Revista Justiça & Cidadania

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Edição 166• Junho 2014


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Justiรงa & Cidadania | Junho 2014


S umário Foto: Nelson Jr./SCO/STF

8 Capa – O grande desafio Foto: SCO/STJ

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Relevância constitucional do crédito rural como alicerce do direito à alimentação

Foto: SCO/STJ

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Cumulação de aposentadoria por invalidez e subsídio de mandato eletivo

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Editorial – Ordem! Tolerância zero!

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A importância das escolas da magistratura para o contexto da educação jurídica brasileira

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Em foco – Justiça Militar segue autônoma

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Quem tem medo do voto facultativo?

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Rio de Janeiro, cidade que não pode parar

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A renovação do contrato de locação com prazo certo, sem a anuência do garantidor

44

A teoria da perda de uma chance

50

Seminário debate desafios do setor elétrico

54

Poder Judiciário não é cobrador

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Condomínio edilício e a alienação de frações de utilização exclusiva pelo condômino

60

Dom Quixote – Fórum Lavradio: Uma década de justiça social

64

A Justiça fluminense na trilha da sustentabilidade socioambiental: Exemplo a ser seguido

66

Prateleira – Uma lista afetiva


Edição 166 • Junho de 2014 • Capa: Roberto Jayme/ASICS/TSE

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2014 Junho | Justiรงa & Cidadania 5


E ditorial

Ordem! Tolerância zero!

O

s desastrosos atos de desordem e violência que vêm ocorrendo no País desde junho de 2013, constituem verdadeiro desrespeito ao Estado Democrático de Direito. Temos vivenciado abuso intolerável contra as garantias da ordem pública, como disposto e assegurado na Constituição Federal em seus artigos 5o, incisos XVI e XLI, 142 e 144, inciso V, e parágrafo 5o. As perversas desigualdades e nefandas injustiças sociais que vêm ocorrendo não podem ser resolvidas pela barbárie, mas pelo acolhimento do Estado. Defendemos a total liberdade de expressão, mas é um retrocesso entender que esta pode resguardar a incitação ao crime. O compromisso constitucional brasileiro é com a construção de uma sociedade fraterna, justa e solidária. O que precisamos é de mais educação, política social, segurança pública, distribuição de renda e igualdade de direitos. Esta é a única maneira de conseguirmos a paz. Enquanto isso não acontece, nosso País vai caminhando a passos de cágado. Qualquer grupo de cinco ou dez pessoas, impertinentes e insatisfeitas com a falta de um muro ou de uma calçada em sua rua, bota fogo em madeiras, pneus e bugigangas e fecha a Avenida Brasil, infernizando a vida de centenas de milhares de pessoas na ida e na volta do trabalho. O mesmo pode acontecer na Avenida Nossa Senhora de Copacabana ou na Avenida Presidente Vargas a qualquer momento, pelos mais variados motivos, justos ou não. Incêndio em ônibus e automóveis é coisa corriqueira, que acontece quase todos os dias nas nossas desprotegidas cidades, e nem sempre isso é feito apenas por bandidos. O Brasil é assim: é tudo ou nada. Ou estamos inertes, aceitando de braços cruzados os governos e desgovernos mais absurdos, ou, de repente, despertamos, e aí não paramos mais. 6

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É o dilema que vivenciamos nos dias de hoje. O gigante adormecido acordou, mas ele precisa ter aula de civilidade. As intoleráveis práticas dos grupos que se infiltram nos movimentos de rua não têm como alvo apenas os patrimônios público e privado, com a depredação de sinalização de trânsito, agências bancárias, revendedoras de carros, mas também causar transtorno com o bloqueio de importantes vias, com reflexo no trânsito já caótico das grandes cidades. Isso deveria bastar para confirmar o alerta das autoridades. Desde que esses grupos – ou, melhor seria, bandos – se infiltraram nas manifestações iniciadas em junho passado e, na prática, passaram a comandá-las, não faltaram advertências de que eles tinham que ser tratados de forma diferente, como perigosos delinquentes que se disfarçam de adeptos de um vago e confuso anarquismo. O balanço dos confrontos e protestos com violências mostra o que está acontecendo em diversas cidades do País: o desmedido e absurdo apedrejamento de 467 ônibus, no dia 8 de maio, no Rio de Janeiro; o criminoso incêndio de 37 ônibus em São Paulo, com prejuízos, segundo a empresa, de cerca R$ 20 milhões, causados em apenas duas ações de vandalismo. Com um agravante: as empresas admitem não ter seguro, e o elevado custo da reposição dos ônibus, assim como a demora em sua substituição, acarretará em prejuízo no ir e vir dos desolados usuários. Ao se abster de uma reação “legal e devida” aos atos «ilegais e indevidos» praticados ostensivamente por delinquentes mascarados, o Estado está levando a população a descrer da ordem e do respeito às autoridades constituídas, e, pior, a ter medo do que possa vir a ocorrer com a instalação definitiva da anarquia em progressão. Cria-se, então, um descompasso, decorrente da passividade governamental que, com sua omissão na

adoção de positivas medidas preventivas e repressivas face a violência e a rebeldia instaladas, permite a provocação demonstrada nos movimentos de rua. As previsões sobre as manifestações que possam vir a ocorrer durante os jogos da Copa, perca ou ganhe a Seleção brasileira, são de assustar e de provocar temor pelos malefícios e desgraças que podem trazer para todos nós. A população das grandes metrópoles, face a onda crescente de crimes de toda natureza que vêm sendo noticiados em jornais e revistas – além dos comentários divulgados constantemente pelas emissoras de rádio e televisão – reflete o medo que se instalou em todo o País. Diante dos fatos indiscutíveis sobre a constatação da quebra da ordem e do respeito às instituições e aos bens públicos e privados, como está ocorrendo em constante progressão, assustando multidões que se quedam desamparadas ante as badernas e arruaças costumeiras, torna-se urgente a adoção de providências para que não ocorra um mal maior. A Carta Magna da nação proveu, como apontado no primeiro parágrafo deste editorial, a forma como ordeiramente as Forças Armadas e as Polícias Militares, chamadas ao cumprimento do dever, poderão pôr cobro ao que, infelizmente, vem acontecendo no Brasil. Portanto, se não for implantada, de pronto e de imediato, pelas autoridades responsáveis, a ORDEM COM TOLERÂNCIA ZERO, que Deus nos ajude e nos livre do mal como ele se apresente.

Orpheu Santos Salles Editor

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C apa, Giselle Souza

José Antonio Dias Toffoli discursa na cerimônia de posse como presidente do TSE. Ministro defendeu a fixação de um teto para as campanhas eleitorais e

O grande desafio Dias Toffoli assumiu a presidência do Tribunal Superior Eleitoral em um ano de eleição presidencial. Ministro fala da sua expectativa em relação ao pleito e dos planos que tem para a Corte

O

Tribunal Superior Eleitoral (TSE) está sob novo comando. José Antonio Dias Toffoli assumiu a presidência da corte no último dia 13 de maio com o desafio de conduzir as eleições para presidente, governador, senador, deputado federal, estadual e do Distrito Federal que ocorrerão em 8

outubro desse ano. Em entrevista à Revista Justiça & Cidadania, o ministro destacou a expectativa com relação ao pleito e relatou os planos que tem para a Corte. O novo presidente do TSE abordou vários temas, dentre eles a questão do financiamento das campanhas eleitorais por pessoas jurídicas. O tema está em discussão

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Foto: Roberto Jayme/ASICS/TSE

de nascimento e registros civis. A medida conferiria maior segurança, argumentou o ministro. “Não existe, até hoje no País, uma centralização. A criação e a possibilidade de se obter perante a Justiça Eleitoral a emissão da certidão de nascimento trará essa centralização, além de maior segurança para sabermos quem é quem no País”, afirmou. Ainda no que concerne à segurança, Toffoli destacou o voto com biometria, que será realizado em 15 cidades nessas eleições. “A expectativa, mais uma vez, é de que a tecnologia ajude na segurança do voto. Com a biometria, o cidadão que comparece a uma seção eleitoral é efetivamente aquele cidadão que consta do cadastro com a identificação biométrica”, destacou. Confira a íntegra da entrevista. Revista Justiça & Cidadania – O que o Sr. sente ao assumir a presidência do TSE justamente em um ano de eleição? José Antonio Dias Toffoli – É um momento extremamente relevante para o País a eleição presidencial. É, portanto, uma responsabilidade muito grande conduzir, à frente da Justiça Eleitoral, esse processo, e também, coordenado com os trabalhos dos tribunais regionais eleitorais, as eleições para governador, senador, deputado federal, estadual e do Distrito Federal. Esta é uma função para a qual contaremos com o apoio dos juízes eleitorais de todo o Brasil, assim também como dos servidores e da expertise daquela que é a melhor agência de organização de eleições do mundo: a Justiça Eleitoral.

criticou o fato de os partidos serem o único meio de acesso ao poder

no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.650, movida pela Ordem dos Advogados do Brasil. O julgamento, entretanto, se encontra suspenso, e Toffoli considera muito difícil que a decisão da corte seja aplicada ainda nas eleições desse ano. O ministro, aliás, é favorável à limitação dos gastos das campanhas eleitorais. Nesse sentido, ele cobra do Congresso Nacional a aprovação de uma lei para fixar o teto das despesas. O novo presidente do TSE destaca que uma eventual norma sobre o assunto poderá valer para as eleições desse ano se for aprovada até o próximo dia 10 de junho. Com relação aos planos que tem para o TSE, Toffoli destacou a criação de um cadastro nacional do cidadão, a ser gerido pela Justiça Eleitoral. A ideia é que esse ramo do Poder Judiciário seja o responsável por emitir certidões

No discurso de posse, o Sr. destacou suas metas à frente do TSE. Uma delas é que a certidão de nascimento seja emitida pela Justiça Eleitoral e que a Corte realize o cadastro nacional do cidadão. A que se deve essa proposta? – Essa proposta se deve à segurança. Hoje há uma descentralização do cadastro do cidadão, seja a partir das certidões de nascimento, que são emitidas em todo e qualquer cartório do País, bem como a possibilidade de se ter 27 carteiras de identidade junto às secretarias de segurança pública. Não existe, até hoje no País, uma centralização. A criação e a possibilidade de se obter perante a Justiça Eleitoral a emissão da certidão de nascimento trará essa centralização, além de maior segurança para sabermos quem é quem no País. O Sr. também defendeu a simplificação da consulta popular: referendo e plebiscito. Por quê? – Porque a sociedade dá mostras de que a democracia precisa ser mais dinâmica. Não uma democracia na qual o cidadão apenas e tão somente eleja seus representantes, mas, sim, com o auxílio das novas tecnologias, possa ter uma participação mais direta na escolha das políticas públicas e nas opções normativas da nação brasileira.

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Foto: Nelson Junior/ASICS/TSE

Ministro Dias Toffoli é cumprimentado pelo Ministro Marco Aurélio Mello, que o antecedeu na presidência do TSE

Facilitar a realização de plebiscitos e referendos vai proporcionar essa possibilidade institucional do povo se manifestar e se expressar.

de propaganda e publicidade que acaba extrapolando. Daí, a Justiça Eleitoral se faz presente para mediar e evitar os abusos.

O Sr. criticou a fragilidade partidária e o papel dos partidos políticos como mediadores exclusivos de acesso ao poder. Quais mudanças o Sr. sugere no sistema atual? – O que assistimos hoje é uma proliferação de partidos políticos, exatamente coordenados por poucas pessoas. São, portanto, poucas as pessoas que decidem quem serão os candidatos, quem serão aqueles que terão possibilidade de se apresentar ao eleitorado. Há necessidade de uma rediscussão ampla desse papel dos partidos políticos no Brasil, que passa também por uma discussão do sistema eleitoral. Evidentemente não há uma solução pronta. É necessário, então, que se tenha em mente que a cidadania hoje precisa de canais institucionais, e que os partidos políticos parecem não estar dando conta desse novo momento histórico.

Como será a fiscalização do TSE com relação aos candidatos ficha-sujas nessas eleições? – Com relação a essa questão da Lei das Inelegibilidades, a partir do registro dos candidatos, qualquer partido, candidato ou coligação, bem como o Ministério Público, pode impugnar as candidaturas; e a própria Justiça Eleitoral, identificando haver algum tipo de inelegibilidade, pode, de ofício, indeferir o registro do candidato. Será a primeira vez que a Lei da Ficha Limpa será aplicada em eleições gerais, mas, em eleições municipais (2012), já se estabeleceu um padrão de jurisprudência para essa lei. Penso que desta vez haverá maior facilidade na aplicação da norma.

Qual a sua expectativa em relação à condução da campanha pelos candidatos à presidência nestas eleições de 2014? – A expectativa é no sentido de que as regras e as normas eleitorais sejam cumpridas e sejam realmente atendidas pelas campanhas eleitorais. Muitas vezes há algum tipo 10

As eleições de 2014 também marcarão o voto com biometria, que será realizado em 15 capitais. Qual a sua expectativa em relação a esse grande teste? – A expectativa, mais uma vez, é de que a tecnologia ajude na segurança do voto. Com a biometria, o cidadão que comparece a uma seção eleitoral é efetivamente aquele cidadão que consta do cadastro com a

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identificação biométrica. Isso traz uma segurança que amplia aquela que é uma demanda da Constituição: que uma pessoa não vote por outra ou que uma pessoa não vote duas vezes. Como será o controle do TSE com relação às campanhas de rádio e TV previstas para começar em julho? – Essa questão é disciplinada pela lei. Existe o acesso gratuito aos programas eleitorais de rádio e televisão e também há, evidentemente, os limites que a lei impõe aos meios de comunicação concedidos, que os impedem de emitir opiniões editoriais a favor ou contra candidatos. Já na mídia impressa há essa possibilidade, porém, sempre tendo em vista que aquilo que for abusivo poderá sofrer sanção da Justiça Eleitoral. Como o Sr. analisa a questão do financiamento das campanhas atualmente. Em sua opinião, são necessárias mudanças? – Penso que sim. Já votei no Supremo Tribunal Federal pela impossibilidade da doação por parte de pessoas jurídicas, ou seja, das corporações e empresas. Também entendo necessário o estabelecimento de um teto de gastos por campanha. Até hoje o Congresso Nacional está a dever uma lei que limite os gastos.

Mas, se o Congresso editasse uma lei sobre o limite de gasto, a norma valeria para essas eleições? – Se editadas até o dia 10 de junho de 2014, poderão valer. Se não, ficará a regra geral de que cada partido ou candidato apresente seu próprio limite. O Brasil ocupa a 156ª posição de 188 em um ranking mundial de participação feminina na política. Na sua avaliação, a que se deve essa situação? – Há países na América Latina que já exigem que metade das candidaturas apresentadas sejam femininas. Isso já ocorre no Equador e na Bolívia; e há outros países em que a demanda é maior do que no Brasil. No Brasil, há uma legislação que estabelece a participação feminina obrigatória, mas que não chega ao ponto de exigir a metade das candidaturas. Penso que essa proposição afirmativa, sem dúvida, leva à maior participação das mulheres na política. Hoje, a previsão da legislação brasileira tem sido atendida muitas vezes com candidaturas de fachada, ou seja, mulheres que se apresentam como candidatas, mas que, na verdade, apenas vêm para preencher determinado número. Não há uma efetiva participação. Para evitar isso há uma campanha do Tribunal Superior Eleitoral, circulando desde a presidência do ministro Marco Aurélio, no sentido de estimularmos a participação das mulheres na política.

Foto: Roberto Jayme/ASICS/TSE

Posse é prestigiada pela presidente Dilma Rousseff (à esq. de Dias Toffoli) e pelo Ministro do STF, Ricardo Lewandowski (à dir.) 2014 Junho | Justiça & Cidadania 11


Foto: STJ

Relevância constitucional do crédito rural como alicerce do direito à alimentação Massami Uyeda

O

Ministro aposentado do STJ Membro do Conselho Editorial

Ano de 2014 foi aclamado pela ONU como o Ano Internacional da Agricultura Familiar. E, efetivamente, a relevância da alimentação avulta de importância ante o ameaçador espectro da fome que paira sobre a humanidade. Daí, pensamos ser oportuno tecer algumas reflexões sobre o tema deste artigo, para possibilitar aos aplicadores do Direito adequado embasamento para sua compreensão. Elementar a noção de que o ser humano não dispensa a alimentação como essencial para sua sobrevivência, mas, conquanto esta noção seja tão simples, somente em 2010 ela veio a ganhar dignidade constitucional como 12

sendo um direito social, por força da EC 64, que a inseriu no rol do art. 6o da Constituição Federal de 1988. Pode parecer óbvio que a alimentação, por ser essencial à existência humana, exatamente por sua obviedade, dispense tratamento constitucional. Mas, se analisarmos o art. 1o da CF, ao apresentar o elenco dos fundamentos da República Federativa do Brasil, ali estão relacionados fundamentos óbvios para um Estado Democrático de Direito, sendo de se considerar que, precedendo o conceito de dignidade da pessoa humana, encontra-se a alimentação, sem a qual a própria vida não seria possível.

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Então, pergunta-se: somente após 22 anos da promulgação da Constituição Cidadã é que a alimentação veio a ser reconhecida como direito social? Estas considerações aqui são feitas porque, na sequência de obviedades, a alimentação não dispensa a produção de alimentos e esta, por sua vez, como resultado do labor do homem do campo, não se realiza sem a adequada e necessária obtenção do crédito. Aliás, o crédito é fator fundamental para a vida em sociedade. Crédito, em sua origem etimológica, significa confiança, boa-fé. Esses conceitos, por sua vez, constituem o amálgama do convívio social. Sem confiança e boa-fé o núcleo social se esfacelaria. O crédito rural, entretanto, vem sendo tratado ao longo do tempo de modo preconceituoso, como se fosse uma benesse extraordinária que o Estado concede aos produtores rurais, os quais constituem elo fundamental para a cadeia produtiva do “agrobusiness”, tão decantado como a âncora verde que proporciona significativa participação na balança comercial do País, mas tão relegado ao plano das atividades subalternas ou menores, sob o estereótipo de que produtor rural (principalmente o pequeno) é o homem do campo, matuto e inculto, sob a sombra e o estigma de “Jeca Tatu”. A atividade agrícola é, dentre as atividades produtivas, a primeira, concomitante ao surgimento do homem. A esta constatação não se apartou o constituinte de 1988, ao conferir-lhe dignidade constitucional, com tratamento diferenciado e específico não concedido no texto consti­­ tucional a qualquer outra (comércio, indústria e serviços, que são derivados da agricultura), pois no art. 23, inciso VIII, dispôs ser da competência comum da União, dos Estados, do DF e dos Municípios o fomento à produção agropecuária e a organização do abastecimento alimentar. E mais, no art. 187 da Carta Magna, ao estabelecer a política agrícola como meta do Estado, conclama que ela será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes. E esta política agrícola, por sua vez, assenta-se, entre outros fundamentos, na concessão de instrumentos creditícios e fiscais, no estabelecimento de preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização e no seguro agrícola (incisos I, II, V, art. 187, CF). Na prática, contudo, o que se vê é o vicejar do distorcido entendimento de que o crédito rural tem os mesmos contornos de um crédito bancário comum. Não. O que deve ser considerada, em relação ao crédito rural, é a circunstância de o tomador do crédito (o produtor), por exercer atividade sujeita à sazonalidade,

às intempéries da natureza ou às flutuações de uma Bolsa de Mercadorias, não poder balizar-se de acordo com os parâmetros comuns, sujeitos ao risco do empreendimento, como ocorre em outras atividades produtivas. Daí que, exemplificativamente, juros incidentes sobre o crédito devem ter alíquotas diferenciadas às dos demais empréstimos comuns; o prazo de vencimento, em ocorrendo qualquer das circunstâncias impeditivas da safra prevista (excesso de chuva, secas, pragas devastadoras, geadas, granizo, tufões, queda do preço mínimo, etc.) há de proporcionar e possibilitar a renegociação da dívida, com o alongamento de prazos, (sem, contudo, impingir-se a famigerada operação “mata-mata”), sem que isto constitua-se em privilégio, mas, sim, como tratamento isonômico ao produtor rural, garantindo-se o fornecimento da alimentação, essencial ao ser humano. Essas operações, seja a de conceder o crédito rural com juros e prazos especiais, seja no tratamento à prorrogação do vencimento para sua solvência, não são realizadas ao arrepio da lei e da Constituição. O abrigo constitucional se encontra nos incisos I e II do art. 187 da CF, e a cobertura legal, por sua vez, no inciso V do art. 50 da Lei 8.171/91, que disciplina a fixação do cronograma de pagamento do mútuo rural, ao dispor “prazos e épocas de reembolso ajustados à natureza e especificidade das operações rurais, bem como à capacidade de pagamento e às épocas normais de comercialização dos bens produzidos pelas atividades financeiras”. Quanto à prorrogação do vencimento da obrigação de pagar o mútuo rural ou, como se queira, o alongamento da dívida, o Manual de Crédito Rural do Banco Central, ao dispor normativamente, estabelece: Art. 3o. São objetivos específicos do crédito rural: III - Possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais, notadamente pequenos e médios; a - Independentemente de consulta ao Banco Central do Brasil, é devida a prorrogação da dívida, aos mesmos encargos financeiros antes pactuados no instrumento de crédito, desde que se comprove incapacidade de pagamento do mutuário, em consequência de: (Circ. 1536) b - dificuldade de comercialização de produtos; (Circ. 1536)

O crédito rural foi instituído pela Lei no 4.829/65, com o escopo de desenvolver a produção rural do País, possibilitando-se, com a concessão da linha de financiamento, o incremento da propriedade rural e de seus meios de produção, tudo de molde a se alcançar ofertas qualitativa e quantitativa de produtos agropecuários de modo a proporcionar o bem estar do povo, com a elevação de seu padrão alimentar. A Lei no 4.829/65 previu que o crédito rural, para proporcionar o custeio oportuno e adequado da produção

