Revista de História da Arte e Arqueologia

Page 1

A REVISTA DE HISTÓRIA DA ARTE E ARQUEOLOGIA (1994-)

www.unicamp.br/chaa/rhaa

REVISTA DE HISTÓRIA DA ARTE E ARQUEOLOGIA

é uma publicação do Centro de História da Arte e Arqueologia com o apoio do Programa de Pós-graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas.

N. 14 / JUL / DEZ DE 2010 ISSN 1413-0874 BRASIL

A presença de Chassériau em Moreau Semiótica aplicada à Arqueologia Arqueologia e cultura Guarani

Sítio arqueológico Caconde 6 Dez Lesenas na Villa Zeri Sítios arqueológicos do Peruaçu La primera crónica religiosa del Caribe

N. 14 JUL/DEZ DE 2010

A Virgem de Giampietrino no MASP



REVISTA DE HISTÓRIA DA ARTE E ARQUEOLOGIA N. 14 / JUL/DEZ DE 2010 ISSN 1413-0874 BRASIL

Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofi a e Ciências Humanas Departamento de História Pós-graduação em História da Arte Centro de História da Arte e Arqueologia

Indexada em

BHA – Bibliography of the History of Art (Getty Center, EUA) Francis (INIST-CNRS, França)


Editorial

REVISTA DE HISTÓRIA DA ARTE E ARQUEOLOGIA

3

N. 14 / JUL/DEZ DE 2010 ISSN 1413-0874 (impresso) ISSN 2179-2305 (online) BRASIL

5

A presença de Chassériau em Moreau Martinho Alves da Costa Junior

Indexada em BHA – Bibliography of the History of Art (Getty Center, EUA) Francis (INIST-CNRS, França)

21

Semiótica aplicada à Arqueologia – um estudo de caso na Área Andina Cássia Rodrigues Bars

39

A cultura guarani em debate: o Sítio Arqueológico Córrego da Lagoa 2 Glauco Constantino Perez

57

A Virgem amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração, do Museu de Arte de São Paulo Fernanda Marinho

91

Apresentação da indústria lítica do sítio arqueológico Caconde 6 Gabriella Barbosa Rodrigues, Bruno Sanches Ranzani da Silva, Fernando Alexandre Soltys

Editores Responsáveis Jorge Coli Pedro Paulo Abreu Funari Secretários Alexander Gaiotto Miyoshi Fanny Lopes rhaaunicamp@gmail.com Divulgação Natália Campos Ferreira Letícia Badan Palhares Knauer de Campos rhaadivulga@gmail.com Conselho Editorial Nacional Norberto Luiz Guarinello (Departamento de História – USP) Vera d’Horta (Museu Lasar Segall – São Paulo) Renina Katz (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – USP) Arno Alvarez Kern (Departamento de História – UFRGS/PUCRS) Murilo Marx (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – USP) Miriam de Andrade Ribrito de Oliveira (UFRJ) André Prous (Museu de História Natural – UFMG) Haiganuch Sarian (Museu de Arqueologia e Etnologia – USP) Fernanda Fernandes da Silva (Fac. de Arquitetura e Urbanismo – USP) Conselho Consultivo Internacional Paola Barocchi (Scuola Normale Superiore de Pisa) Else Maria Bukdahl (Academia de Belas Artes, Copenhague) Robert Coustet (Universidade de Bordeaux) Daniela Gallo (Universidade Pierre Mendès, Grenoble 2) Denise e Claude Jasmim (Universidade de Provença, Aix-en-Provence) Michel Laclotte (Instituto Nacional de História da Arte, Paris) Alexandros‑Phaidon Lagopoulos (Universidade Aristóteles de Tessalônica) Gérard Monnier (Universidade de Paris I) Charles E. Orser, Jr. (New York State Museum) José Remesal (Universidade de Barcelona) Michel Rowlands (University College, Londres) Philippe Sénéchal (Universidade de Picardie Jules Verne, Amiens) Anchise Tempestini (Istituto Germanico di Storia dell’Arte, Florença) Áqueda e Denis Vialou (CNRS, Paris) Periodicidade e tiragem inicial Semestral / 600 exemplares Impressão Gráfica do IFCH, Unicamp Diagramação Editora Cubo Revisão de Língua Portuguesa Synthesis Revisão de texto / Josias A. Andrade Capa Giampietrino “A Virgem Amamentando o Menino e São João Batista Criança em Adoração”. Óleo sobre tela, 86 × 88 cm, Coleção Masp, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Foto de João L. Musa A RHAA tem o apoio do Programa de Pós-Graduação em História (IFCH-Unicamp) www.unicamp.br/chaa/rhaa

Artigos

109 Dez lesenas renascimentais na Villa Zeri: origem e contexto

Patrícia Dalcanale Meneses

123 Caracterização de crostas de origem biológica em sítios arqueológicos

no Vale do Rio Peruaçu – MG Luíza Maria de Melo Pinheiro, Maria Irene Yoshida, Luiz Antônio Cruz Souza

Documento 133 La primera crónica religiosa del Caribe: la “Relación acerca de las

antigüedades de los Indios” (c.1496), del jerónimo Ramón Pané Lourdes Domínguez, Luiz Estevam de Oliveira Fernandes

Resenhas 157 BENDINER, Kenneth.

Raphael Fonseca

Food in paiting: from the Renaissance to the present

163

HINGLEY, Richard. The Recovery of Roman Britain 1586‑1906, a colony so fertile Pedro Paulo Abreu Funari

167

BATTEUX, Charles. As belas‑artes reduzidas a um mesmo princípio Luiz Armando Bagolin

173 Referências das imagens 175 Normas, permuta e estatuto dos conselheiros


Editorial

A Revista de História da Arte e Arqueologia é uma publicação do Centro de História da Arte e Arqueologia, da Universidade Estadual de Campinas. Publicada desde 1994, seu principal objetivo é promover um maior desenvolvimento da História da Arte e Arqueologia no Brasil, relacionando-a com a produção internacional da área. A RHAA é uma das mais importantes revistas científicas brasileiras que trata essas duas disciplinas correlatas, e é indexada internacionalmente. A RHAA tem por objetivo a publicação de trabalhos de especialistas brasileiros e estrangeiros sobre qualquer assunto de História da Arte e Arqueologia, e ainda alcançar um público amplo e interessado. A publicação de trabalhos em duas línguas, português e inglês, francês, italiano, espanhol ou alemão, possibilita o acesso a leitores brasileiros e estrangeiros. Documentos, textos de referência não traduzidos ainda para o português, resenhas críticas e informes também são incluídos.

The Journal of Art History and Archaeology is published by the Center of Art History and Archaeology (Campinas State University). The main aim of the Journal is to promote a broader development in Brazil of both art history and archaeology, putting them in close contact with an international production in these fields. It is also the first Brazilian Journal dealing with both disciplines in a related way. The Journal aims at publishing papers by Brazilian and foreign scholars about any subject within the scope of art history and archaeology, as well as at addressing a learned and interested larger audience. the publication of papers in two languages, Portuguese and English, French, Italian, Spanish or German will enable Brazilian and foreign readers to be acquainted with the papers. documents and reference texts, still unavailable in Portuguese, reviews and news are also included.

Os editores The Publishers Jorge Coli Pedro Paulo Abreu Funari



A presença de Chassériau em Moreau La présence de Chassériau chez Moreau

MARTinHo Alves DA CosTA JunioR Doutorando em História da Arte pela UNICAMP (Universidade Estudual de Campinas). E-mail: martinhoacjunior@gmail.com Doctorant en Histoire de l’Art par unicamp (université de l’état de Campinas). E-mail: martinhoacjunior@gmail.com

A partir da obra Le cantique des cantiques, de 1853, de Gustave Moreau, o artigo expõe a presença de Théodore Chassériau nas obras de Moreau, sobretudo em suas primeiras telas. Embora seja comum encontrar entre os historiadores indicações sobre tais ligações, a demonstração efetiva dessa aproximação ainda é lacunar. Muitas das características apontadas, especialmente para a figura feminina, estão presentes até mesmo nas obras posteriores de Gustave Moreau e que serão uma forte marca em seu simbolismo. Resumo

Gustave Moreau, Théodore Chassériau, Figura Feminina, Pintura Francesa, Romantismo. PalavRas-chave

Resumé D’après l’oeuvre Le cantique des cantiques, 1853, de Gustave Moreau, l’article étude la présence de Théodore Chassériau chez les oeuvres de Moreau, surtout dans les premières toiles. Bien que soit ordinaire trouver chez les historiens des informations sur ces relations, la démonstration accomplit de cette approche est encore lacunaire. Plusiers caracteristiques pointues, en particulier dans la figure feminine, fait partie y compris dans les oeuvres postérieures de Gustave Moreau et seront une forte caracteristique dans son simbolisme. mots-clé Gustave Moreau, Théodore Chassériau, Figure Feminine, Peinture Française, Romantisme.

RHAA 14

5


Martinho Alves da Costa Junior As ligações amigáveis que Théodore Chassériau e Gustave Moreau mantinham é fato bem conhecido pelos historiadores da arte, e estes laços produziram reflexos na obra do segundo. As obras realizadas na juventude de Moreau atestam, de certa forma, uma forte influência de Chassériau. Telas como Les Cantique des cantiques, de 1853, e também Darius fuyant après la bataille d’Arbelles, de 1852, são os grandes emblemas da forte admiração por Chassériau.

les liaisons d’amitié maintenus entre Théodore Chassériau et Gustave Moreau sont des faits bien connus par les historiens d’art. Ces liasions ont produit des reflets dans l’oeuvre de Gustave Moreau. les oeuvres realisées dans la jeunesse de Moreau certifient, de quelque sort, une fort présence de Chassériau, toiles comme Le Cantique des cantiques, de 1853, et évidemment Darius fuyant après la bataille d’Arbelles, de 1852, sont les plus grands emblèmes de la forte admiration par Chassériau.

Em 2004, Edwart Vignot1 realizou uma conferência a propósito de uma série de vinte e oito desenhos oriundos de sua própria coleção, e inéditos até aquele momento, comprados em uma feira de arte como obras anônimas realizadas provavelmente nos anos 1930. A partir desse momento Vignot submeteu esses desenhos a um estudo aprofundado, o que lhe rendeu um artigo intitulado Quand Chassériau signait Moreau. A aposta era de que estes desenhos com caráter tão inéditos na obra de Moreau fossem, na verdade, realização diretamente da mão de Chassériau, deste modo Vignot estabelecia influências recíprocas entre os dois artistas. entretanto, fruto de novos estudos por parte de outros historiadores,2 a série descoberta por Vignot figura entre as obras de Moreau ligadas profundamente aos primeiros anos de sua carreira, influenciado pelo amigo franco-são-dominguense.

En 2004, Edwart Vignot1 a realisé une conferénce à propos d’une serie de vingt huit dessins issus de sa colection même, et jusqu’à alors inédtis, achetés dans une foire d’art comme des oeuvres anonimes qui ont été faites probablement dans les années 1930; depuis ce moment Vignot a soumis ces dessins sur un étude aprofundit, cet étude l’a rendu une article nommé Quand Chassériau signait Moreau. l’idée central était de que ces dessins de façon si inedit dans l’oeuvre de Moreau étatient directment faits par la main de Chassériau, de cette façon, Vignot établissait des influences reciproques entre les deux artistes. Pourtant, sujet de nouvelles études par d’autres historiens,2 la serie découvert par Vignot fait partie des oeuvres de Moreau liées profondément aux premières années de sa carrière, influencié par l’ami Chassériau.

Grande parte desses desenhos relaciona-se com as duas telas acima citadas de Moreau, tratando-se de desenhos preparatórios, realizados com um traço rápido, mas forte, proporcionando uma noção de posições e estudos de expressões, joias, adereços e apetrechos bélicos que seriam utilizados também nos personagens das telas referidas. Além desse conjunto de estudos, há também, integrando os desenhos de Vignot, cópias de retratos do século 18, como o Portrait en médaillon du buste d’Alexandrine Fanier, feito a partir de uma estampa de autoria anônima conservada na Comédie-Française em Paris e outras variações com um acento mais livre, nas quais a linha, sobretudo a do pescoço feminino, é priorizada. Entretanto, para a sequência deste estudo, neste momento cabe-nos retornar a uma das telas referidas, O Cântico dos Brugerolles, Emmanuelle (dir.). Quando Moreau Signait Chassériau. Paris: ensBA, 2005. 2 louis-Antoine Prat rejeitou formalmente estes desenhos como sendo de Chassériau, e Marie-Cécile Forest redescobriu desenhos inéditos conservados no Museu Gustave Moreau que dialogavam com a série de vinte e oito desenhos de Vignot. Esses fatores puseram em liça mais uma vez a autoria desses desenhos, o que corroborou para as ideias iniciais de Edwart Vignot. Cf. Brugerolles, Emmanuelle (dir.). Op. cit. 1

6

RHAA 14

La grande partie de ces dessins entre en relation avec les deux toiles mencionées de Moreau, Il s’agit de dessins preparatoires faites avec un trait fort et rapide, ce qui fournit une idée des positions et d’études divers, comme les visages, parures, bijoux, elements décoratifs et bélics, tous utilisés aussi dans les personages des toiles rapportées. En outre dans cet ensemble d’études, Il y a aussi copies de portraits du Xviii siècle, comme le Portrait en médaillon du buste d’Alexandrine Fanier, qui a été fait a partir d’une estampe dont l’autori est anonime et conservée dans la Comédie-Française en Paris et d’autres variations avec le trait un peu plus libre, dans lesquelles la ligne, surtout du cou feminin est prioritaire. Pourtant, pour la sequence de cet étude, il nous faut rétourner à une des toiles referées, Le cantique des cantiques, et chercher les chemins de Moreau et les influences diverses de Chassériau, comme nous disent, avant la peinture, les dessins qui Vignot a mis en evidence

1 Brugerolles, Emmanuelle (dir.). Quando Moreau Signait Chassériau. Paris: ensBA, 2005. 2 louis-Antoine Prat a rejeté formellement ces dessins comme en étant de Chassériau et Marie-Célile Forest a redecouvert des dessins inédits conservés au Musée National Gustave Moreau qui dialoguaient avec la série de vingt et huit dessins de Vignot. Ces facteurs ont mis dans lisse encore une fois la qualité d’auteur de ces dessins, fait qui a corroboré pour les idées initiales d’Edwart Vignot. Cf. Brugerolles, Emmanuelle (dir.). Op. Cit.


A presença de Chassériau em Moreau et dont cet étude profitera en grande partie comme combustible (Figure 1). L’oeuvre rapportée de Gustave Moreau s’agit du livre homonyme et controverse de la Bible. La scène choisit est exactement le moment sur laquelle sulamite, en cherchant son aimé, est surprise et ataqué pour les soldats qui faisaint la guard d’une ville: “Les gardes qui font la ronde dans la ville m’ont rencontrée; ils m’ont frappée, ils m’ont blessée; Ils m’ont enlevé mon voile, les gardes des murs” (Le Cantique des cantiques. v, 7). Dans le tablaeu de Moreau la tension est centralisé dans la figure feminine impavide et quand même enfermée par cinq soldats altérés. Les details du paysage sont peu traités par l’artiste, seul references au coin gauche et les murailles d’autre côté sont ébouchés. L’atmosfère crepusculaire, les nuages remuantes – rafales entre un gris cuivré et un blanc irregulière – semblent perturbé plus encore la scène, certes est dans cette atmosfère que presque tout le paysage est perdu, dans un espace dont la tension et le mistère se distinguent. le traitement donnée pour les drapés des soldats peut être mis en comparation avec lequel executé par Chassériau chez sa Sapho de 1849 ou dans Apollon et Daphné de 1844-1845 qui ont été executés au moment que Chassériau s’aloigne d’Ingres et chaque fois plus, dans ses oeuvres, s’avance vers Delacroix. l’interet pour Delacroix était mutue, chez Chassériau on voit une aproximation petit à petit et jamais complète, puisque l’artiste va maintenir une forte disposition ingresque, même dans ses dernières oeuvres jamais abandonera completement les enseignements et beaucoup des règles qui ont été passé à côté de son maitre.3 néanmoins chez Moreau, l’interet se montre depuis ses premières oeuvres, et évidemment que cette interet est présente de quelque façon dans les travaux postérieurs de l’artiste. Théophile Gautier, avec joie s’interesse par cette oeuvre et de manière

Chassériau fait partie de l’atelier d’Ingres très jeune, en 1832 quand le peintre avait 12 ans. Huit ans ensuite il écrit la célèbre lettre reproduite par Chevillard à lequel Théodore écrit de Rome leurs insatisfactions avec Ingres: “Dans une assez longue conversation avec M. Ingres, j’ai vu que sous bien des rapports jamais nous ne pourrions nous entendre. il a vécu sés années de force et il n’a aucune compréhension des idées et des changements qui se sont faits dans les arts à notre époque ; il est dans une ignorance complète de tous les poètes de ces derniers temps” (lettre de Chassériau à son frère Frédéric, apud CHevillARD, 2002: 26-27). Plus qu’insatisfactions, Chassériau se démontre indigné à la perception qu’Ingres se maintient impavide dans leurs règles. Et Chassériau que a été pour l’avenir « napoléon de la peinture », se rend cible du chagrin et du dédain de son ancien maître.

3

cânticos, e procurar seguir os passos de Moreau e as diversas influências de Chassériau, como atestam, antes da pintura, os desenhos postos em evidência por Vignot, dos quais este estudo aproveitará em grande parte como propulsor (Figura 1). A obra referida de Gustave Moreau nos diz respeito ao livro homônimo e controverso da Bíblia. A cena escolhida é exatamente o momento em que sulamita, procurando seu amado, é surpreendida e atacada pelos soldados guardiães de uma cidade: “Encontraram-me os guardas que faziam a ronda da cidade: bateram em mim e me feriram, arrancaram-me o manto as sentinelas das muralhas” (Cântico dos Cânticos, v, 7). Na tela de Moreau a tensão é centralizada na figura feminina impávida e encurralada por cinco sedentos soldados. Os detalhes da paisagem são pouco priorizados, apenas referências no lado esquerdo e às muralhas no lado direito são esboçadas. A atmosfera crepuscular, as nuvens buliçosas – rajadas entre um cinza acobreado e um branco irregular – parecem perturbar ainda mais a cena; certamente é nesta atmosfera que quase toda paisagem é perdida, num espaço em que a tensão e o mistério se sobressaem. o tratamento dado aos drapeados dos soldados pode ser posto em comparação com aquele executado por Chassériau em Sapho, de 1849, ou Apollon et Daphné, de 1844-1845, que foram executados no momento em que Chassériau distancia-se de Ingres e cada vez mais, em suas obras, avança em direção a Delacroix. o interesse em Delacroix era mútuo, em Chassériau vemos uma aproximação dada aos poucos e nunca completa, pois o artista sempre manterá uma forte disposição ingresca; mesmo em suas obras finais nunca abandonará por completo os ensinamentos e muitos dos preceitos nos anos passados ao lado de seu mestre.3 Ao passo que em Moreau, o interesse descortina-se desde suas primeiras obras e evidentemente que tal interesse está presente de alguma forma nos trabalhos posteriores do artista. Théophile Gautier, com auspiciosidade, interessa-se por esta obra, e em tom sarcástico escreve sobre a Chassériau entra muito jovem ao atelier de Ingres, em 1832 quando o pintor tinha 12 anos. Oito anos depois redige a famosa carta reproduzida por Chevillard na qual Théodore escreve de Roma suas insatisfações com Ingres: “Em uma conversa muito longa com o Sr. Ingres, eu percebi que em muitos pontos nunca poderemos nos entender. Ele viveu seus anos de força e ele não tem nenhuma compreensão das ideias e das mudanças que se fazem nas artes em nosso tempo: ele está em uma completa ignorância em relação a todos os poetas desses últimos tempos” (Carta de Chassériau ao irmão Frédéric, apud CHevillARD, 2002: 26-27). Mais do que insatisfações, Chassériau se demonstra indignado ao perceber que Ingres mantém-se impávido em seus preceitos. E Chassériau que fora o futuro “Napoleão da pintura” torna-se alvo do desgosto e do desprezo de seu antigo mestre.

3

RHAA 14

7


Martinho Alves da Costa Junior proximidade que vê entre os dois pintores. Para ele trata-se de uma

sarcastique écrit sur la proximité qu’il voit entre les deux peintres, selon lui il s’agit d’une

Coisa singular. O Sr. Gustave Moreau é aluno do Sr. Picot que deve estar tão espantado em ter produzido tal discípulo como uma galinha que chocou ovos e vê pequenos pintainhos, com a casca logo quebrada, vai se jogar na lagoa vizinha. O verdadeiro mestre do sr. Moreau é Delacroix. ele o procede diretamente; a cor é forte, apoiada, vigorosa nesta gama de tons asfixiados e sombrios que tira à pintura a fenda penetrante da novidade e precede o harmonioso trabalho do tempo.4

Chose singulière, M. Gustave Moreau est élève de M. Picot qui doit être aussi étonné d’avoir produit un pareil disciple qu’une poule qui a couvé des oeufs de canne et voit les petits poussins, aussitôt la coquille brisée, s’aller jeter dans la mare voisine. le véritable maître de M. Moreau est Delacroix. Il en procède directement ; la couleur est forte, soutenue, vigoreuse dans cette gamme de tons étouffés et sombres qui ôte à la peinture l’éclat criard de la nouveauté et devance l’harmonieux travail du temps.4

A “gama de tons asfixiados”, fortuitamente comentada por Gautier, corrobora na descrição de uma atmosfera repleta de desespero e reforça a posição de Sulamita claustrofobicamente inserida de modo que não se perceba uma escapatória possível entre os cinco soldados que a rodeiam. Contudo, mais do que proceder diretamente de Delacroix (como reivindicava Gautier na citação acima), insistimos que nesta tela em específico Moreau identifica-se ainda mais claramente com Chassériau, e os elementos constitutivos desta aproximação se descortinam e se multiplicam diante de nossos olhos.

La “gamme de tons étouffés” fortuitement comentée par Gautier corrobore dans la description d’une atmosfère pleine de désespoir et renforce la position de la sulamite mis d’une façon claustrophobe qu’on ne s’aperçoit pas une échappatoire possible entre les cinq soldats que lui font la roule. néanmoins, plus que procéder directement de Delacroix (comme clamait Gautier dans la citation ci-dessus), nous insistons que dans cette toile spécifiquement Moreau se lie plus clairement avec Chassériau, et les elements constitutifs de cette approche se montrent et se multiplient juste en face de nos yeux.

A composição em geral nos faz lembrar obras como Andromède attachée au rocher par les Néreides, de 1840, ou mesmo um dos poucos vestígios5 que sobraram da Cour des Comptes (1844-1848), como notadamente Le commerce rapproche les peoples, hoje conservado no louvre, em que assinalamos como o tratamento dado à forma dos orientais assemelha-se. Assim como a Andrômeda de Chassériau, a sulamita de Moreau sabe que a resistência é inútil, embora Sulamita esteja muito mais complacente com o ataque e distante do desespero que aflige Andrômeda, senão pela sua boca, que fragilmente se abre, ou nos sutis movimentos dos braços: o direito, que tenta inutilmente afastar a mão de um soldado; e o esquerdo, que procura manter os seios cobertos ao mesmo tempo em que o soldado puxa violentamente sua roupa e procura tocá-los com algum sucesso. 4 GAuTieR, Théophile apud FoResT, Marie-Cécile. “Carnets inédits de Gustave Moreau. le romantisme à son crépuscule”. in BRuGeRolles, emmanuelle. Op. cit., p. 21. 5 Cour de Comptes foi incendiada em 1871 na famigerada Comuna de Paris. Chassériau havia se debruçado na decoração da grande escadaria com diversas figuras alegóricas entre 1844-1848, quase tudo foi perdido. Hoje, os poucos fragmentos que infelizmente não nos dão dimensão da força daquelas imagens (contudo, os desenhos preparatórios, os esboços existentes e os projetos da obra, formam juntamente com esses fragmentos um bom panorama do que foi a decoração) foram transferidos para o louvre.

8

RHAA 14

La composition généralement nous fait rappeler des oeuvres comme Andromède attachée au rocher par les Néreides de 1840 ou même dans un des peus vestiges5 qu’ont surabondé de la Cour des Comptes (18441848), comme notamment Le commerce rapproche les peoples, aujourd’hui conservé au louvre, dans lequel nous désignons comme le traitement donné à la forme des orientaux se ressemblent. Ainsi comme l’Andromède de Chassériau, la sulamite de Moreau sait que la resistence est inutile, bien que sulamite soit beaucoup plus complaisant avec l’attaque et éloigné du désespoir qu’afflige Andromède, autrement par sa bouche que fragilement s’ouvre ou dans les subtis moviments des bras: le droit qu’essaie inutilement éloigner la main d’un soldat et le gauche que cherche maintenir les seins couverts au même instant que le

4 GAuTieR, Théophile apud FoResT, Marie-Cécile. “Carnets inédits de Gustave Moreau. le romantisme à son crépuscule”. in BRuGeRolles, emmanuelle. Op. cit., p. 21. 5 Cour de Comptes a été incendiée en 1871 dans la célèbre Commune de Paris. Chassériau avait penché sur la décoration du grand escalier avec de diverses figures allégoriques entre 1844-1848, presque tout a été perdu. Aujourd’hui, il y a peu de fragments qui dans son ensemble ne donnent malheureusement pas la dimension de la force de ces images (néanmoins, les dessins préparatoires, des croquis existants et des projets de l’oeuvre, forment conjointement avec ces fragments un bon panorama de la décoration perdue), qui ont été transférés pour au louvre.


