrência, não tão raras, de atritos entre os membros de ambas as classes no dia a dia dos fóruns. Não são poucos os casos de juízes que se recusam a receber advogados ou tentam impor a visita mediante marcação. Os casos têm ido parar no CNJ. Ainda em junho de 2007, o órgão proferiu um acórdão no sentido de que “o magistrado é sempre obrigado a receber advogados em seu gabinete de trabalho, a qualquer momento durante o expediente forense, independentemente de estar em meio a elaboração de qualquer despacho, decisão ou sentença, ou mesmo em meio a uma reunião de

trabalho”. Na decisão, o Conselho destacou que “essa obrigação se constitui em um dever funcional previsto na Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) e que a sua não observância poderá implicar responsabilidade administrativa”. No mesmo acórdão, o CNJ também afirmou que o magistrado “não pode reservar período durante o expediente forense para dedicar-se com exclusividade, em seu gabinete de trabalho, à prolação de despachos, decisões e sentenças, omitindo-se de receber o advogado quando procurado para tratar de assunto relacionado a interesse de cliente”. As orientações foram proferidas em resposta a uma consulta formulada por um juiz criminal do Rio Grande do Norte. Mesmo com a orientação, os advogados deparam-se com restrições ao seu direito de ir e vir dentro dos fóruns. Em 2012, por exemplo, a Seccional da OAB no Mato Grosso recorreu à corregedoria-geral de Justiça daquele estado contra ato do Primeiro Juizado Especial Cível de Cuiabá. A secretaria desta unidade impedia o trânsito dos causídicos. Um cartaz anunciava: “Atendimento no gabinete mediante agendamento com o gestor. Anotações no livro também estão suspensas. Por favor, não insista”. O representante da OAB/SP afirmou que a entidade está atenta à violação das prerrogativas dos advogados. “Sempre que constata que determinado magistrado não cumpre com seu dever de atender ao advogado, a Ordem denuncia às corregedorias ou mesmo toma as medidas judiciais cabíveis”, disse.

Foto: Divulgação/AjMB

“Não são tais procedimentos que ensejam as irregularidade. A lei não pode se basear na exceção para regular o geral. Embora haja um ou outro incidente, o modelo de atendimento utilizado vem acontecendo há bastante tempo e tem funcionado bem”

João Ricardo Costa, Presidente da AMB 2014 Setembro | Justiça & Cidadania 65


Justa homenagem Da redação*

Foto: Comunicação TJMS

O presidente do TJMS, Joenildo de Sousa Chaves, entrega diploma do Colar do Mérito Judiciário ao jornalista Orpheu Salles

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ersonalidades ligadas ao mundo jurídico foram homenageadas pelo Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul (TJMS). No último dia 6 de agosto, a corte conferiu, em sua sede, o Colar do Mérito Judiciário, mais alto reconhecimento do Poder Judiciário daquele Estado. O jornalista e editor da Revista Justiça & Cidadania, Orpheu Salles, foi um dos agraciados. A solenidade aconteceu na sede do TJMS em ceri­ mônia aberta com a apresentação da Banda de Música do Comando Militar do Oeste. Também receberam a comenda o desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) Antônio Rulli Júnior; o desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) Nívio Geraldo Gonçalves; os desembargadores aposentados do TJMS Rubens Bergonzi Bossay e Luiz Carlos Santini; o general de exército João 66

Francisco Ferreira; a serventuária Margarida Machado Maranhão da Rosa; e a diretora do Jornal O Progresso, Adiles do Amaral Torres. Na ocasião, também houve a homenagem póstuma aos desembargadores do TJMS, João Carlos Brandes Garcia e Marilza Lúcia Fortes. Na ocasião, o presidente do TJMS, desembargador Joenildo de Sousa Chaves, destacou a importância da homenagem. “Este é um momento em que o Judiciário reconhece o trabalho desenvolvido por pessoas que contribuíram, por meio de ações e parcerias, para o crescimento do Judiciário sul-mato-grossense”, afirmou. A desembargadora Maria Isabel de Matos Rocha, também do TJMS, discursou para os agraciados. “O Brasil precisa de homens e mulheres dignos como os senhores, para que levantem mais alto a bandeira da Justiça e da cidadania em uma sociedade que tanto clama por elas”, afirmou a magistrada. Segundo a desembargadora, os homenageados, “de variados modos, defenderam a Constituição e os valores da ética, da justiça e da paz social, e ajudaram o homem comum a construir a consciência da cidadania”. O vice-presidente da Seccional sul-mato-grossense da Ordem dos Advogados do Brasil também se pronunciou. “Somente coroa a trajetória pessoal e profissional de todos os que ora a recebem e de que são merecedores, em razão do inequívoco reconhecimento de vossas excelências que se destacaram no exercício de seu múnus em prol da sociedade”, disse. A homenagem prestada pelo TJMS a Orpheu Salles, com o Colar do Mérito Judiciário, se junta as condecorações outorgadas pelo Superior Tribunal Militar, Superior Tribunal do Trabalho, Tribunal Regional do Trabalho da 1a Região, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, que tornaram o jornalista o mais homenageado pelo Poder Judiciário.

*Com informações do TJMS

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SÃO PAULO

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