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Art. 963. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, e comercialização de produtos agropecuários, deve resultar não incorre este em mora. de aplicação compulsória de recursos em operações típicas de crédito rural. Assim, a alteração da política agrícola, com a redução E o próprio legislador se encarregou de frisar que do preço mínimo, poderia caracterizar o insucesso do a finalidade do crédito rural não pode representar empreendimento, ao lado, evidentemente, de fatores ganho do emprestador, mas deve visar o fortalecimento climáticos adversos, tais como chuva excessiva, seca econômico do tomador, posto que, sem a concessão de prolongada, geada, granizo, incêndio, praga etc. referido crédito, não se tem como alcançar a finalidade Esta hipótese acha-se contemplada no Manual do eminentemente social da atividade agrícola. Crédito Rural, Capítulo 2, Seção 6, Item 9, do Conselho Veja-se que a lei que institucionalizou o crédito rural Monetário Nacional, admitindo-se a prorrogação do – Lei no 4.829/65 – dispôs expressamente em seu artigo 14 financiamento, desde que comprovada a incapacidade que os termos, prazos, juros e demais condições de operafinanceira do mutuário para satisfazer o contrato no ções de crédito rural, sob qualquer das modalidades, serão vencimento. estabelecidos pelo Conselho Monetário Nacional, tendoO desconhecimento da mens legis referente ao crédito -se em mente a limitação, sempre que necessário, das taxas, rural tem acarretado muitas vezes soluções que não se dos juros, dos descontos, das comissões e qualquer outra coadunam com as finalidade eminentemente sociais que forma de remuneração de operações e serviços bancários, motivaram sua edição. certo que as taxas de operações, sob Assim, veja-se o que ocorre no qualquer modalidade de crédito, serão “Elementar a noção de que o tocante à capitalização dos juros inferiores, em pelo menos ¼, às taxas ser humano não dispensa a incidentes sobre o crédito rural. adotadas para as operações de crédito alimentação como essencial O artigo 5o do Decreto Lei 167/67 mercantil. Não sendo o crédito rural um crépara sua sobrevivência, mas, dispõe que os juros incidentes sobre o financiamento rural, cujas taxas dito de natureza comercial e sendo um conquanto esta noção seja são fixadas pelo Conselho Monetário crédito especial, de natureza social, a interpretação dos contratos de mútuo tão simples, somente em 2010 Nacional, são exigíveis em 30 de junho ou 31 de dezembro, podendo rural não pode ser feita como se comerela veio a ganhar dignidade ser capitalizados, ou seja, incidem ciais fossem, já que não são resultantes constitucional como sendo semestralmente e não mensalmente. de operações de mercado financeiro. Esta disposição legal motivou a As operações creditícias de merum direito social, por força da edição da Súmula 93, do STJ, assim cado financeiro são amparadas pela EC 64, que a inseriu no rol do enunciada: Lei no 4.595/64, que instituiu a reforart. 6o da Constituição Súmula 93 – A legislação sobre crédito ma bancária, enquanto as de crédito o rural, comercial e industrial, admite o pacto rural são baseadas na Lei n 4.829/65, Federal de 1988” de capitalização de juros. que institucionalizou o crédito rural no Brasil. Embora possa a leitura singela da Súmula induzir a E o crédito rural deriva de recursos oficiais que os conclusão de que o crédito rural, assim, tem a mesma naemprestadores recebem com a finalidade de repassátureza jurídica do crédito comercial e industrial, isso não los ao mutuário rural, sendo regulado pelo Conselho ocorre, pois o crédito rural tem natureza eminentemente Monetário Nacional para cada safra. social. O enunciado pode, também, induzir a interpretaAqui se observa ser o caráter sazonal de cada safra o ção de incidência da capitalização de juros mensal ao créfator norteador do Conselho Monetário Nacional a regular dito rural, quando, na realidade, é semestral. a liberação dos recursos oficiais a serem compulsoriamente Ao lado do florescente campo do agronegócio, a concedidos por meio do financiamento rural. participação da agricultura familiar no Brasil é expressiva A constatação de que o crédito rural não tem nae é ela a responsável imediata pelo suprimento e pela tureza comercial e que o elemento fático da sazonalifartura na mesa das famílias brasileiras. dade das safras é o termômetro regulador do sucesso A adequada e correta compreensão do direito à alidas mesmas é que permite invocar a inocorrência de mentação e do crédito rural, por certo, contribuirá para mora no adimplemento do crédito se ocorrer o insucesque o respeito à dignidade da pessoa humana não permaso do empreendimento financeiro, caracterizando fato neça apenas como silencioso fundamento da República ou omissão inimputável ao devedor, como reza o artigo Federativa do Brasil. 963 do Código Civil: 14

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I N V E ST M E N T G R A D E CO N C E D I D O P E L AS D UAS M A I O R E S AG Ê N C I AS D E C L AS S I F I C A Ç Ã O G LO B A I S . U M A DA S M E N O R E S TA X A S D E D E S E M P R E G O D O PA Í S N O S Ú LT I M O S C I N C O A N O S . PAC I F I C A Ç Ã O D E 2 57 CO M U N I DA D E S A N T E S D O M I N A DAS P O R T R A F I C A N T E S E M I L I C I A N O S . C R I A Ç Ã O D E U M A N O VA R E D E D E AT E N D I M E N T O D E E M E R G Ê N C I A 2 4 H O R A S , A S U PA S , H O J E C O P I A D A S E M T O D O O PA Í S . E S TA D O P I O N E I R O N O B R A S I L A O O F E R E C E R T O M Ó G R A F O E R E S S O N Â N C I A M Ó V E I S , Q U E AT E N D E M A T O D O S O S M U N I C Í P I O S . R E N O VA Ç Ã O D E T R E N S E M E T R Ô S , C O M A C O M P R A D E 1 6 4 C O M P O S I Ç Õ E S N O VA S . VOLUME INÉDITO DE INVESTIMENTOS EM CIÊNCIA, COM MAIS DE 2,5 BILHÕES DE R E A I S A P L I C A D O S E M P E S Q U I S A E I N O VA Ç Ã O . M A I O R I N V E S T I M E N T O E M C U LT U R A J Á R E A L I Z A D O , E M R E L A Ç Ã O A O O R Ç A M E N T O T O TA L D O G O V E R N O . C O N S T R U Ç Ã O D O A R C O M E T R O P O L I TA N O , D U A S N O VA S E S T R A D A S - PA R Q U E E R E C U P E R A Ç Ã O D E 4 6 1 K M D E E S T R A D A S E S TA D U A I S . E S TA D O Q U E M A I S G A N H O U P O S I Ç Õ E S N A Ú LT I M A AVA L I A Ç Ã O N A C I O N A L D O E N S I N O M É D I O . AT R A Ç Ã O D E N O VA S I N D Ú S T R I A S PA R A O I N T E R I O R D O E S TA D O E I N C E N T I V O À P R O D U Ç Ã O A G R Í C O L A FA M I L I A R . Ú N I C A R E G I Ã O M E T R O P O L I TA N A D O PA Í S Q U E T E M U M S I S T E M A D E B I L H E T E Ú N I C O I N T E R M U N I C I PA L . L U G A R Q U E R E C E B E U O P A P A E C O N Q U I S T O U O S J O G O S O L Í M P I C O S .

TUDO ISSO EM APENAS SETE ANOS E SEIS MESES. N A DA D I S S O É P O R A C A S O .

Rio de Janeiro U M

E S T A D O

Q U E

S E

R E I N V E N T O U

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Cumulação de aposentadoria por invalidez e subsídio de mandato eletivo Benedito Gonçalves

Ministro do STJ Membro do Conselho Editorial

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benefício de natureza previdenciária denominada aposentadoria por invalidez é devido ao segurado que for considerado totalmente incapaz para o exercício de suas atividades habituais, mediante perícia médica, e insusceptível de recuperação para o exercício de atividade laborativa que lhe garanta subsistência. Wladimir Novaes Martinez define o mencionado benefício: Aposentadoria por invalidez é benefício substituidor dos salários, de pagamento continuado, provisório ou definitivo, pouco re-editável, devido ao segurado incapaz para o seu trabalho e insuscetível de reabilitação para o exercício de atividade garantidora de sua subsistência (MARTINEZ, Wladimir Novaes. Previdência Social. São Paulo: LTr: 1998., p. 654).

No mesmo sentido, vejamos a definição de João Ernesto Aragonês Vianna: A aposentadoria por invalidez é tratada nos arts. 42 e seguintes da lei no 8.213/91. Será devida ao segurado que, estando ou não no gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insuscetível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição (VIANNA, João Ernesto Aragonês. Curso de Direito Previdenciário. São Paulo: LTr: 2006, p. 238).

No plano infraconstitucional, a Lei 8.213/91 dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, 16

disciplinando a concessão do benefício a partir do artigo 42, que assim dispõe: Art. 42. A aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de rea­ bilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição. [...]

Por sua vez, o artigo 46 da referida lei determina que o aposentado por invalidez que retornar voluntariamente à atividade terá seu benefício automaticamente cancelado, a partir da data de retorno. Registra-se, ainda, que o cancelamento nunca poderá ser automático, uma vez que é preciso respeitar o devido processo legal e o direito da ampla defesa. Contudo, na prática, alguns casos de retorno às atividades laborativas devem ser analisados com maior parcimônia, levando em conta especificamente a natureza da atividade desenvolvida, como é o caso do segurado do INSS, aposentado por invalidez, que assume mandato eletivo por tempo determinado. Como se sabe, o agente político (Presidente da República, Governador, Prefeito, Ministro, Secretário, Senador, Deputado Federal, Deputado Estadual e vereador) não mantém vínculo profissional com a Administração Pública, sendo o exercício de suas atividades um munus

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Foto: SCO/STJ

pública, ainda que considerada, para fins previdenciários, de contribuição obrigatória. Como ensina Bandeira de Mello, para o exercício das atividades políticas não há necessidade de capacitação técnica ou profissional. Assim, o exercício da atividade temporária de mandato eletivo não pressupõe a aptidão do agente político para o exercício das atividades laborais antes desempenhadas. A propósito, transcrevo trecho da obra: São agentes políticos apenas o presidente da República, os governadores, prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos chefes de Executivo, isto é, ministros e secretários das diversas pastas, bem como os senadores, deputados federais e estaduais e os vereadores. O vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza profissional , mas de natureza política. Exercem um munus público. Vale dizer, o que os qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas e, por isto, candidatos possíveis à condução dos destinos da sociedade. A relação jurídica que os vincula ao Estado é de natureza institucional, estatutária. Seus direitos e deveres não advêm de contrato travado com o Poder Público, mas descendem diretamente da Constituição e das leis. Donde, são por elas modificáveis, sem que caiba procedente oposição às alterações supervenientes, sub color de que vigoram condições diversas aos tempo das respectivas investiduras (Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito

Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores. 2003, P. 229/230) (grifos nosso).

Dessa forma, não há que se falar em vedação da percepção conjunta do subsídio da atividade eletiva com os proventos de aposentadoria por invalidez decorrente de acidente de trabalho, uma vez que, sendo os vínculos de naturezas distintas, a incapacidade para o trabalho não significa, necessariamente, incapacidade para os atos da vida política, direito este constitucionalmente assegurado. Sobre o tema, apesar da jurisprudência ter oscilado ora no sentido da possibilidade de se manter a percepção do benefício em concomitância com o recebimento do subsídio do cargo eletivo, ora pela possibilidade de cessação nos termos do art. 46 da Lei 8.213/91, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça recentemente sedimentou entendimento, nos autos do Resp 1.377.728CE, de minha relatoria, no sentido da possibilidade de percepção conjunta do subsídio da atividade eletiva com os proventos de aposentadoria por invalidez. Eis a ementa do referido precedente: PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. CUMULAÇÃO COM SUBSÍDIO DECORRENTE DO EXERCÍCIO DE MANDATO ELETIVO. POSSIBILIDADE. 1. É possível a percepção conjunta do subsídio decorrente do exercício de mandato eletivo (vereador), por tempo determinado, com o provento de aposentadoria por invalidez, por se tratarem de vínculos de natureza diversa, uma vez que a incapacidade para o trabalho não significa, necessariamente, invalidez para os atos da vida política. 2. Recurso especial não provido (REsp 1377728/CE, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 18/06/2013, DJe 02/08/2013). Considerando que a aposentadoria por invalidez e a atividade eletiva apresentam vínculos de naturezas distintas, conclui-se pela possibilidade de cumulação do recebimento do benefício de aposentadoria por invalidez com o subsídio do cargo eletivo, sem que isso importe em ofensa ao princípio da isonomia.

Referências bibliográficas BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm CASTRO, Carlos Alberto Pereira; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 15a edição. São Paulo: Forense, 2013. MARTINEZ, Wladimir Novaes. Previdência Social. São Paulo: LTr: 1998. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores. 2003. VIANNA, João Ernesto Aragonês. Curso de Direito Previdenciário. São Paulo: LTr: 2006.

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A importância das escolas da magistratura para o contexto da educação jurídica brasileira Humberto Martins

Ministro do STJ Corregedor-geral da Justiça Federal Membro do Conselho Editorial

1. Antecedentes da criação das escolas da magistratura e a evolução recente do debate sobre o ensino jurídico s escolas da magistratura têm sido constituídas no Brasil ao longo dos anos com a função de efetivar o aperfeiçoamento continuado de magistrados e, ainda, de auxiliar no processo de incorporação dos novos juízes à carreira, seja auxiliando os ingressantes com cursos de formação durante seu período de vitaliciamento. Esse processo institucional de construção de escolas judiciais e judiciárias ganhou o reconhecimento constitucional com a Emenda no 45/2004, denominada de Reforma do Judiciário. Essa Emenda à Constituição Federal incluiu diversas modificações nas competências dos tribunais, bem como previu a instituição de colegiados administrativos para o controle do Poder Judiciário e do Ministério Público, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). No contexto de tais mudanças, foi prevista a implementação de uma Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), com a pretensão de se estruturar na entidade central de um sistema brasileiro de formação e aperfeiçoamento de juízes, nos termos do inciso IV do art. 93 da Constituição Federal. Assim, a Enfam – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – foi prevista para funcionar junto ao Superior Tribunal de Justiça, nos termos do inciso I do parágrafo único do art. 105 da Constituição Federal. É de notar que a previsão constitucional, por meio da emenda da Reforma do Judiciário, decorre de um

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processo gerencial que teve origem nas várias experiências de criação e expansão de escolas judiciais e judiciárias. Assim, a determinação para criação de uma escola nacional é a evidência de um reconhecimento – por parte do poder constituinte derivado – da relevância dessas estruturas administrativas para o bom funcionamento do Poder Judiciário. O processo, contudo, tem origem em associações e fundações, usualmente ligadas às corporações da magistratura e do Ministério Público, sem esquecer das escolas superiores da advocacia, historicamente mais antigas e que se inserem nessa tradição. Daí se denominar que estas – criadas pela vida associativa – seriam “escolas judiciais”, ao passo em que as outras – criadas no cerne da organização administrativa dos tribunais – seriam “escolas judiciárias”. Essa distinção entre “escolas judiciais” e “escolas judiciárias”, que não é muito conhecida fora dos meios especializados, diz muito sobre esse processo, que, na verdade, foi uma etapa de amadurecimento das instituições. De certo modo, é possível traçar um paralelo entre a instituição dessas escolas no âmbito da magistratura e da Emenda Constitucional no 19/1998, que previu a necessidade de criação das escolas de governo e de administração pública. O Superior Tribunal de Justiça não se quedou inerte após a promulgação da Emenda Constitucional no 45/2004 e, de forma célere, iniciou os trabalhos técnicos para estruturação da Enfam1. Realizou-se uma grande pesquisa para subsidiar a instituição da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, composta por coletânea de oito volumes, publicada em 2006. Essa

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Foto: Paulo Rosemberg

coletânea reuniu as histórias de criação das escolas judiciais e judiciárias brasileiras, bem como consolidou vários materiais para permitir uma importante reflexão, útil para basear a construção dessa Escola Nacional2. A partir deste importante trabalho, é possível apreender que as escolas da magistratura foram criadas em razão da preocupação dos tribunais com um alegado déficit de formação básica dos candidatos à carreira judicial. No primeiro volume da coletânea, encontra-se menção explícita ao fato de que haveria uma “precariedade nos curso de direito”, bem como “a falta de uma preparação prévia da prática jurídica”. Na mesma narrativa, se indica que um dos motivos para criação de escolas judiciais decorreria da percepção de que havia problemas de preparação ao concurso e à investidura na função judicante pelos candidatos. Bem se visualiza que o tema das escolas da magistratura – de imediato – reverbera no tema da preparação dos egressos dos cursos de graduação em direito. Assim, a educação jurídica é um tópico recorrente, que se revela quando se põe em causa a condição de candidatos aos concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura, ou, ainda, a condição de aprovados e, assim, de juízes novatos, no início da carreira. Como é comum em tais situações, o diagnóstico geral é partilhado pela maioria dos analistas. Desta forma, é razoável identificar que a visão da magistratura sobre os problemas da educação jurídica não é muito diversa do olhar da Ordem dos Advogados do Brasil e de pesquisadores das universidades. O diagnóstico acima indicado – de déficit de formação prática – é continuado no debate sobre a educação jurídica dos últimos trinta anos. Um exemplo dessa afirmação pode ser visto na Portaria no 1.886/1994 que representou uma importante mudança de perspectiva no que deveria ser o currículo dos cursos de graduação em Direito. Uma das grandes inovações da Portaria no 1886/1994 foi instituir – em seu art. 10 – a obrigatoriedade de um núcleo de prática jurídica que deveria oferecer estágio supervisionado interno ao curso de Direito, com um mínimo de trezentas horas de atividade reais ou simuladas. O núcleo de prática jurídica foi previsto como uma fonte de treinamento apto a permitir que o estudante pudesse tomar contato com atividades relacionadas à magistratura e ao Ministério Público e não somente com a advocacia, como está no § 1o do art. 10 da referida portaria. Dez anos se passaram e mudaram as diretrizes curriculares para os cursos de graduação em Direito, após um grande debate nacional. É preciso registrar que a Resolução no 9/2004 do Conselho Nacional de Educação foi concebida com o apoio evidente da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi), que hoje é, para minha satisfação e honra, a anfitriã deste evento. O texto normativo de 2004 substituiu a mencionada Portaria no 1.886/1994

e, dentre outros aspectos, manteve a obrigatoriedade de estágio curricular supervisionado a ser realizado no núcleo de prática jurídica. No novo ato regulamentar, detalhou-se, de modo mais didático, o modo como se deveria aferir o aprendizado prático – por meio de relatórios – e foi mantida a necessidade de formação ampla, ou seja, preparação à prática que não somente se resumisse à formação para a advocacia, mas, também, para as outras funções jurídicas. Uma crítica dirigida à Resolução no 9/2004 – em cotejo à Portaria no 1.886/1994 – foi a exclusão da menção expressa aos conteúdos didáticos de mediação e conciliação. Cabe lembrar que a Ordem dos Advogados do Brasil sempre manteve a defesa da necessidade de que tais conteúdos fossem lecionados, bem como o Ministério da Justiça, um importante propagador de tal conteúdo como meio relevante para resolução dos dilemas sociais inerentes ao conhecido e grave congestionamento processual do Poder Judiciário. É notório que técnicos do Ministério da Educação, membros da Ordem dos Advogados do Brasil e pesquisadores da Associação Brasileira de Ensino do Direito, há quase um ano, têm debatido e oferecido sugestões para o aperfeiçoamento do marco regulatório da educação jurídica. É notório que a OAB fomentou dezenas de audiências públicas nos estados para debater o tema.

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A questão central ainda presente pode ser apreendida em algumas perguntas. Ainda temos problemas para estimular ou efetivar a formação dos estudantes para a prática jurídica? Como podem as escolas judiciais colaborar com a formação prática dos estudantes de direito? A formação direcionada à prática ainda é um grande problema. 2. A difícil questão da adequada formação à prática jurídica Como mencionado, um dos temas mais complexos da educação jurídica contemporânea é a questão da formação prática dos estudantes de direito. Esse problema é muito amplo e não somente aparece no debate educacional brasileiro. A propalada crise da educação jurídica nos Estados Unidos da América também trouxe esse debate para a esfera pública daquele país3. Os grandes escritórios de advocacia revelavam-se insatisfeitos em relação aos egressos dos cursos de direito que chegavam aos seus quadros. As grandes firmas consideravam que os novos advogados demandavam grandes salários – em razão da necessidade de fazer frente aos empréstimos vultosos, contraídos para pagar as caras anuidades e taxas dos cursos de direito – sem apresentar formação prática que fosse condizente com tal investimento. Os escritórios de maior porte – por meio de seus analistas ou articulistas, que publicaram textos em revistas e na grande mídia, como a renomada New Yorker e outras – reclamavam desses custos e afirmavam que havia uma crise sem proporções na profissão jurídica dos Estados Unidos. Esse argumento foi refletido em livros como aquele publicado por Stephen Harper, no qual o autor alegava que havia uma bolha especulativa sobre a profissão jurídica, que precisava se equilibrar4. O argumento central do autor está relacionado com os custos dos serviços jurídicos, que teriam sido inflados em decorrência dos elevados valores despendidos nas faculdades de direito. Todavia, existem outros autores que divergem desses argumentos e alegam que somente os escritórios mais elitistas (usa-se o termo “fancy”) estariam realmente preocupados com o tema. Eles reconheceriam que os custos das faculdades de direito seriam altos. Mas, que esse não seria o verdadeiro problema da educação jurídica. O dilema mais grave estaria relacionado com os fatores externos ao cotidiano das faculdades, em especial, com os enormes desafios do mundo jurídico contemporâneo. Assim, como colocam alguns dos articulistas da linha contrária, o mundo jurídico – e corporativo – estaria em radical processo de mudanças. Por causa dessas alterações, os cursos de graduação enfrentariam dificuldades inéditas para, efetivamente, preparar seus egressos para a prática jurídica, de feição bem diversa de seus padrões tradicionais. Não 20

seria somente uma questão passível de solução por meio de equilíbrio econômico, ou seja, apenas diminuindo os custos dos cursos de Direito. Seria necessário mudar o conteúdo do que é lecionado. É evidente que esse debate é radicado nos Estados Unidos e na realidade de seus grandes escritórios de advocacia. Trata-se, portanto, de discussão externa ao objeto deste painel, centrado nas escolas de formação das instituições judiciárias brasileiras. No entanto, este tópico ajuda a formular uma questão que é muito relevante para quaisquer reflexões sobre a difícil formação para a prática: a dinâmica de mudanças atuais e os custos envolvidos na formação jurídica. O magistrado de hoje não é mais o mesmo juiz de outrora. Houve uma alteração evidente de escala no trabalho do magistrado – é sabido que é necessário julgar mais no Brasil. Ocorreu, ainda, mudança evidente de qualidade – as causas complexas estão em debate, com seu grande impacto econômico e social. Basta pensar nas ações civis públicas de cunho ambiental e nos processos coletivos de consumo. A proteção judicial possui evidente impacto econômico na vida social – o aumento da proteção jurídica ocorre na mesma razão dos custos de produção, pois não há direitos sem que haja custos adjetivos em sua observância prática. Defender o meio-ambiente significa proteger o futuro das gerações vindouras. Mas, no curto prazo também significa aumentar os custos de produção no Brasil. Colocado dessa forma, parece algo simples. Todavia, não é. Não é possível deixar de imputar tais custos à produção – por força do sistema jurídico vigente - mesmo que estivéssemos em um cenário de recessão econômica. Sobre isso pode-se dizer que se está diante de um cálculo racional complexo. Assim, a preparação para atuar em causas de grande complexidade é um enorme desafio em marcha no âmbito do Poder Judiciário. Mas, fica uma pergunta no ar: como poderão os egressos dos cursos de direito estar antenados com essas alterações profundas em uma faculdade que possui pouco espaço para inclusão de novos conteúdos, uma vez que já é dominado por temas tradicionais e de base que, no mais das vezes, precisam ser lecionados mesmo? Não é possível que sacrifiquemos a formação clássica – sempre penso na importância do sistema de Direito Romano como base da obra jurídica ocidental – em prol das inovações e das contingências. Afinal, esses elementos clássicos estão na raiz da civilização e servem, nos momentos de barbárie e de crise política ou moral, como verdadeiros antídotos contra a tirania. Cito apenas um exemplo que comprova essa assertiva, o qual foi extraído do maior repositório de baixezas a que a humanidade já constituiu no século XX, que foi o Nazismo: dentre os juristas que mais se opuseram ao regime de Adolf Hitler, encontravam-se os professores

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de Direito Romano. E, não foi sem causa que, no programa oficial do Partido Nazista, um dos pontos centrais era a abolição do ensino de Direito Romano em todas as cátedras universitárias alemãs. Como equilibrar, portanto, essas duas necessidades? Uma solução havia sido dada, no cerne da Resolução no 9/2004, do Conselho Nacional de Educação, por meio das atividades complementares. O objetivo seria que elas servissem para agregar conteúdos atualizados que não poderiam ser obtidos meramente por disciplinas de cunho tradicional. Ainda que não haja estudos empíricos credíveis sobre o uso das atividades complementares nos cursos de graduação em Direito, os professores – de modo geral – consideram que ela se tornou um requisito meramente formal. Assim, os alunos buscam quaisquer atividades para computar as horas em prol da integralização curricular sem que haja um real planejamento em obter conhecimentos efetivamente inovadores. Em suma, este é o grande problema. A questão da formação prática. Pergunto: seria possível que as escolas judiciais contribuíssem para a formação mais efetiva relacionada à preparação dos futuros graduados em direito na tarefa de julgar? 3. A possível e necessária contribuição das escolas da magistratura à formação dos estudantes Para tanto, deve ser mencionada uma iniciativa muito relevante, recentemente realizada pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. Essa iniciativa foi a organização de um evento e de uma rede que envolvesse a construção de disciplinas optativas na matriz curricular de diversas faculdades de Direito do País, com o objetivo de despertar vocações para a magistratura. Para estimular essa difusão, em outubro de 2013, foi ministrado um curso denominado “Magistratura: Vocação e Desafios”. O curso foi direcionado aos docentes das instituições educacionais parceiras, que acolheram a proposta da ENFAM de construir disciplinas optativas em suas grades de ensino. No curso, lecionaram diversas personalidades do mundo jurídico brasileiro, como os ministros Ayres Brito e Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal. O tema do curso acima indicado é bastante relevante. Afinal, é importante esclarecer aos estudantes de direito qual a dimensão do trabalho do juiz, pois a figura do magistrado é envolvida em uma mística que – não raro – é muito distante da realidade. Logo, para despertar vocações à magistratura, é importante esclarecer aos estudantes quais são as funções e como é o trabalho efetivamente realizado pelos magistrados, em especial pelos juízes de primeira instância. Debater o funcionamento da jurisdição com os estudantes de Direito também é uma oportunidade muito boa para que as instituições possam contribuir

com as escolas judiciais, bem como possam auxiliar no aperfeiçoamento do Poder Judiciário brasileiro em sentido bastante amplo. É muito importante notar que a contribuição das escolas judiciais é bem mais ampla do que o seu apoio ao futuro magistrado ou ao atual juiz. As escolas são espaços privilegiados, também, para o acoplamento de atividades de pesquisa – entendidas como parte do processo educacionais – que são necessárias à definição e à reflexão sobre as linhas de atuação dos tribunais. Como menciona Suzy Cavalcante Koury, as escolas judiciais possuem também a importante função de estimular o planejamento estratégico da administração pública, de forma semelhante à que é desempenhada pelas escolas de governo5. Pensar a reposição de pessoal qualificado para manutenção e, ainda, para a melhora dos serviços prestados é, certamente, uma função relacionada com o planejamento estratégico e com as atividades educacionais. Penso que as corporações judiciárias e as escolas – judiciais ou judiciárias – poderiam fazer mais em prol da educação jurídica, seja por meio do desenvolvimento de atividades didática em parceria com os cursos de Direito, seja por meio de fomento à pesquisa, em parceria com os núcleos acadêmicos bem estabelecidos. Vejo que o caminho dos convênios deveria ser trilhado com mais ênfase para estimular que docentes dos cursos de Direito – e até de outras áreas, como gestão, por exemplo – ofertassem disciplinas e conteúdos que visassem ao aperfeiçoamento do sistema judiciário brasileiro e, também, por certo, dos cursos de Direito. É meu sentir que se mostra imperativa a abertura cada vez maior das escolas da magistratura para a sociedade, para as instituições, como a ABEDi, que discutem o ensino jurídico brasileiro, e para o meio universitário como um todo.