A presença de Chassériau em Moreau soldat tire avec violence ses vêtements, essaie de les toucher et avec quelque succès. les trois soldats qui restent debout sont plus agressifs et touchent la femme avec sarcasme et violence, elle, à sa part, se maintient inerte – ni même ses jambes semblent vouloir sortir de cette persécution (même que cette legère torsion l’amène à cacher le sexe), comme une épreuve, elle semble croire dans la nécessité de cet évenement. Cette composition décrite comme “pyramidal”6 – et elle est évidemment composée de cette façon – peut être aussi vue dans une lecture circulaire: les soldats que tournent la sulamite font chaqu’un partie d’une sorte de danse circulaire qui conduit le regard. Le soldat debout à droit de la protagoniste se lie au soldat de la gauche qui porte une lance, l’image circulaire s’avance avec le soldat un peu plus audessous de celui-là en passant par les jambes de la sulamite en arrivant vers les autres deux qui sont assises. Cette forme corrobore avec le caractère de l’ivresse de la scène dans lequel le vin qui échappe du verre au vin d’un des soldats est la témoin, ce soldat semble ne plus supporter lui-même à cause des effets du vin, sa position tordue et son cou tombé sont presque sans energie et les bras élargi avec un but ambigu maintien la composition trouble. L’évenemment de cette façon devient beaucoup plus dramatique et dinamique: dans cet aspect nous ne sommes plus dedans le domaine des influences sur la conception de l’image de Chassériau. Bien qu’Il y ait cette dinamique circulaire, toutes les figures, et spécialement la feminine, se maintient introspectives: le moviment et l’interaction sont vers le group – le forme – et non individuellement. Dans le département des Arts Grafiques du Louvre, Il y a un petit dessin (32,5 × 42,7) dans laquelle la composition semble assez à laquelle de Moreau. Cette aquarelle et guache nommé d’Invasions barbares (scène de massacre avec des cavaliers barbares) (Figure 2) a été attribuée à Chassériau tant pour Chevillard comme pour Bénédite et sandoz. néanmoins dans le catalogue géneral du département des Arts Grafiques du Louvre des dessins de Chassériau, louis-Antoine Prat réfuse cette attribution. Pour Prat, les motifs pour réfuser le dessin comme de Chassériau sont bien clairs. il faut noter que le dessin reproduit dans le livre de Bénédite n’est pas le même de celui conservé au louvre. Prat ne méprise pas ce detail, mais il fait valoir que:

Os três soldados mantidos em pé são mais agressivos e tocam a mulher com sarcasmo e violência; ela, todavia, mantémse inerte – nem mesmo suas pernas parecem querer sair desta perseguição (mesmo que a leve torção da perna direita procure tampar o sexo), como uma provação, ela parece acreditar na necessidade deste evento. Esta composição descrita como “piramidal”6 – e de fato compõe-se de tal maneira – pode também ser considerada em uma leitura circular: os soldados que envolvem Sulamita, um a um, são parte de uma espécie de ciranda envolvendo o olhar. o soldado em pé à direita da protagonista liga-se ao da esquerda que porta uma lança, a imagem circular continua com o soldado um pouco abaixo deste passando pelas pernas de Sulamita e chega aos outros dois que estão sentados. Esta forma corrobora para o caráter inebriante da cena da qual o vinho que escapa da taça de um dos soldados é testemunha, este mesmo soldado aparenta não mais aguentarse por causa dos efeitos do vinho, sua posição retorcida e seu pescoço caído estão quase sem energia e o braço estendido com objetivo ambíguo mantém a composição turva. O evento, desta maneira, torna-se muito mais dramático e dinâmico: neste aspecto não estamos mais diante de influências acerca da concepção de imagem de Chassériau. Embora haja esta dinâmica circular, todas as figuras, e principalmente a feminina, conservam-se introspectivas: o movimento e a interação estão para o grupo – para a forma – e não individualmente. No departamento de Artes Gráficas do Louvre há um pequeno desenho (32,5 × 42,7 cm) no qual a composição assemelha-se bastante àquela de Moreau. Esta aquarela e guache com o nome de Invasions barbares (scène de massacre avec des cavaliers barbares) (Figura 2) foi atribuída a Chassériau tanto por Chevillard quanto por Bénédite e Sandoz. Contudo, no catálogo geral do departamento de Artes Gráficas do Louvre, dos desenhos de Chassériau, Louis-Antoine Prat recusa esta atribuição. Para Prat, os motivos para não aceitar este desenho como sendo de Chassériau são claros. É preciso notar que o desenho reproduzido no livro de Bénédite não é o mesmo conservado no Louvre. Prat se atenta a este detalhe, mas argumenta que: É evidente que estes dois desenhos vieram do mesmo artista e não pode ser confundido com Chassériau; composição volumosa, canhão arrochado de figuras, falta refinamento dos coloridos; o peso dos acentos faz pensar em um artista próximo a Henri lehmann,

De toute évidence, ces deux dessins reviennet à un même artiste que ne saurait être confondu avec

Cf. surtout le travaille de Geneviève lacambre, dans le catalogue des années initiales de Moreau. Lacambre, Geneviève. Between Epic and Dream. Chicago: RMN/Art Institute of Chicago, 1999.

6

Cf. sobretudo o trabalho de Geneviève Lacambre, no catálogo dos anos iniciais de Moreau. lacambre, Geneviève. Between Epic and Dream. Chicago: RMN/Art Institute of Chicago, 1999. 6

RHAA 14

9


Martinho Alves da Costa Junior que tratou uma cena bem próxima em um dos hemiciclos na salle du Trône no Palais du Luxembourg, La France sous les Mérovingiens et les Carolingiens.7

entretanto, trata-se de uma obra próxima ao universo de Chassériau, e não é sem motivo que mesmo com a atribuição de Louis-Antoine Prat o museu do Louvre manteve a atribuição a Chassériau. o desenho descreve uma cena na qual vemos em primeiro plano um soldado bárbaro com seu cavalo em riste, e em sua mão direita um machado pronto para atacar um homem, com contornos muito bem delimitados, que tenta contra-atracar apenas com a força de seu corpo, desarmado, na tensão e torção muscular pronto para investir em um murro enquanto sua mão esquerda força a crina do cavalo para impulsionar-se com maior força e precisão. Na mão esquerda do bárbaro uma cabeça degolada. A composição segue um triângulo em cuja base se vê corpos já mortos e duas mulheres caídas; uma com as mãos atadas parece começar a ser arrastada, enquanto a outra tenta impedir o infortúnio. o cavalo cumpre sua sina com muito esforço, mas obedece a seu cavaleiro, passa por cima de cadáveres e de homens feridos sem força para se moverem do local. A cena do massacre continua tensamente por toda a obra; no fundo à esquerda, já quase totalmente na penumbra, outro soldado segura um bebê pela perna e a mãe suplica inutilmente pela vida do filho. Do outro lado, em meio à confusão de corpos que lutam e corpos mortos, a súplica e a violência dialogam com a indiferença de um soldado ao fundo que, montado em seu cavalo, não ataca, apenas observa, embora guarde naquilo que podemos ver em seu rosto um ar raivoso, pronto para atacar. A composição, fortemente triangular, pode ser posta ao lado da Cantique des cantiques. Separando algumas figuras, podemos perceber semelhanças que estão para além da composição. Não se pode afirmar que um tenha visto a obra do outro, mas as semelhanças são diretas. Embora o desenho não mantenha a impressionante circularidade da tela de Moreau, possui uma dinâmica equiparável, espécie de força centrípeta que culmina no soldado com seu cavalo em riste. Em Moreau, as figuras possuem certa leveza, a carne terrosa não é áspera e cortante como a do desenho em questão. Nas figuras de O Cântico dos cânticos podemos perceber um conjunto de referências aos trabalhos de Chassériau. As figuras 7 PRAT, louis-Antoine. Inventaire Général des dessins. École Française. Dessins de Théodore Chassériau. Paris: RMn, 1988, 979.

10

RHAA 14

Chassériau ; composition touffue, canon ramassé des figures, manque de raffinement des coloris, lourdeur des accents font penser à un artiste proche d’Henri lahmann, qui traita un scène assez proche dans l’un des hémicycles de la Salla du Trône au Palais du Luxembroug, La France sous les Mérovingiens et les Carolingiens.7

Pourtant, Il s’agit d’une oeuvre proche à l’univers de Chassériau et ce n’est pas gratuitement que même avec la atribuition de Louis-Antoine Prat le Musée du louvre a maintenu l’oeuvre à Chassériau. le dessin décrit une scène dans laquelle on voit en première plan un soldat barbare avec son cheval en riste, et dans sa main droite un hache prête à attaquer un homme, avec les contours très bien delimités, qu’essaye contre-attaquer avec la force de son corps, sans arms, dans la tension et la tortion musculaire prête pour un coup de poing pendant sa main gauche fait de la force sur la crinière du cheval pour s’impulser avec plus de force et précision. Dans la main gauche du barbare une tête décollé. La composition suis un triangule dont la base on voit des corps déjà morts et deux femmes tombées, une avec les mains atachées semble commencer à être traînée, pendant l’autre essaie empecher l’infortune; le cheval suit son sort avec beaucoup d’effort, mais obeit son chevalier, passe dessus des cadavres et des hommes blessés sans force pour bouger de cette place. la scène du massacre continue avec tenson par toute l’oeuvre, dans le fond à gauche déjà presque totalemment dans les ombres, l’autre soldat tient un enfant par la jambe et la mère clame inutilment pour la vie de son fils. De l’autre côté, dans la folie des corps que se battent et des corps morts, la suplique et la violence entrent en rapport avec l’indiference d’un soldat au fond, monté dans son cheval il n’attaque pas, simplement regard, bien qu’il mantien dans ce qu’on peut voir en son visage un air enragé prête à attaquer. La composition tout a fait triangulaire peut être mis à côté de la Cantique des cantiques. En detachant quelques figures, on peut percoit des semblences que sont par au-déla de la composition. on ne peut pas dire qu’un ait vu l’ouevre de l’autre, mais les similitudes sont directs, bien que le dessin ne maintien pas l’impressionant forme en circle de la toile de Moreau, a une dinamique équivalent, une sorte de force centripete que culmine dans le soldat avec son cheval en riste. Chez Moreau les figures ont certain légèreté, la chair terreuse n’est pas rugueuse et coupant comme chez le dessin qu’on a montré. Dans les figures de Le Cantique des cantiques on a pu noter un ensemble de references aux travaux

PRAT, louis-Antoine. Inventaire Général des dessins. École Française. Dessins de Théodore Chassériau. Paris: RMn, 1988, 979.

7


A presença de Chassériau em Moreau de Chassériau. Les figures masculins sont conçu de manière si proche de celles de Chassériau, les couleurs des personages orientaux et le traitement donné aux drapés de l’habillement sont sembables aux de Chassériau, surtout quand cettes figures sont posés côte à côte avec le travail realisé pour l’artiste dans l’eglise de Saint-Roch à Paris entre les années 1850-1853, ça veut dire, dans les mêmes années de la realisation du tableau de Moreau et dans lequel Chassériau a peint deux scènes de baptêmes, Saint Philippe baptise l’eunuque de la reine d’Éthiopie et Saint François Xavier baptise les Indiens. l’eunuque et les indiens et ses animaux couverts avec des bijoux et des divers elements decoratifs sont certes images très proches de celles de la toile de Moreau des ces années (Figures 3 e 4). Les positions des personnages ne possèdent pas beaucoup de ressemblances, néanmoins la forme, la manière de peindre l’oriental s’approche. la peau terreuse sur laquelle nous parlions dans Moreau se répète dans l’église de St. Roch plus évidemment, surtout dans les contrastes des couleurs des personnages le ton marronâtre se distingue. Dans le Baptême du Eunuque par Saint Philippe Xavier, Christine Peltre parle du caractère androgyne de l’ange comme annonciateur de ce qu’il ferait Moreau, néanmoins ce n’est pas seulement l’ange qui indique un pas vers Moreau en outre leurs oeuvres initiales, le caractère accentué en l’usage de l’ornement, les bijoux et, surtout une ailette qui tende au doré et à une luminosité intense, en résumée, quelque chose précieux qu’annonce dans ces oeuvres et qu’aura une importance singulière dans les oeuvres de Moreau (Figures 5-9). Dans les détails ci-dessus nous avons quelques aspects des oeuvres commentées. la position de la tête dans l’oeuvre de Moreau et dans le baptême des Indiens dans Chassériau. Le détail de l’oeuvre de Chassériau a été inversé dans cette étude pour approcher les similitudes entre elles. Plus que la position, la ligne, la bouche qui s’ouvre soigneusement, dans un cas par l’ivresse et dans l’autre l’épiphanie dans la conversion chrétienne. Les boucles d’oreille grandes, exotiques et qui brillent comme le casque dans la figure de Chassériau renforcent l’excellence latente chez Moreau, et ils déjà prédisent les ressemblances des peintres. Dans les figures inférieures, autres détails des oeuvres, dans ce cas seulement les dos des personnages. entre les oeuvres Invasions Barbares et Cantique des cantiques la ressemblance entre la position des figures est notoire, malgré la musculature masculine dans la toile de Moreau soit beaucoup plus délimité, la torsion est très proche. La ligne de ces figures montrent une conception diverse du dessin: dans le cas de l’Invasions la ligne est beaucoup plus proche de l’école ingresque. Il y a une régularité dans

masculinas são concebidas de maneira muito próxima às de Chassériau, as cores dos personagens orientais e o tratamento dado aos drapeados da vestimenta são semelhantes aos de Chassériau, especialmente quando estas figuras são postas lado a lado com o trabalho realizado pelo artista na Igreja de SaintRoch em Paris entre os anos de 1850-1853, ou seja, nos mesmos anos da realização do quadro de Moreau quando Chassériau pinta duas cenas de batismo, Saint Philippe baptise l’eunuque de la reine d’Éthiopie e Saint François Xavier baptise les Indiens. o eunuco e os indianos e seus animais cobertos com joias e diversos elementos decorativos são, certamente, imagens muito próximas às telas de Moreau destes anos (Figuras 3 e 4). As posições dos personagens não possuem muitas semelhanças, contudo a forma, a maneira de pintar o oriental aproxima-se muito. A carne terrosa da qual falávamos em Moreau se repete com mais evidência em St. Roch, quando no contraste das cores dos personagens o tom amarronzado se sobressai. No batismo do eunuco, por São Philippe Xavier, Christine Peltre indica o caráter andrógeno do anjo como anunciador do que faria Moreau. Entretanto, não é apenas o anjo que aponta para um Moreau além de suas obras iniciais, o caráter acentuado no uso do ornamento, joias e, sobretudo uma palheta que tende ao dourado e a um brilho intenso, em suma, algo de precioso que também se anuncia nessas obras e que terá uma importância singular nas obras de Moreau (Figuras 5-9). Nos detalhes acima temos alguns aspectos das obras comentadas: a posição da cabeça na obra de Moreau e no batismo dos indianos, em Chassériau. o detalhe da obra de Chassériau foi invertido neste estudo para destacar as semelhanças entre elas. Mais do que a posição, a linha, a boca que se abre cuidadosamente, em um caso, pela embriaguez; e em outro pela epifania na conversão cristã. Os brincos grandes, exóticos e brilhosos, como o elmo na figura de Chassériau, reforçam a preciosidade ainda latente em Moreau, e já prenunciam o segundo no primeiro. Nas figuras inferiores, outros detalhes das obras; neste caso apenas as costas dos personagens. Entre as obras Invasions Barbares e Cantique des cantiques a semelhança entre a posição das figuras é notória. Apesar de a musculatura masculina na tela de Moreau ser bastante demarcada, a torção é muito próxima. A linha dessas figuras mostra uma concepção diferente do desenho: no caso de Invasions a linha está muito mais próxima da escola ingresca. Há uma regularidade nessa linha que acompanha toda a figura. Já em Cantique, o jogo cromático ganha mais importância em relação à linha, os tons acobreados, vermelhos, negros e amarelados dão forma RHAA 14

11


Martinho Alves da Costa Junior à imagem. A imagem central – a do batismo de Chassériau, cujo desenho, de primeiro momento, não se enquadra em uma comparação na posição das outras duas imagens – mantém sua força no contraste entre o marrom-escuro (que passa pelo preto e pelo branco no sombreamento) da carne e o vermelho manchado do pano que cobre a parte traseira da figura. Esta pele com essas colorações e esse trabalho de sombreamento possuem um modulado e uma dinâmica – um molejo por assim dizer – que confere um aspecto vivo para a imagem que a difere das outras duas. É a partir de elementos formais de Chassériau (e também de Delacroix) que Moreau ensaia algo novo para suas primeiras obras. Entretanto, destaquemos desta vez apenas a figura feminina, e a semelhança e pontos de encontro com Chassériau ficam ainda mais claros. Os adereços de Sulamita, sobretudo seus braceletes, são facilmente postos lado a lado com os de Esther se parant pour être présentée au roi Assuérus de 1841 ou a primeira versão de Chassériau para Suzanne au bain, de 1839. Os braços grossos e divididos por tais espessos braceletes bem como a posição de Sulamita também nos lembram Chassériau. Se concentrarmos nossa atenção para essa figura, não hesitaremos em indicar uma colagem de posições e objetos (embora a figura de Moreau seja muito mais carregada nas joias: anéis em quase todos os dedos, um grosso colar, brincos e alguns adornos nos cabelos, além dos dois braceletes já referidos) usados anteriormente em muitas pinturas e desenhos de Chassériau. Como por exemplo a extrema semelhança – e me parece pertinente apontar essa aproximação – com o retrato de meio corpo da atriz e amante do pintor Alice Ozy,8 realizado em 1848, pelo artista são-dominguense. A leve torção do pescoço (evidente que na pintura ele inverte a posição para a composição) e mesmo o penteado escolhido por Moreau parecem ter sido realizados a partir deste retrato. Há também um grande parentesco com outro desenho de Chassériau, Portrait de Rachel, 1853. A posição da mulher desenhada é muito próxima à utilizada para o retrato de Alice Ozy. O rosto inclinado e mais uma vez o desenho do penteado do retrato são extremamente próximos à Sulamita, de Gustave Moreau. Há algo para além da forma da figura feminina que nos 8 Alice Ozy e Théodore Chassériau tiveram um relacionamento que aparentemente durou dois anos. Os traços de Ozy foram importantes para outras obras que Chassériau comporia. Há também a anedota contada por Victor Hugo em Choses vues, de 1887 na qual por meio de apelidos muito próximos aos nomes verdadeiros o narrador traça um perfil irônico de uma mulher dominadora e de um pintor extremamente feio e submisso.

12

RHAA 14

cette ligne qui accompagne toute la figure. Dans le Cantique, le jeu chromatique gagne plus d’importance par rapport la ligne, les tons cuivrés, rouges, noirs et jaunâtres donnent de la forme à l’image. Dans l’image centrale, celle du baptême de Chassériau, dont le dessin, dans un premier moment, ne s’encadre pas dans une comparaison de la position des autres deux images, maintient sa force dans le contraste entre le marron (qui passe par le noire et par le blanc dans les sombres) de la peau et du rouge taché du chiffon qui a chargé la partie arrière de la figure. Cette peau avec ces colorations et ce travail ombré possède un modulé et une dynamique - une manier pour ainsi dire - que confère un aspect vivant pour l’image qui la diffère des autres deux. C’est à partir d’éléments formels de Chassériau (et aussi de Delacroix) que Moreau essaye quelque chose nouveau pour leurs premières oeuvres. néanmoins, cette fois, on détache seulement la figure féminine et la similitude et les points de rencontre avec Chassériau sont encore plus clairs. les parures de sulamite (surtout leurs bracelets) facilement sont mises côte à côte avec l’Esther se parant pour être présentée au roi Assuérus, 1841 ou la première version de Chassériau pour Suzanne au bain de 1839. les bras épais et divisés par tels épais bracelets ainsi que la position de sulamite aussi nous rappellent Chassériau. si nous nous concentrons notre attention dans cette figure nous n’hésitions pas à indiquer un collage de positions et des objets (bien que la figure de Moreau est davantage chargée des bijoux : anneaux en presque tous les doigts, un épais coller, boucles d’oreille et quelques ornementations dans les cheveux, outre les deux bracelets déjà mentionnés) utilisés précédemment dans beaucoup de peintures et dessins de Chassériau. Comme, par exemple, l’extrême similitude - et il me semble pertinent d’indiquer cette approche - avec le portrait de demi corps de l’actrice et maîtresse du peintre Alice Ozy8 réalisé en 1848 par l’artiste de Saint Domingue. La légère torsion du cou (évident que dans la peinture il inverse la position pour la composition) et même la coiffure choisie par Moreau semblent avoir été réalisée à partir de ce portrait.

8 Alice Ozy et Théodore Chassériau ont eu des relations qu’a apparemment duré deux ans. les traces d’Ozy ont été importantes pour d’autres oeuvres que Chassériau compose. Il y a aussi l’anecdote comptée par Victor Hugo dans Choses vues, de 1887 dans lequel au moyen de noms très proches aux noms vrais le narrateur trace un profil ironique d’une femme dominateuse et d’un peintre extrêmement laid et soumis.


A presença de Chassériau em Moreau Il y a aussi une grande parentèle avec autre dessin de Chassériau, Portrait de Rachel, 1853, la position de la femme dessinée est très proche de celle utilisée pour le portrait d’Alice Ozy, le visage incliné et encore une fois le dessin de la coiffure du portrait sont extrêmement proche de la Sulamite de Gustave Moreau. Il y a quelque chose outre la forme de la figure féminine qui nous renvoie à Chassériau et que, de certaine manière Gustave Moreau conserve dans leurs oeuvres d’avenir. Plus que renforcer ces aspects formels, Moreau essaye de comprendre l’oeuvre de son ami et capter autres facteurs, comme l’introspection des figures et un air crépusculaire qui semble dominer les compositions et les figures féminines de tous les deux artistes, nous tournerons brièvement à ce point. Dans le dessin Étude de femme assise dans un intérieur, conservé au musée Gustave Moreau, l’artiste reprend la position pour la figure féminine, la légère torsion dans le cou qui collabore pour une vision d’introspection et mystère est présent (dans l’étude pour la sulamite, nous pouvons voir comme ces mêmes éléments gagnent encore plus de dramatisation). nous pouvons inférer aussi dans le traitement donnée au vêtement de cette femme. Avec des grandes motifs décoratives, la tenue possède une autonomie et en même temps il enveloppe la femme qui est en communion avec l’habillement. Élément de séduction, la tenue se lie aux autres ornements comme la voyante boucle d’oreille et l’anneau bien délimité dans la main droite de cette figure qui possède un bras aussi épais que dans les figures de Chassériau. Même la Sapho, de 1849, le fragment de la Cour de comptes, La paix, 1844-1848 et aussi Suzanne au bain de 1839, tous de Chassériau, semblent contenir tels éléments. les bras commentés sont présents dans diverses oeuvres, en étant presque une marque de Chassériau, surtout dans leur production des années 1840. la pose pour les jambes de sulamite obéissent aussi à une norme chasseriesque (Figures 10-17). Comme nous avons pu remarquer dans ces images, les similitudes entre d’innombrables détails dans l’oeuvre de Moreau se lient clairement avec de diverses oeuvres de Chassériau. Bien que beaucoup fait ressortir par la critique, l’approche entre les deux peintres - surtout dans les oeuvres de début de carrière de Gustave Moreau - encore manque d’une étude plus détaillée. Évidemment que la manière employée par Moreau dans leurs premiers toiles envoyée au salon ne sont simplement des références de Chassériau, comme cet article peut laisser transparaître, les imbrications sont plus complexes. Dans un court article sur le type héroïque et l’atmosphère introvertie des personnages de

remete a Chassériau e que, de certa maneira Gustave Moreau conserva em suas futuras obras. Mais do que resgatar esses aspectos formais, Moreau tenta compreender a obra de seu amigo e captar outros fatores, como a introspecção das figuras e um ar crepuscular que parece dominar as composições e as figuras femininas de ambos os artistas. voltaremos em breve a este ponto. no desenho Étude de femme assise dans un intérieur, conservado no museu Gustave Moreau, o artista retoma a posição para a figura feminina. A leve torção no pescoço que colabora para uma visão de introspecção e mistério está presente (no estudo para a Sulamita, podemos ver como esses mesmos elementos ganham maior dramaticidade). Podemos inferir também no tratamento dado à roupa desta mulher. Com grandes motivos decorativos, o vestido possui uma autonomia e ao mesmo tempo envolve a mulher que está em comunhão com a indumentária. Elemento de sedução, o vestido liga-se aos outros ornamentos como o vistoso brinco e o anel bem delimitado na mão direita desta figura que possui um braço tão espesso quanto nas figuras de Chassériau. Mesmo a Sapho, de 1849, o fragmento da Cour de comptes de La paix, 1844-1848 e também Suzanne au bain, de 1839, todos de Chassériau, parecem conter tais elementos. os braços comentados estão presentes em diversas obras, sendo quase uma marca de Chassériau, sobretudo em sua produção dos anos 1940. A pose para as pernas de sulamita obedece também a um padrão “chasseriesco” (Figuras 10-17). Como pudemos notar nessas imagens, as semelhanças entre inúmeros detalhes na obra de Moreau ligam-se claramente a diversas obras de Chassériau. embora muito salientada pela crítica, a aproximação entre os dois pintores – sobretudo nas obras de início de carreira de Gustave Moreau – ainda carece de um estudo mais detalhado. Claro que a maneira empregada por Moreau em suas primeiras telas enviadas ao salão não são simplesmente referências à Chassériau, e como este artigo deixa transparecer, as imbricações são mais complexas. Em um curto artigo sobre o tipo heroico e a atmosfera introvertida dos personagens de Chassériau, Jonathan P. Ribner apenas enuncia – sem se aprofundar – um elemento importante para a nossa perspectiva. Segundo ele, pensando exclusivamente em Le Jeune Homme et la mort, 1856-65, há um ponto de intersecção entre os pintores: RHAA 14