Notas Um bom histórico da empreitada dos ministros envolvidos nos primeiros passos da Enfam – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – pode ser conferido em: CALMON, Eliana. Escolas da magistratura. Revista da Escola Nacional da Magistratura, v. 1, n. 2, p. 18-25, out. 2006. 2 Superior Tribunal de Justiça. Subsídios à implantação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) no Superior Tribunal de Justiça. Brasília: STJ, 2006, 8 v. 3 Dois livros recentes são muito interessantes sobre o assunto: TAMANAHA, Brian. Failing law schools. Chicago, IL: The University of Chicago Press, 2012; WEST, Robin. Teaching law: justice, politics, and the demands of professionalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. 4 HARPER, Stephen. The lawyer bubble: a profession in crisis. New York: Basic Books, 2013. 5 KOURY, Suzy Cavalcante. Planejamento estratégico do Poder Judiciário: o papel das escolas judiciais. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 9a Região, v. 35, n. 64, p. 343-356, jan./jun. 2010. 1

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E m foco, Giselle Souza

Justiça Militar segue autônoma Nova presidente do STM, Maria Elizabeth Rocha destaca a importância da decisão do grupo de trabalho do CNJ que assegura a continuidade deste segmento do Judiciário

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nfim, a Justiça Militar sai fortalecida. É o que conta à Justiça & Cidadania a ministra Maria Elizabeth Rocha, futura presidente do Superior Tribunal Militar, sobre a decisão do grupo de trabalho criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de defender a continuidade deste ramo do Poder Judiciário. A comissão de especialistas fora reunida para propor a extinção da Justiça castrense, mas os estudos só reforçaram a importância do segmento para a boa prestação jurisdicional no Brasil. Ao reconhecimento, segue-se agora a necessidade de investir na modernização do Judiciário Militar, tanto na esfera da União como dos Estados. Maria Elizabeth enumera algumas metas que tem para esse segmento. “Esperamos poder julgar as infrações disciplinares, tal qual a Justiça Estadual; deter assento no CNJ, órgão ao qual nos submetemos sem, contudo, termos voz ou representação; e, ainda, apreciarmos as causas cíveis”, afirmou. Maria Elizabeth toma posse como presidente do STM no dia 16 de junho. O mandato será de um 22

ano. Primeira mulher a dirigir a instituição, ela assume o lugar do general de Exército, Raymundo Nonato Cerqueira Filho, que se aposenta neste mês em razão da idade limite de 70 anos para a aposentadoria compulsória. A ministra é mineira de Belo Horizonte e, antes de ingressar no tribunal superior, fez carreira como procuradora federal. Confira a íntegra da entrevista. Revista Justiça & Cidadania – Em fevereiro, uma oficina realizada pelo Conselho Nacional de Justiça sobre a Justiça Militar concluiu que este ramo do Judiciário deve permanecer autônomo. Qual é a importância dessa decisão? Maria Elizabeth Rocha – A disciplina e a hierarquia são pilares fundamentais das Forças Armadas e Auxiliares. Foram instituídas pela Constituição para preservar a estrutura verticalizada e a cadeia de comando, tanto no Exército, na Marinha e na Aeronáutica, quanto nas Polícias Militares e no Corpo de Bombeiros. Some-se a inarredável necessidade de uma resposta célere e efetiva por parte da jurisdição cas-

trense diante dos delitos praticados nesta esfera. Na justiça penal especializada, as ações são julgadas em curtíssimo espaço de tempo, o que é fundamental para a estabilidade nos quartéis. Imprescindível a efetivação do primado da razoável duração do processo, tão prestigiado pela doutrina e pela Lei Maior, mas tão acutilado pela morosidade forense, para a preservação da autoridade. Mais que isso, o Estado Democrático de Direito passa, inexoravelmente, pela manutenção da ordem e pela contenção de levantes ou insurgências de homens armados. Na estrutura castrense, hierarquia e disciplina emergem como meta-valores, hodiernamente concebidos, lato sensu, como segurança da pátria e segurança pública. A função militar se diferencia de todas as demais em razão da nobre missão que encabeça. Daí, a noção de subordinação hierárquica destacar-se por preservar a eficiência e a obediência no seio da tropa. E é nesse cenário que os tribunais militares ganham preponderância e prevalência na garantia dos pilares fundantes do Estado Nacional e do Poder Judiciário. Justiça & Cidadania | Junho 2014


Foto: Foto:Rosane Odair Freire/STM Naylor/TJRJ

Maria Elizabeth: ‘Extinção da Justiça Militar traria prejuízos à democracia’

Quais seriam os prejuízos caso a interpretação fosse no sentido de extinguir a Justiça Militar? – Seriam muitos os prejuízos para a democracia, para a sociedade e para o próprio Poder Judiciário. Isso porque as justiças militares, tanto a da União quanto a dos Estados, esta última com competência para processar e julgar os crimes militares praticados pelos policiais e bombeiros militares, constituem um ramo especializado da judicatura, tal qual

as justiças do Trabalho e a Eleitoral, e detêm a expertise necessária para assegurar a incolumidade dos bens jurídicos penalmente tutelados, bem como para avaliar a legalidade do exercício do poder disciplinar. As instituições armadas têm por escopo a proteção do Estado e da incolumidade física dos indivíduos, valores mais elevados do que a própria vida, uma vez que, sob determinadas circunstâncias, impõe-se aos militares o dever de matar ou morrer. A tal

valor especialíssimo correspondem regras especialíssimas de conduta, que devem ser rigorosamente observadas sob pena de comprometer a estabilidade do regime político. Nessa linha, a eficácia e a certeza dos julgados criminais se fragilizariam caso estes fossem apreciados pela Justiça Ordinária, podendo provocar uma desuniformização da jurisprudência. Afinal, as decisões emanadas por uma Justiça inegavelmente mais preparada para lidar com as causas que envolvam seus membros prestigiam a jurisdição. Aliás, as técnicas de boa gestão recomendam a especialidade e não a generalidade como caminho a seguir. Indago: qual o sentido de extinguir-se uma justiça célere, eficiente e que sempre prestigiou a razoável duração do processo, muito antes do advento da Emenda no 45/2004, para declinar sua competência ao foro comum já tão sobrecarregado? Porém, a mais grave consequência de tal medida seria a supressão de um rigoroso controle sobre homens armados, em face de uma sociedade desarmada e vulnerável. Relembro os episódios ocorridos com os policiais militares do Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo e outros estados da federação, bem como o motim dos controladores de tráfego aéreo, que desestabilizaram a nação. Não tenho dúvidas de que a extinção das justiças Militar, Federal e Estadual configuraria grave ameaça à legitimidade do regime político e à estabilidade social, na medida em que, reafirmo, Polícia Militar e Forças Armadas devem estar submetidas à uma criteriosa aferição. Nesse sentido, saliento o rigor dos julgados nas cortes militares, com elevado índice de condenação, ao contrário do que levianamente costumam afirmar aqueles que as desconhecem, atribuindo-lhes a pecha de justiça corporativa. Uma análise superficial dos acervos jurisprudenciais desmente tal inverdade e lança luzes sobre suas valorosas atuações.

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Como seria essa ampliação da competência da Justiça Militar para julgar infrações disciplinares e matéria civil? A legislação atual precisaria ser alterada? – Sim. A ampliação, como disse anteriormente, é uma reivindicação antiga da Justiça Militar da União, olvidada pelo constituinte derivado na reforma do Poder Judiciário e que a Proposta de Emenda Constitucional 358-A/05 busca reparar. A especificidade da legislação militar, as peculiaridades da carreira e todas as implicações que possam afetar a estrutura das Forças Armadas, das Polícias e dos Corpos de Bombeiros Militares são argumentos preponderantes para o alargamento da competência. Noutras palavras, hão de ser consideradas as regras regentes da caserna, bem como as características sui generis da carreira das armas, para se determinar sob qual jurisdição deveriam submeter-se os conflitos dela provenientes. Certo é que os militares são agentes administrativos 24

Foto: Rosane Naylor/TJRJ

Considerando o desfecho do grupo de trabalho do CNJ, quais são as perspectivas da Justiça Militar? – As respostas consolidadas pelo grupo de trabalho confirmaram a importância da manutenção da Justiça Militar da União e dos Estados como ramo especializado do Poder Judiciário. As discussões empreendidas são significativas e relevantes, uma vez que buscam propor um novo modelo de funcionamento destas instituições. Nesse sentido, os grupos de trabalho de cada oficina teceram considerações que se alinham ao defendido por juristas e pelos magistrados que as integram, no tocante à renovação e à ampliação de competência, mormente, da Justiça Militar da União, que foi esquecida pela Emenda Constitucional no 45/2004. A pauta do dia passou a ser, em verdade, a modernização das justiças penais especiais. Temas como a inclusão do processo eletrônico, a alteração das atribuições dos conselhos de justiça e dos juízesauditores a nível federal, bem como a ampliação da competência federal e estadual para lides cíveis afetas à corporação, exsurgiram ao longo dos trabalhos. Quanto às perspectivas da Justiça Militar da União, esperamos poder julgar as infrações disciplinares, tal qual a Justiça Estadual; deter assento no Conselho Nacional de Justiça, órgão ao qual nos submetemos sem, contudo, termos voz ou representação; e, ainda, apreciarmos as causas cíveis. Adequado seria que o caput do artigo 124 e o parágrafo 4o do artigo 125 da Constituição Federal autorizassem o julgamento das matérias administrativas capituladas no artigo 142, parágrafo 3o, inciso X, tais como inatividade, promoção, prerrogativas, para englobar todas as questões inerentes à situação dos militares, exceção da remuneratória, atribuições que deveriam estender-se aos entes federados.

diferenciados daqueles outros que não se encontram sob os auspícios dos regulamentos marciais, não podendo suas causas ser apreciadas sem considerar ditas especificidades. Ao contrário das demais carreiras de Estado, nas quais inexistem relações especiais de sujeição a traduzirem-se em obrigações legais constritivas de direitos, deles se exige um rigoroso atuar de fidelidade à pátria. Nesse universo, ampliar a competência reservada à justiça castrense solveria causas que demandam a necessária adequação dos litígios concernentes à vida nos quartéis. Para tanto, fundamental o conhecimento legal específico aliado à experiência militar, só passíveis de serem alcançados por meio da especialização e do escabinato. O elastecimento de atribuições atenderia, outrossim, aos ditames da eficiência e da otimização, tanto da judicatura quanto da própria administração pública. Nesse propósito, a racionalização deveria avançar em direção às ações cíveis, de cunho administrativo, vinculadas aos militares nos dois níveis federativos. Tais mudanças, contudo, somente serão viáveis por meio de reforma constitucional. E, nesse conspecto, a atuação do Conselho Nacional de Justiça será de extrema valia para acelerar e levar a cabo o processo legislativo. Atualmente há uma composição mista nos órgãos de julgamento da Justiça Militar. Isso deve ser revisto na proposta de mudança estrutural? – Penso que não. A propósito, assinalo que a estrutura do escabinato não está sendo questionada. Nenhuma das propostas de alteração da estrutura dos tribunais castrenses cogita o abandono da composição mista. Indiscutível que os julgamentos dos crimes militares só são exercidos com justiça e acuidade graças à valiosa interveniência dos magistrados militares, pois eles dispõem de aprofundada vivência na caserna. A ideia é que as decisões prolatadas não o sejam, apenas, com base na letra fria da lei, mas utilizando-se o senso de equidade desenvolvido por aqueles que partilharam experiências comuns. Inarredável, portanto, o suporte dos oficiais para auxiliar e indicar as especificidades desse mundo desconhecido da sociedade civil. Nas palavras do ministro Moreira Alves: “Sempre haverá uma Justiça Militar, pois o juiz singular, por mais competente que seja, não pode conhecer das idiossincrasias da carreira das armas, não estando, pois, em condições de ponderar a influência de determinados ilícitos na hierarquia e disciplina das Forças Armadas”. O escabinato é uma forma antiga e eficiente de tomada de decisões. Ele alia a práxis militar com o saber jurídico dos magistrados togados. Nada mais republicano, porquanto esta composição múltipla reforça os valores democráticos, tal como ocorre no Tribunal do Júri.

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Foto: Odair Freire/STM

“Ampliar a competência reservada à justiça castrense solveria causas que demandam a necessária adequação dos litígios concernentes à vida nos quartéis. Para tanto, fundamental o conhecimento legal específico aliado à experiência militar, só passíveis de serem alcançados por meio da especialização e do escabinato”

Maria Elizabeth sendo agraciada com o Trofém Dom Quixote, da Revista JC. Prêmio foi entregue pelo Ministro Marco Aurélio, do STF

Há alguma proposta de mudança relativamente ao julgamento de civis na Justiça Militar? – Sim. Atendendo à disposição magna, caso um civil ofenda bens jurídicos das Forças Armadas, será julgado pela Justiça Militar da União, na esteira do artigo 124 da Constituição Federal. Diferentemente, na esfera estadual, caso um civil atente contra os bens jurídicos atinentes ao Corpo de Bombeiros ou à Polícia Militar, estará ele sujeito à jurisdição comum, por imperativo previsto no artigo 125, paragrafo 4o, da Constituição. Extrai-se, assim, da Carta Política, ser a competência da Justiça Militar da União ratione legis, e não, ratione personae, ratione materiae ou ratione loci, inexistindo distinção normativa entre o agente civil e o militar. Ao tipificar os crimes militares, observou o legislador ordinário ser papel fundamental das Forças Armadas a defesa da pátria, daí porque todos os

cidadãos, sem distinção, devem respeitá-las, sendo-lhes vedado cometer atos atentatórios contra tão relevantes instituições. Afastar os civis da Justiça Militar da União, geraria incertezas e instabilidades institucionais, temerárias ao regime democrático arduamente consolidado. Lá são julgados narcotraficantes que metralham comboios militares ou aliciam soldados conscritos para cometerem práticas delitivas; são julgados furtos de armamento de alta letalidade, como fuzis e granadas; integrantes das FARCs que invadem o território nacional e matam militares brasileiros; poder-se-á vir a julgar o tiro de destruição, que nunca ocorreu, mas é uma possibilidade; dentre crimes outros de inolvidável gravidade para o Estado Brasileiro. Rememoro deterem as Forças Armadas poder de polícia nas extensas e despovoadas zonas de fronteiras terrestres e marítimas e a sua destacada atuação

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na garantia da lei e da ordem. A segurança dos grandes eventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, bem como as eleições, demandam a efetiva participação dos contingentes militares e ilustram a imprescindibilidade de os criminosos civis permanecerem sob a égide da jurisdição penal especial. Por essa razão, o Constituinte originário, dotado dos atributos da inicialidade, incondicionalidade e ilimitabilidade, conferiu a condição de juiz natural à Justiça Militar da União para processar e julgar civis. Como a senhora vê os questionamentos, inclusive judiciais, acerca do julgamento de civis pela Justiça Militar? – Com certa incompreensão, na medida em que o colégio formal da soberania, atento à relevância dos delitos castrenses em uma sociedade democrática estável, entendeu por bem não restringir a competência da Justiça Militar da União para julgar civis. Efetivamente, a Constituição, podendo disciplinar de maneira exauriente a quaestio e aproximar a corte federal à estadual especializada, afastou-a, neste ponto, da segunda, para preservar o iuris dicere, numa clara definição das balizas reitoras. Reconheço, contudo, existirem demandas no tocante ao Conselho Permanente de Justiça julgar civis, objeto da ADPF no 289. A resposta correta, porém, não está no afastamento da competência, mas na interpretação sabiamente prolatada pelo ministro Gilmar Mendes (STF), no HC no 112.848. Entendeu o eminente magistrado e renomado constitucionalista, que aos artigos 16 a 26 da Lei 8.457/1992, que organizam a Justiça Militar da União e regulam o funcionamento de seus serviços auxiliares, fosse oferecida exegese consentânea à Lex Magna, a fim de que este agente seja julgado exclusivamente pelo juiz-auditor, ingresso na magistratura por concurso público de provas e títulos e cidadão civil. Concluo afirmando serem as justiças Militares da União e dos Estados uma das jurisdições mais céleres e efetivas da judicatura pátria, garantidoras dos princípios máximos assegurados pela Lei Maior e por todos os instrumentos jurídicos internacionais que, inclusive, prevalecem sobre suas normas processuais penais. Sob os auspícios do sistema acusatório, seus julgamentos são respaldados pela observância, imperiosa e inarredável, do plexo de direitos e garantias fundamentalizados pelo artigo 5o da Constituição Federal, bem assim pelas diretivas estabelecidas pela Organização das Nações Unidas para as justiças militares no mundo. A Justiça Militar é a mais antiga do Brasil. Qual o seu legado ao Poder Judiciário? – Por dever de ofício e de consciência, esclareço que Justiça Militar da União nunca foi uma justiça de exceção. Instituída em 1808 pelo Príncipe Regente D. 26

João, ainda no Império, e não por um ato institucional após 1964, é a Justiça mais antiga do Brasil e foi integrada ao Poder Judiciário pela Carta liberal e democrática de 1934, e não pela Constituição autocrática de 1967/69. Sua jurisprudência, ao longo da história, sempre deu exemplos de independência e coragem, em decisões memoráveis como a prolatada em 1936, quando o então Supremo Tribunal Militar reformou a sentença condenatória proferida pelo Tribunal de Salvação Nacional instituído pelo Estado Novo Varguista e concedeu ordem de habeas corpus à João Mangabeira; ou, ainda, quando deferiu a primeira liminar em sede deste mesmo writ, decisão que serviu de precedente para o próprio Supremo Tribunal Federal. Cito, ainda, o julgamento dos presos políticos proíbidos de manter contato com seus advogados pela Lei de Segurança Nacional, que teve na histórica decisão da Representação no 985 solução lapidar, ao observar os princípios do direito de defesa. Nessa linha, entendeu o STM, na década de 1970, que a greve, mesmo quando declarada ilegal pelo Poder Executivo, se perseguisse melhoria salarial, não constituía, segundo o Recurso Criminal no 5.385-6, delito contra a segurança nacional. No Recurso Criminal no 38.628, assentou a Corte que a mera ofensa às autoridades constituídas, embora feita em linguagem censurável, não configurava crime contra a segurança do Estado, resguardando a liberdade de imprensa e de expressão. Todas essas decisões, dentre outras que poderiam ser nomeadas, descortinam um legado judicial dignificante, testemunhado por advogados ilustres, defensores da liberdade, como Sobral Pinto, Heleno Cláudio Fragoso, Paulo Brossard, Fernando Fragoso e Técio Lins e Silva. Lembro que os defensores públicos, quando atuaram pela primeira vez no Judiciário pátrio, o fizeram no Superior Tribunal Militar. Não fosse tudo isso suficiente, reproduzo o Manifesto em Defesa dos Direitos Humanos, subscrito a unanimidade pelos ministros do Superior Tribunal Militar, em 19 de outubro de 1977, período mais duro da ditadura, contra as torturas e sevícias praticadas pelo regime autoritário; única Corte de Justiça a fazê-lo: “Nós, juízes desta Casa, deste templo de Justiça, todos nós, indistintamente, somos visceralmente contrários às torturas e sevícias aplicadas aos detidos, como um atentado à própria dignidade humana. [...] Pouco importam os antecedentes e as suspeitas que possam recair sobre os acusados da prática de crimes, recolhidos à prisão. Na obtenção de suas confissões, não é lícito a nenhuma autoridade policial, sendo-lhe mesmo defeso, empregar métodos medievais e cruéis, sejam ou não procedentes as acusações que lhe são imputadas.” Este é o legado da Justiça Militar ao Poder Judiciário pátrio e à história do Brasil.

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Quem tem medo do voto facultativo? Marcelo Nobre

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Advogado Ex-conselheiro do CNJ

1. Considerações iniciais discussão sobre qual é o sistema de voto ideal para o País, se o obrigatório ou o facultativo, já foi feita à exaustão, inclusive durante a própria constituinte que aprovou a Carta Magna vigente. Por esse motivo, não pretendo rediscutir ou repisar os argumentos utilizados pelos defensores das duas teses. Se buscarmos estudar o assunto nas bibliotecas ou nos sites de busca na internet, encontraremos milhares de artigos e debates que retratam todos os tipos de argumentos e fundamentações possíveis para sustentar os pontos de vista sobre a matéria, o que dispensa sua reprodução no limitado espaço deste ensaio. Veremos a seguir se o sistema eleitoral – voto – enquadra-se no contexto democrático atual ou se há necessidade de se adequar aos princípios e critérios fixados pela Constituição e pelos avanços sociais e políticos conquistados nestes mais de 20 anos de vigência. Alguns estudiosos do tema, que discutem se o voto deve ser obrigatório ou não, levantam algumas questões, que podem ser resumidas nos seguintes pontos: • O voto é um dever ou um direito? • A maioria dos eleitores dispõe de informações suficientes para formar sua convicção? • O povo é ou não é soberano para decidir sobre qual dos dois sistemas é o mais adequado – plebiscito? “O povo não sabe votar”. Em qual sistema ele não sabe votar? • Obrigar a votar não é autoritário? A obrigatoriedade seria compatível com o Estado Democrático de Direito? 28

• O voto obrigatório produz consciência política? • O voto obrigatório oferece maturidade política ao cidadão ? • Mesmo com sanções existentes hoje para quem não cumpre com a obrigação de votar temos, de fato, uma significativa representatividade popular nas eleições? • Os direitos e as garantias individuais do cidadão, consignados como cláusula pétrea no artigo 60, parágrafo 4o, inciso IV, da Carta Magna, estão sendo observados com o voto obrigatório? O voto obrigatório foi introduzido no Brasil com o Código Eleitoral de 1932 e foi mantido na Carta de 1988 após intensa discussão entre os constituintes. A época era outra. Estávamos no início da redemocratização após 20 anos de ditadura militar. O receio de retrocesso era grande. O pensamento que imperava em todos era o de lutar com a força e as armas possíveis para que a consolidação da democracia no País avançasse. E uma das principais armas para se atingir esse objetivo, à época, era o voto obrigatório. Todavia, agora o momento político é outro. Temos uma democracia consolidada com avanços inimagináveis até mesmo para os mais otimistas. Alcançamos a marca de seis democráticas eleições diretas e ininterruptas para presidente, sendo que no curso deste período tivemos o primeiro impeachment de um presidente da República, sem que isso causasse qualquer abalo em nosso reinício democrático.

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Foto: CNJ

Agora, precisamos avançar mais! Precisamos continuar evoluindo na consolidação democrática que inegavelmente produziu uma maturidade política nos cidadãos brasileiros. E se não evoluímos ainda o que deveríamos, foi por culpa da resistência conservadora que insiste em não mudar a mentalidade para adaptar-se ao novo mundo. As mudanças sempre trazem profunda resistência. E isso acontece porque, para quem pretende manter o jogo, mudar as regras traz mais incertezas que certezas. O primeiro ponto encaminha a questão: O voto é um dever ou um direito? Aqueles que sustentam que o voto é um dever entendem que ele é obrigatório. Os que veem o voto como um direito entendem que ele deve ser facultativo, ou seja, que o cidadão deve exercer o sufrágio, se desejar. A essência do pensamento daqueles que defendem que o voto é um dever está no compromisso do cidadão perante sua coletividade e, consequentemente, com o de escolher os seus representantes políticos. E, corroborando esse pensamento, o doutrinador Sampaio (1981, p.66) chega a afirmar que “o voto tem caráter de função pública”. Por outro lado, dentre aqueles que defendem que o voto deve ser facultativo, temos a respeitada voz do ex-senador da República Jutahy Magalhães, que afirma, em um de seus muitos pronunciamentos na tribuna do Senado Federal, que “os defensores deste constrangimento legal (que é o voto obrigatório) têm a pretensão de impor a participação política como um modo de estabelecer legitimidade para a democracia representativa”. Como já afirmei anteriormente, não vou discutir aqui teses de ambos os lados, embora seja necessário

referi-las, em sua essência, em proveito da abordagem que proponho. Os que sustentam a tese de defesa do voto obrigatório utilizam-se, principalmente, dos seguintes argumentos: que o voto é um dever, que a tradição é pelo voto obrigatório, que os benefícios trazidos pelo atual sistema políticoeleitoral são maiores que a relativa perda de liberdade de cada cidadão, que o Brasil não está preparado para o voto facultativo (“o povo não sabe votar”), que falta educação política ao eleitor, que o voto obrigatória faz que a maioria da população vote e que o voto obrigatório diminui o risco de venda de voto. Aqueles outros que defendem o voto facultativo utilizam-se, principalmente, dos seguintes argumentos: que o voto é um direito, que a obrigatoriedade do voto não educa ninguém politicamente, que é inverídica a afirmação de que a maioria dos cidadão participa das votações obrigatórias, que as nações democráticas e evoluídas adotam o voto facultativo e que é inadmissível num Estado Democrático de Direito obrigar o cidadão a exercer sua cidadania. 2. Históricos de reafirmação do voto obrigatório e o atual momento político O voto obrigatório foi adotado no Brasil há quase 80 anos. A última discussão sobre sua manutenção, ou não, ocorreu há mais de 20 anos, durante a constituinte. É absolutamente certo que, após este período, o Brasil consolidou a democracia e prestigiou o Estado de Direito, tendo realizado, repita-se, seis eleições diretas para presidente, além de suportar o primeiro impeachment de

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um presidente, justamente o primeiro eleito diretamente pelo povo, após 20 anos de autoritarismo. Portanto, podemos afirmar que, apesar desse momento critico vivido, a democracia não sofreu qualquer abalo e se estabeleceu em definitivo nos corações livres dos brasileiros. No ano passado, o respeitado instituto Datafolha realizou uma pesquisa, visando esclarecer o que os pesquisados pensavam sobre a obrigatoriedade do voto. O resultado foi uma exata divisão nas opiniões: 48% foram a favor do voto obrigatório e 48% foram favoráveis ao voto facultativo. Outras pesquisas mostram que, se o voto fosse facultativo, quem não compareceria às urnas seria a classe média e não a classe mais carente, como se imaginava. As pesquisas esclarecem qual a distância existente entre a vontade popular e os nossos sistemas e instituições. As eleições nos ensinam muito. Sabemos, por exemplo, que aproximadamente 40% do eleitorado brasileiro não querem participar do processo eleitoral com esse modelo. Entre abstenções, votos brancos, nulos, justificados e aqueles que pagam os quase R$ 5 de multa pelo não comparecimento às urnas, ficamos próximos dos percentuais de comparecimento do eleitorado nos países onde o voto facultativo é adotado. Em outras palavras, usando os mecanismos já existentes – justificativas, votos branco e nulos – os brasileiros expressam seu desejo de não participar do importante momento de escolha dos seus representantes. 3. A rediscussão do voto obrigatório e propostas A nossa expertise em realizar eleições e a nossa tecnologia de última geração são reconhecidas mundialmente, o que já provocou a vinda de inúmeros representantes de vários países para “aprender” conosco sobre a realização de eleições. Nossa evolução no sistema eleitoral é tão grande que o Tribunal Superior Eleitoral já entrou na era da biometria, ou seja, na leitura das digitais dos eleitores. Ora, se consolidamos a democracia vivenciando-a por período nunca antes vivido; se detemos tecnologia de última geração na Justiça Eleitoral; se a última discussão acerca do tema foi travada quando da constituinte há mais de 20 anos; se aproximadamente 40% do eleitorado utilizam-se de métodos aceitáveis para não votar, pergunta-se: Por que não discutir com o povo agora, nesta nova perspectiva, sobre o que ele deseja? Após 80 anos de voto obrigatório, exercidos em grande parte sob o período de ditadura e, nestes últimos 20 anos, sob o período democrático, será que não é a hora de pensarmos em ouvir o soberano povo brasileiro sobre o que ele deseja? 30

Nossa constituição prevê mecanismos de participação popular direta para aproximar a vontade do cidadão ao que é determinado a ele. Afinal, o poder é do povo e em seu nome é exercido pelos representantes eleitos. Temos experiência de alguns plebiscitos para saber se a maioria deseja que o voto continue obrigatório ou se deve ser feita uma experiência com o voto facultativo? O dicionário Aurélio (2010) nos ensina que plebiscito é “o decreto do povo reunido”; “resolução submetida à apreciação do povo”; “voto do povo, por sim ou não, sobre uma proposta que lhe seja apresentada”. Por que temer o plebiscito? Há grande vantagens nesse modelo de consulta, porque teses podem ser levadas diretamente ao cidadão, o importante destinatário dos argumentos, que terá oportunidade de dirimir suas dúvidas. Se a maioria decidir por experimentar um novo modelo, qual será o problema? Qual é o risco para a democracia? Quem tem receio de que o sistema eleitoral venha de encontro ao desejado pelo povo? Um plebiscito, para saber qual a vontade popular sobre o voto obrigatório e o facultativo é o que se espera. Contudo, entendo ser necessário realizar o plebiscito em duas etapas. A primeira para se saber qual é a vontade popular sobre a questão. Se a maioria decidir pela manutenção do voto obrigatório, a questão está encerrada. Se a maioria decidir pelo voto facultativo, devemos discutir a fixação de um número de eleições neste modelo – seis ou oito eleições, por exemplo -, deixando consignado que, ao final do número de eleições estabelecido, haverá um novo

“As eleições nos ensinam muito. Sabemos, por exemplo, que aproximadamente 40% do eleitorado brasileiro não querem participar do processo eleitoral com esse modelo. Entre abstenções, votos brancos, nulos, justificados e aqueles que pagam os quase R$ 5 de multa pelo não comparecimento às urnas, ficamos próximos dos percentuais de comparecimento do eleitorado nos países onde o voto facultativo é adotado”

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plebiscito para que o povo novamente avalie a experiência do voto facultativo, validando-o ou não. Ressalvo, entretanto, o meu posicionamento no sentido de que o número de eleições estabelecido não pode ser pequeno, para evitar o risco de não se conseguir avaliar corretamente o modelo. Esta fórmula impede conclusões precipitadas, mas também não fecha as portas para uma avaliação e, eventualmente, um retorno ao modelo anterior, se for o caso. Assim é que se pode construir um modelo ainda mais aperfeiçoado e próximo da vontade popular. 4. Consciência e maturidade política decorrem do voto obrigatório? É inegável a evolução social e política da população brasileira nestes 80 anos de voto obrigatório. Mas será que essa evolução se deu em razão da obrigatoriedade do voto? Em momento histórico não tão longínquo, não tínhamos possibilidade de discutir política abertamente nas ruas, nos bares, em qualquer lugar. E não conseguíamos também acompanhar os acontecimentos políticos na sua plenitude, em razão da forte censura governamental junto aos órgãos da imprensa. Mesmo com todas as adversidades, o povo ousou. E o fez com responsabilidade – sem derramamento de sangue –, reunindo-se nas ruas e praças de todo o País e clamando por liberdade, democracia, igualdade, transparência e muito mais. Esse povo unido fez ruir um governo que nunca o representou. Esse povo unido realizou, por meio dos seus representantes diretos, a nossa Constituição cidadã. Esse povo unido realizou o primeiro impeachment de um presidente da República. Esse povo unido fez muita coisa em favor da nossa democracia e estabilidade política. Com tantos avanços decorrentes da atuação política destemida do povo brasileiro, como é possível imaginar que este mesmo povo não tem maturidade política? Podemos até concordar que, no início da nossa redemocratização, o voto obrigatório teve um papel importante, mas, agora, vivenciando um longo período de democracia nunca antes desfrutado, não podemos pensar que o voto obrigatório seja o responsável por esta conscientização política. 5. O futuro chegou Como já referi, a Justiça Eleitoral entrou na era da biometria. A leitura das digitais do eleitor para a prática de todos os atos relativos ao exercício da sua cidadania no sufrágio representará muito mais que apenas segurança. Com este sistema, o leitor será completamente identificado, de forma célere, em qualquer ponto do território nacional e até do exterior. Este sistema de última

geração é o mesmo adotado pela Polícia Federal nos passaportes. Com tal avanço tecnológico, já se pode pensar, em um futuro muito próximo, em adotar definitivamente o voto em trânsito em todo o território nacional e não somente para presidente da República. A leitura digital viabiliza o voto seguro em qualquer lugar do País. Além da segurança, viabiliza, também, que o cidadão não justifique ou pague a irrisória e estimulante multa por ter viajado no dia de votação. O controle da leitura biométrica permitirá que ampliemos aos cidadãos a sua liberdade e independência para votar. Tanto isso é verdade que o voto em qualquer ponto do território nacional permitirá que os milhões de brasileiros que residem em lugares distintos dos seus domicílios eleitorais exerçam o seu direito de escolher os seus representantes em vez de justificarem a sua impossibilidade de se deslocar. Uma grande parte da classe média viaja, deixa de votar e simplesmente justifica. Teremos na evolução tecnológica da Justiça Eleitoral um grande aliado na busca da maior participação popular nas eleições. 6. Conclusão É necessário ouvir os responsáveis pela razão de existir da própria nação, por meio de um plebiscito, assim como é necessário investir nos recursos tecnológicos da Justiça Eleitoral para que tenhamos uma democracia plena, mais cidadã e muito mais livre.

Referências bibliográficas BRASIL. Câmara dos Deputados. Tancredo Neves. 2. Ed. Brasília: Câmara dos Deputados, (Perfil parlamentar, no 56) Disponível em <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2761/tancredo_neves.pdf?sequence=4>. Acesso em: 3 jun.2011. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 5. Ed. Rev. Aum. e Atual. São Paulo: Ed. Positivo, 2010. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocencio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011. NOBRE, Marcos. O voto do voto. Folha de São Paulo, ago. 2010. ORDEM dos Advogados do Brasil. Debate sobre reforma do sistema eleitoral. 2010. RIBEIRO, Renato Janine. Sobre o voto obrigatório. In: BENEVIDES, Maria Victoria; VANNUCHI, Paulo; KERCHE, Fabio (Org.). Reforma política e cidadania. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003. Disponível em : <http://www.renatojanine.pro.br/Brasil/sobrevoto. html>. Acesso em: 3 jun. 2011. SAMPAIO, Nelson de Souza. Revista de Jurisprudência do TJ/RJ, 1o trimestre 1981, p. 66. SIMON, Pedro. Voto obrigatório ou facultativo. Jornal do Senado, fev. 2010. SOARES, Paulo Henrique. Vantagens e desvantagens do voto obrigatório e do voto facultativo. Brasília: Consultoria legislativa do Senado Federal; Coordenação de Estudos, Abr. 2004.

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Fotos: Marcelle Martins

Da esq. para a dir.: Marcio Roberto Morais Silva, presidente da CCR Barcas; Richele Cabral, diretora de mobilidade da Fetranspor; Eduardo Rebuzzi, presidente do Conselho Empresarial de Logística e Transportes da ACRJ; e Flávio Medrano de Almada, presidente do Metrô Rio

Rio de Janeiro, cidade que não pode parar Da Redação

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alco de eventos importantes, como o Mundial da Fifa em junho próximo e os Jogos Olímpicos em 2016, o Rio de Janeiro nunca foi alvo de tantos investimentos como nos últimos anos, principalmente no campo da mobilidade urbana. Todo esse esforço, contudo, não conseguiu evitar que a cidade maravilhosa tivesse seu trânsito eleito o terceiro pior do mundo em uma pesquisa divulgada recentemente. Em meio a essa contradição, uma dúvida surge: o Rio pode, de fato, parar? 32

O questionamento levou a Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) a reunir representantes do Governo e dos consórcios responsáveis pelos principais meios de transporte no Estado em um seminário que teve justamente esse tema: “O Rio não pode parar”. O evento aconteceu no dia 15 de abril na sede da entidade, no Centro. O que se observou na ocasião foi uma grande prestação de contas dos envolvidos com relação aos avanços já promovidos e o relato das estratégias traçadas para impedir o atrofiamento da cidade.

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“Ônibus, trens, barcas e metrô transportam diariamente quase 2 milhões de pessoas. Estudos apontam que o cidadão perde até 4 horas por dia nos trajetos que realiza de casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Quarenta e dois bilhões de reais seria o montante perdido pela cidade anualmente com os engarrafamentos” Os números do transporte no Rio podem ser classificados como impressionantes: ônibus, trens, barcas e metrô transportam diariamente quase 2 milhões de pessoas. Estudos apontam que o cidadão perde até 4 horas por dia nos trajetos que realiza de casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Quarenta e dois bilhões de reais seria, segundo alguns estudos, o montante perdido pela cidade anualmente com os engarrafamentos. No estudo realizado pela empresa holandesa TomTom, e divulgado em novembro do ano passado, o trânsito do Rio perde somente para os de Moscou e Istambul. A companhia analisou 169 cidades. São Paulo, principal referência no Brasil no que se refere aos congestionamentos, ficou com a sétima posição neste ranking mundial. Delmo Pinho, subsecretário estadual de Transportes, explicou no seminário da ACRJ que os investimentos realizados no transporte público do Rio já somam a cifra de R$ 15 bilhões. As ações relatadas pelos representantes das concessionárias no evento também reafirmam o compromisso do empresariado em fomentar a mobilidade no Estado. Uma das participantes, a diretora de mobilidade da Federação das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), Richele Cabral, ressaltou que as metas com relação aos ônibus foram traçadas com o objetivo final de garantir a mobilidade nas Olimpíadas. De acordo com ela, foi com o anúncio do Rio como cidade-sede dos jogos que as coisas de fato começaram a acontecer no setor de transportes. “A economia estava crescente e os investimentos começaram a chegar”, lembrou a especialista. Entre outras coisas, Richele destacou a implantação do Bilhete Único a partir da Lei Estadual 5.628, aprovada

em dezembro de 2009. “Existiam pelo menos 74 diferentes tarifas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Atualmente, o valor do bilhete está limitado a R$ 5,25 para o usuário. O resto é subsidiado pelo Estado. Isso possibilitou a geração de milhares de novos empregos. Consideramos essa política um sucesso”, afirmou. Outro acontecimento importante, na avaliação da representante da Fetranspor, foi a licitação das linhas de ônibus da cidade, em 2010. “As licitações dos consórcios no Estado foram um importante marco legal, pois as empresas puderam se organizar. Aprendemos também a lidar com um novo modelo de gestão, no qual as empresas não podem mais pensar somente na linha delas, mas no sistema como um todo, em benefício do consórcio”, frisou. Os resultados desse pensamento global foram notáveis: a instituição de uma identidade visual única para todas as linhas, a introdução do controle dos ônibus por GPS e a racionalização das paradas com a introdução dos BRSs (Bus Rapid Service) são os principais exemplos. Há ainda os BRTs (Bus Rapid Transit), modelo de transporte que conta com pistas de circulação exclusivas para ônibus padrões e articulados, que podem ser utilizados a partir de estações tais como as do trem ou do metrô. Ao todo, serão quatro os corredores BRTs no Rio de Janeiro. A Transcarioca, com 39 km de extensão, ligará o Terminal Alvorada, na Barra da Tijuca, ao Aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador. A Transoeste, ja em operação desde meados de 2012, liga o terminal Alvorada até Santa Cruz e, futuramente, chegará ao Jardim

Richele Cabral, diretora de mobilidade da Fetranspor

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Fotos: Marcelle Martins

Oceânico, contando com pontos de integração com a futura Linha 4 do Metrô Rio. A Transolímpica terá 26 km no total e conectará a Barra a Deodoro. A Transbrasil, por fim, contará com 20 km e cinco terminais: Deodoro, Margaridas, Missões, Fiocruz e Centro. De acordo com Richele, todas as medidas em prol do transporte público vêm sendo testadas e aperfeiçoadas nos eventos que acontecem na cidade. Foi assim na mais recente edição do Rock in Rio – oportunidade em que a Fetranspor pôde rascunhar planos destinados ao transporte de massa para regiões específicas –, e continuou com o Rio+20, a Jornada Mundial da Juventude e a Copa das Confederações. Os desafios para garantir a mobilidade nas Olímpiadas, entretanto, ainda são muitos. “Um grande desafio para 2016 é saber, por exemplo, a tecnologia mais viável. Precisamos unir economia e sustentabilidade”, afirmou Richele. Ela exemplificou essa questão ao comentar o teste iniciado no mês passado pela Fetranspor com os ônibus elétricos. A entidade também vem promovendo o uso de diversos tipos de combustíveis nos coletivos, justamente para verificar qual deles têm o melhor desempenho. No campo da inovação, a Federação destaca o site Vá de Ônibus, em funcionamento desde o ano passado. Disponível apenas pela internet, o sistema ganhará neste mês uma versão para smartphones e estará disponível tanto para IOS como Android. O app visa a oferecer aos usuários as melhores opções de deslocamento via sistema coletivo. As alternativas de viagens são sempre apresentadas com o número e o nome das linhas acompanhados de informações sobre eventuais transbordos, as distâncias que serão percorridas, os trechos que exigem caminhadas e o valor total a ser pago. A versão para celulares passará a informar os bairros pelos quais as linhas passam e oferecerá um mapa de cercanias, que apontará os pontos turísticos disponíveis ao redor do trajeto. A diretora de mobilidade da Fetranspor explicou que uma das metas era informar o tempo do percurso da linha selecionada pelo usuário. Mas isso terá que esperar. “Uma das dificuldades que temos no momento é justamente prever o horário de chegada dos ônibus, tendo em vista os congestionamentos. Por isso, decidimos não oferecer essa opção agora”, explicou. Na avaliação de Richele, todas as mudanças promovidas, das mais pontuais às estruturais, mudarão a cara do transporte público no Rio. “Nosso objetivo é que todo esse investimento possa mudar nossa malha. Esperamos que em 2016 possamos sentir orgulho do legado que os jogos deixaram para a nossa cidade”, afirmou. Sentimento igual também foi compartilhado pelos demais concessionários. Também participante do seminário na ACRJ, o presidente da Supervia, Carlos José

Marcio Roberto: Barcas têm 30 milhões de usuários por ano

Cunha, destacou os investimentos realizados desde que a Odebrecht TransPort assumiu o controle da empresa, em 2010. Das 188 composições, 108 possuem ar-condicionado. Novas estações foram construídas e as cerca de 100 existentes foram ou estão sendo reformadas. Melhorias no sistema estão sendo constantemente realizadas. Até o momento, já foram substituídos 70 km de trilhos, 80 mil dormentes (peças de madeira nas quais os trilhos ficam apoiados) e mais de 100 mil metros de fios condutores de eletricidade. Cunha ressaltou que alterações também estão sendo promovidas na sinalização. A meta é que a parada das composições nos sinais vermelhos seja controlada eletronicamente e não mais de forma manual pelos maquinistas. Isso tornará o sistema mais seguro e ágil, pois o intervalo de passagem dos trens irá diminuir. O presidente da Supervia destacou ainda a aquisição de 70 novos trens, previstos para chegar até 2015. “Nosso objetivo é nos transformarmos em uma espécie de metrô de superfície”, afirmou. Com relação às Barcas, o presidente da concessionária CCR, Marcio Roberto de Morais Silva, destacou que não foi uma surpresa as críticas relacionadas à precariedade do serviço que recebeu da população ao assumir o cargo, há um ano e meio. Novas embarcações foram adquiridas e investimentos foram realizados nas estações, principalmente na de Araribóia. “Hoje, temos capacidade

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de transportar muito mais passageiros do que nossa demanda atual”, afirmou. O número de pessoas que usam as barcas está atualmente estimado em 30 milhões por ano. No Metrô Rio, o diretor de engenharia Joubert Flores, destacou que os esforços do Grupo Invepar, empresa concessionária, tem se concentrado na ampliação da oferta. A inauguração de novas estações, como a Uruguai recentemente, e as melhorias realizadas, principalmente na Linha 2, fizeram com que o número de usuários crescesse substancialmente, passando de 540 mil por dia em 2007, ano que a concessão teve início, para quase 1 milhão atualmente. “Temos que tentar manter esse crescimento”, ressaltou. O presidente do Metrô Rio, Flávio Medrano de Almada, completou: “Nunca vi na história da cidade o quanto o Governo vem investindo em mobilidade. Temos também realizado um trabalho forte, no sentido de criarmos fundos vinculados à receita do Estado, para que os investimentos sejam anuais. Independentemente de quem assuma a cadeira, o importante é que tenhamos uma política de mobilidade de Estado”. Do lado do Governo, o subsecretário estadual de Transportes Delmo Pinho explicou que a urbanização crescente e desordenada e a opção pelo transporte individual continuam a ser as principais causas de deterioramento do tráfego. “O Brasil tem hoje a quarta indústria automobilística do mundo. Onde poderíamos

Flávio Medrano: Mobilidade deve ser uma política de Estado

Delmo Pinho: Investimentos somam R$ 1 milhão

chegar com essa enorme quantidade de carros que temos? Estamos importando gasolina e diesel porque as refinarias não estavam preparadas para toda essa demanda”, afirmou. Ele afirmou que os investimentos realizados pelo Governo visavam, inicialmente, concentrar 40% da demanda de transporte do estado nos meios de locomoção de alta capacidade. A integração dos diversos tipos de condução foi uma das estratégias adotadas para atrair a população para os coletivos. Pinho contou que essa política incluiu até a construção de meios complementares de acesso dos usuários às conduções. Um exemplo disso é o teleférico do Complexo do Alemão. “Não basta apenas colocar novas linhas para o transporte de massa. É preciso facilitar o acesso da população a elas”, destacou. O seminário “O Rio não pode parar” contou também com a participação do assessor da subsecretaria municipal de Transportes, Luiz Gustavo de Oliveira Barreto; do diretor do desenvolvimento da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET-Rio), Ricardo Lemos Gonzaga; e do coordenador de Trânsito da Secretaria da Ordem Pública, Itarassi Bomfim Júnior. O presidente da ACRJ, Antenor Barros Leal, afirmou que o seminário foi organizado para possibilitar a reflexão sobre o futuro da mobilidade no Estado do Rio. “Esse é um tema que merece atenção e esforço de todos. Espero que ideias surjam e que realmente possamos melhorar o serviço de transporte”, concluiu.