13


Martinho Alves da Costa Junior Aqui Chassériau está idealizado como um jovem pálido na frente de uma figura feminina retraída que poderia ser considerada como prima de Vénus Marine. o torpor melancólico e a imobilidade dessa pintura – tão apropriada para esse propósito elegíaco – são igualmente ressonantes com respeito para o silêncio sugestivo característico de muitos trabalhos de Chassériau.9

Mesmo não analisando ou pondo à prova o que escreveu, Ribner parece ir ao encontro de nossas expectativas. Há algo de Chassériau na obra subsequente de Moreau, algo que passa por características formais, sem dúvida, mas que está na maneira de conceber as figuras, sobretudo a feminina. O “torpor melancólico” e a introspecção das figuras fazem parte de toda a obra de Gustave Moreau, de forma mais acentuada nas obras posteriores, mas já inseridas nessas primeiras telas. o quadro a que se refere Ribner, Le Jeune Homme et la mort, foi realizado em homenagem ao amigo e pintor, morto precocemente. o Chassériau apresentado no quadro claramente não possui traços semelhantes com o modelo,10 contudo a forma heroica pela qual Moreau apresenta o pintor que tem atrás de si uma mulher sentada tranquilamente (a própria morte), já nos indica a grande admiração que Moreau nutria por Chassériau. A figura da morte está calma, já cumpriu a sua sina, introspectiva e inundada por um ar crepuscular, guarda poucos laços com a pintura de Chassériau, senão esses que acabamos de descrever. O seio de bico tão escuro quanto os cabelos também difere muito dos que havia feito Chassériau. o artista retratado de maneira pálida beira ao esverdeado, porém fortemente exaltando o pintor são-dominguense: como um herói, o próprio artista se coroa com os louros da glória. Neste período grande parte dos especialistas concentra suas análises numa chave distante da influência de Chassériau. Afirmam-se, por exemplo, os estudos debruçados sobre a obra de Rafael. Moreau também realizou diversas cópias de obras de leonardo da Vinci e de Michelangelo Buonarroti, e de fato essas referências também são capitais na obra de Moreau (Figura 18). Refletindo sobre a época em que Moreau inicia esta obra em homenagem a Chassériau (Moreau leva nove anos RiBneR, Jonathan. “Théodore Chassériau and the Anti-Heroic Mode under the July Monarchy”. In: GUÉGAN, Stéphane (Org.) Chassériau (1819-1856) Un autre romantisme. Paris: louvre, 2002, p. 14. 10 Além de dois autorretratos, temos o retrato de A. Ch. Masson, Portrait de Théodore Chassériau de 1887 e mesmo um desenho do próprio Gustave Moreau no qual há uma grande tentativa em retirar os traços são-dominguenses do pintor, afilando o nariz, deixando os cabelos sem ondulações etc., ao posso que, na referida obra, não há a preocupação em fazer um retrato semelhante. 9

14

RHAA 14

Chassériau, Jonathan P. Ribner seulement énonce - sans s’approfondir - un élément important pour notre perspective. selon lui, en pensant exclusivement dans Le Jeune Homme et la mort, 185665, Il y a un point d’intersection entre les peintres: Here Chassériau is idealized as a pale youth standing before a withdrawn female figure Who could be considered a cousin to the Vénus marine. The melancholy torpor and immobility of this painting – so appropriate to its elegiac purpose – are also resonant with respect for the evocative silence characteristic of much of Chassériau’s oeuvres.9

Même n’analysant pas ou en mettant en preuve ce qu’il a écrit, Ribner semble aller à la rencontre de nos attentes. Il y a quelque chose de Chassériau dans l’oeuvre ultérieure de Moreau, quelque chose qui passe par des caractéristiques formelles, sans aucun doute, mais qui est présent dans la manière de concevoir les figures, surtout la féminine. Le « torpeur mélancolique » et l’introspection des figures font partie de toute l’oeuvre de Gustave Moreau, de forme plus accentuée dans les oeuvres postérieures, mais déjà insérées dans celui-là de premiers toiles. le tableau duquel se rapporte Ribner, Le Jeune Homme et la mort, a été realisé pour rendre hommage au ami et peintre, mort précocement. le Chassériau présenté dans le tableau ne possède clairement pas de traces semblables avec le modèle,10 néanmoins la forme héroïque dans laquelle Moreau présente le peintre qui possède derrière lui une femme de places assises tranquillement (la mort lui-même), déjà nous indique la grande admiration que Moreau nourrissait par Chassériau. La figure de la mort est calme, a déjà accompli son destin, introspectif et inondé par un air crépusculaire, garde peu de lacets avec la peinture de Chassériau, autrement celui-là que nous finissons de décrire. le mamelon aussi foncé que les cheveux sont aussi beaucoup diffèrent de ce qu’il avait fait Chassériau. L’artiste présenté de manière pâle, presque vert, néanmoins fortement en exhalent le peintre : comme un héros, l’artiste lui-même si couronne avec les blonds de la gloire.

RiBneR, Jonathan. “Théodore Chassériau and the Anti-Heroic Mode under the July Monarchy”. In: GUÉGAN, Stéphane (Org.) Chassériau (1819-1856) Un autre romantisme. Paris: louvre, 2002, p. 14.

9

10 en outre les deux auto-portraits, nous avons le portrait de A. -Ch. Masson, Portrait de Théodore Chassériau, 1887 et même un dessin par Gustave Moreau lui-même dans lequel il y a une grande tentative à enlever les traces créoles du peintre, en effilant le nez, en laissant les cheveux sans ondulations etc., tant que, dans l’oeuvre citée, il n’y a pas la préoccupation à faire un portrait semblable.


A presença de Chassériau em Moreau Dans cette période grande partie des spécialistes se concentre leurs analyses sur une clé éloignée de la presence de Chassériau, s’affirme, par exemple, les études penchées sur l’oeuvre de Raphael. Moreau a aussi réalisé diverses copies d’oeuvres de leonardo da Vinci et de Michelangelo Buonaroti et en fait ces références aussi sont capitales dans l’oeuvre de Moreau. Christine Peltre en reflétant sur le temps où Moreau initie cette oeuvre pour rendre hommage à Chassériau (Moreau prend neuf ans pour la conclure), affirme que “Il a trente ans et ce jour est pour lui l’épilogue d’une amitié féconde qui décide de sa carrière, avant le voyage en Italie qui lui donnera une impulsion nouvelle”.11 Certes la carrière de Moreau gagne de nouveaux contours avec son voyage en Italie et avec l’influence reçue des maîtres Renaissances, je me fais attention encore sur l’importance de la période précédente (des primitifs comme ils alors étaient connus), copiés par Moreau - comme éclaircissent leurs copies conservées au Musée National Gustave Moreau (Figure 18). et aussi leurs persécutions vers le monde oriental, un monde dans lequel il n’a pas été excepté à travers de dessins, de photographies etc., en réalisant copies d’estampes japonaises ou statuaires Égyptiennes et bouddhistes. Tout cet univers se configure dans les oeuvres de Moreau dans un monde mystérieux et imaginaire, ludique, luxueux et précieux, mélancolique et décoratif, sans jamais abandonner les aspirations romantiques (bien que transfigurées dans quelque chose totalement nouveau) et les années de intimité avec Chassériau.

11 PelTRe, Christine. Théodore Chassériau. Paris: Gallimard, 2001, 219.

para concluí-la), Christine Peltre afirma que “ele tem trinta anos e este dia para ele é o epílogo de uma amizade fecunda que decidiu sua carreira, antes de viajar para a Itália, que lhe dará uma nova impulsão”.11 Por certo a carreira de Moreau ganha novos contornos com sua viagem à Itália e com a influência recebida dos mestres renascentistas, atendo-se ainda à importância do período anterior (dos primitivos, como eram então conhecidos), copiados por Moreau – como esclarecem suas cópias conservadas no Museu nacional Gustave Moreau. E também suas perseguições ao mundo oriental, um mundo no qual ele não foi senão por meio de desenhos, fotografias etc., realizando cópias de estampas japonesas ou estatuárias egípcias e budistas. Todo este universo configura-se nas obras de Moreau em um mundo misterioso e imaginário, lúdico, luxuoso e precioso, melancólico e decorativo, sem jamais abandonar as aspirações românticas (embora transfiguradas em algo totalmente novo) e os anos de convivência com Chassériau.

11

PelTRe, Christine. Théodore Chassériau. Paris: Gallimard, 2001, 219.

RHAA 14

15


Martinho Alves da Costa Junior 1 Gustave Moreau. Les cantique des cantiques, 1853. Dijon, musée des Beaux-Arts.

1

2 Théodore Chassériau? Invasions Barbares. Por volta de 1850. Musée du Louvre. 3 Théodore Chassériau. François Xavier baptise les Indiens, 1850-1853. Igreja de Saint Roch, Paris.

2

3

16

RHAA 14


A presença de Chassériau em Moreau 4

4 Théodore Chassériau. Saint Philippe baptise l’eunuque de la reine d’Éthiopie, 1850-1853. Igreja de Saint Roch, Paris. 5, 6 Detalhe do soldado em Cântico dos Cânticos, 1853, de Gustave Moreau, e detalhe de figura masculina em Saint François Xavier (invertida), 1850-53, de Théodore Chassériau. 7, 8 Detalhe de Cântico dos Cânticos, 1853, de Gustave Moreau. Detalhe de Saint François Xavier baptise les Indiens, 1850-53, de Théodore Chassériau.

5

6

8

7

RHAA 14

17


Martinho Alves da Costa Junior 12 Detalhe de Invasions Barbares, de Théodore Chassériau por volta de 1850.

9

10, 11, 12, 13, 14, 15 Detalhes da figura feminina das obras: Les cantiques de cantiques, 1853; Étude de femme assise dans un intérieur; Trois études dont La Sulamita, por volta de 1852, de Moreau; Vénus marine, 1838; Suzanne au bain, 1839 e Esther se parant pour être présentée au roi Assuérus, 1841, de Chassériau, respectivamente.

9

10

14

11 13

15

18

RHAA 14


A presença de Chassériau em Moreau 16, 17 Detalhes da figura feminina das obras: Alice Ozy, 1848 e Portrait de Rachel, 1853, de Chassériau, respectivamente. 18

16

Gustave Moreau. Le Jeune Homme et la mort, 1856-1865.

18

17

RHAA 14

19



Semiótica aplicada à Arqueologia – um estudo de caso na Área Andina Archaeological semiotics – a case study in the Andean Area

CássiA RodRigues BARs Mestre e Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, MAE-USP. E-mail: cassiabars@gmail.com Master degree in Archaeology, Phd student, Museum of Archaeology and etnology of The university of são Paulo, MAe-usP. e-mail: cassiabars@gmail.com

resumo o principal objetivo deste artigo é ressaltar a importância do método semiótico para a construção de conhecimento em arqueologia. Para tanto, será apresentado um estudo de caso relacionado à análise de um artefato mochica, cuja composição escultórica serve de base para uma iconografia complexa, intimamente ligada aos conceitos que formam a base da cosmovisão andina. PAlAvrAs-chAve

Cosmovisão Andina, Iconografia Mochica, Semiótica em Arqueologia.

This article intends to emphasize the importance of the semiotic method for the archaeological studies in general. in order to show the relevance of this methodology, we present a case study based on the analysis of a Mochica artifact, which serves as basis for a complex iconography, closely related to the principles that form the basis of the andean cosmology. AbstrAct

Keywords

Andean Cosmology, Mochica iconography, Archaeological semiotics.

RHAA 14

21


Cássia Rodrigues Bars Robert Preucel, autor do livro Semiótica em Arqueologia,1 ressalta que a relação da arqueologia com a semiótica data do início dos anos 1960, com a introdução de conceitos provenientes do estruturalismo nos trabalhos de arqueólogos como André Leroi-gourhan, Annette Laming-emperàire e James deetz. em 1980, ian Hodder teria reintroduzido o estruturalismo na arqueologia, como base teórica das diversas posturas assumidas pelo pós-processualismo.2 entretanto, Preucel também destaca o fato notável de que, apesar destes exemplos, até os dias de hoje muito poucos arqueólogos se dedicaram à compreensão e aplicação da semiótica em seus trabalhos. “o termo semiótica não aparece em nenhuma das recentes revisões de métodos e teorias arqueológicas”.3 de forma geral, o fato de a semiótica não ser adotada como ferramenta metodológica por muitos arqueólogos não implica na inadequação da metodologia em si, mas sim no fato de que muitos a consideram “complexa” e por demais “filosófica”, e não compreendem como ela poderia ser aplicada no estudo da cultura material de forma clara. outro fator citado por Preucel4 seria o de que a semiótica, de forma geral, tende a tratar a cultura material, ou a iconografia, como um “texto”, fato que incomoda muitos arqueólogos processualistas, como Binford. em sua crítica à arqueologia contextual de Hodder, Binford afirma que:

Robert Preucel, author of Archaeological Semiotics,1 tells us that the relation between archaeology and semiotics dates back to the beginning of the nineteen sixties, with the introduction of concepts from structuralism, as seen in the works of archaeologists like André Leroi-gourhan, Annette Laming-emperàire and James deetz. in 1980, ian Hodder would reintroduce structuralism in archaeology as a theoretical base for the numerous approaches assumed by the post-processualism.2 However, Preucel also stresses the fact that, besides these examples, today very few archaeologists attempt to apply semiotics to their work. “The term ‘semiotics’ appears in none of the recent overviews of archaeological method and theory”.3 The fact that semiotics is not adopted as a methodological tool by many archaeologists is not due to the inadequacy of the methodology itself, but to the fact that many consider it “complex” or “too philosophical”, and do not understand how could it be applied to studies of material culture as a whole. Another point, discussed by Preucel,4 would be that semiotics, in general, tends to treat material culture, or iconography, as a “text”, an approach that does not please many processualists. Binford, in his critics to Hodder’s contextual archaeology, argues that: [...] if we adopt the procedures advocated by the ‘textual contextualists’, interpretation of the archaeological record is dependent upon adequate and sufficient knowledge of human nature linked to and interpretative art in order to recreate the ‘codes’ or ‘masked expressions’ of ancient power negotiations […] in short, we simply translate the inferred past into our contemporary view of ourselves.5

[...] ao adotarmos os procedimentos ditados pela arqueologia contextual, assumimos que a interpretação do registro arqueológico depende tanto de um conhecimento sólido e suficiente sobre a natureza humana, como de um ato interpretativo, a fim de que seja possível recriar os “códigos” ou as “expressões mascaradas” relacionadas às antigas esferas de negociações de poder [...] em resumo, nós simplesmente traduzimos o que inferimos sobre o passado para nossa visão contemporânea.5

PReuCeL, Robert, W. Archaeological Semiotics. oxford: Blackwell Publishing, 2006. 2 PReuCeL, Op. cit., p. 8-9. Preucel also calls the attention to the fact that Hodder considered not only structuralism, but the post-structuralist reviews, in the development of the post-processual concepts in general. 3 PReuCeL, Op. cit., p. 3. As an example, the author mentions the works of BiNTLiFF, J. (ed.). A Companion to Archaeology. oxford: Blackwell, 2004.; HoddeR, i. The Archaeological Process, an Introduction. oxford: Blackwell, 1999, and o’BRiAN et al. Archaeology as a Process. Processualism and its Progenety. salt Lake City: university of utah Press, 2005, among others. 4 PReuCeL, Op. cit., p. 3. 5 BiNFoRd, L. R. “data, relativism, and archaeological science”. Man, New Series, v. 22, n. 3, sept. 1987, p. 391-404. 1

PReuCeL, Robert, W. Archaeological Semiotics. oxford: Blackwell Publishing, 2006. 2 PReuCeL, Op. cit., p. 8-9. Preucel também chama a atenção para o fato de que Hodder considerou tanto o estruturalismo, como também incorporou as críticas pós-estruturalistas na elaboração dos preceitos do pós-processualismo de forma geral. 3 PReuCeL, Op. cit., p. 3. Como exemplo, o autor cita os trabalhos de BiNTLiFF, J. (ed.). A Companion to Archaeology. oxford: Blackwell, 2004; HoddeR, i. The Archaeological Process, an Introduction. oxford: Blackwell, 1999; o’BRiAN et al. Archaeology as a Process. Processualism and its Progenety. salt Lake City: university of utah Press, 2005, entre outros. 4 PReuCeL, Op. cit., p. 3. 5 BiNFoRd, L. R. “data, relativism, and archaeological science”. Man, New Series, v. 22, n. 3, set. 1987, p. 391-404. 1

22

RHAA 14


semiótica aplicada à Arqueologia other archaeologists, like Tilley,6 for instance, also do not consider that material culture presents itself as a “text”. However, for the author, its structure can be regarded as analogous. Therefore, considering this aspect, semiotics could be an excellent methodological tool for archaeology. For Preucel, archaeology itself could be considered as a “semiotic enterprise”, because “it must attend to the linkages between their theories, data and social practices in the pursuit of meaning”.7 semiotics can be applied to the analysis of material culture as a whole, since it aims to the study of the signs, and these could take the form of words, images, gestures or objects. deetz, for example, has relied on semiotics for the structural analysis of artifacts such as arrowheads, which would be manufactured according to a series of “rules” that would control the distribution of different attributes in the weapons. This attributes were treated as material units of significance, named by the author as “factemes” and “formemes”.8 This broad field of semiotic application in archaeology, however, is often restricted today to the analysis of artifacts or structures that serve as basis for complex iconographies. iconographic analyses in archaeology are extremely important to the understanding of many different social and cultural aspects. According to Flannery and Marcus, “when archaeologists use the term ‘iconography’, they are usually referring to an analysis of the way ancient peoples represented religious, political, ideological or cosmological objects or concepts in their art”.9 Therefore, the semiotic method is certainly today more common in the works of archaeologists that assume theoretical positions that tend to consider aspects linked to symbolic issues. Consequently, the most conspicuous approaches that take the use of semiotics into consideration can be linked to the works made by the so called post-processualists, as well by the followers of

TiLLeY, C. Material Culture and Text: The Art of Ambiguity. London: Routledge, 1991. 7 PReuCeL, Op. cit., p. 2. 8 deeTZ, J. Invitation to Archaeology. garden City, New York: The Natural History Press, 1967.; PReuCeL, Op. cit., p. 102. 9 FLANNeRY, K. V.; MARCus, J. “Cognitive Archaeology”. in: WHiTLeY, d. s. (ed.) Reader in Archaeological Theory. Post-Processual and Cognitive Approaches. London: Routledge, 1998, p. 35-48

Já arqueólogos como Tilley,6 por exemplo, também não consideram que a cultura material se apresente como um “texto”. entretanto, para o autor, ela se estrutura de maneira análoga. dentro desta perspectiva, a semiótica poderia se tornar uma excelente ferramenta metodológica. Para Preucel, a arqueologia em si já seria um “ato semiótico”, pois “necessariamente tem que manter conectados todos os elos que fazem permanecer unidos a teoria, os dados e as práticas sociais na busca dos significados”.7 A semiótica poderia ser aplicada à análise da cultura material como um todo, já que seus objetos de estudo, os signos, podem ser compreendidos como palavras, imagens, sons, gestos ou objetos. deetz, por exemplo, utilizou a semiótica na análise estrutural de artefatos, como pontas de flechas, os quais seriam fabricados de acordo com uma série de “regras” que governariam a distribuição de diferentes atributos às armas. estes atributos foram tratados como unidades materiais de significado, as quais ele denominou “factemas” e “formemas”.8 Apesar de seu amplo campo de aplicação, nos dias de hoje a semiótica geralmente é utilizada de forma mais consistente, na análise de artefatos ou estruturas que servem como base para iconografias complexas. A análise iconográfica em arqueologia é de extrema importância para a compreensão de diversos aspectos que envolvem a sociedade como um todo. segundo Flannery e Marcus, “quando os arqueólogos, de maneira geral, utilizam o termo ‘iconografia’, eles se referem a uma análise do modo como os povos antigos representavam conceitos ligados à religião, à política, à cosmologia ou a ideologias vigentes, através de sua arte”.9 sendo assim, hoje o método semiótico certamente é mais utilizado por arqueólogos que assumem posturas teóricas que tendem a considerar aspectos ligados a questões simbólicas. As principais abordagens que levam em conta o uso da semiótica em arqueologia são, portanto, provenientes de correntes pós-processualistas e da arqueologia cognitiva. estas abordagens, de uma forma ou de outra, procuram geralmente se apoiar nos trabalhos de Ferdinand de saussure e nas várias

6

TiLLeY, C. Material Culture and Text: The Art of Ambiguity. London: Routledge, 1991. 7 PReuCeL, Op. cit., p. 2. 8 deeTZ, J. Invitation to Archaeology. garden City, New York: The Natural History Press, 1967; PReuCeL, Op. cit., p. 102. 9 FLANNeRY, K. V.; MARCus, J. “Cognitive Archaeology”. in: WHiTLeY, d. s. (ed.) Reader in Archaeological Theory. Post-Processual and Cognitive Approaches. London: Routledge, 1998, p. 35-48. 6

RHAA 14

23


Cássia Rodrigues Bars revisões feitas por seus seguidores estruturalistas e pósestruturalistas.10 segundo saussure, considerado o “criador” da semiologia11 (ou semiótica), a semiótica é uma ciência que estuda o papel dos signos como parte integrante da vida social. Já para o filósofo Charles Peirce (criador do termo “semiótica”, hoje amplamente mais utilizado), ela é uma “doutrina formal dos signos”, que possui um funcionamento lógico e racional.12 A semiótica saussuriana é estreitamente associada às teorias de Lévi-strauss, e pode ser compreendida como uma metodologia que procurou construir uma ponte entre a antropologia e a linguística.13 enquanto Lévi-strauss buscava compreender as estruturas que permeavam a organização e formação dos mitos, dos sistemas de parentesco e do totemismo, saussure procurava desvendar as estruturas que sustentavam a organização dos signos entre si. Ao longo do tempo, podemos dizer que os estudiosos de semiótica passaram a trabalhar com correntes teóricometodológicas que, de maneira geral, podem ser subdivididas em duas grandes tendências, conhecidas como semióticas “dura” e “suave”. segundo Barthes,14 a “semiótica dura” tem como base o conceito estruturalista de “pares de opostos” proposto por Lévi-strauss. sua metodologia de análise se baseia na montagem de quadros comparativos nos quais estes “pares de opostos” são dispostos e discutidos. Por vezes, estes quadros de análise eram baseados em modelos matemáticos e atingiam um alto grau de complexidade. esta “complexidade” tornava a “semiótica dura” desinteressante a diversas disciplinas, incluindo a arqueologia. A “semiótica suave”, por sua vez, surgiu como uma alternativa aos modelos ditados pela “semiótica dura”. No lugar de seus quadros de análise e das complexas descrições que os seguiam, a “semiótica suave” propunha a produção de um texto. “A única forma de comentar uma imagem é criar um texto PReuCeL, Op. cit., p. 3. 11 segundo saussure, o termo “semiologia” deriva do grego (semeîon), ou “signo”, e seria relativo à investigação da natureza dos signos e das leis que os governam. sAussuRe, F. (1916). Course in General Linguistics. London: Fontana/Collins, 1974, p. 16. 12 PeiRCe, Charles sanders. Collected Writings (8 Vols.). ed. Charles Hartshorne, Paul Weiss & Arthur W Burks. Cambridge, MA: Harvard university Press, 1931, p. 58. 13 A linguística, segundo saussure, constitui um “ramo” da semiótica. sAussuRe, Op. cit. 14 BARTHes, Roland. Système de la Mode. Paris: seuil, 1957. 10

24

RHAA 14

cognitive archaeology. such approaches, in their own ways, generally are supported by the theories of Ferdinand de saussure, as well as by the many reviews of his work made by his structuralist and post-structuralist followers.10 According to saussure, considered the “father” of semiology11 (or semiotics), this would be a science that studies the role of the signs as part of social life. For the philosopher Charles Peirce (responsible for the creation of the term “semiotics”), it would be a “formal doctrine of the signs”, that functions in a logical and rational manner.12 saussurian semiotics is strictly associated to the theories of Lévi-strauss, and can be understood as a methodology that intends to build a bridge between anthropology and linguistics.13 Alongside Lévi-strauss, that sought to understand the structures behind the configuration of myths, kinship systems and totemism, saussure sought to make clear the structures that sustain the organization of the signs in a discourse. Along its history, we could say that the semiotitians developed their works supported by theoretical-methodological positions that, in general, could be subdivided into two broad tendencies, known as “hard” and “soft” semiotics. According to Barthes,14 “hard semiotics” is based on the structuralist concept of the “pairs of opposites”, as proposed by Lévi-strauss. its methodology is based on the creation of comparative schemes, in which these “pairs of opposites” are placed and discussed. These schemes could be based on mathematical models and achieve a high degree of complexity. such “complexity” made the “hard semiotics” unattractive to several disciplines, including archaeology. “soft semiotics” appeared as an alternative to the models of inference dictated by the “hard semiotics”. in the place of the mathematical schemes, and the complex descriptions that followed, “soft semiotics” advised the production