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Invista em Itaboraí

A capital dos bons negócios. Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará a 1 milhão de habitantes nesse período. Esses empreendimentos estão atraindo empresas de diversos segmentos, pois hoje com a nova administração municipal, Itaboraí mostra um cenário de progresso e de modernização da cidade. Seu território faz divisa com Tanguá e Maricá, municípios que serão beneficiados pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via de escoamento que integrará uma importante região do estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o desenvolvimento integrado de toda essa região.

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Itaboraí

Conheça Itaboraí, a cidade que será a segunda capital do estado e o melhor lugar para sua empresa.

www.itaborai.rj.gov.br

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A renovação do contrato de locação com prazo certo sem a anuência do garantidor Irresponsabilidade do fiador

José de Anchieta da Mota e Silva

Desembargador do TJMG

Foto: Depositphotos

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e início, trago para análise alguns artigos da Lei do Inquilinato e dos Códigos Civilistas de 1916 e 2002, bem como a jurisprudência do STJ e, ainda, a lição dos doutos juristas que, de forma correta, diagnosticam a fiança como contrato acessório, dando à mesma interpretação restrita. Nesse sentido, obsta-se a interpretação da fiança de forma extensiva, frente à vedação estabelecida não só pelo artigo 819 do Código Civil de 2002, como também já assim dispunha o artigo 1.483 do Código Civil de 1916. A Lei no 8.245, de 18 de outubro de 1991, prevê, em seus artigos 39, caput, e 40, inciso V, que: Art. 39. Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel, ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado, por força desta lei. (parte final acrescida pela lei 12.221/2009). Art. 40. O locador poderá exigir novo fiador ou a substituição da modalidade de garantia, nos seguintes casos: (...) V – prorrogação da locação por prazo indeterminado, sendo a fiança ajustada por prazo certo.

Ao se examinarem conjuntamente os dois artigos, chega-se às seguintes conclusões: a) a parte final do art. 39 foi incluída pela Lei no 12.211/2009 da seguinte forma: “ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado, por força desta lei”; b) tal acréscimo em nada altera os 38

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fundamentos expostos neste trabalho, por uma razão bem simples: em hipótese alguma, houve revogação do artigo 40, inciso V, da própria Lei, como também não o houve quanto ao disposto no artigo 819 do Código Civil, que impede a interpretação extensiva à fiança; c) não se altera o entendimento remansoso de que o contrato de locação é o principal e o contrato de fiança, o acessório, quando se conclui que o acessório segue a sorte do principal; d) de praxe, os contratos de locação escritos possuem prazo determinado; e) é certo que o locatário fica obrigado, ao término do contrato, entregar o imóvel, isto em caráter irrevogável e irretratável, independentemente de notificação judicial ou extrajudicial. Assim, em razão de tais cláusulas, à evidência, verifica-se que a cláusula que impõe ao locatário a responsabilidade pela demora da entrega das chaves, em hipótese alguma, deve ser debitada ao fiador. Isso, porque a obrigação não é do fiador, mas do locatário, em primeiro lugar, e também do locador em cobrá-la do locatário ou da sua Administradora, para que se tomem as providências cabíveis. Não há como conceber a possibilidade de se responsabilizar o fiador por atitudes tomadas pelo locatário, com a ciência do locador, sem que traga ao conhecimento daquele primeiro a ocorrência da situação e, sobretudo, sem ter a sua anuência. Os artigos 1.483 e 1.500 do Código Civil de 1916 assim dispunham: Art. 1.483. A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva. Art. 1.500. O fiador poderá exonerar-se da fiança, que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando, porém, obrigado por todos os efeitos da fiança, anteriores ao ato amigável, ou à sentença que o exonerar.

Já os artigos 819 e 835 do Código Civil atual preveem que: Art. 819. A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva. Art. 835. O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor.

Diante da redação clara dos artigos acima, não resta dúvida alguma que a melhor interpretação é aquela que afirma que o fiador se desonera de sua responsabilidade, quando do término da locação, na hipótese de o locador e o locatário assentirem pela continuidade da locação, sem consentimento expresso do fiador. Basta uma leitura atenta da primeira parte do artigo 39 da Lei do Inquilinato para se concluir que a segunda parte do artigo se refere ao que foi contratado entre locador e

“A melhor doutrina é unânime ao afirmar a necessidade de anuência do fiador para responsabilizá-lo pelo pagamento de aluguéis em atraso, diante da hipótese de prorrogação da locação. E eu afirmo com absoluta certeza que, encerrado o prazo da locação com termo certo, um novo contrato é realizado, pouco interessando se escrito ou não”

locatário, no que diz respeito ao prazo da locação. É dizer, dispondo o contrato de locação que o prazo é de dois anos, ou seja, prazo certo, à evidência que, ao término do prazo, o fiador fica automaticamente exonerado das suas responsabilidades, uma vez que o contrato de locação deixou de existir. Até porque isso é uma questão de lógica, bom senso e inteligência. Não há como o fiador e o locador estabelecerem um contrato de fiança, sem que exista locação. Sendo o contrato de locação por prazo certo, ao seu término, caso concordem o locador e o locatário em continuar a locação, evidentemente com novo prazo determinado ou indeterminado, escrito ou não, haverá a necessidade de se obter nova anuência do fiador, sem a qual será este exonerado de quaisquer ônus ou encargo proveniente do contrato em que se obrigou a garantir fiança. Assim sendo, pode-se enumerar o que ocorre quando o contrato é por prazo certo e chega ao seu termo final: a) a responsabilidade do fiador começa quando assina o contrato de locação e se encerra quando do término do seu prazo; b) havendo cláusula de prorrogação da fiança, por ser cláusula acessória, esta só terá valor caso ocorra a anuência expressa do fiador. Não existe fiança verbal! c) É preciso ainda frisar: a cláusula de possível prorrogação da locação não se sobrepõe à cláusula que estipula prazo certo para o término do contrato nem ao mandamento legal que determina que a fiança deve ser escrita.

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Nessa ordem, o termo “aditamento” contido na Súmula 2141 do STJ deve ser entendido como alteração, qualquer que seja, como redução de prazo, aumento de prazo, substituição de locatário ou do locador e do fiador. Todas, sem dúvida alguma, precisam do consentimento do fiador, por escrito. A melhor doutrina é unânime ao afirmar a necessidade de anuência do fiador para responsabilizá-lo pelo pagamento de aluguéis em atraso, diante da hipótese de prorrogação da locação. E eu afirmo com absoluta certeza que, encerrado o prazo da locação com termo certo, um novo contrato é realizado, pouco interessando se escrito ou não. Se escrito, decerto que o fiador deve consentir, também por escrito, em continuar se obrigando às responsabilidades advindas do contrato. Se verbal, com maior razão, deve o fiador anuir, expressamente, com o novo período da locação, por ser inaceitável que preste fiança verbal. O Código Civil de 1916 já trazia, em seu artigo 1.483, que a fiança só se dava por escrito e era expresso em vedar a interpretação extensiva. A redação do art. 819 do atual Código Civil repete ser inadmissível a interpretação extensiva da fiança. A regra é taxativa, determinante e de obrigatória observância por todos. É dizer, quer por juízes de primeira instância, quer pelos tribunais estaduais, quer pelos tribunais superiores. A regra vale para todos. A jurisprudência do STJ era coerente com o que dispunha o art. 1.483 do Código Civil de 1916, tanto é que assentou a questão através da Súmula 214. Este entendimento, em hipótese nenhuma, viola o artigo supra, como também não discrepa do disposto no artigo 819 do atual Código Civil. Contudo, alterada a composição das Turmas, o STJ passou a entender que a responsabilidade do fiador só termina com a entrega das chaves, dando à fiança uma interpretação extensiva, o que é vedado pelos arts. 819 e 39, da Lei do Inquilinato. A posição atual do STJ, com o devido respeito, não pode ser aceita, por violar o artigo 819 do Código Civil, e, o que é mais grave, admite que a fiança permaneça ainda com o término do contrato de locação, configurando-se, assim, sua aceitação na forma verbal. Assim sendo, é de se observar que o contrato de locação - a não ser quando ele seja, desde o início, estabelecido por tempo indeterminado – ele sempre deverá observar o prazo expresso no contrato, tendo, portanto, tempo certo para extinguir. E, em ambos os casos, a fiança deverá ser escrita. A Doutrina Necessário descrever a posição doutrinária a respeito da matéria, a fim de fundamentar ainda mais a linha de raciocínio aqui estabelecida. 40

O jurista Dilvanir José da Costa, em sua conceituada obra Direito Civil à luz do novo Código, ensina: 31.1. Conceito, requisitos e efeitos A fiança é um contrato acessório de garantia pessoal ou fidejussória, pelo qual uma pessoa se obriga perante o credor, a cumprir uma obrigação do devedor, caso esta não a cumpra (art. 818). É um contrato formal, exigindo documento escrito, inclusive uma simples cláusula no contrato principal (art. 819). Por se tratar, em regra, de contrato gratuito, a fiança é de interpretação estrita ou não-extensiva”, (autor e obra cits., 3a edição, Editora Forense – Rio de Janeiro, ano de 2009, pág. 319). (destaque próprio).

Outro jurista, Pinto Ferreira, em comentários à Lei do Inquilinato, não discrepa da opinião acima. Vejamos: III - INVIABILIDADE DA INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DA FIANÇA. A fiança é sempre um contrato escrito (CC. ART. 1483). Não admite interpretação extensiva nem pode ser provada por testemunhas, mas não há necessidade de exagerada forma técnica especial para a mesma. É bastante que o fiador assuma a obrigação com clareza no manifestar a sua intenção, o valor da obrigação, o tempo que pode ser determinado ou indeterminado, assim como seu objeto. (...) IX – RESPONSABILIDADE DO FIADOR A responsabilidade do fiador é a de atender e responder pela sua obrigação, tal como ficou convencionado por escrito, e por isso a fiança não admite interpretação extensiva (RT, 258/381). A fiança, assim, termina até onde foi autolimitada a responsabilidade do fiador, e, dessa forma, a majoração dos aluguéis sem a aquiescência do fiador não produz nenhum efeito em relação a este (RT 365/75). (Obra citada, págs. 128/129. Editora Saraiva, São Paulo, ano 1992). (destaque próprio).

Por sua vez, o jurista Nagib Slaibi Filho, em seu livro comentários à nova Lei do Inquilinato, depois de transcrever os arts. 37 até 42 da Lei do Inquilinato, e ao citar e interpretar o art. 39, em nosso entendimento não concorda com os juristas acima citados, uma vez que assim se expressa, no subtítulo: 19.3 - Extensão temporal da garantia Nos termos do art. 39 da Lei do Inquilinato, “salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel”, o que significa que entender-se-á que o garantidor se obriga não só pelo tempo determinado da locação como pelo tempo indeterminado e, até mesmo, pelo tempo excedente de locação, em decorrência de decisão judicial, até o imóvel ser entregue, salvo se, na

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Foto: Gajus-Images/Depositphotos

estipulação da garantia, houver sido ajustado que haverá determinada limitação temporal”. (destaque nosso).

O citado jurista, na mesma obra, ao tratar da fiança a que se refere o artigo 1483 do Código Civil de 1916, atual artigo 918 do Código Civil em vigor, ignora a vedação contida no artigo quanto à não interpretação extensiva. Assim se posiciona após transcrever o art. 1.481: 19.4. A fiança Dá-se o contrato de fiança quando uma pessoa de obriga por outra, para com o seu credor, a satisfazer a obrigação, caso o devedor não a cumpra (Código Civil, art. 1481). A fiança é contrato acessório, unilateral (quanto à constituição de obrigações, pois somente o fiador é que se obriga), solene (pois exige forma escrita – art. 1483, do Código Civil quer como cláusula no contrato de locação, quer em documento independente ou “carta de fiança”), e, no geral, é contrato gratuito (pois o fiador geralmente, nada recebe do afiançado, embora não seja ilícito que o fiador cobre do afiançado a prestação de seu serviço de fiança). (autor e obra citados, págs. 214 e 217, Editora Forense, 8a edição, ano 1995, Rio de Janeiro). (destaque nosso).

No entanto, com o devido respeito ao douto jurista e ao Colendo STJ, a melhor interpretação é a que vai ao encontro da lei e dos juristas alhures citados. Ante o exposto, é plenamente inaceitável a prorrogação da responsabilidade do fiador perante um contrato de locação cujo prazo já se expirou, sem haver sua anuência escrita,

tendo em vista apenas um cláusula de previsão de fiança por tempo indeterminado. Nesse aspecto, quando no contrato de locação - contrato principal – houver prazo certo – e a fiança – que é contrato acessório – dispuser de forma contrária, à evidência, não pode o intérprete se posicionar no entendimento de que prevalece a cláusula acessória, com o devido respeito. Isso porque não está conforme a letra da lei. Mesmo diante das diversidades de opinião, é certo que não se deve se posicionar de forma contrária à lei, nem ao bom senso, e, por tal fato, imprescindível o debate acerca do tema. O saudoso jurista Washingtonde Barros Monteiro, em seu famoso Curso de Direito Civil, leciona: Fiança é assim, antes de mais nada, obrigação acessória, que pressupõe, necessariamente, a existência de outra obrigação principal, de que é garantia. Por exemplo, num contrato de locação com fiança, esta é acessória daquele. (pag. 374). Disposições gerais: - A fiança é dada por escrito (art. 1.438, primeira parte). Exige o Código, portanto, como se vê, forma escrita, para a prestação de fiança. Por outro lado, não se admite interpretação extensiva (art. 1.483, segunda parte, do CC/02) – fideijussio est strictissimi júris. Aliás, constitui regra geral, em matéria de interpretação contratual, que os contratos benéficos, dentre os quais se inclui a fiança, possuem interpretação restrita (art. 1090). (pag. 377).

O não menos famoso e saudoso Clóvis Bevilaqua, em seu Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, em edição

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histórica, Editora Rio, 3a Tiragem, ao comentar o art. 1.481 do Código, ensina:

306 – Acessorium sequitur principale: O texto referente ao principal rege também o acessório. O acessório acompanha o principal. 438 – XXII. Os contratos benéficos interpretam-se estritamente. Acha-se esta regra exarada no Código Civil, art. 1090, que apenas consolidou preceito vetusto e ainda hoje corrente no campo da doutrina. Decide-se, na dúvida a favor do que se obrigou. Chama-se benéfico ou a título gratuito o contrato por meio do qual intenta alguém propiciar a outrem uma vantagem sem exigir compensação equivalente. O proveito, o interesse principal, a verdadeira utilidade redunda a favor de um só dos contraentes. Classifica-se entre os contratos unilaterais, posto que não abranja toda esta categoria, em que há obrigações gratuitas e outras onerosas. Consideram-se puramente benéficos, em geral, o comodato, a doação e a fiança.

A convencional é um contrato accecessorio, bilateral, imperfeito, expresso.... (pág. 613).

O mesmo autor, ao comentar o art. 1.483, em suas observações, assim se posiciona sobre a matéria: 2. – A fiança não admite interpretação extensiva, embora possa ser concebida em termos geraes e possa ser ilimitada (art. 1.486). Aliás, é princípio de direito comum que os contratos benéficos a cuja classe normalmente, pertence a fiança, se interpretam restrictamente (art. 1.090). “Não admite interpretação extensiva” quer dizer que o fiador não responde senão, precisamente, por aquilo que declarou no instrumento de fiança. Em caso de dúvida, a interpretação será em favor do que presta a fiança. (pág. 615).

A Jurisprudência do STJ O Superior Tribunal de Justiça, como se extrai da consulta aos seus julgados, desde os anos anteriores a 1994 até o ano de 1998, com base em seus PRECEDENTES que deram origem à Súmula 214, sempre entendeu que a fiança não podia ser interpretada extensivamente. Posteriormente, de forma infundada, ocorreu uma mudança de posição, com fulcro na Súmula 134, que trata de interesse processual, mas não de fiança. Vejamos a redação de cada Súmula: Súmula 214: O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu. Súmula 134: EMBORA INTIMADO DA PENHORA EM IMÓVEL DO CASAL, O CÔNJUGE DO EXECUTADO PODE OPOR EMBARGOS DE TERCEIRO PARA DEFESA DE SUA MEAÇÃO.

Como se vê, a Súmula 134 trata de matéria de interesse processual em que se abre a possibilidade ao cônjuge do executado para ajuizar embargos para defender-se, como terceiro, da constrição do bem imóvel pertencente ao casal, efetuada em razão de dívida assumida pelo outro cônjuge. Assim, admite-se, tão somente “en passant”, a sua aplicação nos casos de fiança. Diante disso, o próprio STJ, posteriormente, editou a Súmula 214, em vigor, cujo texto trata especificamente da fiança, com base em seus próprios precedentes, em que se analisou objetivamente o contrato de locação como contrato principal e a fiança, como seu acessório, expressa na cláusula condicional que trata da sua possível prorrogação. Aliás, o saudoso Carlos Maximiliano, em sua obra hermenêutica e aplicação do direito, citada constantemente pelos melhores hermeneutas e aplicadores do Direito, ensina: 42

Como se vê, o texto acrescido ao art. 39 da Lei do Inquilinato, em hipótese alguma, tem força suficiente para alterar a melhor interpretação à matéria.

Referências bibliográficas Bevilaqua, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1979. BRASIL. Código Civil (1916). Lei n. 3.071, de 1o de janeiro de 1916. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. (Arts. 1.483 e 1.500). BRASIL. Código Civil (2002). Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/ l10406.htm. (Art. 819). BRASIL. Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, que dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm. (Arts. 39 e 40, V). BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmulas 134 e 214. Julgados: REsp. 151071/MG; REsp. 64019/SP e 90.552/SP; REsp. 74859/SP; REsp. 61947/ SP; REsp. 50437/SP; REsp. 62728/RJ; REsp. 64273/SP; REsp. 34981/SP. Súmula 134: Precedentes: AgRg no AREsp. 32408; AgRg no REsp. 1218734; AgRg. 131459; AgRg no AREsp. 1098037; AgRg nos EDlc no Resp. 104968. Costa, Dilvanir José da. Direito Civil à luz do novo Código Civil. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 319. Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, pp. 250 e 355. Monteiro, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1962, pp. 374, 377, 378. Pinto Ferreira. Comentários à lei do inquilinato. São Paulo: Saraiva, 1992. pp. 128/129. Slaibi Filho, Nagib. Comentários à nova lei do inquilinato. 8a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

Nota STJ. Súmula 214: O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não abriu.

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A teoria da perda de uma chance Responsabilidades civil e de consumo

Roberto de Abreu e Silva

N

Desembargador do TJRJ

1. Introdução doutrinária o campo das teses ecléticas no direito brasileiro destaca-se a TEORIA DA PERDA DE CHANCE como instrumento indispensável à configuração da responsabilidade civil e da obrigação de indenizar e ou reparar, notadamente, na fixação do quantum reparatório, mitigado, à luz dos elementos valorativos dos artigos 944, p. único, e 945 do Código Civil/02. O conceito desta teoria delineia-se na doutrina do direito pátrio e comparado, nas expressões de juristas de escol como: Caio Mário da Silva Pereira, Silvia Mota, Atilio Anibal Alterini, Philippe le Tourneau, etc. Caio Mário da Silva Pereira1, analisando a situação da teoria da perda de uma chance leciona que: “...a chance perdida tenha algum valor, do qual a vítima se privou...” Aponta, como exemplos, “o caso da pessoa que deixou de adquirir um imóvel por culpa do notário ou de ganhar um processo pela falha do escrivão ou do advogado”. Ressalta o dizer de Yves Chartier “que a reparação da perda de uma chance repousa em uma probabilidade e uma certeza; que a chance seria realizada e que a vantagem perdida resultaria em prejuízo...” A doutora Sílvia Mota2 na doutrina da teoria da perda de uma chance em sua tese de doutoramento fundamenta que: “A chance é a possibilidade de um benefício futuro provável integrada nas faculdades de atuação do sujeito, considerando um dano ainda quando possa resultar dificultoso estimar seu alcance... Aconselha-se efetuar 44

um balanço das perspectivas a favor e contra e, do saldo resultante, se obterá a proporção do ressarcimento. A indenização deverá ser da chance e não dos ganhos perdidos...” Atilio Anibal Alterini3, no direito argentino, sustenta a tese da perda de uma chance no sentido de que se não houvesse tutela preventiva de dano, tendente a impedir a realização de possíveis prejuízos, seria como criar um direito de prejudicar, assim, expressando: 3. La prevención del daño… “ cualquiera seja su fuente, deben ser evitados” (Mosset Iturraspe). Es que, si ser permaneciera impasible frente a la ilicitude, inclusive, ante la aparición de un riesgo que compromete la chance de evitar un deterioro de la situación actual, “ello importaría tanto como crear el derecho de perjudicar” (Aguiar).

Philippe le Tourneau4, no direito francês, delimita o tema, pontuando a necessidade de se distinguir perda de uma chance de um risco, que pode surgir inesperadamente. Sustenta que a perda de uma chance constitui por vezes um prejuízo indenizável, enquanto que uma hipótese, uma pura hipótese, não seria causa de um dano, ou somente de uma eventualidade de dano não reparável. Define a perda de uma chance como a desaparição da probabilidade de um evento favorável quando esta chance aparece suficientemente séria. Aduz sobre a quantificação em valor correspondente ao da perda de uma chance, bem como sobre a situação de negligência de um advogado diminuindo ou suprimindo as chances de seu cliente de obter ganho de causa, etc...

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Foto: Arquivo pessoal

2. A teoria da perda de uma chance no direito brasileiro Destaca-se “ab initio “ a necessária aplicação de solução justa da demanda atendendo aos princípios democráticos do direito: a) o respeito à dignidade da pessoa humana; e, b) proteção de seus bens tutelados na ordem jurídica. A rigor, a presente teoria se afigura inteligível em seus próprios termos. Na chance perdida e reparável preexiste oportunidade séria de se conseguir um benefício futuro que se revela como interesse jurídico protegido pelo direito e frustrada por conduta ignóbil do agente ativo. A chance perdida consiste na privação de uma probabilidade, não hipotética, de obtenção de sucesso em pretensão séria, assegurada pelo direito, nas condições seguintes: (i) quando frustrada a vítima por conduta ignóbil do causador do dano à pessoa inocente; e (ii) resultando prejuízo provado ou evidente do fato danoso material e ou moral causado ao lesado. Em contrário senso, a pretensão improvável, hipotética, consiste em simples aventura, sem relevância jurídica. Por isso, não configura perda de chance indenizável nem deflagra a obrigação de reparar. Em síntese, a chance perdida reparável configura um prejuízo material ou imaterial resultante de fato consumado, não hipotético, se causado à pessoa inocente (que não deu causa ao fato) por conduta comissiva ou omissiva do agente (falta de diligência ou prudência) quando viola interesse juridicamente protegido no direito positivo (CRFB/88, art. 5o, X, bem como nos Códigos Civil e do Consumidor – Lei 8.078/90). Tais elementos

reclamam provas nos autos ou evidências do próprio fato e o indispensável nexo etiológico da causalidade necessária ligada à conduta censurável do agente que perpetrou prejuízo injusto causado à pessoa física ou jurídica resultante do fato consumado em conduta ilícita e geradora da perda de uma chance. A noção de causa envolve a ideia de necessariedade da ação determinante dos prejuízos injustos. A causa de um fato lesivo e antijurídico compreende-se como o antecedente ou grupo de antecedentes necessários à produção do prejuízo injusto, perda de uma chance ou da probabilidade séria de obter uma vantagem. A obrigação somente se verifica quando o prejuízo injusto perpetrado por falta infringente de norma jurídica é a causa necessária para a produção do prejuízo vinculada pelos nexos de causalidade e de antijuridicidade e do princípio jurídico tradicional: “neminem laedere suum cuique tribuere”. Se a ação do agente é de conformidade com a lei, embora considerada causa no mundo fático, nem sempre o será no mundo jurídico, se faltar a antijuridicidade da conduta,5 como ocorre, v.g., na excludente da legítima defesa. No estudo da relação de causalidade é necessária a vinculação direta do prejuízo injusto causado pela perda de uma chance de se obter uma vantagem ou evitar uma perda originária de situação fática da qual depende o prejuízo já consumado. Na subsunção do fato à norma jurídica pelo julgador é indispensável considerar o valor do bem protegido e o desvalor da conduta, em sua tridimensionalidade: fato valor e norma, cum arbitrio boni viri, na concepção culturalista

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do direito de Miguel Reale.6 Fundamental é que se relacione vantajosa que provavelmente se alcançaria, não fosse o ato o dano ou prejuízo injusto à causa e efeito no mundo fático, ilícito praticado. articulada com a falta de diligência e de prudência na Neste passo, a perda de uma chance, desde que seja real, conduta violadora da norma jurídica no mundo do direito, razoável, séria e não somente fluida ou hipotética é considepara que se deflagre a consequência legal e constitucional de rada uma lesão que reclama justas expectativas frustradas se impor a obrigação de reparar os prejuízos originários de do indivíduo, que, na pretensão de conseguir uma conduta suporte fático ilícito perpetrado à vítima inocente na perda lícita de ordem social e jurídica mais vantajosa, teve o curso de uma chance em ato consumado. normal dos acontecimentos interrompido por ato ilícito de Em síntese, a chance perdida configura um dano outrem. injusto indenizável ou reparável quando há um prejuízo Em caso de responsabilidade de profissionais da advomaterial e ou imaterial causado à pessoa inocente pela cacia por condutas apontadas como negligentes e diante perda da probabilidade de um evento favorável certo, do aspecto relativo à incerteza da vantagem não experisério, não hipotético, em fato consumado perpetrado mentada, as demandas que invocam a teoria da “perda de por conduta comissiva ou omissiva do agente (falta de uma chance” reclamam soluções a partir de uma detida diligência, prudência ou de perícia) causando a violação análise acerca das reais possibilidades de êxito do procesde interesse juridicamente protegido no direito positivo so, eventualmente perdidas em razão de desídia do cau(CRFB/88, art. 5o, X, e ou normas do Código Civil ou do sídico. Vale dizer, não é o só fato do causídico perder o Código do Consumidor). prazo para a contestação ou para a A par disso, impõe-se, ainda, interposição de recurso que enseja a indispensável demonstração dos a automática responsabilização civil “Não é o só fato do causídico elementos gerais da responsabilicom base na teoria da perda de uma perder o prazo para a contestação dade civil assinalados a seguir: (i) chance. É absolutamente necessária ou para a interposição de nexo de causalidade entre a ação a ponderação acerca da probabilidanecessária e proporcional ao prejude de sucesso que se supõe real que a recurso que enseja a automática ízo proibido qualificado como perda parte sagrar-se-ia vitoriosa. responsabilização civil com de uma chance; (ii) a violação da Na experiência do E. Superior norma jurídica constitucional e ou Tribunal de Justiça destacam-se os base na teoria da perda de infra-constitucional proibitiva da votos dos relatores: Ministros FERuma chance. É absolutamente conduta lesiva; (iii) legitimação atiNANDO GONÇALVES, Luís FEnecessária a ponderação acerca LIPE SALOMÃO e NANCY ANva e passiva, por fato próprio ou de DRIGHI8. No TJRJ, (i) em caso de outrem;7 (iv) inexistência de causa da probabilidade de sucesso que de isenção ou de exclusão da reparesponsabilidade civil/consumerista se supõe real que a parte ração dos prejuízos em caso fortuito condenou-se a Clinica de Olhos em sagrar-se-ia vitoriosa” ou força maior, legítima defesa, falta reparação de prejuízos causados à exclusiva ou concorrente da vítima; paciente que sofreu descolamento e causa danosa de terceiro. de retina, não pela cegueira em si, mas, pela perda de uma chance de salvar a sua visão. Em 3. A visão jurisprudencial da teoria da perda de uma realidade, a falta cometida consistiu no descumprimento chance do dever jurídico de atuação médica no quadro de emerNa experiência jurídica, a doutrina da perda de gência, quando procurado no hospital na primeira vez uma chance em sede de responsabilidade civil revelacausando-lhe prejuízo pela perda de uma chance, visto que se como instrumento importante de reparação de não se lhe proporcionou intervenção médico-cirúrgica danos e ou de prejuízos injustos e geradores de sanções que permitisse a possibilidade de sucesso na perspectiva proporcionais aos prejuízos causados em relação causal de salvaguardar a visão do paciente. Corolário lógico é a direta com o dano e a gravidade da conduta censurável redução da sanção aplicada no primeiro grau a título de praticada pelo lesante, ut artigos 944, p. único, e 945 do reparação de menor valor proporcional ao prejuízo consuatual Código Civil. mado pela perda de uma chance e não pelo fato da perda A teoria da perda de uma chance visa a responsabilizada visão, porquanto a causa evidente consistiu em fator inção do agente causador, não exclusivo de um dano emerteiramente estranho à atuação médica.9 gente, tampouco de lucros cessantes, mas de algo intermeNo mesmo sentido pontuou o E. TJRJ: (ii) 3. Câmara diário entre um e outro, precisamente, em conformidade Civil nos E.I. 2002.005.0044610. Impôs-se a responsabilidacom a perda da possibilidade de se buscar posição mais de civil/consumerista por vício de qualidade da prestação 46

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do serviço pela entidade hospitalar em caso de óbito de recém-nascido por apneia idiopática seguida de paradas cardiorrespiratórias causada pela demora no encaminhamento do paciente para unidade de terapia intensiva, aplicando na demanda a teoria da “perda de uma chance”. Não porque se absteve em absoluto de atuar, ou por haver adotado medidas ineficazes e inócuas, que revelam imperícia, mas em razão do médico descumprir o dever de atuar. A sanção mitigou-se por não corresponder a reparação à indenização pelo dano morte, mas em razão do atuar tardio verificado na atuação médica e o dano sofrido, considerando in caso a perda de uma chance de sobrevivência.(iii) Demanda de responsabilidade civil por erro de diagnóstico prescrevendo relaxante muscular para caso de tuberculose vertebral gerando paraplegia, situação em que se aplicou a teoria da perda de uma chance impondo-se a obrigação de reparação por dano moral..11 (iv) No E. TJRGS, Décima Câmara Cível, na Apelação Cível 70013036678, em demanda de responsabilidade civil por erro médico que resultou na morte de recém-nascido, considerou-se a evidência da imprudência praticada pela profissional que optou por aguardar o agravamento de uma situação, que já era grave, para realizar a cesariana, aplicando no caso, a teoria da perda de uma chance, por

entender que se a cesariana fosse realizada logo, talvez, o nefasto evento morte não ocorresse.12 (v) Na E. 5a. Câmara Civil impôs-se a responsabilidade civil ao nosocômio pela falha do atendimento hospitalar, considerando que paciente portador de pneumonia bilateral teve tratamento domiciliar ao invés de hospitalar, aplicando a teoria da perda de uma chance de tratamento hospitalar, que talvez o salvasse. No entanto, o nexo de causalidade vinculando o hospital se afigura na má prestação de serviço, e o dano sofrido se limita ao valor do prejuízo resultante da perda de uma chance de sobrevivência13. Na doutrina, na relação da responsabilidade civil de profissional liberal afigura-se possível a aplicação da teoria da perda de uma chance, conforme José de Aguiar Dias14: “A perda de prazo é a causa mais frequente da responsabilidade do advogado. Constitui erro grave, a respeito do qual não é possível escusa, uma vez que os prazos são de direito expresso e não se tolera que o advogado o ignore.” Na esfera doutrinária é importante salientar as lições anteriores já lançadas de Caio Mário da Silva Pereira e Philippe le Tourneau15. Na mesma perspectiva seguem os posicionamentos jurisprudenciais. I) No E.TJRJ: (i) Apelação Cível no 2003.001.19138. Décima Quarta Câmara Cível. Condenação de profissional advogado pelo

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Tribunal impondo-lhe sanção por danos morais em razão de perda de prazo recursal, em situação que revela, ipso facto, prejuízo pela perda de uma chance da parte de rever a decisão monocrática em segundo grau de jurisdição. (ii) 10a Câmara Cível. Apelação Cível. Processo no 2003.001.29927. Implicou-se a responsabilidade civil subjetiva do advogado que deixou de cumprir obrigação a seu cargo violando por negligência norma do artigo 14, p. 4o. da Lei 8.078/90. 16 Na demanda entre consorciado e administradora do consórcio o E. TJRJ no recurso –Apelação no 2005.001.02659 aplicou a teoria da perda de uma chance de participar na assembleia que sairia vencedor o lanço entregue pelo autor à funcionária da respectiva administradora, que não a encaminhou a tempo, em decorrência da frustração da autora por retirar-lhe a paz interna e o próprio equilíbrio emocional, configurando-se a responsabilidade civil indenizatória.17. 4. A sanção e a quantificação dos prejuízos A conduta ofensiva à norma jurídica proibitiva de conduta danosa injusta deflagra a obrigação de indenizar ou reparar os danos ou prejuízos injustos perpetrados à pessoa inocente. A quantificação da sanção do agente causador dos danos e ou prejuízos, considerando as circunstâncias fáticas e jurídicas do caso devidamente proporcional à intensidade da falta de cuidado e do valor do prejuízo causado pela perda de uma chance, da oportunidade ou probabilidade de obtenção de vantagem ou sucesso em suporte fático consumado. O nexo de causalidade do suporte fático da perda de uma chance e o resultado do prejuízo indenizável, em princípio, que não se confunde com o do fato-espécie de dano ou prejuízo de maior expressão, eventualmente, existente em fato complexo, quando causado por nexo etiológico não imputável ao réu. Em tais circunstâncias, o valor da indenização na perda de uma chance deve minorar o valor que se arbitraria em eventual dano ou prejuízo maior, porém, por nexo de causalidade não imputável ao demandado, como ocorre em cada um de casos similares assinalados a seguir. (i) A condenação de advogado pelo Tribunal impondo-lhe sanção por danos morais em razão de perda de prazo recursal, em situação que revela ipso facto prejuízo pela perda de uma chance da parte de rever a decisão monocrática a seu favor em segundo grau de jurisdição e não pelo valor da demanda perdida em primeira instância, cujo nexo de causalidade não foi perpetrado pelo patrono da parte interessada; (ii) A condenação de clínica especializada por perpetrar à autora perda de uma chance de salvar a sua visão comprometida pelo descolamento da retina, se evidenciada por falta de cuidado de médico profissional e disponível na ocasião da procura do primeiro atendimento, transferindo-se a 48

consulta para a semana posterior, ultrapassando o período da situação emergencial. Isto porque a lesão da mácula na retina da vista da paciente já se tinha consolidado quando do atendimento médico marcado superveniente, situação que torna ineficaz a tardia autorização do agente ativo no procedimento cirúrgico, sem a mínima possibilidade de sucesso. Em síntese, a questão da perda de uma chance se afigura no pressuposto fático: omissão hospitalar e ou do médico se houve o prejuízo pela perda de uma chance de salvar a visão do paciente e não pelo prejuízo da cegueira, no caso concreto. O antecedente causal, conduta omissiva hospitalar, se liga ao consequente prejuízo pela perda de uma chance em fato já consumado, por não oferecer à autora o socorro tempestivo por meio de uma intervenção médico-cirúrgica que lhe proporcionasse a possibilidade de sucesso em salvaguardar a sua visão. A condenação da reparação neste caso limita-se ao valor do prejuízo causado pela perda de uma chance, probabilidade séria, não hipotética, de salvar a visão do paciente e não pelo mal maior do prejuízo pela perda da visão, visto que o nexo de causalidade referente ao descolamento da retina não é imputável à entidade hospitalar, no caso concreto. 5. Conclusão No direito brasileiro, atualmente, predominam as teses da responsabilidade civil objetiva ou sem culpa provada, como denotam os seguimentos legislativos no direito público e privado expressos nos artigos 37, p.6o, da CRFB/88 e 12 e 14 da Lei 8.078/90; bem como nas teorias subjetivas, que em determinados casos implicam-se a inversão do ônus da prova e em teses ecléticas, dentre as quais, a teoria da perda de uma chance. Na análise do caso concreto, em sede de responsa­ bilidade civil, afigura-se indispensável a identificação do nexo etiológico ligando a conduta censurável do agente como causa necessária à produção do resultado, dano injusto ou prejuízo perpetrado à pessoa inocente. A conduta censurável consiste na falta jurídica comissiva ou omissiva por violação do dever jurídico de diligência ou prudência. Considera-se como pessoa inocente a que não deu causa ao fato. O dano ou prejuízo é sempre injusto. Não existe dano “justo”, mas justificável, segundo o direito positivo. O dano injusto ou prejuízo material ou moral causado à pessoa inocente não mais se compreende como perda ou diminuição de um patrimônio, mas, como violação de um interesse juridicamente protegido, em razão da proteção do bem imaterial ou moral, a partir da exigência constitucional de respeito à vida, à liberdade, dignidade da pessoa humana e da propriedade (art. 1o, III, 5o, caput, X e XXII, da CRFB/88). A teoria da perda de uma chance revitalizou-se, atualmente, como instrumento indispensável à realização da Justiça por três razões

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básicas. Primeira, o estudo do caso permite a identificação do dano injusto ou prejuízo causado resultante da conduta censurável do agente em fato consumado pela perda de uma chance ou possibilidade de sucesso em pretensão séria e razoável garantido como interesse juridicamente protegido. O pressuposto fático da perda de uma chance configura na ordem jurídica do dano ou prejuízo injusto material e ou moral causado por falta de diligência e prudência do agente em fato já consumado de probabilidade certa, não hipotética. Segunda, à reparação do dano certo causado pela perda de uma chance arbitrarse-á a indenização em valor correspondente ao efetivo prejuízo (perte d´une chance). Não se confunde com a indenização por dano ou prejuízo de maior expressão. Terceira, na aplicação da teoria da perda de uma chance impõe-se uma quantificação minorada da indenização ou

reparação material ou moral (art. 944, p.único, do Código Civil) considerando-se: (i) a intensidade mínima da falta não intencional e ou sem culpa nas teorias objetivas (arts. 37 p. 6o, da CRFB/88 e/ou 12 e 14 da Lei 8.078/90, etc.), ou por culpa leve ou levíssima (negligência, imprudência ou imperícia) na teoria subjetiva; (ii) os danos e prejuízos materiais ou morais perpetrados pela perda de uma chance reclamam quantificação inferior a que se aplicaria na prática de mal maior perpetrado por dolo ou culpa (art. 186 do Código Civil/02); (iii) a quantificação dos danos ou prejuízos é proporcional à gravidade da falta jurídica e do prejuízo causado pelo fato consumado da perda de uma chance, se causado por fato não imputável ao demandado, compatibilizando-se o valor da reparação nas perspectivas dos princípios da proporcionalidade, razoabilidade, equidade e Justiça.

Notas PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.41/42. MOTA, Sílvia. Responsabilidade civil decorrente das manipulações genéticas: novo paradigma jurídico ao fulgor do biodireito. Tese (Doutorado em Justiça e Sociedade)–Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2005. 3 ALTERINI, Atílio Aníbal e Cabana, Roberto Lopez. Temas de Responsabilidad Civil. Facultad de Derecho y Ciencias Sociales Universidade de Buenos Aires, Ciudad Argentina, 1999, p.206. 4 TOURNEAU, Philippe. Droit de la responsabilité,. no 669/676, Paris: Dalloz, 1998, pp.213/215. 5 Exemplos: situação de falta exclusiva da vítima. Conduzir-se um veículo no limite da velocidade permitida para o local, com atenção, quando um pedestre, saindo detrás de outro automóvel, inopinadamente, tenta atravessar a pista, sem observar o tráfego, provocando seu próprio atropelamento. 6 ºReale, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo. Saraiva. 1980. 7 Exemplos: o pai responde pelos atos dos filhos menores sob a sua guarda; o patrão se obriga por ato danoso de seu empregado ou preposto - artigo 932, I e III, do Código Civil; na responsabilidade contratual do transportador que não leva incólume o passageiro a seu destino que sofreu o dano causado por fato de terceiro, “ut” Súmula 187 do STF; ou incidência da norma do “artigo 37, § 6o, CRFB/88. 8 (i) RECURSO ESPECIAL No 788.459 – DA (2005/0172410-9). Relator. MINISTRO FERNANDO GONÇALVES. Quarta Turma. Julgado em 08/11/2005. RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO. IMPROPRIEDADE DE PERGUNTA FORMULADA EM PROGRAMA DE TELEVISÃO. PERDA DA OPORTUNIDADE. 2. Recurso conhecido e, em parte, provido. (ii) REsp 1190180/RS RECURSO ESPECIAL 2010/0068537-8. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO. QUARTA TURMA. Julgamento: 16/11/2010. Recurso especial conhecido e provido em parte, para o fim de reduzir a indenização fixada. (iii) RESPONSABILIDADE CIVIL. ADVOCACIA. PERDA DO PRAZO PARA CONTESTAR. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS FORMULADA PELO CLIENTE EM FACE DO PATRONO. PREJUÍZO MATERIAL PLENAMENTE INDIVIDUALIZADO NA INICIAL. APLICAÇÃO DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE. CONDENAÇÃO EM DANOS MORAIS. JULGAMENTO EXTRA PETITA RECONHECIDO. (iv) RESP 1254141 / PR MINISTRA NANCY ANDRIGHI. TERCEIRA TURMA. JULGAMENTO: 04/12/2012. DIREITO CIVIL. CÂNCER. TRATAMENTO INADEQUADO. REDUÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE CURA. ÓBITO. DIREITO CIVIL. CÂNCER. TRATAMENTO INADEQUADO. REDUÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE CURA. ÓBITO. IMPUTAÇÃO DE CULPA AO MÉDICO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE. REDUÇÃO PROPORCIONAL DA INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO... 9 TJRJ. Apelação Cível no 2006.001.08137 - NONA CÂMARA CÍVEL. RESPONSABIIDADE CIVIL/CONSUMERISTA. CLÍNICA DE OLHOS. DESCOLAMENTO DE RETINA. PERDA DA VISÃO. ATENDIMENTO TARDIO. PERDA DA CHANCE. REPARAÇÃO... 10 TJRJ.(3. Câmara Civil). Embargos infringentes...Recurso conhecido e provido. Embargos Infringentes no 2002.005.00446. Relator: Desembargador Werson Rego. Rio de Janeiro, 3 de junho de 2003. 11 Ap. 2005.001.44557. 17a. C. Cível. DES. EDSON VASCONCELOS - Julgamento: 29/03/2006 12 TJRGS- 10a. Câmara Cível, Apelação 70013036678.Rel. Luiz Ary Vessini de Lima-J. em 22/12/2005). 13 TJRGS(5. Câmara Civil). Responsabilidade civil. Falha do atendimento hospitalar. Paciente portador de pneumonia bilateral. Tratamento domiciliar ao invés de hospitalar. Perda de uma chance. 1. É responsável pelos danos, patrimoniais e morais, derivados da morte do paciente... (perte d’une chance) de tratamento hospitalar, que talvez o tivesse salvo. 2... Apelação Cível no 596070979. Relator: Desembargador Araken de Assi..s. Porto Alegre, 15 de agosto de 1996. “. 14 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. vol. 1, 5a edição. Rio: Forense, p. 330. . 15 TOURNEAU, Philippe. Droit de la responsabilité,. no 676, Paris: Dalloz, 1998, p.2151x. 16 TJRJ. (i) 14a. Câmara Cível. RESPONSABILIDADE CIVIL DE ADVOGADO. EXERCICIO CULPOSO DA PROFISSÃO. PRAZO PARA RECURSO. INOBSERVANCIA DO PRAZO. DANO MORAL. MANDATO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO. INDENIZAÇÃO POR DANOS CAUSADOS EM VIRTUDE. DE PERDA DE PRAZO. DANOS MORAIS JULGADOS PROCEDENTES. ... 17 TJRJ. Ap. 2005.001.02659. DES. MAURICIO CALDAS LOPES – J.: 22/03/2005 – 2a. CC..Recurso não provido. 1 2

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Seminário debate desafios do setor elétrico Da Redação

Evento promovido pela Abradee, com o apoio da Cemig, discutiu questões jurídicas de interesse das distribuidoras Foto: Gláucia Rodrigues

Ministro Teori Zavascki, do STF, defendeu “força expansiva” das decisões para reduzir ações de massa