PReuCeL, Op. cit., p. 3. According to saussure, the term “semiology” derives from the greek (semeîon), or “sign”, and is related to the investigation of the nature of the signs and of the laws that govern them. (sAussuRe, F. (1916). Course in General Linguistics. London: Fontana/Collins, 1974, p. 16). 12 PeiRCe, Charles sanders. Collected Writings (8 Vols.). ed. Charles Hartshorne, Paul Weiss & Arthur W Burks. Cambridge, MA: Harvard university Press, 1931, p. 58 13 Linguistics, according to saussure, should be considered a “branch” of semiotics. sAussuRe, Op. cit. 14 BARTHes, Roland. Système de la Mode. Paris: seuil, 1957. 10 11


semiótica aplicada à Arqueologia of a text. “ The only way to comment an image is to produce a text about it”.15 generally, this is the most common method applied to semiotic analyses in archaeology. According to Flannery and Marcus, when a previous knowledge about cosmology, religion, or ideological aspects of an ancient society is available (for example through history or ethnohistory), it is possible to achieve “truly scientific” iconographic studies.16 Specifically in relation to Andean archaeology, semiotics can rely on the knowledge about the cosmovision of these peoples, which allows us a better understanding of the context in which the images were created.17 The great cultural area known as “Andes” was the home of several societies that grew and developed during the pre-Columbian period. Besides the particularities inherent to each of them, there are some fundamental concepts shared by them. The combination of these concepts forms the basis of the “Andean cosmovision”. such fundamental concepts can be related to the relations among man, nature, and the invisible or supranatural forces.18 Knowledge about these concepts19 allows the iconographic studies to be coherent, in the sense that it is expected that one affirmation made for an isolated representation, parts of it, or a group of them, should be sustained and repeated in other similar situations. This would allow us to “read” the image, and to clarify the structural patterns that compose one or more images.20

BARTHes apud geRVeRAu, Laurent. Ver, Compreender, Analisar as Imagens. Lisboa: edições 70, 2004. 16 FLANNeRY, K.V.; MARCus, J., Op. cit., p. 43. 17 doNNAN, C. Moche Art and Iconography. Los Angeles: university of California, Latin American studies Publications, 1976; BouRgeT, s. Bestiaire Sacré et Flore Magique: Écologie Rituelle de Líconographie de la Culture Mochica, Côte Nord du Peru. Montreal: université de Móntreal- departemant d’Antrhopologie, Faculté des Arts et sciences, 1994. Tese (doutorado); goLTe, J. “Construcción de sentido en una cosmovisión o novela policíaca: la secuencia del entierro en la iconografía”. in: XiX Reunión anual de etnologia (Anales de la reunión anual de etnología): La Paz: Museo Nacional de etnografía y Folklore. MuseF, p. 757-806, 2006. 15

18 BRodA, J. “introducción”. in: BRodA, J.; BAÉZJoRge, F. Cosmovisión, Ritual e identidad de los pueblos Indígenas de México. México d.F: Fondo de Cultura económica, 2001, p. 15-45

The main sources of knowledge about the Andean cosmovision can be related to the literature produced during the period of the contact with the western world, as well as to ethnographic studies in general, since aspects of the Andean cosmovision can be noted in the material production of several Andean contemporary societies. 20 goLTe, J., Op. cit., p. 800. 19

sobre ela”.15 geralmente este é o método mais utilizado quando são aplicadas análises semióticas em arqueologia. segundo Flannery & Marcus, nos casos nos quais é atestado um conhecimento prévio sobre a cosmologia, a religião, ou aspectos ideológicos de uma sociedade antiga (por meio da história ou da etno-história, por exemplo), é possível a realização de estudos iconográficos “verdadeiramente científicos”.16 Especificamente em relação à arqueologia da área andina, a semiótica tem como aliados os conhecimentos acerca da cosmovisão destes povos, os quais permitem uma melhor compreensão dos contextos de construção das imagens.17 A grande área cultural conhecida como “Andes” abrigou diversas sociedades que tiveram seu desenvolvimento e ápice no chamado período pré-colombiano. Apesar das particularidades inerentes a cada uma delas, existem alguns conceitos fundamentais por elas partilhados, que nos permitem falar em termos de uma “cosmovisão andina”. estes conceitos fundamentais formam a base dos modos de relação entre o homem, a natureza e as forças invisíveis ou supranaturais.18 Conhecimentos acerca destes conceitos19 permitem que haja coerência no estudo da iconografia andina como um todo, no sentido de que se espera que uma afirmação feita para uma única representação, parte dela, ou conjunto delas, deva se sustentar e se repetir em outras situações semelhantes, possibilitando assim a realização de uma “leitura” da imagem, ou a compreensão de seus padrões estruturais.20 Para que haja a compreensão das estruturas internas que formam uma imagem ou um conjunto delas, é necessário BARTHes apud geRVeRAu, Laurent. Ver, Compreender, Analisar as Imagens. Lisboa: edições 70, 2004. 16 FLANNeRY, K. V.; MARCus, J., Op. cit., p. 43. 17 doNNAN, C. Moche Art and Iconography. Los Angeles: university of California, Latin American studies Publications, 1976; BouRgeT, s. Bestiaire Sacré et Flore Magique: Écologie Rituelle de Liconographie de la Culture Mochica, Côte Nord du Peru. Montréal: université de Montréal – départemant d’Antrhopologie, Faculté des Arts et sciences, 1994. Tese (doutorado); goLTe, J. “Construcción de sentido en una cosmovisión o novela policíaca: la secuencia del entierro en la iconografía”. in: XiX Reunión anual de etnologia (Anales de la reunión anual de etnología): La Paz: Museo Nacional de etnografía y Folklore. MuseF, p. 757-806, 2006. 18 BRodA, J. “introducción”. in: BRodA, J.; BAÉZ-JoRge, F. Cosmovisión, Ritual e identidad de los pueblos Indígenas de México. México d.F: Fondo de Cultura económica, 2001, p. 15-45. 19 As principais fontes de conhecimento sobre a cosmovisão andina provêm tanto da literatura produzida na época do contato, como os códices, como de estudos etnográficos em geral, já que, de certo modo, aspectos da cosmovisão andina podem ainda ser notados na produção material de diversas sociedades que hoje habitam a área. 20 goLTe, J., Op. cit., p. 800. 15

RHAA 14

25


Cássia Rodrigues Bars que se esclareçam, em primeiro lugar, os mecanismos de relacionamento entre suas unidades mínimas de significação. Estas unidades, ou sememas, possuem por si só significados próprios. Em conjunto, porém, formam um certo número de sintagmas (combinações de sememas) e fornecem informações de como a imagem deve ser “lida”, e de seus sentidos de “leitura”. informalmente, podemos dizer que a combinação dos sememas forma uma “frase”, ou um “texto” que pode ser compreendido até certo ponto. Para a arqueologia, é também de suma importância que a leitura destas imagens leve a uma compreensão do papel dos símbolos, ou dos sistemas simbólicos, em seu contexto social, e como seus mecanismos de funcionamento proporcionam a manutenção e a construção de padrões sociais e ideologias. segundo Renfrew,21 talvez esteja muito distante do alcance do arqueólogo a compreensão total dos significados a partir de uma leitura iconográfica. Entretanto, é possível compreender como os sistemas simbólicos vêm a existir e atuar dentro de um contexto específico; ou seja, nas palavras de Sturrock, compreender como “como os signos significam”.22 A base do método geralmente aplicado nos estudos iconográficos relacionados à área andina consiste na análise do “todo” que compõe uma dada representação, além da consideração do papel representado por cada um de seus respectivos sememas.23 segundo Ana Cláudia oliveira [...] o olhar vai e vem nessa perspectiva de ver o todo a partir das partes que o compõem e vice-versa [...] esse “o que” da imagem que o semioticista quer tornar visível são os processos de estruturação de seu todo a partir da compreensão das unidades... e do modo como estas são arranjadas na sua manifestação textual [...] (ou seja) o semioticista parte da obra iconográfica para, pelo verbal, delinear a cadeia de procedimentos constituintes da obra.24

Conforme comentado, as abordagens semióticas em arqueologia tendem a seguir uma linha saussuriana. Tal fato também se reflete na área andina. Pesquisadores como Golte, por exemplo, se baseiam fortemente nas ideias de saussure na medida em que dão grande ênfase aos conceitos de “pares de opostos” em suas análises. o conceito dos “pares de opostos”

To reach the understanding of the internal structures that form an image or a group of them, it is necessary to clarify the mechanisms of relationship among its minimal units of significance. These units, or sememes, carry their own specific meanings. In group, although, they can form a certain number of sintagms (combinations of sememes), and provide us information of how the image should be “read”. one could say that the combinations of sememes form a “sentence”, or a “text” that could be read and understood to some extent. it is extremely important to notice that, for archaeology, the reading of these images should also allow a better understanding of the role of the symbols, or the symbolic systems, in their social context, as well as how its mechanisms of functioning favor the maintenance and the construction of social patterns and ideologies. According to Renfrew,21 perhaps it is impossible for the archaeologist to understand completely the meanings of the symbols through an iconographic analysis. However, it is possible to understand how the symbolic systems come to exist and act inside a specific context. In the words of Sturrock, to understand “how the signs signify”.22 The basis of the methodology commonly applied to the iconographic studies related to the Andean area consists in the analysis of the “whole” that composes an image, in addition to the consideration of the role played by each of its respective sememes.23 According to Ana Cláudia oliveira [...] the gaze comes and goes in this perspective of seeing the whole from its minimal parts and vice-versa... what the semiotitian seeks to make visible are the processes of structuring of its whole, starting from the understanding of its units [...] and how such units are arranged in its textual manifestation [...] the semiotitian starts from the iconographic image to, through verbalization, delimitate the chain of procedures that forms the representation.24

As mentioned before, the semiotic approaches in archaeology tend to follow saussure. This is also true for the Andean area. Researchers as golte, for instance, rely on saussurian premises

ReNFReW, C.; BAHN, P. Archaeology – Theories, Methods and Practice, London: Thames & Hudson Ltd, 1991, p. 391. 22 sTuRRoCK, J. Structuralism. London: Paladin, 1986, p. 22. 23 doNNAN, C., Op. cit.; BouRgeT, s., Op. cit.; goLTe, J., Op. cit. 24 oLiVeiRA, A. C. (org.). Semiótica Plástica. são Paulo: Hacker editores, 2004, p. 116. 21

21 ReNFReW, C.; BAHN, P. Archaeology – Theories, Methods and Practice. London: Thames & Hudson Ltd., 1991, p. 391. 22 sTuRRoCK, J. Structuralism. London: Paladin,1986, p. 22. 23 doNNAN, C., Op. cit.; BouRgeT, s., Op. cit.; goLTe, J., Op. cit. 24 oLiVeiRA, A. C. (org.). Semiótica Plástica. são Paulo: Hacker editores, 2004, p. 116.

26

RHAA 14


semiótica aplicada à Arqueologia when emphasizes concepts like the “pairs of opposites” in his analyses. The concept of the “pairs of opposites” is broadly used in such cases, mostly because it seems to “fit” perfectly to numerous “pair” concepts that are inherent to the Andean cosmovision as a whole. The concepts of hanan (above) and hurin (below), for example, were used as parameters for questions associated to hierarchic organization, time, life and death.25 To hanan ideas of life, order and light were associated. on the other hand, were connected to hurin ideas such as death, disorder and darkness. Although apparently “opposites”, concepts like hanan and hurin cannot be understood as binary “fixed” oppositions. The “pairs of opposites” should be understood as in permanent movement, as everything else in the universe. Life and death, for example, cannot be understood simply as “opposites”. The passage from life to death is a transition that would have been initiated with the natural process of ageing. Viveiros de Castro analyzed the Amerindian mentality in his work “A Inconstância da Alma Selvagem”,26 and proposed the perspectivism as an alternative to structuralism, and its organization of the world in “pairs of opposites” that would carry a “fixed” meaning. According to the anthropologist, the Amerindian mentality does not apprehend the world through unchangeable concepts. each meaning could be reinterpreted according to the situation. “From the point of view of the spirits, humans and spirits share essential aspects; from the point of view of the animals, humans and spirits may be the same. There is, therefore, duality; but it is only the reduction of a richer structure”.27 Perspectivism can also be applied to the Andean case. golte, for instance, relies on the idea of the “pairs of opposites”, but at the same time, generally ends up concluding the inconsistency of the attempt to understand them in an inflexible manner. About the “pair of opposites” female/ male, golte wrote: “each complementary half is subdivided again into two subparts, feminine and masculine.28 Therefore, to base any Andean iconographic analysis only on

ARCuRi, M. et al. Por Ti América: Arte Pré-Colombiana. Rio de Janeiro: Pancron, 2005, p.56 26 ViVeiRos de CAsTRo, e. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia. são Paulo: Cosac & Naify, 2002. 27 ViVeiRos de CAsTRo, e., Op. cit., p. 85. 28 goLTe, Jürgen. “un universo oculto”. Baessler-Archiv. – Berlin. N.F. N. 52, p. 125-174, 2004, p.144. 25

é bastante utilizado nestes casos, pois parece se “encaixar” perfeitamente a diversos conceitos “pares” que permeiam a cosmovisão andina como um todo. os conceitos de hanan (acima) e hurin (abaixo), por exemplo, eram utilizados como parâmetro para questões como a organização hierárquica, o tempo, a vida e a morte.25 A hanan associavam-se ideias de vida, ordem e luz, enquanto que a hurin, eram ligadas as ideias de morte, desordem e trevas. Apesar de aparentemente “opostos”, conceitos como os de hanan e hurin não traduzem uma oposição binária “fixa”. A mentalidade andina compreende os “pares de opostos” ou a “dualidade” como em perpétuo movimento, assim como tudo o que há no universo. A “morte” e a “vida”, por exemplo, não podem ser compreendidas como “opostas” simplesmente. A passagem da vida para a morte é uma transição, que teria sido iniciada com o processo natural de envelhecimento. Ao analisar o pensamento ameríndio na obra “A Inconstância da Alma Selvagem”,26 Viveiros de Castro propõe o perspectivismo como alternativa ao estruturalismo e sua organização do mundo em pares de opostos de “significados fixos”. Segundo o antropólogo, a mentalidade ameríndia não compreende o mundo por meio de conceitos pares imutáveis. Cada significado estaria sujeito a uma nova interpretação, de acordo com o ponto de vista adotado. “do ponto de vista dos espíritos, humanos e animais comungam aspectos essenciais; do ponto de vista dos animais, humanos e espíritos quiçá sejam a mesma coisa. Há, portanto, talvez, dualidade; mas ela seria apenas a redução de uma estrutura mais rica.”27 Podemos transpor o perspectivismo também para o caso andino. o próprio golte, por exemplo, ao mesmo tempo em que trabalha com a noção de “pares de opostos”, geralmente acaba por concluir a inconsistência da tentativa de aplicar o conceito de forma rígida. Sobre o par de “significados fixos” feminino/ masculino, golte escreveu: “Cada metade complementar, por sua vez, é subdividida novamente em duas subpartes femininas e masculinas”.28 Desta forma, basear uma análise iconográfica somente sobre a questão da “dualidade” seria, assim como apontou Viveiros de Castro, uma “redução” de uma estrutura ARCuRi, M. et al. Por Ti América: Arte Pré-Colombiana. Rio de Janeiro: Pancron, 2005, p. 56. 26 ViVeiRos de CAsTRo, e. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia. são Paulo: Cosac & Naify, 2002. 27 ViVeiRos de CAsTRo, e., Op. cit., p. 85. 28 goLTe, Jürgen. “un universo oculto”. Baessler-Archiv. – Berlin. N.F. N. 52, p. 125-174, 2004, p. 144. 25

RHAA 14

27


Cássia Rodrigues Bars complexa. Não só o pensamento andino em geral se baseia no “dual”, mas exprime também a constante dinâmica do movimento que rege o funcionamento do universo, baseado em mecanismos cíclicos e lineares.

Estudo de Caso: Análise de um Artefato Mochica A cultura mochica (ou “moche”) se desenvolveu na costa norte peruana durante o chamado “Período Médio” (aproximadamente entre 100 a.C. e 800 d.C.). A iconografia presente em seus artefatos e estruturas arquitetônicas traduz, de modo geral, diversos conceitos fundamentais presentes na cosmovisão andina. o artefato escolhido para a análise consiste em um vaso escultórico cerâmico de alça estribo (Figuras 1 e 2) pertencente à coleção do Museu Arqueológico Rafael Larco Herrera, em Lima. A peça foi escolhida, dentre a vasta coleção mochica do museu, por apresentar uma quantidade significativa de sememas que permitem que seja feita uma análise profunda sobre diversos preceitos presentes na cosmovisão andina como um todo.29 Como é possível observar nas Figuras 1 e 2,30 o artefato consiste na imagem de um personagem masculino, ajoelhado, em uma postura aparentemente relaxada, tendo as mãos pousadas sobre as pernas. seu corpo está nu, desprovido de qualquer adorno, a não ser pela complexa pintura corporal. sua calma expressão facial contrasta com a condição atestada pela corda amarrada em seu pescoço, semema que indica seu destino como vítima sacrificial. o personagem em questão representa, certamente, um “guerreiro”. imagens de “guerreiros” são muito comuns na iconografia mochica. Geralmente, quando representados de forma tridimensional, assumem a mesma posição ajoelhada vista no artefato em questão. A vasta quantidade de representações 29 infelizmente, não há informação sobre o contexto arqueológico do achado. Apenas parte da coleção do museu foi formada por meio de achados em escavações realizadas por Larco Hoyle na primeira metade do século passado. A maioria dos artefatos do acervo é proveniente de diversas coleções particulares, adquiridas por Rafael Larco Herrera ao longo de sua vida. desta forma, pouquíssimas peças apresentam dados quanto ao contexto ou sítio de origem. 30 o desenho da peça foi concebido de modo a enfatizar apenas as linhas principais dos contornos escultóricos e da pintura bidimensional presentes no artefato original. geralmente, o padrão de desenho para peças arqueológicas inclui a representação de texturas, volumes e luminosidade, por meio de técnicas como a do pontilhismo (CoNNANT BRodRiBB, A.C. Drawing archaeological finds. New York: Association Press, 1971). entretanto, nesse caso, a representação de tais feições iria comprometer a visualização da complexa pintura bidimensional em análise.

28

RHAA 14

the concept of binary “fixed” concepts would be, as pointed out by Viveiros de Castro, a “reduction” of a far more complex structure. The Andean thinking, in general, is based on the “duality”, but this duality maintains, and is maintained, by the dynamic movement that governs the functioning of the universe, based upon the configuration of cyclic and linear mechanisms. A Case Study: The Analysis of a Mochica Artifact Mochica culture (also known as “Moche”) came to existence and had its development in the Peruvian north coast during the “Medium Period” (aprox. 100 B.C. - 800 A.d.). The iconography found in its artifacts and architectural structures expresses, in general, numerous fundamental concepts related to the Andean cosmovision. The artifact chosen for this analysis consists in a vasesculpture that belongs to the collection of the Museu Arqueológico Rafael Larco Herrera, located in Lima (Figures 1 e 2). The object was chosen, among many others of this vast collection, because of the significant quantity of sememes present in its iconographic representation, which allows a sound analysis on numerous concepts that can be related to the Andean cosmovision as a whole.29 As it can be seen in Figures 1 and 2,30 the artifact consists in the image of a male character, seated cross-legged, in an apparently relaxed posture, with his hands over his legs. He is naked, and the only thing that covers part of his body is a complex body painting. His calm expression contrasts with the condition attested by the rope around his neck, a sememe that indicates his destiny as a sacrificial victim.

29 unfortunately, there is no information about the archaeological context of this object. only part of the collection of the museum can be related to archaeological excavations carried out by Larco Hoyle, in the first half of the last century. Most artifacts come from numerous private collections, bought buy Rafael Larco Herrera. Therefore, context or origin information can be found only in the description of very few objects. 30 The drawing of the artifact was designed to emphasize only the main lines of the sculptural contours and of the two dimensional graphic representations found in the original artifact. generally, archaeological drawings of artifacts include the representation of textures, volumes and luminosity (CoNNANT BRodRiBB, A.C. Drawing archaeological finds. New York: Association Press, 1971). However, in this case the representation of such features would compromise the visualization of the complex painting that will be analyzed in detail.


semiótica aplicada à Arqueologia The character here represents, certainly, a “warrior”. images of “warriors” are very common in Mochica iconography. generally, when represented three dimensionally, they assume the same position as seen in the artifact here in analysis. The vast quantity of two dimensional representations of these characters, however, allows us to see these “warriors” in various complex scenes. such scenes form a narrative expressed in several ceramic vases that apparently portrait a series of connected rituals. Such rituals would culminate in the final sacrifice of the prisoners, all defeated in a “ritual battle”. According to the iconographic analyses of the archaeologist Jaime Castillo,31 the “ritual battle” would be fought by Mochica warriors, distinctly dressed, carrying symbols of high status.32 The combats were performed in pairs, and the defeated warrior would have his garments and jewelry taken away. He would be completely naked and tied up with ropes around the neck and hands, and would be carried, in a kind of parade, to the place of the sacrifice. The cross-legged posture is used to portray a great number of characters in Mochica iconography, ranging from images of great chiefs, to his closest “helpers”, warriors and priests. Workers, when represented performing their normal tasks, can also be portrayed in the same manner. even supranatural beings, like the “main deity” Ai Apaec, are occasionally represented assuming this position.33 To be cross-legged, therefore, indicates dignity. This is a representation of a warrior, a member of a privileged social class, who assumes a posture and a facial expression of calm and restraint, knowing that death is ahead of him. The very image of the warrior as a whole would represent a “pair of opposites” or the “duality” life/death. However, as pointed out, death cannot be reduced to a mere opposition in relation to life. death is a transition, a change of state, for this warrior will assume a new form in the infraworld (or “world of the dead”). The blood that flows

CAsTiLLo B. L. J. “La Cerimônia del sacrifício – Batalla y Muerte el Arte Mochica”. Catalogue of the exposition. Museu Arqueológico Rafael Larco Herrera, Feb to Aug 2000. Lima, 2000. 32 in rare occasions, the “enemies” portrayed in battle scenes can be considered “foreigners”. 33 Scenes known as “the sacrifice on the mountain” generally depict a cross-legged Ai Apaec watching the sacrifice being performed in his honor. 31

bidimensionais, entretanto, nos permite avistar esses guerreiros em meio a inúmeras cenas de temática complexa. Estas cenas, as quais estes “guerreiros” protagonizam, formam uma espécie de narrativa, exposta em diversos vasos cerâmicos, que retratam aparentemente uma série de rituais conectados entre si, cujo ápice seria o sacrifício final de prisioneiros, derrotados em uma “batalha ritual”. Segundo as análises iconográficas do arqueólogo Jaime Castillo,31 esta “batalha ritual” seria travada por guerreiros mochicas, ricamente vestidos e ornados com símbolos de alto status.32 estes combates eram realizados em pares, e o guerreiro derrotado seria destituído de suas ricas vestimentas e levado nu e amarrado, com cordas no pescoço e nas mãos, em uma espécie de procissão até o local do sacrifício. A postura ajoelhada é utilizada para retratar inúmeros personagens da iconografia mochica, desde grandes chefes, até seus “ajudantes” mais próximos, guerreiros e sacerdotisas. Trabalhadores, quando retratados em seus ofícios, também podem ser representados ajoelhados. Mesmo seres supranaturais, como a “divindade principal” Ai Apaec, são ocasionalmente também retratados desta forma.33 estar ajoelhado, portanto, denota dignidade. esta é uma representação de um guerreiro, membro de uma classe social privilegiada, que assume uma postura e uma feição facial de calma e compostura diante da morte iminente. Pode-se dizer que a própria imagem do guerreiro como um todo representaria um “par de opostos”, ou a “dualidade” morte-vida. entretanto, como comentado, a morte não pode ser reduzida a uma mera oposição em relação à vida. A morte é uma transição, uma mudança de estado, pois este guerreiro assumirá uma nova forma no inframundo (ou “mundo dos mortos”). o sangue derramado em seu sacrifício servirá à fertilidade da terra e assegurará a continuidade da vida. A própria postura assumida pelo guerreiro demonstra que a morte não deve ser compreendida imediatamente como um mal. ela serve ao restabelecimento da vida. CAsTiLLo B. L. J. “La Cerimónia del sacrifício – Batalla y Muerte el Arte Mochica”. Catálogo para exposição de mesmo nome. Museu Arqueológico Rafael Larco Herrera, Fevereiro a Agosto de 2000. Lima, 2000. 32 Raramente se encontra uma cena de batalha ritual na qual os “inimigos” são retratados como pertencentes a povos estrangeiros. 33 Cenas conhecidas como “o sacrifício da montanha” geralmente trazem a imagem de Ai Apaec em postura ajoelhada, observando a cena do sacrifício realizado em sua honra. 31

RHAA 14

29


Cássia Rodrigues Bars o corpo do guerreiro está repleto de sememas de significados complexos, que transmitem todo um conjunto de pensamentos sobre a interação dos pisos ecológicos e sobre os ciclos de vida e de morte. John Rowe,34 estudioso da iconografia chavín, denominou de “kennings” sememas semelhantes, que atuam de forma “metafórica”. derivado da poesia nórdica medieval, o termo expressa o uso de determinadas palavras que funcionariam como metáforas para ideias complexas, e que só seriam compreendidas por aqueles que pertenciam a um grupo seleto. Por exemplo, o termo “sea” poderia substituir a ideia de uma área ocupada por focas (“the seal’s field”). Rowe afirmava que as representações chavín empregavam uma técnica semelhante, apenas com a diferença de se utilizar de imagens em vez de palavras. dentre os sememas “metafóricos” representados sobre os braços do guerreiro estão as “volutas”, as “volutas escalonadas”, a “rede” e o “zigue-zague”.

o semema da “voluta”, indicado na Figura 3 pelos números 3 e 4, é a própria imagem do “tempo cíclico”, da movimentação dinâmica e da transformação. Já a “voluta escalonada” (Figura 3, número 1), é na realidade, composta pela combinação de dois sememas: o do “escalonado” e o da “voluta”. o escalonado, representado pelas linhas retas em forma de degraus, exprime ideias ligadas tanto à questão sacrificial, como às relações entre os diferentes pisos ecológicos andinos. As diferenças extremas de altitude na área andina criaram zonas com características distintas, que iam desde a costa desértica aos vales férteis, conhecidos como lomas, aos altos picos das montanhas e à região da selva. Cada um destes

from his sacrifice will assure the fertility of the earth, and reassure the continuity of life. The very own posture assumed by the warrior shows that death should not be understood as an unfortunate event. it serves the continuity of life. The body of the warrior is full of sememes that carry complex meanings related to the interaction of the different ecological zones of the Andes, and to the circles of life and death. John Rowe,34 when studying Chavin iconography, found similar sememes. He called them “kennings”. The term, that derives from medieval Nordic poetry, expresses the use of certain words that would function as metaphors for complex ideas, and could only be understood by the ones that belong to a selected group. For example, the term “sea” could replace the idea of an area occupied by seals (“the seal´s field”). Rowe says that Chavin representations would made use of a similar technique; the only difference would be the use of images instead of words. Among the “metaphorical” sememes represented over the arms of the warrior are the “volutes”, the “stepped volutes”, the “net” and the “zigzag”. The sacrifices, in the Andean world, were made under the perspective that death would provide a dynamic transformation that would allow new births. such transformations were regulated, according to the cosmovision, by a linear and a cyclic time. The linear time indicated the end of a period. The human “form” of the warrior would cease to exist. His “soul” or “spirit” would initiate a new “life” in the infraworld. The cyclic time indicated that the sacrificial blood would penetrate the earth, fertilizing it and maintaining “life” and “death” in endless movement. The sacrifices would act as a control mechanism for the maintenance of the perfect functioning of the universe, guaranteeing that both times, linear and cyclic, would maintain balance. The sememe of the “volute” (indicated in Figure 3 by the numbers 3 and 4), is the very own image of the “cyclic time”, of the dynamic movement of the transformations. The “stepped volute” (Figure 3, number 1), is in reality composed by the combination of two sememes: the “stepped motif ” and the “volute”. The “stepped motif ”, represented by the straight lines in the form of steps, depicts ideas related to the sacrifice, but also indicates the relations among the main ecological zones of the Andes. The differences among the

34 RoWe, J. H. Chavín Art: An Inquiry into its Form and Meaning. New York: Museum of Primitive Art, 1962.

34 RoWe, J. H. Chavín Art: An Inquiry into its Form and Meaning. New York: Museum of Primitive Art, 1962.

os sacrifícios, no mundo andino, eram realizados sob a perspectiva de que a morte promoveria uma transformação dinâmica que permitiria novos nascimentos. estas transformações eram reguladas, segundo preceitos da cosmovisão, por um tempo linear e um tempo cíclico. o tempo linear indicava o final de uma etapa. A forma “humana” do guerreiro deixaria de existir. sua “alma” ou “espírito” iniciaria uma nova etapa, uma nova “vida” no inframundo. o tempo cíclico indicava que o sangue sacrificial penetraria na terra e a fecundaria, mantendo a “morte” e a “vida” em perpétuo movimento. os sacrifícios atuariam como um mecanismo de controle e manutenção do bom funcionamento do universo, a fim de garantir que ambos os tempos, linear e cíclico, permanecessem em equilíbrio.

30

RHAA 14


semiótica aplicada à Arqueologia extreme altitudes in the Andean area propitiate ecological zones with very distinct characteristics, ranging from the desert coast, to the fertile valleys known as lomas, the high peaks of the mountains, and the forest regions located at east. each one of these environments would favor a certain type of agricultural practice, herding, and exploration of natural resources. Therefore, it was crucial for the population of any of these regions to establish commercial contacts with groups that inhabited different ecological zones. This peculiar geography, and these relations among the groups, were perceived as “vertical” (hanan/ hurin); the different ecological zones were represented by the steps of the “stepped motif ”. The architecture of the pyramids reflects, in its own way of construction, the “stepped motif ”. According to archaeological excavations,35 and to the Mochica iconography, in the tops of the pyramids and mountains sacrifices were performed. The symbol of the “stepped volute” represents, therefore, the maintenance of the cyclic time (and consequently, the linear time as well) through such rituals. in an analogous manner, it also expresses the dynamic movement of the transformations of the universe, and the movement of the above and the below (hanan/hurin), that could be inverted according to the point of view adopted. The universe is not a static environment, as indicated by the movement of the skies. The moon “rises” every night to the “world of the above”, at the same time that the sun goes down to the infraworld, inverting, in a cyclic manner, their positions. From the point of view of the inhabitants of the infraworld, “the above is the below, and the below is the above”, all is inverted. over the chest of the warrior, an inverted stepped pyramid is represented. it is depicted like this because the rope in the neck of the warrior indicates that soon this would be the point of view assumed by him. The “movement” itself is also expressed by the constant cadency of the lines that form the sememe of the “zigzag” (Figure 3, number 5). in many Mochica representations the zigzag is used as indicator of a “way to be followed”, generally from a lower point (represented by the basis of the ceramic vessel) till the top of a pyramid or mountain.

ALVA, W. Tesouros do Senhor de Sipán, Peru – O Esplendor da Cultura Mochica. são Paulo: stilgraf, 2006; BouRgeT, S. “Rituals of Sacrifice: its Practice at Huaca de la Luna and its Representation in Moche iconography”. in: PiLLsBuRY, (ed.). Moche Art and Archaeology in Ancient Peru. Washington: National gallery of Art, Washington, 1999, p. 111-125.

ambientes ecológicos propiciava um certo tipo de cultivo, de criação animal e de riquezas naturais. deste modo, era fundamental para a população de qualquer uma dessas regiões, que fossem estabelecidos contatos comerciais com grupos de ambientes ecológicos diferenciados. Esta geografia e estas relações eram percebidas como “verticais” (hanan/hurin); os diversos pisos ecológicos eram representados pelos degraus do escalonado. A arquitetura das pirâmides mochicas reflete, em seu próprio modo de construção, o escalonamento. segundo indicam escavações arqueológicas35 e a própria iconografia, tanto no topo das pirâmides como no das montanhas eram realizados sacrifícios. o símbolo da “voluta escalonada” representa, portanto, a manutenção do tempo cíclico (e por consequência, também do linear) por meio destes rituais. da mesma forma, está imbuído também em sua imagem a questão do movimento dinâmico das transformações do universo, e o movimento do acima e do abaixo (hanan/hurin), que pode se inverter de acordo com o ponto de vista adotado. o universo não se apresenta como um ambiente estático, como indica a própria movimentação do céu. A Lua sobe ao “mundo de cima” todas as noites, assim como o sol desce ao inframundo, invertendo, ciclicamente, suas posições. do ponto de vista dos habitantes do inframundo, “o acima é o abaixo, e o abaixo é o acima”, tudo está invertido. sobre o peito do guerreiro está representada uma pirâmide escalonada invertida, pois a corda em seu pescoço indica que em breve esta será a sua visão. A questão do “movimento” em si é também expressa pela cadência constante das linhas do semema do “zigue-zague” (Figura 3, número 5). Em muitas representações mochicas, o zigue-zague é utilizado como indicação de um “caminho a ser seguido”, geralmente de um local mais baixo (representado pela base do vaso cerâmico) até o topo de uma pirâmide ou montanha. Já o semema da “rede” (Figura 3, número 2) está relacionado com a cerimônia da “caça ao veado”. Recentemente, foi localizada uma das mais antigas cenas desse tipo em uma das paredes de um cômodo no interior da Huaca Ventarrón, em um contexto cerimonial datado em aproximadamente quatro

35

35 ALVA, W. Tesouros do Senhor de Sipán, Peru – O Esplendor da Cultura Mochica. são Paulo: Stilgraf, 2006; BOURGET, S. “Rituals of Sacrifice: its Practice at Huaca de la Luna and its Representation in Moche iconography”. in: PiLLsBuRY, (ed.). Moche Art and Archaeology in Ancient Peru. Washington: National gallery of Art, Washington, 1999, p. 111-125.

RHAA 14

31


Cássia Rodrigues Bars mil anos.36 A antiguidade deste mural atesta a importância simbólica da caça ao veado, um tema que ainda estava sendo representado, de maneira quase idêntica, em artefatos de culturas milênios depois, como a mochica. o tema retrata veados, geralmente machos, sendo apanhados em redes, representadas da mesma forma que o semema em questão – um padrão de linhas paralelas cruzadas. em muitas das representações deste tipo são retratados também os caçadores; senhores ricamente paramentados, acompanhados de seus cães. Larco Hoyle compara as cenas retratadas na iconografia mochica com as cerimônias de caça realizadas na época incaica. [...] indivíduos armados procuravam reduzir as presas em pequenos grupos, até que conseguissem que entrassem em uma grande rede previamente estendida [...] dentro dela... os chefes atacavam os veados [...] em todas as cenas de caça podemos comprovar que a maioria dos animais atacados são machos, fato que pode ser relacionado intimamente com o costume inca, no qual as feras eram exterminadas, os huanacos e vicunhas eram tranquilizados, e era dada liberdade às fêmeas.37

segundo Kuscher38 e Walter Alva,39 a cerimônia da caça ao veado estava ligada à celebração da ancestralidade. A caça, muito provavelmente, era realizada pelos grandes senhores em honra a seus ancestrais, a fim de legitimar sua linhagem. o estudioso Bawden40 aponta para o fato de que a ordem social andina, de forma geral, era submetida a uma tradição definida por laços de parentesco. Fatores como afinidades com fundadores míticos, o culto aos ancestrais e a ênfase dada à importância de ser membro de uma determinada sociedade definiam o status, reforçavam a coesão social e impediam a integração política entre certos grupos culturais. o poder supranatural dado à ancestralidade destas elites legitimaria a permanência delas no poder. A importância da ancestralidade na mentalidade andina também se refletia no tratamento aos parentes falecidos, ignácio Alva Meneses, comunicação pessoal – Arqueólogo responsável pelas escavações no complexo Ventarrón-Collud. 37 LARCo HoYLe, R. (1938). Los Mochicas. Tomo i. Lima: Metrocolor, 2001, p. 318. 38 KuTsCHeR, gerdt. Cerámica del Peru Septentrional. Berlin: Casa editora gerMann, 1954, p. 51. 39 ALVA, Op. cit., p. 40. 40 BAWdeN, g. “Moche Culture as Political ideology”. Latin American Antiquity, v. 6, n. 3, 1995, p. 255-273; p. 258. 36

32

RHAA 14

The “net” sememe (Figure 3, number 2), is related to the ceremony of the “deer hunting”. Recently, one of the most ancient scenes of this sort was found in one of the walls of a chamber in the interior of the Huaca Ventarrón, in a ceremonial context that dates back to approximately 4.000 years.36 The antiquity of this mural painting attests the symbolic importance of the deer hunting, a theme that was still being represented, in an almost identical manner, in artifacts of cultures that would rise and develop thousand years later, as the Mochica culture. This “theme” depicts deer, generally male, being caught in nets, represented as the sememe found in the body of the warrior – a pattern of parallel crossed lines. in many representations of this sort, the hunters are also depicted; very well dressed lords, accompanied by their dogs. Larco Hoyle compares these scenes, depicted in Mochica iconography, to the ceremonies of hunting performed during the inca times. [...] armed people sought to isolate the animals of prey in smaller groups, until they manage to lead them to a large net previously stretched [...] inside of it [...] the chiefs attacked the deer [...] in all scenes of hunting we can notice that the majority of the animals attacked are males, fact that could be closely related to the inca costume to exterminate the beasts, tranquilize the guanacos and the vicunas, and set the females free.37

According to Kuscher38 and Alva,39 the ceremony of the deer hunting could be connected to the celebration of the ancestrality. The hunt, very likely, was performed by the great chiefs in honor to their ancestrals, legitimizing their lineage. Bawden40 points out to the fact that the Andean social order, in general, was maintained by a tradition defined by kinship relations. Factors such as affinities with mythic founders, the cult to the ancestrals, and the emphasis given to the importance of being a member of a certain society, would establish the status, reinforce social cohesion and prevent the political integration among certain cultural groups. The supranatural power given to the ancestrality of the élites would legitimize their permanence in the spheres of power.

36 ignácio Alva Meneses, personal communication – Archaeologist responsible for the excavations at the Ventarrón-Collud complex. 37 LARCo HoYLe, R. (1938). Los Mochicas. Tomo i. Lima : Metrocolor, 2001, p. 318 38 KuTsCHeR, gerdt. Cerámica del Peru Septentrional. Berlin: Casa editora gerMann, 1954, p.51 39 ALVA, Op. cit., p. 40. 40 BAWdeN, g. “Moche Culture as Political ideology”. Latin American Antiquity, v. 6, n. 3, 1995, p. 255-273; p. 258.


semiótica aplicada à Arqueologia The importance of the ancestrality in the Andean mentality also could be noticed in the treatment given to the deceased relatives, considered as “active persons” in the present. As spirits, they would maintain, to a certain degree, their desires and feelings towards the living.41 if death is a transformation, the very own ancestrality is also part of a cyclic process, at the same time legitimizing the historic time (linear) and the political power. The deer, as soon as caught in the nets, were killed by the Mochica lords. in most representations, the blood that flows from the injury is depicted, as well as the erect phallus of the animal, in a clear allusion to the death/life cyclic process. The net itself, according to Alva Meneses,42 would be related to the webs of the spiders. spiders can be considered “creator” animals. in its nets, the prey is killed, and the same happens to the deer, during the hunting ceremony. in a way, the hunting ceremony resembles the sacrifice ceremony, in which the main goal is to offer the blood as a symbol of life regeneration. Besides this reference to the deer, there are other images and sememes present in the body of the warrior that are related to animals. over the legs of the warrior, a series of sememes in diamond shape with a dot in the center are represented. in Mochica iconography, this sememe refers to the stylized spots of the jaguar. The jaguars present a pattern of spots in round shape, with one or two dots in the center. it was observed that this pattern is represented, in Mochica iconography, by sememes composed by organic lines (Figure 4, numbers 1 and 2) or sememes stylized in a geometric pattern (Figure 4, number 3), as it is the case of the warrior body painting. The warriors were depicted not only as human beings that could wear garments, headdresses and other attributes linked to animals,43 but also as supranatural beings, which combined human and animal characteristics. one of the most studied scenes represented in Mochica iconography is the

41 RosTWoRoWsKi, M. d. C. Estructuras Andinas del Poder – Ideología Religiosa y política. Lima: instituto de estudios Peruanos, ieP, 1998, p. 15 42 ALVA MeNeses, N. i. “As imagens e os símbolos da Tumbas de sipán”. in: ALVA, Op. cit., p. 145-157; p. 150. 43 it is known, according to the results of many excavations in sipán, that some warriors were buried alongside with their headdresses and garments linked to animal imagery (ALVA, Op. cit). in an analogous manner, it is possible to find in the iconography many examples of completely anthropomorphic warriors with headdresses depicting birds, mammals, and other natural and supranatural beings.

considerados como sujeitos “atuantes” no presente. Como espíritos, eles manteriam, de certa forma, seus desejos e sentimentos em relação aos vivos.41 sendo a morte apenas uma transformação, a própria ancestralidade é também parte de um processo cíclico, ao mesmo tempo em que legitima o tempo histórico (linear) e o poder político. os veados, assim que pegos nas redes, são abatidos pelos senhores. Na maioria das representações, é retratado tanto o sangue que jorra do ferimento, como é enfatizado o falo ereto do animal, em uma clara alusão ao processo cíclico de mortevida. Já a rede pode ser relacionada, segundo Alva Meneses,42 às teias das aranhas. As aranhas podem ser consideradas animais “criadores”. em suas teias, a presa é abatida, assim como ocorre no caso das redes da caça ao veado. de certa forma, o ritual da caça se assemelha a um ritual de sacrifício, no qual o principal intuito é oferecer o sangue sacrificial como um símbolo da renovação da vida. Além da alusão ao veado, estão presentes sobre o corpo do guerreiro algumas imagens e sememas que retratam ou fazem alusão a outros animais. sobre as pernas do guerreiro, em visão frontal, está representada uma série de sememas com o formato de losangos com um pequeno círculo no centro. Na iconografia mochica, este semema se refere à estilização das manchas dos jaguares. os jaguares apresentam um padrão de pelagem com manchas em formato circular, com um ou mais pequenos pontos negros no centro (também conhecido como “padrão de roseta”). Foi observado que o “padrão de roseta” é representado na iconografia mochica por sememas compostos por linhas orgânicas (Figura 4, números 1 e 2) ou estilizados de forma mais geométrica (Figura 4, número 3), como é o caso da pintura corporal do guerreiro. os guerreiros eram retratados não só como seres humanos que portavam toucados e atributos de animais,43 mas também como seres supranaturais antropozoomorfos que combinavam características humanas a elementos de animais diversos. um dos “temas” mais conhecidos retratados pela RosTWoRoWsKi, M. d. C. Estructuras Andinas del Poder – Ideología Religiosa y política. Lima: instituto de estudios Peruanos, ieP, 1998. p. 15. 42 ALVA MeNeses, N. i. “As imagens e os símbolos das Tumbas de sipán”. in: ALVA, Op. cit., p. 145-157; p. 150. 43 É sabido, de acordo com os resultados obtidos com as escavações em sipán, que alguns guerreiros eram enterrados com toucados e ornamentos ligados a imagens de animais, como as raposas (ALVA, Op. cit.). da mesma forma, é possível encontrar na iconografia diversos exemplos de imagens de guerreiros totalmente antropomorfos, paramentados com toucados de aves, de diversos mamíferos e de seres supranaturais. 41

RHAA 14

33


Cássia Rodrigues Bars iconografia mochica é o “tema da apresentação da taça”. em cenas como estas, sacrifícios por degolação são dirigidos por quatro entidades da mais alta hierarquia, e a um destes grandes senhores é oferecido o sangue sacrificial em uma taça. O ato sacrificial em si é realizado por “guerreiros felinos”.44 Cenas nas quais personagens com características felínicas estão envolvidos no sacrifício de prisioneiros são recorrentes, conforme indicam as análises de donnan.45 É muito provável que haja uma associação direta entre o modo como os felinos em geral atacam suas presas, e o modo como o sacrifício é realizado, por degolação.46 Tanto jaguares, como pumas e jaguatiricas têm o costume de abater suas presas com uma mordida na região da nuca, pescoço ou garganta.47 A imagem do guerreiro, tanto como prisioneiro a ser degolado, como aquele que possivelmente, se tivesse vencido a batalha ritual, realizaria o sacrifício, representa com perfeição a união de aspectos aparentemente “antagônicos” no corpo de um só ser. Na lateral de seu corpo também estão as imagens de uma espécie de lagarto, e de uma serpente com cabeça de mamífero (Figura 2). A figura da “serpente mamífero” é extremamente comum, tanto na iconografia mochica, como na de muitos povos andinos, estando presente, por exemplo, nas estruturas arquitetônicas de Chavín de Huantar. A composição da serpente geralmente, os “guerreiros felinos” são representados com um corpo humano, cabeça e cauda de felino. em algumas representações, é possível também observar a combinação de sememas ligados a outros animais, como garras de aves de rapina no lugar dos pés humanos. 45 doNNAN, Christopher. Moche Art of Peru: Pre-Columbian Simbolic Communication. Los Angeles: Fowler Museum of Cultural History, uCLA, 1978. 46 Além das representações iconográficas, evidências arqueológicas atestam o ritual de sacrifício por degolação. escavações em Huaca de la Luna (realizadas por Bourget entre 1995 e 1996) identificaram diversos indivíduos vítimas de sacrifício na chamada “plaza A”, localizada na plataforma ii da pirâmide. Análises osteológicas destes achados mostram que as lesões perimortem mais comuns estão associadas a marcas na coluna cervical (pescoço) e fraturas na região do crânio. A localização dos cortes indica que o objetivo era cortar a garganta da vítima, e não decapitá-la. (VeRANo, J. W. “War and death in the Moche World. osteological evidence and Visual discourse.” in: PiLLsBuRY (ed.). Moche Art and Archaeology in Ancient Peru. Washington: National gallery of Art, Washington, 1999, p. 111-125.) 47 “Carcaças predadas por onça-pintada (jaguares) quase sempre apresentam uma mordida na base do crânio (atrás das orelhas) ou na área da nuca/pescoço, esmagando-o ou rompendo vértebras [...] Raramente a presa é morta por sufocamento, com uma mordida na garganta [...] As onças-pardas (pumas) tendem a matar suas presas com uma mordida na área dorsal do pescoço ou então por sufocamento, através de uma mordida na garganta.” (PiTMAN, M. L. et al. Manual de Identificação, Prevenção e Controle de Predação por Carnívoros. Brasília: edições iBAMA, 2002, p. 30-34.) um comportamento semelhante pode ser observado entre as jaguatiricas, as quais também geralmente atacam a presa com uma mordida na nuca, pescoço ou na parte de trás do crânio (ALiAgA-RosseL et. al. Ocelot [Leopardus pardalis] Predation on Agouti [Dasyprocta punctata]. Biotropica, v. 38, n. 5, 2006, p. 691-694. 44

34

RHAA 14

“presentation theme” scene. such scenes depict sacrifices in which the throats of the victims are cut. The ritual is commanded by four entities of the highest hierarchy, and to one of these lords the blood of the victims is offered in a goblet. “Feline warriors”44 are the responsible for cutting the throats of the victims. scenes in which characters with feline characteristics are involved in the sacrifice of prisoners are very common, according to the analysis of donnan.45 it is very likely that scenes like those indicate a direct association between the way that felines in general attack their preys, and the way that the sacrificial act is carried out, by cutting the throat of the victims.46 Jaguars, pumas and ocelots usually attack their preys with a bite around the back of the head, neck or throat area.47 in the artifact chosen for this analysis, the warrior can be seen as a prisoner, but warriors are also the ones that carry out the sacrificial acts. it all depends on the results of the ritual battle. The very image of the warrior itself, represents the perfect union of apparently opposite aspects, personalized in the body of a single being.