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egulado por uma legislação complexa e frequentemente em crise, o setor elétrico brasileiro acumula muitos desafios. A melhor estratégia para superá-los foi debatida durante um encontro de juristas e advogados da área no XII Seminário Jurídico do Instituto Abradee. O evento foi promovido pela Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), em Inhotim, centro de arte contemporânea e botânica, localizado na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais. O seminário teve como palestrantes os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Teori Zavascki e Gilmar Mendes; o superintendente 50

de regulação dos serviços comerciais da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Marcos Bragatto; o professor da Universidade de São Paulo (USP), Floriano de Azevedo Marques; e o ministro do Tribunal de Contas da União, Aroldo Cedraz. O evento foi organizado pela Cemig, distribuidora de energia em Minas e anfitriã dessa XII edição. Teori Zavascki abriu o seminário com o painel “A Constituição e os Serviços Concedidos”. Na ocasião, ele destacou o modelo adotado pelo Brasil que permite que as agências reguladoras criem normas. “Hoje temos muita dificuldade de controlarmos isso”, afirmou o ministro. De acordo com ele,

não raro, algumas determinações das agências são questionadas nos tribunais. Na avaliação dele, faltam instrumentos para resolver essas questões de forma mais célere. “Poderíamos pensar naqueles atos normativos, de efeito concreto e imediato, como o aumento da tarifa. Para esse efeito, podíamos pensar numa ação imediata, como a ação civil pública, para que a decisão tenha eficácia geral. No entanto, o nosso modelo de ação civil pública também precisa ser modificado. Hoje, a força expansiva da ação civil pública só vale em caso de procedência”, disse. Força expansiva No que se refere ao STF, o ministro ressaltou a força expansiva das decisões proferidas pela Corte. Nesse modelo, o posicionamento adotado pela Corte Suprema é vinculado e, portanto, deve ser seguido pelas demais instâncias da Justiça, assim como pela administração nas três esferas de poder. “O que temos hoje, na prática, são as decisões do Supremo sobre constitucionalidade com força expansiva. E é bom que isso aconteça. Esse é um modelo civilizado, em vigência nos Estados Unidos e na Europa. Quando um tribunal superior decide, a decisão tem que valer para todo mundo. Até pelo princípio da igualdade”. Zavascki defendeu a criação de um mecanismo semelhante para o Superior Tribunal de Justiça. “Quando as agências reguladoras baixam uma Justiça & Cidadania | Junho 2014


norma que ofende a lei, a questão não vai para o Supremo. Isso vai parar no STJ”, explicou o ministro sobre o porquê de sua proposta. De acordo com o ministro, a medida pode ajudar a reduzir o número de processos e proporcionar maior celeridade ao julgamento dos litígios. O ministro Gilmar Mendes também abordou o problema da morosidade no painel “A Constituição e os Serviços Concedidos”, no segundo dia do seminário. Na palestra, ele criticou a imensa quantidade de demandas individuais. “Nesse momento, 100 milhões de processos tramitam nos tribunais do País. E temos em torno de 20 mil juízes. Certamente esse é um dos maiores índices de litigiosidade do mundo. Claro que temos problemas a partir dessa vitalidade do sistema. É que as pessoas vão buscar os seus direitos de forma individual”, destacou. Mendes frisou que as soluções sugeridas para o problema se alternam entre aumentar o número de juízes e mudar a cultura individualista existente nos tribunais. Para o ministro, as discussões precisam se tornar ações concretas, tendo em vista a crescente busca do cidadão ao Judiciário. “Precisamos discutir esse fato. Vejam, todos falam que temos uma nova classe média, que mais 30 ou 40 milhões de pessoas foram incorporadas à classe média, pelo

menos como consumidores. Se não oferecermos alternativas, elas vão entrar na fila dos fóruns para reclamar de problemas relacionados ao consumo”, alertou o ministro. De acordo com ele, a implantação dessas alternativas passa por uma mudança cultural, inclusive por parte do Estado, que deve superar a ideia de recorrer até o fim nas causas sabidamente perdidas. Estabilidade A Constituição também foi destacada pelo ministro por possibilitar a estabilidade em diversos campos, principalmente no econômico. Nesse sentido, ele criticou as propostas feitas pelo governo, sobretudo quando das manifestações populares, de convocar uma nova constituinte. “Fiquei impactado quando vi a reação do Palácio do Planalto, a propósito das manifestações, de fazer uma nova constituinte”, disse. E criticou: “Cheguei até a dizer: Diante de uma crise desse tamanho, vocês sugerem uma nova constituinte, quando foi essa Constituição Federal que nos permitiu chegar até aqui. E agora vocês colocam isso em xeque e vão se submeter a discutir um modelo quando a razão (dos protestos) não tem nada a ver com a Constituição, mas, sim, com um problema de má gestão”. O ministro destacou a estabilidade das instituições conquistada pelo País a

Foto: Gláucia Rodrigues

Ministro Gilmar Mendes, do STF: ‘Processos de consumo podem aumentar com a nova classe média’

partir da Constituição de 1988. “O País tentou se fortalecer através das concessões, buscou se fortalecer com as agências reguladoras. Nesse sentido, a jurisprudência do STF veio a fortalecer as agências como um modelo de Estado e não de governo”, disse Gilmar Mendes, destacando que o posicionamento da Corte sempre fora no sentido de proporcionar segurança jurídica ao que chamou de “movimentos complexos”, como é o caso do setor energético. Por fim, Gilmar Mendes falou sobre a questão dos precatórios. “O precatório foi uma resposta que apareceu em 1934. Eram títulos que deveriam ser pagos segundo a ordem que fossem emitidos. Com a estabilidade, ficamos com uma montanha de precatórios sem fundos. E aí veio a discussão, sensível e delicada, sobre o pagamento. Na União, que tem recursos, praticamente não há acúmulo. Mas praticamente todos os estados e municípios têm um acúmulo enorme. As ameaças de sequestro e intervenção não são soluções para isso. É um remédio que mata o doente”, lamentou. Tribunal de Contas Outro importante tema foi abordado pelo ministro do Tribunal de Contas da União, Aroldo Cedraz, no painel “Tarifas de Energia Elétrica – Parcela A e Preservação da Segurança Jurídica”. O ministro falou sobre a competência da Corte e explicou que a série de transformações vividas pelo Brasil fez com que os governos se rendessem à desestatização como forma de melhorar os serviços públicos. Ele afirmou que Minas Gerais e Rio de Janeiro são os dois Estados que mais se utilizam das parcerias público-privadas. “Não é um tema fácil. Atento a essas transformações, o TCU tem acompanhado essas reformas do aparelho do Estado. Nesse novo modelo de atuar, o Estado e o setor privado pararam de ser vistos como antagonistas, mas como parceiros, permitindo lucros privados e o bem-estar da sociedade”, disse.

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Responsabilidade sobre a iluminação pública gera preocupação Foto: Gláucia Rodrigues

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Bragatto: ‘Prazo para transferência do serviço para os municípios termina dia 31 de dezembro’

Outro tema com grande repercussão foi tratado pelo superintendente da Aneel. Marcos Bragatto abordou o tema “Transferência de Ativos da Iluminação Pública – Legislação e Prática”. Ele lembrou em sua palestra que o prazo para os municípios assumirem a responsabilidade pelo serviço de iluminação pública termina no dia 31 de dezembro. Segundo explicou, com a ampliação das regiões brasileiras com acesso à luz elétrica, muitas distribuidoras acabaram por assumir o fornecimento e a manutenção da iluminação pública. De acordo com Bragatto, a Constituição Federal de 1988 dirimiu as dúvidas sobre quem deveria se responsabilizar pelo serviço ao estabelecer a competência das prefeituras para organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços de interesse local e de caráter essencial. “Desde 1988, vários municípios assumiram a iluminação pública, mas muitos ainda não fizeram isso. Por essa razão, a decisão da Aneel de que não poderíamos mais viver nessa situação dúbia, para a qual não há previsão legal”, afirmou. 52

De acordo com o representante da Aneel, faltam assumir o serviço os municípios de Roraima, Amapá, Ceará, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e do norte do Paraná. Bragatto explicou que essa não foi a primeira vez que a Aneel tentou concluir a transferência. “O prazo fora revogado duas vezes, principalmente em razão de ações judiciais alegando os problemas dos municípios pequenos para assumir o serviço. Mas agora esse será o prazo final. Não há a menor chance de revogação”, afirmou. Preocupação O posicionamento tem gerado preocupação nos distribuidores. É que não são poucos os municípios que não demonstraram qualquer interesse em assumir a iluminação pública. E, segundo resolução da própria Aneel, a distribuidora não pode abandonar o serviço até que a transferência seja realizada. Um dos participantes do Seminário contou que alguns municípios de São Paulo têm se mostrado resistentes à transferência. “O prefeito local não tem demonstrado interesse em assumir o serviço, assim como nem de ir ao Judiciário

para contestar a resolução da Aneel”, relatou. Outro participante alertou para o fato que algumas prefeituras poderão tentar impedir a transferência na Justiça. Nesse sentido, ele indagou ao superintendente da Aneel se a tarifa de iluminação pública, recolhida atualmente pelas distribuidoras, poderá continuar a ser cobrada após o prazo para a transferência nos casos em que, por força de decisão judicial, os municípios não assumirem o serviço. Bragatto explicou que, se houver pendência judicial, a tarifa não será extinta. “Nossa expectativa, porém, é que essas liminares não prosperem”, afirmou. O comentarista do painel, Ricardo José Charbel, diretor de distribuição e comercialização da Cemig, afirmou que a distribuidora está realizando um trabalho de conscientização junto às prefeituras. “Em Minas, estamos nos aproximando dos prefeitos e mostrando a eles quanto custa fazer a transferência, a melhor forma de efetuá-la e como continuar a manutenção (do serviço)”, disse. Para o superintendente da Aneel, a iniciativa é válida. “Na verdade, o munícipio vai assumir uma responsabilidade que sempre foi dele, mas que estava sendo arcada pelas distribuidoras. Há um comando legal. Por isso, a resolução veio nessa linha, para fazer cumprir o que a Constituição determinou de forma clara e inequívoca”. E destacou: “O grande ponto de atenção é a gestão (do serviço) pelos municípios. Eles precisam ser preparados. É necessário que eles se integrem a esse processo. É sempre importante que a distribuidora atue nessa capacitação”. Justiça & Cidadania | Junho 2014


Entrevista: Maria Celeste Moraes Guimarães, diretora jurídica da Cemig

Revista Justiça & Cidadania – De que forma os temas tratados no evento atenderam aos questionamentos do setor? – A cada ano, a concessionária anfitriã do evento escolhe, em conjunto com o comitê jurídico da Abradee, os temas mais recorrentes, aqueles que as distribuidoras enfrentam. Nós nos reunimos com o comitê jurídico da associação, que é representado por várias outras distribuidoras, e escolhemos os assuntos que estão na ordem do dia. Como, por exemplo, são as questões das leis invasoras de competência da União, da transferência dos ativos de iluminação pública para os municípios, da segurança jurídica e dos serviços públicos e a ordem econômica. Acredito que selecionamos temas relevantes, que também guardavam certa novidade. Chamou a atenção a palestra do superintende da Aneel, Marcos Bragatto, sobre o prazo de transferência do serviço de iluminação pública para as prefeituras. Essa questão preocupa as concessionárias? – O Dr. Bragatto expôs o tema com muita clareza, mas acredito que é uma ilusão achar que os municípios vão conseguir assumir o serviço até 31 de dezembro. Realmente não acre-

dito nisso. Primeiro porque, como ele mesmo comentou, temos que fazer licitações. Há também a questão da capacitação, da criação dos call centers e do gerenciamento desse serviço. Enfim, há todo um conhecimento que envolve a atividade e o qual os municípios não têm. Isso (a transferência) demanda mais tempo. É muito cômodo para a Aneel dizer que o prazo é 31 de dezembro e que não irá revogar. Acho que essa não é a postura adequada. Alguns municípios estão entrando em juízo e já obtiveram liminar ou algum provimento cautelar. Se esses provimentos se mantiverem após 31 de dezembro, é evidente que não poderemos transferir o serviço, sob o risco de descumprirmos a medida judicial. Ou seja, a questão não está clara e não será em juízo que iremos resolvê-la. A Aneel precisa abrir mão de suas prerrogativas e sentar para conversar com os municípios e as distribuidoras para que esse trabalho seja feito sem conflito. Que outro ponto abordado no Seminário a senhora considera importante para os distribuidores? – A discussão da Parcela A debatida pelo ministro do TCU (Aroldo Cedraz) também foi muito relevante, pois é um tema que preocupa as distribuidoras. Também destaco os temas da segurança jurídica e do relacionamento dos órgãos judiciários com as questões que nos afetam. Outra questão debatida foi a necessidade do trabalho das agências reguladoras de forma independente e autônoma, afinal elas são agências de Estado e não de governo. O ministro Gilmar Mendes destacou, na palestra dele, o número crescente de ações individuais, sobre questões relacionadas ao direito

Foto: Cemig

Os seminários realizados pelo Instituto Abradee acontecem em todo o País. Nesta edição, o estado de Minas Gerais foi o escolhido. A organização do evento, da logística à realização, contou com o apoio e empenho da Companhia Energética daquele Estado – a Cemig. A diretora jurídica da instituição, Maria Celeste Morais Guimarães, revela como foram os preparativos para um dos principais encontros dos operadores jurídicos que atuam no setor elétrico.

Maria Celeste: ‘Temas do evento são atuais’

do consumidor. Como prestadores de serviço, como as distribuidoras veem a questão das demandas de massa? – Foi muito importante o representante da Associação dos Magistrados Mineiros, Dr. Carlos Donizetti, dar um testemunho que, se fosse eu a falar, não pareceria ter a isenção necessária. Então, foi muito importante ele dizer que a Cemig procurou o Judiciário exatamente para construir instrumentos para mitigar as ações. Ele, inclusive, deu o exemplo da conciliação pré-consensual, desenvolvido por meio de um convênio com o Tribunal de Justiça de Minas Gerais para atender justamente o cliente da Cemig. Por meio desse convênio, os conciliadores são treinados pelo TJ. No litígio, nosso preposto aparece e, se a proposta que ele fez for aceita pelas partes, realiza-se a conciliação. E isso antes da propositura da ação.

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Poder Judiciário não é cobrador

Rogério Medeiros Garcia de Lima

F

Desembargador do TJMG

oi divulgado um contrato celebrado entre o Tribunal Superior Eleitoral e a Serasa, entidade que cadastra devedores inadimplentes (jornal O Estado de S. Paulo, edição de 7.8.2013). Na mesma data, diante do impacto da revelação, o TSE comunicou a suspensão imediata do acordo e posterior submissão do assunto ao plenário da Corte, para análise da legalidade do ato. Em 1949, o escritor inglês George Orwell publicou o célebre livro “1984” (São Paulo: Companhia Editora Nacional, trad. Wilson Velloso, 29a ed. 2005). Descreve uma sociedade totalitária do futuro, dirigida pelo onipresente “Grande Irmão” (“Big Brother”). Nela, os indivíduos são meros instrumentos submetidos ao domínio total: até o pensamento e o idioma são controlados. Em cada casa é instalada a “teletela”, para permanente vigilância dos cidadãos pelo Estado. A ficção orwelliana não está muito distante das sociedades contemporâneas. Com os avanços da informática, o mundo atual armazena incalculável quantidade de dados em alta velocidade. É o chamado “Big Data”. Daí o interesse da Serasa no acordo com o TSE. A Justiça Eleitoral guarda dados pessoais de milhões de cidadãos brasileiros. É um instrumental de inestimável valor para localizar devedores inadimplentes e facilitar a cobrança de dívidas. Cabe aqui importante indagação: o Judiciário, poder estatal, pode atuar como “cobrador de luxo” das entidades privadas? 54

São frequentes os pedidos de empresas e instituições financeiras para que juízes, em processos de cobrança de dívidas, enviem ofícios a diversos órgãos, públicos e privados, a fim de requisitar dados de devedores inadimplentes (endereço, patrimônio etc.). O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu a respeito: ... Sobretudo a partir da promulgação da Emenda Constitu­ cional no 8/1995, redesenhou-se a ordem social e econômica do Estado brasileiro. O denominado ‘neoliberalismo’ provocou desregulamentação e privatizações. ‘Governo pequeno, impostos baixos, liberdade empresarial, respeito aos direitos de propriedade, fidelidade aos contratos, abertura a capitais estrangeiros, prioridade para a educação básica – eis as características do Estado desejável’ (Roberto Campos). Se são válidas as regras do livre mercado para as instituições financeiras auferirem lucros, as mesmas regras deverão valer quando sofrerem prejuízos. É dizer: se o Estado não pode intervir para lhes cercear os ganhos, também não poderá ser acionado para lhes minorar as perdas. É necessário que o credor comprove haver esgotado todas as diligências ao seu alcance para obter as informações almejadas, sem o que não é possível a expedição de ofícios aos órgãos públicos, visando à obtenção de informações sobre o executado... (Agravo de Instrumento no 1.0079.09.937840-2/001, relator desembargador Rogério Medeiros, julgado em 27.6.2013).

Ou seja, o Judiciário não deve atender requerimentos dessa natureza, ressalvadas algumas situações de relevante

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Foto: Arquivo Pessoal

interesse público e social (por exemplo, localização de um criminoso foragido ou de um devedor de pensão alimentícia para filhos menores). Sobretudo a partir da promulgação das Emendas Constitucionais números 6 e 8, de 1995, foi realizado um novo desenho da ordem social e econômica no Brasil. Ao longo do século 20, o chamado Welfare State combinava democracia liberal na política com o dirigismo econômico do Estado. Nos anos 1980, esse modelo cedeu espaço para o “novo liberalismo”. Foram questionadas as políticas de benefício social até então praticadas. Estados Unidos e Inglaterra, sob os governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, respectivamente, lideraram a implantação dessa nova política econômica. Baseava-se em importantes conceitos liberais: Estado “mínimo”, desregulamentação do trabalho, privatizações, funcionamento do mercado sem interferência estatal e cortes nos benefícios sociais. Norberto Bobbio sintetizou: Por neoliberalismo se entende hoje, principalmente, uma doutrina econômica consequente, da qual o liberalismo político é apenas um modo de realização, nem sempre necessário; ou, em outros termos, uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um corolário. (...) Na formulação hoje mais corrente, o liberalismo é a doutrina do ‘Estado mínimo’ (o minimal state dos anglo-saxões). (in Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, trad. Marco Aurélio Nogueira, 1995, págs. 87-89).

Mudando a ideologia dominante, mudou a forma de se conceber o Estado e a administração pública. Não se quer mais o Estado prestador de serviços: Quer-se o Estado que estimula, que ajuda, que subsidia a iniciativa privada; quer-se a democratização da administração pública pela participação dos cidadãos nos órgãos de deliberação e de consulta e pela colaboração entre público e privado na realização das atividades administrativas do Estado; quer-se a diminuição do tamanho do Estado para que a atuação do particular ganhe espaço; quer-se a parceria entre o público e o privado para substituir-se a Administração Pública dos atos unilaterais, a Administração Pública autoritária, verticalizada, hierarquizada. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 1997, págs. 11-12).

Nesse contexto, as instituições financeiras podem livremente obter lucros em suas operações. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e demais cortes brasileiras autoriza a contratação de juros acima dos limites da Lei de Usura e a cobrança de outros encargos contratuais (comissão de permanência, tarifas bancárias etc.). Se são válidas as regras do livre mercado para a obtenção de lucros pelos agentes financeiros, as mesmas regras deverão valer quando sofrerem prejuízos. Em outras palavras: se o Estado não pode intervir para lhes cercear os ganhos, também não poderá ser acionado para lhes minorar as perdas. É o que concluiu o tribunal mineiro.

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Condomínio edilício e a alienação de frações de utilização exclusiva pelo condômino Otávio de Abreu Portes

Desembargador do TJMG

Rubens Augusto Soares Carvalho

Assessor Judiciário / TJMG

O

1. Introdução: objetivo do artigo presente artigo tem por objetivo ilustrar o panorama atual do regime jurídico dispen­ sado às frações de propriedade de utilização exclusiva em condomínios edilícios, especifica­ mente no aspecto da sua possível alienação pelos condôminos, trazendo alguns breves apontamentos sobre a natureza dos institutos correlatos e pequenas anotações históricas a fim de ilustrar o contexto trazido à discussão, obviamente sem a pretensão de esgotar o conteúdo sob análise. 2. Natureza e personalidade jurídica do condomínio edilício No que se refere à natureza jurídica do condomínio edilício, conclui Caio Mário da Silva Pereira pela inadequação da sua aproximação com os institutos da servidão ou da sociedade, por exemplo. Segundo ele, trata-se de instituto novo, advindo da fusão dos conceitos de domínio exclusivo e de propriedade comum, que se aglutinam para a formação de um todo indissolúvel, unitário e complexo que difere da simples justaposição dos conceitos (2002, p.92-93). 56

Outro ponto que merece rápida abordagem é a questão da personalidade jurídica do condomínio edilício. Em que pese a existência de entendimento em sentido contrário, perfilhamos da doutrina tradicional, que não reconhece ao condomínio personalidade jurídica distinta dos condôminos, vez que neste caso haveria a apropriação de uma cota imaterial de uma pessoa jurídica, e não sobre fração do solo ou da edificação, em total subversão de sua natureza. Nesse sentido, colhemos o entendimento de Caio Mário da Silva Pereira (op. cit., p.89). A doutrina e a jurisprudência admitem, a despeito disso, a personalidade ou a capacidade processual do condomínio para atuar ativa ou passivamente em juízo, representado pelo síndico (artigo 12, inciso IX, do CPC). Vale dizer, admite-se a possibilidade de o condomínio demandar ou ser demandado em seu próprio nome, em que pese a inexistência de personalidade de direito material. O condomínio é, sob tal perspectiva, um ente despersonalizado, vale dizer, conquanto não seja pessoa, é sujeito de direitos e deveres correlacionados com as suas finalidades naturais (p.ex., contratar funcionários, realizar obras e as demais atividades afins), podendo exercê-los ou ser exigido judicialmente, porque dotado de capacidade processual.

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Foto: Marcelo Albert/TJEMG

Desembargador Otávio de Abreu Portes e Rubens Augusto Soares Carvalho, assessor judiciário

3. Código Civil de 2002 e a Lei no 4.591/64 A Lei no 4.591/64, conforme informa seu próprio preâmbulo, dispõe sobre o condomínio em edificações (artigos 1 a 27) e as incorporações imobiliárias (artigos 28 em diante). Posteriormente, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, foi inaugurado capítulo nomeado “Do Condomínio Edilício”, que trata exatamente dos condomínios em edificações, portanto matéria idêntica àquela disciplinada, em parte, pela Lei no 4.591/64. Inexistia qualquer tratamento específico da matéria, conferido pelo Código até então vigente. Desse modo, surgiu na doutrina e na jurisprudência discussão acerca da relação existente entre o novel Código e a Lei no 4.591/64, questionando-se a ocorrência da revogação tácita desta por aquele. No entanto, considerando que tanto o Código (em tese, lei geral) quanto a Lei no 4.591/64 (legislação especial) versam exatamente sobre o mesmo conteúdo jurídico, a saber, o condomínio edilício ou em edificações, julgamos impossível a aplicação do critério de especialidade para definir a primazia de uma sobre outra, vez que neste caso inexiste na norma dita especial qualquer partícula

especializadora da norma dita geral, pelo que não há que se falar em qualquer relação de especialidade entre elas. Há sim, a nosso sentir, um diálogo de fontes, sob a forma de complementaridade, não ficando excluída a incidência da norma extravagante pela superveniência do Código, e evidência disso é o seu artigo 1.332, o qual dispõe por exemplo que, com relação à instituição do condomínio edilício, não se aplicam somente suas regras, mas também as previstas na lei especial, que no caso correspondem à Lei no 4.591/64. 4. A alienação de frações de utilização exclusiva pelo condômino: panorama jurídico atual O artigo 1.331 do Código Civil vigente trata dos requisitos do condomínio edilício. O caput normatiza que no condomínio ‘pode haver’ partes de propriedade exclusiva e partes comuns, senão vejamos: Art. 1.331. Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos.

Nada obstante, como bem observa Francisco Eduardo Loureiro (2008, p. 1.299), a verdade é que pela própria

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natureza do condomínio não apenas pode como deve haver ali partes de utilização exclusiva, vinculadas de modo indissociável à fração ideal de terreno. Dito isso, passando à análise do § 1o do mesmo artigo, a redação original do Código Civil de 2002 dispunha nos seguintes termos: § 1o As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas, sobrelojas ou abrigos para veículos, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários.