44 generally, the “feline warriors” are represented with a human body and a feline head and tail. in some representations, it is possible also to notice the combination of sememes linked to other animals, as claws of birds of prey in the place of the human feet. 45 doNNAN, Christopher. Moche Art of Peru: Pre- Columbian Simbolic Communication. Los Angeles: Fowler Museum of Cultural History, uCLA, 1978. 46 Besides the iconographic representations, archaeological evidence attests the practice of cutting the throat of the victims of sacrifice. Excavations in Huaca de la Luna (carried out by Bourget between 1995 and 1996) identified many individuals that were victims of sacrifice in the so called “plaza A”, located in the platform ii of the pyramid. osteological analyses of such finds show that the most common perimortem injuries were located in the cervical vertebrae (neck) and in the head area. The location of the cuts indicates that the goal was to cut the victims’ throats and not to decapitate them (VeRANo, J. W. “War and death in the Moche World. osteological evidence and Visual discourse”. in: PiLLsBuRY (ed.). Moche Art and Archaeology in Ancient Peru. Washington: National gallery of Art, Washington, 1999, p. 111-125.). 47 “Carcasses preyed by jaguars almost always present a bite in the basis of the head (behind the ears) or in the neck area, smashing and breaking the vertebrae […] Rarely the prey is killed by suffocation, with a bite in the throat […] Pumas tend to kill their preys with a bite in the dorsal proportion of the neck, or by suffocation, with a bite in the throat” (PiTMAN, M.L. et al. Manual de Identificação, Prevenção e Controle de Predação por Carnívoros. Brasília: edições iBAMA, 2002, p. 30-34). A similar behavior can be observed among the ocelots, which generally attack their preys with a bite in the neck, or behind the skull (ALiAgA-RosseL et al. Ocelot (Leopardus pardalis) Predation on Agouti (Dasyprocta punctata). Biotropica, Vol. 38, n.5, 2006. p. 691-694).


semiótica aplicada à Arqueologia images of animals are also found in both sides of the body of the warrior. one refers to a lizard, and on the other side, a “mammal serpent” is represented (Figure 2). The image of the “mammal serpent” is extremely common in Mochica iconography and in pre-Columbian Andean iconography in general. it can be found, for example, on the architectural structures of Chavin de Huantar. The composition of the “mammal serpent” can sometimes present some sememes related to other animals, like birds. However, its main characteristic is to indicate a “fusion” between mammals and reptiles. References to this “fusion” can be found in a number of representations, indicating a possible “close relation” between animals of this kind in the realm of the Andean cosmovision. According to Alva Meneses, “the Mochica ideology can explain the unity of the cosmos, integrated by interrelated levels, establishing parallelisms among the many different species”.48 The idea expressed by the image of the “mammal serpent” is reinforced by the presence of the image of the lizard, represented alongside with sememes that are related to the jaguar, found on the legs of the warrior. in just one Mochica artifact, we can observe a complex combination of the main principals of the Andean cosmovision; the cult to the ancestrals; the maintenance of the cyclic and linear times through the performance of sacrificial rituals; the understanding of nature as a truly net, integrated by numerous forms of life, and the structuring of all these concepts through duality, which should not be understood as “fixed” or “static”, but in permanent movement. The painting in the chest of the warrior, in a black and white pattern inside the inverted pyramid, is yet another reference to the same idea. The same idea can be observed in the painting of the handle of the vase. The two different colors applied in the painting “divide” the handle in two halves. The shape of the handle, commonly found in Mochica ceramic vases, can also be considered a sememe itself, or maybe in this case, following deetz,49 a formeme, but with a symbolic as well as a functional character. The two halves of the handle, frequently painted in two different colors, are united in a single tube at the top. if there was any liquid inside such vases, it would be “divided” and then “reunited” when poured. This “reunion” of these two parts can be understood as the tinku.

mamífero pode, por vezes, apresentar alguns sememas relativos a outros animais, como as aves. entretanto, sua principal característica é indicar uma espécie de “fusão” entre mamíferos e répteis. Em inúmeras representações há a alusão a este tipo de “fusão”, indicando uma possível “relação” estreita entre animais deste tipo, no âmbito da cosmovisão andina. segundo Alva Meneses, “ao estabelecer paralelismos entre os diferentes reinos animais, a ideologia mochica pode explicar a unidade do cosmos, integrada por níveis inter-relacionados”.48 A ideia expressa pela “serpente mamífero” é ressaltada pela presença da imagem do lagarto, representada juntamente com os sememas que indicam a presença do jaguar, sobre as pernas do guerreiro. Apenas em um artefato mochica observa-se uma mescla dos principais preceitos que regem a cosmovisão andina; o culto à ancestralidade; a manutenção dos tempos “cíclicos” e “lineares” por meio dos rituais de sacrifício; a visão da natureza como uma verdadeira rede integrada pelas diversas formas de vida; e principalmente, a estruturação destes conceitos através da dualidade, que não deve ser compreendida como imutável ou imediatamente “oposta”, mas sim como em constante movimentação. A pintura no peito do guerreiro, realizada em um padrão quadriculado claro-escuro dentro da pirâmide invertida, nada mais é do que mais uma referência à mesma questão. o mesmo ocorre na pintura da alça estribo, sendo esta “dividida” ao meio, também por duas cores diferentes. o formato da alça, comumente utilizado na confecção de artefatos cerâmicos mochicas, por si só também pode ser considerado um semema, ou, talvez nesse caso, utilizando a nomenclatura de deetz,49 um formema, porém com significado também simbólico além de funcional. As duas metades da alça, frequentemente pintadas de cores diferentes, se encontram em um único tubo. Se havia algum conteúdo líquido no interior desses vasos, ao ser vertido ele se “dividiria em dois”, para depois tornar-se “um” novamente. este “encontro” destas duas partes pode ser compreendido como o tinku. Na mentalidade andina, o tinku representa uma espécie de “ponto de encontro”. segundo golte,50 todos os “pares de opostos” complementariam um ao outro, e se encontrariam em tinku, criando novas situações, como nascimentos e mortes. 48

48 49

Alva Meneses, Op. cit., p. 148-149. deetz, Op. cit.

49 50

Alva Meneses, Op. cit., p. 148-149. deetz, Op. cit. golte, Op. cit. (2004 e 2006).

RHAA 14

35


Cássia Rodrigues Bars Assim como afirmou Viveiros de Castro,51 a “dualidade” é a redução de uma estrutura mais rica. Não só porque está em eterna movimentação, e porque seus significados podem “mudar” de acordo com a perspectiva adotada, mas porque não se detém apenas no “dual”. A “dualidade” também é a estrutura formadora da “unicidade” e da “multiplicidade”. No caso do artefato em questão, a “unicidade” é representada, como comentado, pelo próprio personagem, que contém em seu corpo todos os conceitos duais. A presença dos sememas ligados aos animais, entretanto, exprime a “multiplicidade” das formas de natureza. Todos os seres existentes estão submetidos à movimentação dinâmica dos “opostos complementares”. Preucel, ao afirmar que a “arqueologia é por si só um ato semiótico”,52 também chamou a atenção para o fato de que as implicações desta premissa seriam de que nossas interpretações são, e sempre serão, incompletas. A total objetividade é ilusória. entretanto, segundo o autor, isto não implica que haverá um total relativismo, ou que não há avanços no conhecimento em arqueologia. A semiótica é uma excelente ferramenta metodológica, e deve ser incorporada aos mais diversos estudos sobre a cultura material, sejam estes voltados aos aspectos funcionais ou simbólicos dos objetos e estruturas. Assim como afirma Gervereau, “uma explicação da imagem nunca pode dar conta de tudo aquilo que um documento contém. O único equivalente da imagem é sempre a própria imagem. Munidos desta lição de modéstia fundamental, devemos todos prepararnos então para lutar infatigavelmente contra a imperfeição”.53

in the Andean mentality, the tinku represents an “intersection point”. According to golte,50 all “pairs of opposites” would complement each other, and would meet in tinku, creating new situations, as births and deaths. As pointed out by Viveiros de Castro,51 “duality” is only the reduction of a far more complex structure. Not only because it is in eternal movement, and its meanings can “change” according to the perspective, but mainly because it cannot be reduced to the “dual”. duality is the structural basis that forms the “unity” and the “multiplicity”. in the artifact presented here, the “unity” is represented, as pointed out, by the image of character himself, which contain in his body all dual aspects discussed above. The presence of elements related to animals, however, expresses the “multiplicity” of the forms of life. All beings are governed by the dynamic movement of the “complementary opposites”. Preucel, admitting that “archaeology itself is a semiotic act”,52 also calls the attention to the fact that the implications of this premise would be that our interpretations are, and will always be, incomplete. Total objectivity is an illusion. However, this does not imply that we should accept a complete relativism, or that there are no advances in archaeological knowledge. semiotics is an excellent methodological tool, and should be incorporated to the studies of material culture in general, regarding pure functional or symbolic aspects of objects and structures. As pointed out by gervereau, “an explanation of the image can never express entirely all that an object contains. The only equivalent to the image is always the very own image itself. Aware of this fundamental modesty, we should be prepared to fight vigorously against imperfection”.53

golte, Op. cit. (2004 e 2006). Viveiros de Castro, Op. cit., p. 85. 52 PReuCeL, Op. cit., p. 2. 53 geRVeReAu, Laurent. Ver, Compreender, Analisar as Imagens. Lisboa: edições 70, 2004, p.10. 50

Viveiros de Castro, Op. cit., p. 85. 52 PReuCeL, Op. cit., p. 2. 53 geRVeReAu, Laurent. Ver, Compreender, Analisar as Imagens. Lisboa: edições 70, 2004, p. 10. 51

36

RHAA 14

51


semiótica aplicada à Arqueologia 2

1

3

1 Representação de “guerreiro mochica”. Peça pertencente ao acervo do Museu Arqueológico Rafael Larco Herrera. Fotografia da autora. 2 Ilustração da autora a partir do artefato apresentado na Figura 1. 3 Detalhe de sememas sobre o corpo do guerreiro apresentado nas Figuras 1 e 2. Ilustração da autora. 4 Representação gráfica de sememas referentes a padrões de pelagem vistos nos jaguares, encontradas em peças mochicas. (1- padrões representados conforme encontrados na peça ML003778; 2- padrão representado conforme encontrado na peça ML001175, pertencente ao acervo do Museu Larco. 3- padrão representado conforme encontrado na peça MAE 3562, pertencente ao acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP). Ilustração da autora.

4

RHAA 14

37



A cultura guarani em debate: o Sítio Arqueológico Córrego da Lagoa 2 Guarani culture in debate: the Archaeological Site of Corrego da Lagoa 2

GLAuCo ConSTAnTino PEREz Universidade Estadual de Maringá – UEM. E-mail: glauco1113@hotmail.com State university of Maringá – uEM. E-mail: glauco1113@hotmail.com

Este artigo pretende apresentar as últimas pesquisas realizadas com o acervo cerâmico do Sítio Arqueológico Córrego da Lagoa 2, localizado no município de Altônia (PR), relacionando os grafismos encontrados nestas cerâmicas a outros trabalhos que  também buscaram compreender a arte entre os indígenas do tronco linguístico Tupi.  Buscamos  apresentar  o  histórico  do  sítio,  a  organização  do  acervo  e  por  fim  alguns  apontamentos relacionando a arte indígena e os desenhos. resumo

PAlAvrAs-chAve

Cultura Guarani, Altônia, Arqueologia, Grafismos.

AbstrAct This article aims to present the latest research carried out with the Archaeological Site Córrego da Lagoa 2, located in the city Altônia (PR), relating artwork to pottery found in these other studies that also sought to understand the art among the indigenous Tupi language trunk. We seek to present the history of the site, the organization of the archives and some issues relating to indigenous art and designs. Key words

Guarani Culture, Altônia, Archeology, Grafism.

RHAA 14

39


Glauco Constantino Perez neste artigo apresentam-se estudos realizados com o acervo cerâmico guarani do Sítio Arqueológico Córrego da Lagoa 2, localizado no município de Altônia, no Estado do Paraná.  Especificamente,  pretende-se  fazer  apontamentos  relativos  aos  grafismos,  ao  sítio  arqueológico  e  algumas  observações  sobre  a  cerâmica  guarani  arqueológica.  Assim,  dispensamos qualquer tentativa de decifrar os desenhos guarani, apesar do conhecimento do esforço de antropólogos neste sentido. Para estudar este tipo de cultura material destacamos que  a  arqueologia  teve  grande  relevância.  André  Prous1 entende a arqueologia como sendo uma das maneiras para que a história possa ser conhecida e entendida, mesmo sendo para o historiador uma forma auxiliar para se conseguir a documentação do período. Neste estudo pretende-se observar os vestígios cerâmicos  arqueológicos da cultura guarani como sendo esta uma cultura arqueológica  que  recebeu  um  nome  que  lembra  um  grupo  indígena conhecido historicamente. Segundo os pronapianos, chamou-se esta tradição “Tupiguarani”2 (sem hífen), para distinguir os achados arqueológicos dos grupos conhecidos etnograficamente.

O Histórico do Sítio Arqueológico Teve-se conhecimento do Sítio Arqueológico Córrego da Lagoa 2 (23° 51’ 16” S/53° 59’ 16” W),3 quando alguns professores do município de Altônia entraram em contato com a  Equipe  do  Laboratório  de  Arqueologia,  Etnologia  e  Etnohistória da universidade Estadual de Maringá, para que fosse feita  uma  identificação  de  algumas  vasilhas  desenterradas  em  meio  à  plantação  de  café.  Constou  que  foram  desenterradas  duas vasilhas cerâmicas com enterramentos e materiais associados.   PROUS,  André.  Arqueologia brasileira. Brasília, DF: Editora universidade de Brasília, 1992. 2   Para  este  estudo  a  abordagem  do  nome  “Tupiguarani”  fica  em  segundo  plano.  Dessa  maneira,  pretendo  abordar  esse  grupo  étnico  de  forma  genérica  fazendo  referência ao nome Guarani. 3   A referência apresentada é subjetiva, este ponto geográfico foi retirado em campo  durante os trabalhos em 1996 e é um ponto que marca a entrada da fazenda onde  este sítio arqueológico está localizado. 1

40

RHAA 14

This paper presents studies of the ceramic collection of the Archaeological Guarani Córrego da Lagoa 2 located in the city of Altônia, in the State  of   Paraná.  Specifically  intended  to  make  notes for the graphics, the archaeological site and some comments on the Guarani archaeological ceramics. So dispense any attempt to decipher the drawings Guaraní, despite knowledge of the effort of anthropologists in this regard. To study this kind of material culture point out  that  archeology  has  great  relevance.  André  Prous1 understand archeology as one of the ways that history can be known and understood, even  though for the historian a way to help get the documentation of the period. In this study is to observe the archaeological  traces of ceramic culture and Guarani this is one archaeological culture which received a name that resembles an indigenous group known historically.  According to the PRonAPA´s researchers, he called this tradition “Tupiguarani”2 (no hyphen), to distinguish the archaeological findings of  the  groups known ethnographically. The History of the Archaeological Site it was announced the Archaeological Site Córrego da Lagoa 2 (23° 51’ 16’’ S/53° 59’ 16” W),3 while some teachers in the city of Altônia came into contact with  the  organization  of   the  the  Laboratório  de Arqueologia, Etnologia e Etno-histórida of the universidade Estadual de Maringá, so that an  identification  was  made  of   some  vessels  unearthed in the midst of coffee plantation. Was reported  that  two  vessels  have  been  unearthed  pottery with burials and associated materials.  in view of the whole situation from the site and demonstrations by local people in trying to  preserve the site, the team of  the Laboratório de  Arqueologia, Etnologia e Etno-histórida of the universidade Estadual de Maringá performed

PROUS,  André.  Arqueologia brasileira. Brasília, DF: Editora universidade de Brasília, 1992. 2 For this study the approach of the name “Tupiguarani” is in the background. Thus, I intend to address this ethnic  group in a generic name referring to the Guarani. 3   The  reference  made  is  subjective,  this  port  was  dropped by geographic region over the jobs in 1996 and  is a point that marks the entrance to the farm where this archaeological site is located. 1


Arqueologia e cultura Guarani several rescues archaeological surface. According to Ana Paula Simão4  still  exists  in  the  substrate  material,  since  observations  in  regions  of   water  erosion  and  excavated  by  local  farmers  have  identified a single occupancy in a layer thickness  of eight inches. on Figure 1 we can see the real location of municipality Altônia - PR and also the region where the Archaeological Site Córrego da Lagoa 2. in the archives of the Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (iPHAn) is put his musical integrity is between 25% and 75%, being  the main factor of degradation of the intense agricultural activity, since the site is a region of coffee plantations. This region has the knowledge of other archaeological sites. in the 1970s, igor Chymz found another outstanding archaeological and less than two kilometers from the Córrego da Lagoa 2, researches found elsewhere Guarani.5 According to Simão (2002), the total number  of fragments collected on this site, in two polls taken  between  January  1996  and  January  1997  is  63,110  fragments  that  are  stored  above  the  laboratory  and  classified  according  to  their  surface finish. The Collection Fragments of the collection were separated by  Simão  (2002)  in  sets  according  to  surface  treatment:  combinations  of   corrugated,  ungulates,  brushed,  painted,  flat  sections,  elongated and printed. They also separated the fragments from the edges of the containers in order to carry out the reconstruction graphics and  try  to  distinguish  and  quantify  the  number  of containers found. The analysis of the treatment applied to the  plastic  surface  made  by  Simão  (2002)  was  performed according to the model analysis proposed  by  Brochado  (1989).  The  Table  1

SiMÃo, Ana Paula. Do caco ao fragmento: análise da coleção cerâmica guarani do sítio arqueológico Lagoa Xambrê - Altônia/PR. Dissertação de Mestrado, Maringá,  2002. 5 noELLi, F. S.; TRinDADE, J. A.; SiMÃo, A. P., “Primeiras análises sobre a funcionalidade e a freqüência  da cerâmica de um sítio arqueológico Guarani da Lagoa Xambrê - Paraná.” In: Anais da IX SAB, 2001. 4

Perante toda a situação do sítio arqueológico e as manifestações  dos  habitantes  da  região  em  tentar  preservar  o local, a equipe do Laboratório de Arqueologia, Etnologia e  Etno-história da universidade Estadual de Maringá realizou diversos salvamentos arqueológicos de superfície. Segundo Ana Paula Simão,4 ainda existe material sob o substrato, já que  observações  em  regiões  de  erosão  pluvial  e  locais  escavados  por  agricultores  locais  identificaram  uma  única  ocupação  em  uma camada de espessura média de oito centímetros. Na  Figura  1,  podemos  observar  a  real  localização  do  município de Altônia (PR) e também a região onde é o Sítio  Arqueológico Córrego da Lagoa 2. nos arquivos do instituto do Patrimônio Histórico e  Artístico  Nacional  (IPHAN)  é  informado  que  seu  grau  de  integridade está entre 25% e 75%, sendo o principal fator da degradação a intensa atividade agrícola, já que o sítio está numa  região de plantação de café. nesta região tem-se o conhecimento de outros sítios arqueológicos. Na década de 1970, Igor Chymz encontrou outro  remanescente arqueológico e a menos de dois quilômetros do Córrego da Lagoa 2, pesquisas realizadas encontraram outros sítios guarani.5 Segundo Simão (2002), o total de fragmentos recolhidos neste sítio, em  duas  sondagens  feitas entre janeiro  de  1996  e  janeiro de 1997 é de 63.110 fragmentos que estão armazenados  no referido laboratório e classificados conforme seu acabamento  de superfície. O Acervo os fragmentos do acervo foram separados por Simão (2002) em conjuntos de acordo com o tratamento de superfície:  conjuntos de corrugados, ungulados, escovados, pintados, lisos,  incisos, repuxados e estampados. Também foram separados os  fragmentos das bordas das vasilhas, com o objetivo de realizar  as  reconstruções  gráficas  e  tentar  distinguir  e  quantificar  o  número de vasilhas encontradas. SiMÃo, Ana Paula. Do caco ao fragmento: análise da coleção cerâmica guarani do sítio arqueológico Lagoa Xambrê - Altônia (PR). Dissertação de Mestrado, Maringá, 2002. 5   NOELLI,  F. S.; TRINDADE, J. A.; SIMÃO, A. P., “Primeiras análises sobre a  funcionalidade e a frequência da cerâmica de um sítio arqueológico Guarani da Lagoa Xambrê - Paraná.” In: Anais da IX SAB, 2001. 4

RHAA 14

41


Glauco Constantino Perez A análise do tratamento plástico aplicado à superfície, realizada por Simão (2002), foi feita de acordo com o modelo de análise proposto por Brochado. A Tabela 1 a seguir, apresenta  dados da pesquisa de Ana Paula Simão (2002) quanto ao número de fragmentos e o tipo de tratamento de superfície utilizado.

presents data from research Ana Paula Simão (2002) as the number of  fragments and the type  of surface treatment used. Table 1  Type of  surface finish.6

Tabela 1  Tipo de acabamento de superfície.6 Tratamento de superfície

Quantidade de fragmentos analisados

Corrugado ungulado inciso Escovado Liso Repuxado Pintado Total de fragmentos analisados

31.962 1.521 100 323 25.215 3 3.985 63.106

Assim, neste estudo com os fragmentos que foram separados em conjuntos levando em consideração os tipos de  tratamentos  de  superfície,  pôde-se  distinguir  e  quantificar  o  número de vasilhas.

Nome guarani

Classe de vasilhas.

Panela – refere-se às panelas usadas para cozinhar (LA SALViA & BRoCHADo, 1989, p. 125) Talha – vaso, cântaro ou botija  Cambuchi  (LA  SALVIA & BROCHADO, 1989, p. 132) Prato - coisa côncava (LA SALViA & Ñae BROCHADO, 1989, p. 142) Caçarola – vaso côncavo e de cozer Ñaetá (LA SALVIA &  BROCHADO, 1989, p. 142) Cambuchi  Vaso de beber (LA SALVIA &  caguabã  BROCHADO, 1989, p. 133) Yapepó

31.962

Hoofed

1.521

item

100

Flat

323

Brushed

25.215

Spun

3

Painted

3.985

Total fragments analyzed

63.106

Table 2

Class vessels.7

Guarani name

Type

Percentage (%)

Yapepó

Pot - refers to the pots used for cooking (LA SALViA &  BROCHADO, 1989, p. 125)

41,71

Percentual (%)

Cambuchí

Pulley a - vase, pitcher or bottle (LA  SALVIA &   BROCHADO, 1989, p. 132)

25,71

41,71

Ñae

Dish - something concave (LA SALViA &   ROCHADO, 1989, p. 142) B

13,81

25,71

Ñaetá

Casserole – pot for cooking (LA SALViA &  BROCHADO, 1989, p. 142)

11,83

Cambuchi  caguabã

drinking vessel (LA SALViA &   ROCHADO, 1989, p. 133) B

7,02

13,81 11,83 7,02

In  this  separation,  the  surface  finish  on  the  most common class of yapepó, ñaetá and ñae says

SiMÃo, Ana Paula. Op. cit., p. 68.   It  should  be  clear  that  it  was  La  Salvia  &  Brochado  (1989) that relates to the classification of  shapes ceramic  vessels in their duties.

6

SiMÃo, Ana Paula. Op. cit., p. 68. 7   Deve  ficar  claro  que  foi  La  Salvia  &  Brochado  (1989)  responsáveis  pela  classificação que relaciona formatos das vasilhas cerâmicas às suas funções. 6

42

Corrugated

Simão (2002) noted that the classes identified  from the separation of the fragments except fragments of edge appear as follows:

7

Tipo

Number of fragments analyzed

Thus, this study of the fragments were separated in groups taking into account the types of surface treatments, one might distinguish and quantify the number of  containers.

Simão observou que as classes identificadas a partir da  separação dos fragmentos, excetuando os fragmentos de borda,  aparecem da seguinte maneira: Tabela 2

Surface treatment

RHAA 14

7


Arqueologia e cultura Guarani Simão (2002), was the corrugated. in the case of cambuchí caguabã and cambuchí,  the  finish  was  the  most common painted.8 As  this  study  is  based  on  fragments  and  are  painted in these two types, cambuchí and cambuchí caguabã, which are more applicants studied the artwork  is  just  to  emphasize,  or  at  least  a  small  approach to the literature addresses this class of vessel. This type classified as cambuchí by often comes  with the idea of preparing, storing and serving liquids, particularly alcoholic beverages traditional  Guarani, but it was this vessel a secondary function  that is being buried.9 This type of pottery was not exposed to fire, although records of  browning on  the outer surface often marks soot or treatment esfumarado.10 its form is elliptical, vertical or double-cone,  and  the  diameter  is  found  in  the  cake,  the  base  is  usually  conoid  and  the  top  of   the vessel is restricted to form a neck. it is known that  the  bottles  have  considered  small  diameter  ranging from 18 to 34 cm and is considered large  diameter exceeding 36 cm.11 Since the type known as cambuchi-caguabã bottles  are  associated  with  serving  and  consuming liquids. it is known that the simplest and unpainted could be associated with water, as  well  as  the  most  elaborate  and  finely  decorated  with painting would be associated with drinking  during the rituals.12 The contours of the vessel have consensus on peripheral conoid or ellipsoid, which is the elements that differ from ñaembé. Their diameters can range as small vessels when between 12 and 16 cm and classified as averages  between 18 to 26 cm.13 The Reorganization of the Collection for the Study of Graphics As the aim of the work was the study of representations of the pottery collection held that Simon was reassigned to the new research could take  place.  The  collection  was  first  separated  in

SiMÃo, Ana Paula. Op. cit. p.121. LA SALViA, Fernando; BRoCHADo, J. P. Cerâmica Guarani. Porto Alegre: Posenato Arte e Cultura, 1989.  10 CoRRÊA, Ângelo Alves. Tatema nas matas mineiras: sítio Tupi na microrregião de Juiz de Fora (MG), Dissertação de mestrado, uSP, São Paulo, 2009. p. 206. 11 SiMÃo, Ana Paula, Op. cit., p. 63. 12 CoRREA, Ângelo, Op. cit., p. 220. 13 SiMÃo, Ana Paula, Op. cit., p. 64. 8 9

Nesta separação, o acabamento de superfície mais comum  na classe dos yapepó, ñaetá e ñae, afirma Simão, foi o corrugado.  Já no caso dos cambuchi caguabã e cambuchi, o acabamento mais  encontrado foi o pintado.8 Como  este  estudo  se  baseia  em  fragmentos  pintados  e  é  nessas  duas  tipologias,  cambuchi e cambuchi caguabã que são mais  recorrentes  os  grafismos  estudados,  é  justo  dar  ênfase,  ou pelo menos fazer uma pequena abordagem sobre como a  bibliografia estuda esta classe de vasilha. Esta  tipologia  classificada  como  cambuchi, por muitas vezes vem associada à ideia de preparar, armazenar e servir líquidos,  principalmente  as  bebidas  alcoólicas  tradicionais  guarani; porém, cabia a este vasilhame uma função secundária,  que é a de enterramento.9 Essa tipologia de cerâmica não era exposta ao fogo, apesar de haver registros de escurecimento na superfície externa, muitas vezes marcas de fuligem ou tratamento esfumarado.10  Sua  forma  é  elipsoidal,  vertical  ou  duplo-cônica,  e  o  diâmetro  maior  é  encontrado  no  bojo;  a  base normalmente é conoidal e a parte superior do vasilhame é  restringida, formando um pescoço. Sabe-se que os vasilhames  considerados pequenos têm diâmetro variando entre 18 e 34 cm  e os considerados grandes têm seu diâmetro superior a 36 cm.11 Já a tipologia conhecida como cambuchi-caguabã são vasilhames associados a servir e consumir líquidos. Sabe-se que  os mais simples e sem pintura poderiam estar associados ao consumo de água, assim como os mais elaborados e finamente  decorados com pintura estariam associados ao consumo de bebidas durante os rituais.12 os contornos desse vasilhame em consenso  apresentam  base  periférica  elipsoidal  ou  conoidal,  sendo estes os elementos que o diferem do ñaembé. Seus diâmetros podem variar entre 12 e 16 cm quando consideradas vasilhas pequenas e 18 e 26 cm13 quando classificadas como médias. A Reorganização do Acervo para o Estudo dos Grafismos Como o intuito do trabalho foi o estudo dos grafismos  da  cerâmica,  o  acervo  que  Simão  organizou  foi  remanejado SiMÃo, Ana Paula. Op. cit., p. 121. LA SALViA, Fernando; BRoCHADo, J. P. Cerâmica Guarani. Porto Alegre: Posenato Arte e Cultura, 1989. 10 CoRRÊA, Ângelo Alves. Tatema nas matas mineiras: sítio Tupi na microrregião de Juiz de Fora (MG), Dissertação de mestrado, uSP, São Paulo, 2009, p. 206. 11 SiMÃo, Ana Paula, Op. cit., p. 63. 12 CoRREA, Ângelo, Op. cit., p. 220. 13 SiMÃo, Ana Paula, Op. cit., p. 64. 8 9

RHAA 14

43


Glauco Constantino Perez para que as novas pesquisas pudessem acontecer. o acervo foi separado primeiramente em fragmentos que não eram pintados e os que apresentavam qualquer tipo de sinal da presença de tinta. o acervo com o material não pintado inclui peças de tipologia variada, entre as quais estão fragmentos de yapepó, ñaes, ñaetás, cambuchis e cambuchis caguabãs, e estes com acabamentos  diversos, entre eles os corrugados, lisos, ungulados, escovados e incisos, como já foi especificado anteriormente. Já  o  material  selecionado  e  identificado  como  pintado  foi transportado para outra área do laboratório para que outra  etapa da sistematização pudesse ser feita. Esta nova etapa consistiu em realizar a seleção de fragmentos de peças nos quais pudessem ser observados e analisados os grafismos. utilizando de metodologias desenvolvidas por La Salvia & Brochado (1989) e Noelli14 e posteriormente aplicadas por Ana Paula Simão (2002), os fragmentos foram sistematizados, associando sua tipologia com o grafismo desenhado. O  gráfico  a  seguir  mostra  a  quantidade  de  fragmentos  selecionados, a porcentagem que esta quantidade significa e as  subclasses criadas para o entendimento deste trabalho. No gráfico podemos entender que foram sistematizados  932  fragmentos  cerâmicos  distribuídos  em  quatro  formas  de  classificação.  Entende-se  então,  que  dos  quase  quatro  mil  fragmentos, apenas um quarto deles preserva em uma de suas faces, ou em ambas, algum registro de grafismo arqueológico. A análise desses fragmentos com grafismo baseou-se em  um método desenvolvido por La Salvia & Brochado (1989) e  tem por base uma análise descritiva dos desenhos impressos.  Para estes autores, a pintura parece estar sempre vinculada a um processo tradicional do grupo e acreditam que aspectos ecológicos  não  influenciariam  na  representação  dos  motivos,  mas  influenciariam  na  presença  ou  ausência  de  pintura,  pela  falta de matéria-prima para sua confecção. Neste  método,  por  ser  descritivo,  leva-se  em  consideração o formato dos motivos: as linhas (retilínea, curvilínea, mistilínea), os desenhos (gregos, espiralados, quadrangulares, circulares, losangulares, retangulares etc.), os tracejados (contínuo, descontínuo, simples, duplo ou múltiplo),  a largura da linha (fina, média, grossa, estreita ou muito fina),  a  posição  do  grafismo  (vertical,  horizontal,  oblíquo,  sinuoso

fragments that were not painted and those who showed any sign of the presence of paint. The collection of material includes unpainted pieces of varied typology, among which are fragments of yapepó, ñaes, ñaetás, cambuchis and cambuchis caguabãs and those with several finishes,  including  the  corrugated,  flat,  ungulates,  and  brushed items as already mentioned above.  Since  the  material  selected  and  identified  as  painted was transported to another part of the lab to another stage of  systematization could be  made. This new step was to perform a selection of   pieces  of   parts  that  could  be  observed  and  analyzed the graphics. Using methodology developed by La Salvia and  Brochado (1989), Noelli14 and then implemented by Ana Paula Simão (2002), the fragments were  systematically associating his typology with the graphics designed. The following chart shows the amount of selected fragments, the percentage that this amount  means  and  subclasses  created  for  the  understanding of this work. in the chart we can understand that 932 were ordered ceramic fragments into four forms of   classification.  It  is  understood  then  that  the  nearly four thousand fragments, only a quarter of a preserve in their faces, or both, some form of   archaeological record. The method of analysis of these fragments form  was  based  on  a  method  developed  by  La  Salvia  and  Brochado  (1989)  and  is  based  on  a  descriptive analysis of the printed drawings. For  these  authors,  the  painting  seems  to  be  always  tied  to  a  traditional  group  and  believe  that  environmental  aspects  have  no  bearing  on  the  representation  of   reasons,  but  influence  the  presence  or  absence  of   paint,  lack  of   raw  materials for producing them. In  this  method,  to  be  descriptive,  takes  into  account the format of reasons: the lines (straight, curved, mistilínea), drawings (Greeks, spiral, square, circular, diamond, rectangular, etc.), the dashed (continuous, discontinuous, single, double or multiple), the line width (thin, medium,  coarse, close or too thin), the position of the form (vertical, horizontal, oblique, sinuous, etc.)

noELLi, Francisco Silva. Sem tekohá não há tekó (em busca de um modelo etnoarqueológico da aldeia e da subsistência Guarani e sua aplicação a uma área de domínio no Delta do Rio Jacuí-RS. 1993. Dissertação de Mestrado, PuCRS, Porto Alegre, 1993. 14

noELLi, Francisco Silva. Sem tekohá não há tekó (em busca de um modelo etnoarqueológico da aldeia e da subsistência Guarani e sua aplicação a uma área de domínio no Delta do Rio Jacuí (RS), Dissertação de Mestrado, PuCRS, Porto Alegre, 1993. 14

44

RHAA 14


Arqueologia e cultura Guarani and  descriptions  of   the  band  formed  by  the  graphics, taking into consideration that it can be  located on the edge, shoulder or turning angles and the thickness of  the same (fine, medium or  coarse) depending on how many millimeters it presents. Moreover, this approach looks at how to apply the paint on pottery, ranging from three very specific forms and features (brush, stylus or  finger).  The results achieved in this work matches that approximately 70% of the parts has examined the painting compound and 30% of them have a uniform design. in addition, other 70% of the fragments present exterior paint, 20% have internal painting and only 10% of the fragments has  prints  on  both  sides.  In  these  reviews  also  realize that 54% of the graphics are representations with straight lines, 41% of the designs are made up of mixed lines and only 5% of the designs are curved lines. These numbers could you suggest a  greater preference for drawings of angular shapes with curved designs, or even that these drawings with  curved  shapes  would  be  dedicated  to  a  particular type of  attire that would fit caricature  of all containers produced in the daily lives of the community. We also observed that the drawings  are distributed loved the shoulder, edges, angles  and  of   inflections  may  occupy  the  entire  space  of the vessel and often occupy these spaces simultaneously, despite the few remains we have at those times. This type of work, almost cliometrics often show  significant  repulsion  between  the  scholars  in  the  field,  since  the  fragments  as  they  are  extremely  sensitive  may  break  or  even  a  lot  of   formats  may  or  may  not  be  considered  in  future  research.  For  this  reason  we  believe  that  research with this kind of support for indigenous artwork should not stop at simply the analysis of physical objects. We believe that from the detailed  investigation of their own culture Guarani could come to an understanding of these drawings.

etc.) e descrições da faixa formada pelo grafismo; levando-se  em consideração que ela pode estar localizada na borda, ombro  ou ângulos de inflexão e a sua espessura (fina, média ou grossa)  dependendo de quantos milímetros ela apresenta. Além disso,  esta  metodologia  observa  o  modo  de  aplicação  da  tinta  na  cerâmica, podendo variar de três formas específicas e bastante  características (pincel, estilete ou dedo). Os  resultados  alcançados  nesse  trabalho  condizem  que  cerca de 70% das peças analisadas têm a pintura composta e  30%  delas  apresentam  um  desenho  uniforme.  Além  disso,  outros 70% dos fragmentos apresentam pintura externa, 20% apresentam pintura interna e apenas 10% dos fragmentos têm  estampas  em  ambos  os  lados.  Nessas  análises  também  percebemos  que  54%  dos  grafismos  são  representações  com  linhas retas, 41% dos desenhos são constituídos de linhas mistas e apenas 5% dos desenhos são linhas curvas. Estes números poderiam sugerir a maior preferência por desenhos com formatos angulares a desenhos curvos, ou mesmo que estes desenhos com formas curvas seriam dedicados a um tipo de adorno especial que caberia a poucas vasilhas entre todas as  produzidas no dia a dia da comunidade. Observamos também  que os desenhos se distribuem entre o ombro, bordas, ângulos  de inflexões, bem como podem ocupar todo o espaço interno da  vasilha e muitas vezes ocupam esses espaços simultaneamente, apesar dos poucos vestígios que temos nessas ocasiões. Esse  tipo  de  trabalho,  quase  cliométrico,  muitas  vezes  demonstra  sensível  repulsão  entre  os  estudiosos  da  área,  já  que os fragmentos por serem de extrema sensibilidade, podem  partir-se ou mesmo pela grande quantidade de formatos podem ou não ser considerados em futuras pesquisas. Por esse motivo acreditamos que as pesquisas com esse tipo de suporte para  os  grafismos  indígenas  não  devem  parar  simplesmente  nas  análises  físicas  dos  objetos.  Pensamos  que  a  partir  da  investigação minuciosa da própria cultura guarani poderíamos chegar ao entendimento desses desenhos.

Investigating Artwork Thinking of  bias previously employed for our  research investigated the general literature related to studies of form, we found a little for this kind of material. We can only master’s thesis and a doctoral  thesis  that  is  beginning  to  investigate  this field that opens on to the archaeologist.  The  work  listed  for  this  study  based  on  assumptions that could follow the lines of aesthetic anthropology, art and chronicled

Investigando os Grafismos Pensando  no  viés  até  então  colocado,  durante  nossas  pesquisas  investigamos  a  bibliografia  geral  relacionada  aos  estudos  de  grafismo  e  constatamos  a  pouca  existência  desse  tipo de material. Conseguimos apenas dissertações de mestrado  e uma tese de doutorado que começa a investigar esse campo que se abre ao arqueólogo atual. RHAA 14

45


Glauco Constantino Perez Os  trabalhos  elencados  para  este  estudo  partiram  de  pressupostos que pudessem seguir as linhas da antropologia estética,  história  da  arte  e  algumas  definições  importantes  a  respeito  do  que  deve  ser  considerado  arte,  além  de  outras  hipóteses de identificação do que poderiam sugerir esses traços  representados nas cerâmicas arqueológicas dessa etnia. nesse sentido, acreditamos que a maneira para compreender  os  grafismos  arqueológicos  deveria  partir  de  pressupostos expostos por Lux Vidal15 e companheiros na obra  bastante conhecida entre os estudiosos dos desenhos indígenas.  Para esta autora, especificamente, o processo estético está muito  mais ligado à ação humana do que propriamente ao objeto.

some  important  definitions  concerning  the  that  should  be  considered  art,  in  other  instances  of   identification  that  might  suggest  these  traits  represented in the archaeological ceramics of ethnicity. We  therefore  believe  that  the  way  to  understand the archaeological graphics should come from assumptions exposed by Lux Vidal15 and colleagues at work rather known among scholars of indigenous designs. For this author, specifically,  the  aesthetic  process  is  much  more  connected to human action than the object itself. According to Vidal (1992), According to Western tradition, the arts are conceptually separate from other spheres of social and cultural life, though not always as much as you wish. in indigenous societies, the arts are an adornment to public  demonstrations  and  talents  manuals,  even  the  most  individual  are  shared  by  enough  people:  things  are made by local artisans and through processes that  everyone knows.16

Segundo Vidal (1992), [...] a tradição ocidental, as artes são conceitualmente separadas de outras esferas da vida social e cultural, ainda que nem sempre tanto quanto se pretenda. nas sociedades indígenas, as artes são uma ornamentação para as manifestações públicas e os talentos manuais,  mesmo os mais individualizados, são bastante compartilhados pela  população: as coisas são feitas por artesãos locais e por intermédio  de processos que todos conhecem.16

Assim, podemos entender que o artista se comunica com os seus iguais e estes compreendem o que está sendo expresso.  O  artista  e  seu  público  possuem  o  mesmo  cabedal  de  informações  culturais  que  os  permitem  compreender  as  informações  apresentadas.  Para  a  compreensão  desses  fenômenos,  os  antropólogos  utilizam  desse  cabedal  de  informações  em  comum  a  todos  para  poder  descortinar  as  informações a respeito dos grafismos dos mais diversos grupos  étnicos. A maneira pela qual os antropólogos conseguem entender todo esse processo de criação do fenômeno estético  diz respeito à sua maneira de abordar as manifestações estéticas,  afirma Vidal (1992). Com isso, indo diretamente ao significado imediato dos  grafismos  entre  as  populações  indígenas,  Vidal  (1992)  relata  que uma arte gráfica indígena expressa, muitas vezes, conceitos  abstratos  que  encontram  interpretação  em  representações  figurativas ou em desenhos geométricos e grafismos puros que  dizem, ou melhor, grafam  o  que  não  é  possível  transmitir  de

Thus, we can understand that the artist communicates with his peers and they understand  what  is  being  expressed.  The  artist  and his audience have the same wealth of cultural information  that  enable  them  to  understand  the information presented. To understand these phenomena, anthropologists use this wealth of information common to all in order to  uncover  information  about  the  artwork  of   many different ethnic groups. The manner in which anthropologists can understand this whole process of creation of aesthetics concerns in its own way of dealing with artistic manifestations, says Vidal (1992). With this, going directly to the immediate meaning of the artwork from indigenous peoples, Vidal (1992) reports that an indian artwork often expressed abstract concepts that  are  interpreted  in figurative representations or geometric designs  and  graphics  that  say  pure,  or  better,  the  spell  can  not  be  transmitted  orally,  making  visible  what is hidden or what is behind and dispersed,  imperceptible to the individual.  it is also exposes Vidal (1992), the graphics may correspond to the contents of cosmological order and settling attention on graphic forms of the cultures studied one can know that the

VIDAL, Lux. “Antropologia estética: enfoques teóricos  e  contribuições  metodológicas”.  In:  VIDAL,  Lux  (org.).  Grafismo indígena. São Paulo: EDuSP. 16 ViDAL, Lux, Op. cit., p. 281. 15

VIDAL,  Lux.  “Antropologia  estética:  enfoques  teóricos  e  contribuições  metodológicas”. in: ViDAL, Lux (org.). Grafismo indígena. São Paulo: EDuSP. 16 ViDAL, Lux. Op. cit., p. 281. 15

46

RHAA 14


Arqueologia e cultura Guarani message conveyed, as it is transmitted and to whom it is transmitted. So you can make a list of   what  is  conveyed  by  the  artwork  with  other  spheres of society studied. This is the key to understanding, then, the artwork Guarani. Studying their culture more closely and watching rapporteurs who have had this ethnic group can identify the intent of the Guarani women when scribbling with his fingers,  brushes or even stilettos the ceramics surface.  Studying Florestan Fernandes (1693), responsible  for  the  amazing  description  Tupinambá,  we  identified  some  recent  reports  point to possible connotations for the designs in  ceramics. For Fernandes,17  Tupinambás  women  were  responsible  for  household  tasks,  including  the  construction of vessels and their decoration, besides  the  Indian  woman  was  responsible  for  all logistics that could happen during a period of wars, including the preparation of food for the warriors  and  also  perform  the  burials  of   those  who were to die during the battles. For Fernandes (1963), With  the  aid  of   information  provided  by  various  sources, i could organize a list of the activities of the  distribution  of   main  occupations  by  sex.  Female activities: all jobs vegetables from planting and sowing,  to the conservation of the gardens, gathering fruit and roots of cotton, the women swam with men - so participated  in  fishing,  diving  to  catch  fish  arrowed  by  them;  competing  They  are  also  catching  oysters;  participated in sports work, emptying the bottom of   the boat with a gourd, some hunters took with them  their wives. They had to transport the product of the game; took part in the hunting of winged ants, an activity that absorbed all the members of  the local girls  and women also were dedicated to the imprisonment of ants. Sang the edge of the cave, “Come, my friends, come  and  see  a  beautiful  woman,  she  will  give  us  nuts.”  As  they  went  out,  grabbed  them  and  drew  them to their feet and wings. When they were two women, each singing in turn. Ants trapped belonged  to the singer. All operations of the manufacture of flour  should  be  held  by  women.  The  preparation  of   roots  and  corn  to  drink  and  salivation  (this  done  by  maidens, perhaps 10 to 12 years, cf. Thevet), were made by women. The production of  palm oil, cotton  spinning, weaving networks of simple strands of tie hair and bands to tie children, woven baskets, rush and  wicker; also participated in the construction of the hut, as this work extended to all. The preparation of clay, making the containers (pots, pans, large pots for beer etc.), the ornamentation, the glazing and cooking,

FERnAnDES, Florestan. Organização social tupinambá. São Paulo: Corpo e alma do Brasil, 1963.

17

do

forma oral, tornando visível, o que é dissimulado ou o que está  disperso e subjacente e imperceptível para os indivíduos. Acredita-se também, expõe Vidal (1992), que os grafismos  podem corresponder a conteúdos de ordem cosmológica, e fixando-se a atenção nas formas gráficas das culturas estudadas  pode-se  conhecer  qual  a  mensagem  transmitida,  como  é  transmitida  e  para  quem  é  transmitida.  Assim  pode-se  fazer  uma relação do que é transmitido pelos grafismos com outras  esferas da sociedade estudada. Esta é a chave para o entendimento dos grafismos guarani.  Estudando  sua  cultura  mais  de  perto  e  observando  relatores  que  estiveram  com  esse  grupo  étnico  podemos  identificar  a  intencionalidade  das  mulheres  guarani  quando  rabiscavam  com  seus  dedos,  pincéis  ou  mesmo  estiletes  a  superfície  das  cerâmicas. Estudando Florestan Fernandes, responsável por incrível descrição dos Tupinambá, identificamos alguns relatos que nos  apontariam  para  possíveis  conotações  para  os  desenhos  nas  cerâmicas. Para Fernandes,17  as  mulheres  tupinambá  eram  responsáveis por afazeres domésticos, incluindo a construção  das vasilhas e seu adorno, além do mais a mulher indígena era  responsável por toda a logística que poderia acontecer durante um  período  de  guerras,  até  mesmo  o  preparo  de  comidas  para os guerreiros e também por realizar os enterros dos que  viessem a falecer durante as batalhas. Fernandes (1963) afirma que:  Com auxílio das informações fornecidas pelas diversas fontes, pude  organizar  uma  lista  das  atividades  da  distribuição  das  principais  ocupações, segundo o sexo. Atividades femininas: todos os trabalhos  hortícolas,  desde  o  plantio  e  a  semeadura,  até  a  conservação  das  roças; coleta das raízes, frutas e algodão; as mulheres nadavam com os homens – por isso participavam da pesca, mergulhando para apanhar  os  peixes  flechados  por  aqueles;  competia-lhes  também  apanhar  ostras;  participavam  dos  trabalhos  náuticos,  esvaziando  o  fundo da canoa com uma cuia; alguns caçadores levavam consigo suas mulheres. Estas deviam transportar o produto das caçadas; tomavam parte da caça às formigas voadoras, atividade que absorvia  todos os membros do grupo local; as moças e mulheres também se  dedicavam  ao  aprisionamento  de  formigas.  Cantavam  na  beira  da  caverna; “vinde, minhas amigas, vinde ver a mulher formosa, ela nos dará avelãs”. À medida que saíam, agarravam-nas e tiravam-lhes seus pés e asas. Quando eram duas mulheres, cada uma cantava por

FERnAnDES, Florestan. Organização social do tupinambá. São Paulo: Corpo e alma do Brasil, 1963.

17

RHAA 14

47


Glauco Constantino Perez sua vez. As formigas aprisionadas pertenciam à cantora. Todas as operações  da  fabricação  das  farinhas  deviam  ser  realizadas  pelas  mulheres. A preparação das raízes e do milho para fazer bebida e a  salivação (esta feita por donzelas, talvez de 10 a 12 anos, cf. Thevet) eram feitas pelas mulheres. A fabricação do azeite de coco; a fiação  do algodão, a tecelagem das redes simples, das fitas de enastrar os  cabelos e as faixas de amarrar as crianças; cestos trançados de junco  e  de  vime;  também  participavam  da  construção  da  maloca,  pois  este trabalho  se  estendia  a  todos.  A  preparação  do  barro,  a  fatura  dos vasilhames (panelas, alguidares, grandes potes para cauim etc.), a ornamentação, o envidramento e a cocção, tudo era feito pelas mulheres. A domesticação de aves, cachorros, galinhas, bem como  o adestramento de papagaios, constituíam atividades femininas. os serviços  domésticos  cabiam  exclusivamente  às  mulheres:  deviam  cuidar  do  arranjo  do  seu  lar,  o  que  consistia,  segundo  alguns  cronistas, em fazer comida, manter acesos os dois fogos que ficavam  ao  lado  da  rede  do  chefe  da  família,  e  tratar  do  abastecimento  de  água.  Nas  cauinagens,  ultimavam  a  preparação  das  bebidas,  aquecendo-as ao fogo, e serviam-nas em pequenas cuias de coco. Entre os trabalhos domésticos, também estaria a lavagem das redes.  Todavia  Gabriel  Soares  afirma  que  isso  era  feito  pelos  próprios  homens. Como padrão higiênico, deve ser mencionado o catamento de piolhos, que faziam nos homens e nas outras mulheres. no parto as mulheres entreajudavam-se. Todos os serviços relativos aos  transportes eram feitos pelas mulheres. Elas carregavam os filhos e  todo  o  equipamento,  pois  os  homens  precisavam  ficar  livres  para  se defenderem a si próprios e às famílias. Somente no período de gravidez evitavam os fardos muito pesados e as atividades árduas. A depilação e a tatuagem dos homens pertencentes ao próprio lar  cabiam  às  mulheres  que  o  constituíam.  As  companheiras  ou  parentes faziam-nas reciprocamente umas às outras. Participavam das  expedições  guerreiras,  ajuntando-se  em  grande  número  aos  guerreiros. Transportavam as redes e os víveres, preparavam as  refeições,  tratavam  do  abastecimento  de  água,  e  armavam  as  redes. Gandavo acrescenta às atividades das mulheres na guerra, a obrigação das velhas recolherem as flechas para os guerreiros. Nas  festas de execução cabia-lhes a limpeza do corpo com água fervente.  As velhas, além disso tratavam da moqueação da carne e aparavam  a  gordura  em  uma  cuia.  Corriam  também  em  torno  das  malocas,  mostrando os primeiros pedaços da vítima.18

nas palavras de Fernandes (1963), podemos entender a função da mulher dentro desta sociedade, e por meio de suas funções como mulher, esposa e progenitora pode-se entender  que os desenhos que elas faziam na cerâmica, muitas vezes, poderiam constituir parte desse cotidiano. André  Prous,19  importante  arqueólogo  que  também  pesquisa  os  grafismos  em  cerâmicas  tupinambá,  acredita  que  FERnAnDES, Florestan, Op. cit., p. 129.   PROUS,  André.  “A  pintura  em  cerâmica  guarani.”  Ciência Hoje, v. 36, n. 213, mar. 2005, p. 22-28.

everything  was  done  by  women.  The  domestication  of   birds,  dogs,  chickens,  and  the  training  of   parrots  were female activities. Domestic services exclusively to  fit  women,  should  take  care  of   the  arrangement  of your home, which consists, according to some chroniclers, in making food, keep lighted the two fires  that were next to the network of household head, and  treat  water  supply.  In  ‘cauinagens’,  finalizing  the  preparation  of   drinks,  heating  them  to  the  fire,  and  served  them  in  small  bowls  of   coconut.  Among  the  housework, would also be washing networks. However  Gabriel Soares says this was done by men themselves.  As standard toilet, we will see catch lice, which were in men and other women. At birth the women supporting  each other. All services relating to transport were made by women They carried the children and all the  equipment, because the men had to be free to defend  themselves and their families. During the period of pregnancy  avoided  burdens  too  heavy  and  strenuous  activities. The hair removal and tattoo men belonging  to his own home to women who fit the concept. The  companions and relatives made them mutually to each other. Participated in the raids, help to a large number  of warriors. networks and transporting the food, cook their meals, treated water supply, and armed networks. Gandavo adds to the activities of women in war, the obligation of  the old collect the arrows to the warriors.  At  parties  running,  fit  them  to  clean  the  body  with  boiling  water.  The  old  also  handle  the  burning  meat  and trim the fat in a bowl. Also ran around the huts,  showing the first pieces of  the victim.18

in the words of Fernandes (1963), we can understand the role of women within the company and through its role as woman, wife and dam, one can understand that the drawings they made in ceramics could often be part of  everyday  life. André  Prous19 important archaeologist who is also researching the artwork in ceramics Tupinambá believes that among the traits could  be  made  represented  geometrized  reasons  that  would hide accurate representations, particularly related to the ceremonies of death, and they are involved in the preparation of  beer (caguâba) and  the body of  sacrificed at parties anthropophagic  (Rio  basins)  as  well  as  to  receive  the  bodies  of   dead warriors. Prous (2005) reports that according, to chroniclers of the sixteenth century who had their first contact with the coastal Tupi reported  that  the  pride  of   women  Tupinambá  was  his  ability to prepare the ceramics, decor and beer.