Todavia, a Lei no 12.607/12 modificou o texto do Código no ponto em destaque, quando então passou a vigorar a seguinte regra: § 1o As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio. (destaquei)

Fazendo o cotejo da alteração promovida pelo legislador, vê-se que o mesmo quis dar tratamento específico aos abrigos de veículos, ou vagas de garagem, excluindo-lhes do tratamento geral dispensando às partes de utilização exclusiva que, via de regra, podem ser livremente alienadas, gravadas ou locadas pelo condômino a terceiros, sem maiores restrições. Pois bem. Com a redação atual do Código, concluise que os proprietários ou possuidores de abrigos para veículos ou vagas de garagem que quiserem alugá-las ou vendê-las somente poderão fazê-lo a pessoas não estranhas ao condomínio. Ponto de contato entre as duas disciplinas (do Código revogado e do atual) é que entre condôminos inexiste e inexistia qualquer restrição à disposição patrimonial destas frações de propriedade, que podiam, portanto, livremente gravá-las, permutá-las ou por qualquer modo aliená-las. Nesse sentido, julgamento de minha lavra, cuja ementa segue abaixo, em caso onde, sob a batuta do Código revogado, reputei válida a permuta realizada entre os então proprietários dos abrigos para veículos, senão vejamos: EMENTA: DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO JURÍDICO E OBRIGAÇÃO DE FAZER. ADITAMENTO DA CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO EDILÍCIO E 58

ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. PERMUTA DE VAGAS DE GARAGEM. NEGÓCIO VALIDAMENTE ENTABULADO ENTRE OS PROPRIETÁRIOS ANTERIORES. INEXISTÊNCIA DE VONTADE VICIADA, DEFEITO FORMAL OU ILICITUDE DO OBJETO. VALIDADE. NULIFICAÇÃO DO NEGÓCIO. IMPOSSIBILIDADE. PEDIDO IMPROCEDENTE. 1. (...). 2. No condomínio edilício, as partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas, sobrelojas, etc., com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários – artigo 1.331, § 1o, Código Civil. Lícita portanto é a disposição de permuta das vagas de garagem das unidades imobiliárias, validamente concretizada pelos respectivos proprietários, sem a necessidade da intervenção de outros condôminos. 3. Não verificado qualquer vício de consentimento, ligado ao objeto ou de ordem formal nos atos jurídicos impugnados, o caso é de improcedência dos pedidos de nulificação de tais negócios. (TJMG – Apelação Cível no 1.0024.10.1712842/001. Relator Des. Otávio de Abreu Portes. Julgado: 13.03.2013. Acórdão publicado: 26.3.2013 – unânime. Destaque inexistente no original).

Persiste crítica que reputamos de sonora importância na técnica legislativa dispensada à Lei no 12.607/12. Veja que o legislador utilizou a expressão “pessoas estranhas ao condomínio” para restringir o direito à alienação dos abrigos para veículos. Todavia, a redação do dispositivo não foi a melhor, e assim julgamos porque a expressão “pessoa estranha” impregna-se de subjetividade e propicia interpretações de toda ordem, o que por certo mitiga a eficácia da norma. Afinal, o que seria uma pessoa estranha ao condo­ mínio para os fins do artigo 1.331, § 1o, do Código Civil? Um vizinho, por exemplo, bem conhecido nas cercanias, ou um funcionário do próprio condomínio, poderia ser considerado não estranho, a ponto de poder adquirir ou locar uma vaga de garagem de um condômino, independentemente de expressa autorização na convenção? Interpretamos que a mens legislatoris traduzida pela Lei no 12.607/12 foi principalmente a preocupação com a segurança dos condôminos, de fato prejudicada quando se permitia, no regramento anterior, que pessoas de fora do condomínio pudessem adentrar nas suas dependências para estacionar seu veículo provocando, eventualmente, um descontrole no acesso à parte interna do edifício. Assim sendo, torna-se evidente que a redação legal, especificamente quanto à expressão “pessoas estranhas”

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não exprimiu adequadamente a disciplina da matéria, pelo que seria mais apropriada a utilização do conceito de “não possuidor” em substituição, já que este termo, juridicamente técnico, possui aferição objetiva nos termos do artigo 1.196 do Código Civil: Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

Outra crítica que se pode pensar ao artigo em estudo reside no fato de que, da forma como redigido, pode-se interpretar que somente alienações onerosas, ou o aluguel da vaga de garagem estão encartados na proibição contida no artigo 1.331, § 1o, do Código Civil, ficando excluídas as disposições gratuitas da propriedade. Com efeito, da forma como redigido o texto legal, acaso adotada absurda interpretação literal, não seria difícil concluir que um eventual comodato da vaga de garagem não seria alcançado pela norma sob enfoque, já que neste tipo de relação jurídica não há alienação e nem locação. Pensamos, sempre orientados pelo espírito da lei, que a redação mais apta a exprimir de forma eficiente a vontade do legislador seria “(...) exceto os abrigos para veículos, cuja utilização não poderá ser cedida, ainda que de forma gratuita (...)”. Em que pese tais críticas à técnica legislativa, pensamos que a lei civil, motivada pelo viés da segurança pública, inaugurou importante restrição ao direito de propriedade e à autonomia privada dos condôminos ao limitar a alienação de partes específicas de exclusiva utilização em condomínios edilícios, a saber, os abrigos para veículos, impondo mitigação necessária ao exercício de tais direitos no contexto social atual. Conclusão Tecidas tais singelas considerações sobre o tema abor­ dado, pensamos que a Lei no 12.607/12 trouxe impor­ tante modificação no contexto dos condomínios edilícios, imbuída da ideia da segurança. É certo que, embora reflita restrição à propriedade e à autonomia privada, conceitos tão caros à privatística civil, é igualmente verdade que não se pode ignorar a tendência atual de tais institutos, no sentido da sua função social, ou seja, não mais se tolera seu exercício de forma desligada do bem-estar e, especificamente no caso, da segurança coletiva.

Referências bibliográficas PEREIRA. Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 10a Edição. Editora Forense, 2012. LOUREIRO. Francisco Eduardo. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Coordenador Cézar Peluso, 2a Edição. Editora Manole, 2008. 2014 Junho | Justiça & Cidadania 59


D om Quixote, Giselle Souza Foto: amunam Foto: Alternativa João Andrade

Cerimônia celebra 10 anos da construção do prédio que hoje reúne 70 das 82 varas do trabalho do Rio de Janeiro

Fórum Lavradio: Uma década de justiça social A principal unidade do Judiciário Trabalhista no Rio fez aniversário. Data é comemorada em evento promovido com o apoio do Instituto Justiça & Cidadania

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Justiça do Trabalho da 1a Região, que abrange o Estado do Rio de Janeiro, registrava quase 617 mil processos em 2012, segundo o mais recente relatório Justiça em Números, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça. Aproximadamente 85% dessas ações pertencem à primeira instância e se encontram em tramitação no Fórum Lavradio, no bairro da Lapa, que concentra 70 das 82 varas trabalhistas fluminenses. O local, que se tornou o principal centro de acesso ao Poder Judiciário pelo trabalhador, completou 10 60

anos. A data foi lembrada em uma solenidade realizada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 1a Região (TRT1) com o apoio do Instituto Justiça & Cidadania e com o patrocínio da Caixa Econômica Federal (CEF). O aniversário foi comemorado no último dia 5 de maio. O evento contou com a presença do presidente do TRT-1, desembargador Carlos Alberto Araujo Drummond, e do decano da corte e responsável pela criação do Fórum Lavradio, desembargador Nelson Tomaz Braga. Na ocasião, foram concedidos diplomas

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e medalhas em reconhecimento a todos que de alguma forma contribuíram para a construção do novo centro de acesso à Justiça do Trabalho. Um dos homenageados foi a Caixa Econômica Federal, na cerimônia representada pelo diretor jurídico da instituição, Jailton Zanon da Silveira. Foi por meio de uma parceria com a CEF que o TRT-1 obteve recursos para construir o Fórum. “A Caixa Econômica Federal administrava os depósitos judiciais da Justiça do Trabalho. Com os ganhos aferidos desses recursos, firmamos um convênio com o Tribunal que lhe possibilitou construir o novo Fórum. Na época, essa parceria foi inovadora”, explicou Zanon da Silveira. Tomaz Braga ressaltou que a iniciativa pode ser considerada umas das primeiras PPPs (Parcerias Público Privadas) do Poder Judiciário. O desembargador era presidente do TRT-1 e a construção de um novo Fórum foi uma das promessas que fizera como candidato ao cargo. “Quando assumi a presidência do Tribunal, prometi que deixaria todas as varas do trabalho instaladas até a minha saída (da presidência)”, lembrou. De acordo com o desembargador, na época, a Justiça do Trabalho não conseguia prestar um serviço célere ao cidadão, pois padecia com a falta de estruturas adequadas ao bom funcionamento. Tomaz Braga conta que o Fórum Ministro Coqueiro Costa, na Rua Santa Luzia, já dava sinais de esgotamento com o movimento diário provocado pelas 30 juntas de conciliação e julgamento, como então se chamavam as varas do trabalho, que funcionavam no local. “As varas funcionavam em sistema de rodízio para garantir a segurança de magistrados, servidores, advogados e jurisdicionados”, relatou. A situação da Justiça do Trabalho na 1a Região se agravou a partir de 2002, com o incêndio no Fórum Ministro Arnaldo Süssekind, localizado na Avenida

Presidente Antonio Carlos. Por causa do acidente, muitas varas em funcionamento nessa unidade acabaram sendo desativadas. A criação de uma nova instalação, portanto, era um sonho que se tornou necessidade. Desafios A escolha do bairro da Lapa como endereço das varas trabalhistas, entretanto, não foi acolhida de pronto. A região vivia o auge da decadência e degradação decorrentes do abandono das autoridades públicas. “Foi um desafio muito grande. Ninguém queria sair do seu conforto na Avenida Rio Branco e adjacências para vir à Rua do Lavradio”, recordou Tomaz Braga. Superada a resistência, o Fórum foi instalado na Rua do Lavradio, no 132. O prédio contribuiu sobremaneira para a revitalização da área, principalmente por estimular o ressurgimento do comércio a partir da circulação diária de advogados e jurisdicionados. A construção acabou por colaborar também para a recuperação do patrimônio arquitetônico da Lapa. O Fórum Lavradio é formado por um prédio principal, que possui 25 mil metros quadrados e estilo contemporâneo, que se contrapõe aos sobrados frontais, de estilo eclético e com características de diversas épocas, representadas nas curvas do Barroco, nos ornamentos do Rococó e nas colunas e arcos do Neoclássico. O complexo é integrado ainda por um outro edifício que também abriga varas trabalhistas e está localizada na rua de trás, a Avenida Gomes Freire. Ambos os prédios estão interligados pelo Passadiço Cultural – um corredor inaugurado em setembro de 2012, em uma área então em ruínas e abandonada há anos. O local, que abriga exposições e é palco de eventos culturais, sempre gratuitos, é fruto de uma parceria do Instituto Justiça

Foto: João Andrade

Representantes do TRT-1 destacam que o Fórum Lavradio ampliou o acesso do cidadão ao Judiciário Trabalhista 2014 Junho | Justiça & Cidadania 61


& Cidadania com o TRT-1, a Prefeitura do Rio e a Petrobrás. O Passadiço é aberto ao público, sempre das 7h30 às 17h. Passado uma década desde a instalação do Fórum, a sensação é de dever cumprido, contou Tomaz Braga. “Disseram na época que eu estava delirando, que não iria conseguir. Foi um desafio muito grande. Tenho a consciência de dever cumprido. Hoje o Fórum Lavradio é uma realidade”, afirmou. De acordo com o diretor jurídico da CEF, essa primeira década de funcionamento do atendeu a uma necessidade do trabalhador fluminense. “Não se trata apenas de um prédio, mas do que ele representa. A construção não foi erguida para atender ao juiz ou ao servidor, mas para atender a quem realmente necessita e a utiliza. No caso, os advogados e, principalmente, os trabalhadores que, em determinado momento da vida, tiveram algum direito violado e tiveram de recorrer a Justiça do Trabalho, que deve ser ágil neste socorro. Então, esse é o grande ganho e do qual a Caixa muito se orgulha de ter colaborado”. Ampliação Com 70 varas trabalhistas realizando mais de 1,2 mil audiências por dia, o Fórum Lavradio registra a circulação

de mais de 10 mil pessoas por dia. A demanda é crescente e tem despertado a atenção dos dirigentes do TRT-1 para a necessidade de uma futura ampliação das varas trabalhistas existentes. Uma opção considerada é a expansão para além do centro da cidade. O presidente do TRT-1 conta que a meta da corte é estar presente em todos os municípios. “O projeto da Justiça do Trabalho é chegar a todas as cidades. No interior, temos fóruns que atendem a diversos municípios. Há alguns anos já, estamos fazendo um trabalho para descentralizar essas varas. E, mesmo na capital, também temos um projeto para descentralizar as varas trabalhistas”, destacou o desembargador Drummond. Tomaz Braga também defendeu a descentralização. “No meu discurso de posse, há 10 anos, eu disse que tínhamos que olhar para frente, pois daqui a uma década, a Lavradio iria precisar de uma ampliação”, contou o desembargador, destacando que o movimento nesse sentido já teve início com a inauguração do Fórum da Avenida Gomes Freire. De acordo com ele, a expansão para bairros, sobretudo da Zona Oeste da cidade, é um pleito dos operadores do Direito e dos jurisdicionados.

Uma história contada em imagens As comemorações dos 10 anos do principal unidade da Justiça do Trabalho na 1a Região contou também com a inauguração da mostra “Fórum Lavradio – 10 Anos de Justiça Social”. A exposição foi organizada pelo Instituto Justiça & Cidadania, com o apoio do TRT-1 e o patrocínio da Caixa, e está aberta a visitação no Passadiço Cultural. A entrada é franca. A exposição é formada por sete painéis com 20 fotografias de época. Um deles revela a fachada de todos os edifícios que um dia abrigaram a Justiça do Trabalho. Outro traz os depoimentos de magistrados e servidores que contribuíram para a construção do Fórum. Também estão dispostas imagens dos trabalhadores e da construção, entre outras curiosidades. “Essa mostra é uma excelente oportunidade para conhecermos um pouco mais da história da Justiça do Trabalho: segmento do Poder Judiciário que desempenha uma função nobre e social, de garantidora dos direitos dos trabalhadores”, afirmou a curadora Erika Branco.

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A Justiça fluminense na trilha da sustentabilidade socioambiental: Exemplo a ser seguido Nilton Cesar Flores

Advogado Professor da UFF e da Universidade Estácio de Sá

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Foto: Maria Elisa Franco

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Constituição republicana brasileira de 1988 estabeleceu deveres fundamentais a diferentes atores sociais, aos quais cabe o papel de transformador da realidade sócio-econômica-ambiental. Nesse cenário, o Estado, o mercado e os consumidores desempenham papeis fundamentais na busca do desenvolvimento e da justiça social, que se constituem objetivos da ordem constitucional e consistem em meio para o fortalecimento dos alicerces do Estado Democrático de Direito. De fato, as matrizes constitucionais conferem inegável relevância ao papel das instituições no desenvolvimento brasileiro. Sendo assim, as ações voltadas à sua dinamização não podem ser encaradas como um fim em si mesmo. Muito pelo contrário, elas são um meio de promover o bem-estar social, de valorizar a condição humana e assegurar ao homem uma existência digna. Em outras palavras, as ações políticas ou sociais constituem pressuposto para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, impondo um exame sistemático do seu papel frente às decisões e princípios fundamentais que se encontram expressa ou implicitamente presentes no texto da Carta Constitucional de 1988. Pretendemos, portanto, discorrer sobre alguns aspectos essenciais da atuação do Estado e dos mercados na realização da materialidade da Constituição. Tal tarefa não pode prescindir da combinação de esforços para o alcance de resultados satisfatórios do ponto de vista da evolução social, que depende do contínuo aperfeiçoamento das instituições econômicas, jurídicas e sociais. Nesse sentido, estamos

convencidos de que Estado e mercado não se excluem. Pelo contrário, complementam-se para garantir ao Brasil um desenvolvimento mais justo, integral e harmônico. Quando mencionamos os mercados, não nos referimos aos mesmos somente como simples formadores de preços, mas sim enquanto estruturas sociais nas quais interagem os agentes econômicos e também os consumidores. Mercados somente podem ser considerados eficientes se capazes de aliar indicadores econômicos e avanços sociais.

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Nessa ótica, a empresa consagra-se como algo mais do que a mera expressão de uma atividade econômica. Passa a ser reconhecida como uma organização viva, com obrigações multidimensionais que indicam a necessidade de harmonização entre seus interesses particulares e compromissos éticos e sociais, em busca de um crescimento equilibrado, compartilhado e sustentável em longo prazo. Ou seja, os empreendedores ou empresários – expressão aqui usada em sua concepção subjetiva – são agentes que interagem na realidade social, reúnem os interesses de outras partes, para além daqueles de seus sócios ou acionistas, tais como os de seus empregados, colaboradores e da comunidade em que atua, sem olvidar, jamais, do meio ambiente. É de realçar, por oportuno, que os titulares das atividades econômicas em sentido latu, guardam, simultaneamente, uma função econômica, que realizam ao elevar permanentemente os níveis de sua produtividade; e uma função social, que cumprem através da promoção do bem comum. A partir dessa linha de pensamento, exsurge a ideia de sustentabilidade, descrita por Canotilho como um “novo paradigma secular, do gênero daqueles que se sucederam na gênese e desenvolvimento do constitucionalismo (humanismo no séc. XVIII, questão social no séc. XIX, democracia social no séc. XX, e sustentabilidade no séc. XXI)”; conceito que nos remete à percepção de que as empresas não se constituem e desenvolvem suas atividades num vácuo social, mas estão entrelaçadas com questões fundamentais, como expectativas, valores, matrizes sociais e, especialmente, processos comunicacionais mais amplos com a sociedade. Nesse cenário, o conceito de desenvolvimento sustentável deixa de estar restrito ao impacto da atividade econômica sobre o meio ambiente, englobando também as consequências dessa relação na qualidade de vida e no bemestar das populações presentes e futuras. Percebemos assim que o novo paradigma da sustentabilidade conduz a reflexões não somente em relação aos mercados e empresas, assim como sobre o papel de instituições essenciais para o desenvolvimento do País, como o Judiciário. Tal qual o mercado, trata-se de agente de transformação e precisa igualmente estar preparado para a ordem de mudanças, realizando um balanço de suas realizações e a proposta de diretrizes de atuação para o futuro. A compreensão de que as instituições judiciais são especialmente importantes na consolidação do Estado Democrático de Direito e na promoção do desenvolvimento é fundamental para uma perspectiva de compromissos com questões relacionadas à incorporação de novas tecnologias da informação, racionalização de procedimentos e ampliação do acesso à justiça, no sentido de torná-la mais democrática e eficiente. Tal como os mercados e empresas, o sistema de justiça não desenvolve suas atividades num vácuo social, mas também diante

de expectativas, valores, matrizes sociais e processos comunicacionais com a sociedade. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro segue firme no sentido de implementação e consolidação de estruturas institucionais que permitam a remoção de obstáculos ao desenvolvimento, com inúmeras iniciativas que incrementam a atividade jurisdicional e geram valor para a sociedade. No plano interno, é possível verificar preocupação especial com a governança administrativa, que se reflete em questões como descentralização, desburocratização de procedimentos, qualificação dos juízes e dos servidores, incorporação das novas tecnologias ao processo. Na dimensão de suas relações com a sociedade, o referido Tribunal de Justiça tem demonstrado, de forma significativa, avanços relacionados com o aumento da eficiência e da equidade na solução dos conflitos, assim como no necessário diálogo com as demais instituições integrantes do sistema de justiça, como o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados. De fato, tais iniciativas se encontram alinhadas com sua missão, visão e valores, o que contribui para que esta Corte de Justiça estadual se consolide como um modelo de governança pública, com foco na construção de uma rede de gestão administrativa estratégica mais aberta e democrática. Sem dúvida, suas práticas adequadas de gestão permitem não somente atingir os resultados previstos no Plano Estratégico do CNJ; as recomendações provenientes dos Encontros Nacionais do Poder Judiciário e as próprias diretrizes de seus planos Diretores de Gestão e Estratégicos; mas especialmente o acentuado reconhecimento da sociedade. Por fim, cabe ressaltar que fatores, a exemplo do conhecimento, da ética, do princípio da melhoria contínua, do foco no usuário, do comprometimento e da transparência, entre outros, encerram uma filosofia de gestão eficiente e responsável, resultando no cumprimento de sua missão institucional e na contribuição para o desenvolvimento e exercício democrático da cidadania. Como o novo marco que necessita o paradigma da sustentabilidade, aliada ao exercício do dever fundamental dos mercados e empresas, e primordial atuação do Judiciário, com o objetivo de inverter a ordem e risco de danos para o aperfeiçoamento das perspectivas de crescimento ao e do desenvolvimento a uma nação de pessoas constitucionais. Os focos estratégicos do Tribunal de Justiça Fluminense resultam na melhoria e na efetividade da prestação jurisdicional, da gestão dialógica, da valorização do trabalho dos magistrados e dos servidores, da comunicação institucional interna e externa, da tecnologia eficaz e da transparência das de contas, e bem assim convergem para um quadro verdadeiro de gestão com sustentabilidade. Um exemplo que deve ser seguido pelos demais tribunais brasileiros.

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P rateleira, Giselle Souza

Uma lista afetiva Juíza e escritora, Andréa Pachá enumera os livros imprescindíveis à sua vida pessoal e profissional. “Leituras inesquecíveis”, conta.

Foto: Arquivo pessoal

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onvidada pela coluna a revelar os livros que mais lhe inspiraram, a juíza Andréa Pachá, do Rio de Janeiro, deixou escapar: “Morro de medo de listas, especialmente as de preferência de leitura. Corro sempre o risco de ser injusta, parecer incompleta ou leviana”. O desabafo não é fora de contexto. Magistrada com reconhecida atuação nos movimentos associativos da categoria, que já ocupou o cargo de conselheira do órgão de planejamento estratégico do Judiciário – o Conselho Nacional de Justiça, Andréa soma ainda ao seu extenso currículo a profissão de escritora. Seu livro, A vida não é justa, já vendeu mais de 30 mil exemplares. A obra reúne 33 histórias criadas com base no que ela viu e viveu em 15 anos como juíza de varas de família. O sucesso foi tanto que os enredos agora estão sendo adaptados para a TV e o Teatro. A aptidão para eternizar com palavras situações que a maioria dos seus colegas de profissão veem como corriqueiras exige sensibilidade. E essa é uma qualidade que se acura com a leitura, uma boa leitura. A lista de Andréa é cheia de boas seleções. “Escolhi uma lista afetiva, com os títulos que me viessem ao coração e que, por algum motivo, ficaram gravados na memória como leituras inesquecíveis e fundamentais para minha formação humana e profissional”, conta. 66

O primeiro deles é Dom Quixote, de Cervantes. A obra narra a história de um fidalgo, que inspirado pelos romances de cavalaria, decide seguir pelo mundo a fim de combater injustiças. “O livro foi escrito há mais de 400 anos. Sempre que o releio, me encho de esperança de que as utopias, os desejos e os sonhos significam as verdadeiras transformações na vida. Sem as lutas impossíveis e improváveis, a vida é de uma banalidade insuportável”, afirma. Outro livro inspirador para Andréa foi Édipo, de Sófocles. “Essa tragédia, escrita há quase 500 anos A.C., traduz uma questão permanente de todos os homens: quem sou eu? Em busca dessa resposta, um rei justo e bom enfrenta o que o destino lhe reserva e assume a responsabilidade pela sua identidade. É uma leitura essencial, especialmente em momento de flacidez ética em que o mais comum é fugir dos papéis, das representações e dos deveres”, destaca. Por fim, Andréa enumera O Estrangeiro, de Camus: “leitura que transformou seu olhar para a nossa condição humana precária e contraditória”; e acrescenta também Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. “A partir dessa obra, que desenha com uma precisão cirúrgica a nossa realidade social, consegui olhar para o Brasil com o sentimento de pertencimento. Sem Casa Grande e Senzala, não consigo imaginar como enxergaria as desigualdades do País onde vivo e como me perceberia uma magistrada brasileira”. De fato, obras inspiradoras.

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