18

18

19

19

48

RHAA 14

FERnAnDES, Florestan, Op. cit., p. 129.   PROUS,  André.  “A  pintura  em  cerâmica  guarani.”  Ciência Hoje. V. 36, n° 213, p. 22-28, março 2005.


Arqueologia e cultura Guarani However, authors such as La Salvia and Brochado  (1989)  specifically  researching  archeology  Guarani  and  has  many  publications  on  this  topic,  believe  that  the  form  would  have  its explanation focused on the time the coming of  the dispersal center and the time to fix such a  group  who  inhabited  the  region.  These  authors  believe  that  the  lines  have  suffered  loss  of   memory characteristics during the long time and that there would be only the memory of  the few  artisans artwork before all those who have been  in the minds of this group.

entre os traços feitos poderiam estar representados motivos geometrizados  que  esconderiam  representações  precisas;  particularmente relacionados às cerimônias da morte, sendo elas ligadas à preparação do cauim (caguâba) e do corpo dos sacrificados  nas  festas  antropofágicas  (bacias  cariocas),  assim  como destinadas a receber os corpos dos guerreiros mortos.

These  authors  think  that  it  could  influence  more strongly the production of ceramics and as a result, the graphics would be the qualitative  variation of material for production of the play. This variation was linked to the different ethnic regions that eventually inhabit. So, La Salvia and  Brochado  (1989)  describe  what  really  would  be  willing in the drawings would Guarani entities, animals and plants that would be strictly linked to  the function that the play would when completed. Then culminating in a mythic-religious character of the parts produced the decorated ceramics have  a  ritual  function  in  the  celebrations  held  by  the  group.  They  meet  the  ideas  of   Lux  Vidal  (1992)  when  they  believe  that  painting  and  decoration  of   the  objects  are  linked  to  the  presentation of the society, also in the same order to assert their culture.

Contudo, autores como La Salvia e Brochado (1989) –  que  pesquisam  especificamente  a  arqueologia  guarani  e  têm  imensas publicações a respeito deste tema – acreditam que o  grafismo  teria  sua  explicação  voltada  para  o  tempo  da  vinda  do centro dispersor e o momento de fixação desse grupo na  região  que  habitou.  Esses  autores  acreditam  que  as  linhas  teriam sofrido perdas características da memória durante o longo tempo e que apenas restariam na lembrança das artesãs  poucos  grafismos  perante  todos  aqueles  que  já  estiveram  no  imaginário desse grupo.

La Salvia and Brochado believe that the attempt  to  interpret  the  artwork  should  be  observed  and try to understand them in general, the set. “Painting is a set of parts of representations associated with reason and create a continuity of representation gives a decorative process. We can understand and distinguish between motives and  his representation if the decoder.”20 Decoding authors point out that this is a method of separating the elements that make up  the  representative  of   the  subject.  This  process ensures the authors draw a distinction between reasons that are apparently identical, but  structurally, are close. La Salvia and Brochado (1989) descant that the same craftsman can repeat  a  subject  and  establish  a  small  difference,  but  while the similarity in meaning and thus proving the relationship with the traditionally represented by the graphics within the group, making it very  difficult access to the meaning real symbolized.

20 LA SALViA, Fernando; BRoCHADo, J. P., Op. cit. p. 99.

Prous (2005) relata que de acordo com cronistas do século  16,  que  tiveram  o  primeiro  contato  com  os  Tupi  do  litoral, o orgulho das mulheres tupinambá era sua capacidade  de preparar a cerâmica, sua decoração e o cauim.

Esses autores pensam que o que poderia influenciar de  maneira mais forte a produção das cerâmicas, e em consequência disso os grafismos, seria a variação qualitativa dos materiais de  produção da peça. Esta variação estaria ligada às diferentes regiões que esta etnia acabou por habitar. Portanto, La Salvia e  Brochado (1989) descrevem que o que realmente estaria disposto  nos desenhos guarani seriam entidades, animais e vegetais que estariam ligados estritamente à função que a peça teria quando terminada. Culminando então em um caráter mítico-religioso, as peças produzidas, isto é, as cerâmicas decoradas, teriam uma  função  ritual  nos  festejos  realizados  pelo  grupo.  Eles  vão  ao  encontro das ideias de Lux Vidal (1992) quando acreditam que  a  pintura  e  a  ornamentação  dos  objetos  estão  ligadas  à  sua apresentação à sociedade, também no mesmo sentido de  afirmar sua cultura. La Salvia e Brochado acreditam que na tentativa de  interpretação  dos  grafismos  deve-se  observar  e  tentar  compreendê-los de uma maneira geral, o conjunto. “A pintura  é  um  conjunto  de  partes,  de  representações  que  associadas  criam um motivo, e a continuidade de sua representação dá um  processo  decorativo.  Só  podemos  entender  e  estabelecer  uma diferença entre motivos e sua representação se o decodificarmos”.20 20

LA SALViA, Fernando; BRoCHADo, J. P. Op. cit., p. 99.

RHAA 14

49


Glauco Constantino Perez A  decodificação  que  esses  autores  destacam  é  um  método  de  separar  os  elementos  que  compõem  o  conjunto  representativo do motivo. Este processo, asseguram os autores, estabelece uma diferença entre motivos que aparentemente são  iguais, mas que estruturalmente apresentam semelhanças. La Salvia e Brochado (1989) dissertam que um mesmo artesão pode  repetir um motivo e estabelecer uma pequena diferença, porém  mantendo  a  semelhança  no  significado  e  assim  comprovar  a  relação  com  a  tradicionalidade  representada  pelo  grafismo  dentro do grupo, tornando muito complicado o acesso ao significado real simbolizado. Com isso, acredita-se que para realizar o entendimento do significado do grafismo pintado, eles devem ser observados  em dois momentos: durante a decomposição do motivo e posteriormente com a análise do conjunto do desenho. Esses  autores relatam que deve haver leis que permitem determinadas ações  e  conjunturas  dentro  do  complexo  social  estudado.  A  partir destas leis, que regeriam as culturas, associadas aos usos compatíveis com instituições tradicionais, é que se permitiriam  o acesso ao significado dos motivos representados. Kelly de oliveira,21 uma pesquisadora do Rio Grande do Sul, segue esse pensamento dos autores anteriores, e a partir dessa  decomposição  dos  grafismos  em  elementos  mínimos  tenta encarar esses desenhos como formas de uma linguagem compartilhada pela etnia. Esta forma de encarar os grafismos  tem gerado grande discussão, já que se for encarado como uma  linguagem, ela deveria ter um fonema representante. Apesar disso, o principal argumento de Kelly de oliveira (2008) é que para as comunidades indígenas o belo tem sempre  a função de perfeito; para eles não existe qualquer diferenciação tecnológica de arte, trabalho, lazer nem fazem distinções sobre  a  beleza  e  a  qualidade.  Dessa  maneira,  entende-se  que  o  que  foi bem feito, se a qualidade é boa, o objeto tem sua beleza.  Assim, quando há um novo fator no processo de construção do  objeto,  este  não  é  reprovado  pelo  grupo,  desde  que  não  fuja  aos  padrões  tradicionais  do  grupo.  O  artista,  então,  é  o  indivíduo que consegue adaptar dentro dos padrões particulares  já existentes da sua cultura, destaca Oliveira (2008). Kelly  de  Oliveira  (2008)  busca  entender  os  grafismos  guarani  observando-os  como  signos  com  origens  no  sobrenatural  dessa  etnia,  que  foram  transmitidos  por  seres  21 oLiVEiRA, Kelly. Estudando a cerâmica pintada da tradição Tupiguarani: a coleção Itapiranga, Santa Catarina. Dissertação de Mestrado, PUCRS, Porto Alegre, 2008.

50

RHAA 14

Thus,  it  is  believed  that  to  achieve  an  understanding of the meaning of painted artwork,  they  must  be  seen  in  two  phases:  during  the  breakdown  of   reason  and  later  with  the analysis of the whole design. These authors report that there should be laws that allow certain  actions and situations within the complex social study. From these laws that would govern the cultures associated with uses compatible with the  traditional institutions that would allow access to the meaning of motifs. A researcher from Rio Grande do Sul, Kelly de oliveira21 follows this thought of earlier authors, and from that decomposition of dreamed of minimum elements try to face these types of drawings as a language shared by ethnicity. This  way of viewing the artwork has generated much discussion since it is seen as a language, it should have a representative phoneme. nevertheless, the main argument of Kelly de  Oliveira  (2008)  is  that  for  indigenous  communities  is  beautiful  has  always  perfect  function, for they existed to any technological differentiation of art, work, leisure or make distinctions  about  the  beauty  and  quality.  Thus,  it is understood that what was done well, if the quality is good, the object has its beauty. So, when  a  new  factor  in  the  construction  of   the  object,  this is not disapproved by the group, since they  do not flee to traditional standards of  the group.  The artist, then, is the individual who can adapt to the standards existing individuals of their culture, highlighted by Oliveira (2008). Kelly  de  Oliveira  (2008)  seeks  to  understand  the graphics Guarani watching them as signs of the supernatural origins of ethnicity, which were transmitted  by  mythical  beings  and  eventually  adopted by the community. This bias point is used  in  studies  conducted  by  Denise  Pahl  Schaan22 when  considering  the  ceramics  marajoaras  of   northern Brazil. Thus, for an individual who is not inserted in this society, the minimum that can be seen in the  graphics  may  seem  overly  simplified  or  similar  to the object, but Oliveira (2008) believes this is  because, for not belonging to this cultural system,  the icon becomes weak or simply null, contrary to

oLiVEiRA, Kelly. Estudando a cerâmica pintada da tradição Tupiguarani: a coleção itapiranga, Santa Catarina. Dissertação de Mestrado, PUCRS, Porto Alegre, 2008.  22 SCHAAn, Denise Pahl. A linguagem iconográfica da cerâmica Marajoara. Dissertação de Mestrado, PuCRS, Porto Alegre, 1996. 21


Arqueologia e cultura Guarani what happens with the integrated individual, who would be perfectly understandable.  From this perspective, therefore, oliveira (2008)  believes  that  restricting  the  study  of   graphics Guarani, studies of the minimum elements and their possible combinations, would  be  the  best  way  to  understand  the  graphics  of   this group and its intricate system of visual communication. This  author  believes  that  the  ceramic  decoration  should  not  be  seen  only  by  its  functionality and aesthetics, as an artifact that holds only ceremonial adornments only aesthetic, she believes that the form contains within it an  ability  to  convey  information  society,  and  thus  such information are no longer accessible in their  actual meanings, but the chances of  being raised  questions in this regard are not ruled out and that is the proposal that it believes these graphics  systems to function as socially shared meanings. Sergio Batista da Silva,23 a respected anthropologist, also from Rio Grande do Sul, believes that this trend of  studies of  the artwork  building  on  the  minimum  elements  is  a  way  outdated and prone to many errors in identifying the meaning of the drawings. it carries out cultural similarities  between  the  prehistoric  cultures  and  the Guarani groups actually identified as Guarani,  inhabitants  of   the  south  of   Brazil,  Argentina  and  Paraguay,  observing  what  was  described  by  first making contact with these populations and  ethnographies  taken  by  him  same  and  other  scholars of  the subject.  in his work the author makes an interface between ethnology and archeology in the search  for data on this population. His work stands for  symbolic  analysis,  that  is,  understand  the  symbolism of  the artwork for the population.  The  work  of   Silva  (2001)  field  is  divided  into  two  stages  -  firstly,  the  indigenous  people  he worked with formal pointed categories or generic and a second time, with ethnographic research, this researcher had the opportunity of understanding these categories - companies with understanding the present understanding of the artwork Guarani, regardless of the medium, varying both baskets (ajaká) and in ceramics, or

SiLVA, Sergio Baptista da. Etnoarqueologia dos grafismos Kaingang: um modelo para a compreensão das sociedades Proto-Jê meridionais. 2001. Tese de Doutorado, Departamento de Antropologia, universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. 23

míticos e que acabaram adotados pela comunidade. Este viés  de  observação  é  utilizado  nos  estudos  realizados  por  Denise  Pahl Schaan22 quando analisa as cerâmicas marajoaras do norte  do Brasil. Assim, para um indivíduo que não está inserido nessa sociedade, os elementos mínimos que podem ser observados  nos  grafismos  podem  parecer  demasiadamente  simplificados  ou  análogos  em  relação  ao  objeto,  porém  Oliveira  (2008)  acredita que isto ocorre porque, para os não pertencentes a este sistema cultural, o ícone torna-se fraco ou simplesmente nulo; ao contrário do que acontece com o indivíduo integrado, para quem seria perfeitamente compreensível. Sob  essa perspectiva, portanto, Oliveira  (2008) acredita  que  restringir  o  estudo  dos  grafismos  guarani  aos  estudos  dos elementos mínimos e suas possíveis combinações seria a  melhor maneira de entender a arte gráfica desse grupo e seu  intrincado sistema de comunicação visual. Esta autora pensa que a decoração cerâmica não deve ser vista somente por sua capacidade funcional e estética, enquanto  um artefato cerimonial que comporta adornos apenas estéticos;  ela acredita que o grafismo encerra em si uma capacidade de  veicular  informações  da  sociedade,  e  assim  tais  informações  não  estão  mais  acessíveis  nos  seus  reais  significados.  Porém,  as  possibilidades  de  serem  levantados  questionamentos  a  esse  propósito  não  são  descartadas  e  é  nessa  proposta  que  ela acredita que esses grafismos funcionem como sistemas de  significações socialmente compartilhados. Sérgio  Batista  da  Silva,23 respeitado antropólogo, também  do  Rio  Grande  do  Sul,  acredita  que  esse  viés  de  estudos dos grafismos partindo dos elementos mínimos é uma  forma superada e suscetível a muitos erros na identificação do  significado  dos  desenhos.  Ele  realiza  trabalhos  de  analogias  culturais  entre  as  culturas  pré-históricas  guarani  e  os  grupos  atualmente  identificados  como  Guarani,  habitantes  da  região  Sul  do  Brasil,  Argentina  e  Paraguai,  observando  o  que  foi  descrito pelos primeiros a fazer contatos com essas populações  e  etnografias  colhidas  por  ele  mesmo  e  outros  estudiosos  da  temática. Em  seu  trabalho,  o  autor  faz  uma  interface  entre  a  etnologia indígena e a arqueologia na busca de dados referentes  SCHAAn, Denise Pahl. A linguagem iconográfica da cerâmica Marajoara. 1996. Dissertação de Mestrado, PuCRS, Porto Alegre, 1996. 23 SiLVA, Sergio Baptista da. Etnoarqueologia dos grafismos Kaingang: um modelo para a compreensão das sociedades Proto-Jê meridionais. Tese de Doutorado, Departamento de Antropologia, universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. 22

RHAA 14

51


Glauco Constantino Perez a  essa  população.  Seu  trabalho  preza  pela  análise  simbólica,  isto  é,  entender  o  significado  simbólico  do  grafismo  para  a  população. Em campo, o trabalho de Silva (2001) divide-se em duas  etapas: em um primeiro momento os indígenas com quem trabalhou  apontavam  as  categorias  formais  ou  genéricas,  e  em  um  segundo  momento,  com  pesquisas  etnográficas,  este  pesquisador  teve  a  possibilidade  do  entendimento  dessas  categorias, isto é, entender junto às sociedades do presente a  compreensão  dos  grafismos  guarani,  independentemente  do  seu suporte, podendo variar tanto da cestaria (ajaká) quanto em  cerâmicas, ou na madeira, como os objetos que imitam animais  da fauna da região. Explicando melhor, temos que: o primeiro deles daria  conta  de  categorias  genéricas  da  forma,  isto  é,  que  não  expressariam  sentidos,  como  um  fechado,  enfileirado,  zigue-zague simples, duplo zigue-zague ou mais; cruzado; fechado-comprido-enfileirado  etc.  Já  o  segundo  sistema  de  classificação  apresentado  estabeleceria  categorias  de  sentido  aos  grafismos  e  apontaria  para  significados  subjacentes  aos  padrões  gráficos.  Assim,  destaca  o  autor,  dois  desenhos  poderiam ser denominados de duas formas diferentes; tanto poderiam ser simples formas geométricas, angulares ou curvas,  quanto poderiam estar carregados de sentido, como o desenho das “asas da mariposa” ou mesmo o desenho “do casco do jabuti”, que são os mais representativos. Assim, como a nossa intenção a princípio não é selecionar  uma  perspectiva  para  o  entendimento  dos  grafismos  e  sim  mostrar as diversas formas de compreensão e entendimento perante  as  últimas  publicações  referentes  à  temática,  a  oportunidade diante disso é podermos perceber que o grafismo,  seja da etnia guarani ou qualquer outra, perpassa muito mais do  que pela simples esfera da cultura, absorvendo influências de  todos os campos dessa sociedade.

Considerações Finais Este  artigo  teve  como  objetivo  principal  apresentar  as últimas pesquisas com o acervo cerâmico de um sítio arqueológico do Estado do Paraná, o Córrego da Lagoa 2. Apesar de as pesquisas terem sido direcionadas de forma descritiva, esta temática nos permitiu que pesquisas bibliográficas fossem  feitas e assim descortinar uma série de outras novas pesquisas  que tiveram a intencionalidade de desvendar ou pelo menos 52

RHAA 14

wood as the objects that mimic animal fauna of   the region. Explain,  we  have:  the  first  one  would  realize  generic categories of form, ie not express senses, like  a  closed,  rowed,  simple  zigzag,  double  zigzag-zag or more; crossover open-long-queued, etc..  The  second  classification  system  presented  establish  categories  of   meaning  to  the  graphics  and point to underlying meanings to chart patterns. Thus, the author highlights two designs could be called in two different ways, both would  be simple geometric shapes, angular or curved as  it could be loaded with meaning, as the design of   the “butterfly wings” or even the design “of  the  hull of tortoise” which are more representative. So,  as  our  intention  at  first,  not  selecting  a  perspective  for  understanding  the  artwork,  but,  to show the different ways of understanding and view  of   the  recent  publications  concerning  the  subject, the opportunity before it is that we can  see that the styling of  either the Guarani tribe or  another, pervades much more than the simple realm  of   culture,  absorbing  influences  from  all  fields of  society. Final Considerations This article aimed to present the latest research on the ceramic collection of the archaeological site of the State of Paraná, the Córrego da Lagoa 2. Although the surveys were targeted in a descriptive way, this issue has allowed us to literature searches were made and thus unveil a host of other new research that had the intention of revealing or at least to understand the meanings of the motifs painted on ceramics. First, categorically characterize the archaeological site featuring quickly made the  first  contacts  with  local  residents  of   the  Archaeological site and the results of initial surveys of  the collected material; studies by Ana  Paula Simão (2002). After that, we present the new cut made for the current research and soon after, try to make notes that would indicate the various ways that have, in recent decades, seen the Guarani ceramic artwork by authors who are  working in this field.  We procedures analysis of ceramic material based  on  the  methodology  and  concepts  of   La  Salvia and Brochado (1989). Assuming, therefore,  these  concepts  might  explain  behaviors  and  knowledge of  the production of  objects, whose  behavior  was  transmitted  between  generations


Arqueologia e cultura Guarani and thus understanding the social construction of the group. The study of  the ceramics made it possible to  be  raised  and  understood  issues  relating  to  the  painting,  such  as  understanding  the  distribution  of  artwork by the ceramic surface, the relationship  between the type of  artwork and its location in  the fragment and even the format of the form, without being drawn geometrically. Still, we seek to group data on the artistic manifestations in order to study the relationship people have with their output, thus creating an information base about the range of  views that  art has in the academy. These show that is part of human nature to need to speak from experience, to conceptualize perceptions and exchange these concepts with others. Virtually all human societies, from the neolithic said Schaan (1996) refer to the explanation for these issues to the creation  myths  that  tell  stories  about  the  origin  of the group. They are myths that refer to a time when man did not exist as a human being, just as  a group. From  this,  we  believe  that  art  permeates  all  social  spheres:  it  can  manifest  in  theater,  body  painting, or decoration of  objects. Everything is  connected to a sense that we call cosmological said Schaan (1996) again understanding that art enters the human world in which he lives. This view is the origin of man and how he should behave  in  the  world  and  said  ways  of   human  behavior  among  their  peers  and  thus,  art  is  intertwined with the very culture of the group. The diversity of human manifestations is a feature peculiar cultures and highlight the elements  of   a  common  humanity  between  the  groups. To Schaan (1996), human nature is not a common denominator that all cultures are included,  but  must  be  sought  in  the  differences  that enrich the vision of a common nature. Thus, despite the immense diversity of forms that have made adaptations to the environment of man, they  have  always  been  given  to  demonstrate  an  internal logic, from which are revealed similarities in seemingly different societies. indigenous culture represented in the form Guarani should be  seen  as  a  form  of   internal  border  to  the  group,  but  even  so,  exposes  the  uniqueness  of   ethnic groups before the permeate and who are  in constant contact. Thus, this article sought corroborate with the  publication of  studies on the indigenous Guarani

de  compreender  os  significados  dos  motivos  pintados  nas  cerâmicas. Primeiramente, caracterizamos categoricamente o sítio arqueológico apresentando de maneira rápida os primeiros contatos feitos com os moradores da região do sítio arqueológico e os resultados das primeiras pesquisas feitas com o material recolhido, estudos feitos por Ana Paula Simão (2002). Após isso, apresentamos o novo recorte feito para a atual pesquisa e logo a seguir tentamos realizar apontamentos que pudessem indicar as diversas maneiras com que se tem, nas últimas décadas, encarado o grafismo cerâmico guarani pelos  autores que realizam pesquisas nesse campo. Realizamos os procedimentos de análise do material cerâmico, tomando por base a metodologia e conceitos de La  Salvia  e  Brochado  (1989).  Assim,  partindo  desses  conceitos  pudemos esclarecer comportamentos e conhecimentos da produção  de  objetos,  sendo  este  comportamento  transmitido  entre gerações e assim entendendo a construção social do grupo.  O  estudo  com  as  cerâmicas  possibilitou  que  fossem  levantadas  e  entendidas  algumas  questões  relativas  à  pintura,  como  o  entendimento  da  distribuição  dos  grafismos  pela  superfície cerâmica, as relações entre o tipo do grafismo e sua  localização no fragmento e até mesmo o formato do grafismo,  sem que fossem desenhados geometricamente. Buscamos, ainda, agrupar dados sobre as manifestações  estéticas  para  poder  conhecer  as  relações  que  os  povos  estabelecem com a produção artística, criando assim uma base  de  informações  a  respeito  da  gama  de  visões  que  a  arte  tem  no meio acadêmico. Estes dados demonstram que faz parte da natureza humana a necessidade de narrar experiências, de conceitualizar  percepções  e  de  trocar  esses  conceitos  com  os outros. Praticamente todas as sociedades humanas, desde o neolítico, afirma Schaan (1996), remetem a explicação para  essas  questões  aos  mitos  de  criação,  que  narram  histórias  a  respeito da origem do grupo. São mitos que se referem a um tempo em que o homem ainda não existia como ser humano, apenas como um grupo. A partir disso, entendemos que a arte permeia todas as esferas do social: ela pode se manifestar no teatro, na pintura corporal  ou  na  decoração  de  objetos.  Tudo  está  ligado  a  um  sentido a que chamamos cosmológico, afirma Schaan (1996),  mais uma vez entendendo que a arte insere o ser humano no mundo em que vive. Essa visão trata da origem do homem e de como ele deve comportar-se no mundo e dita maneiras do RHAA 14

53


Glauco Constantino Perez comportamento humano entre os seus semelhantes, e assim a arte confunde-se com a própria cultura do grupo. A  diversidade  das  manifestações  humanas  é  uma  característica peculiar das culturas e nos evidencia os elementos de uma natureza humana comum entre os grupos. Para Schaan (1996),  a  natureza  humana  não  é  um  denominador  comum  em que todas as culturas se incluem, mas deve ser buscada nas  diferenças que enriquecem a visão de uma natureza comum. Assim, apesar da imensa diversidade de formas que assumiram as adaptações do homem ao ambiente, elas têm se dado sempre  no sentido de demonstrar uma lógica interna, a partir da qual se revelam similaridades em sociedades aparentemente diferentes. A cultura indígena representada no grafismo guarani deve ser  encarada como uma forma de fronteira interna ao grupo, mas que, mesmo assim, expõe a singularidade deste grupo perante  os  grupos  étnicos  que  o  permeiam  e  com  quem  estão  em  constante contato. Dessa  maneira,  esse  artigo  buscou  corroborar  com  a  divulgação  dos  estudos  feitos  sobre  o  grafismo  indígena  guarani, numa tentativa de coagular pesquisas que estão a se desenvolver no território brasileiro, dando um panorama geral  sobre  as  visões  de  vários  autores  e  a  partir  disso,  também  caracterizar e apresentar o acervo que é considerado o maior  acervo cerâmico arqueológico guarani recolhido em um único sítio  arqueológico  e  disponível  para  pesquisas.  Este  trabalho  buscou  contribuir  para  uma  caracterização  pormenorizada  dos  grafismos  cerâmicos  arqueológicos,  podendo  ampliar  o  conhecimento a respeito desses vestígios regionais, inovando e ampliando os modelos de ocupação nacional e entendimento sobre cada população.

54

RHAA 14

form in an attempt to clot searches that are being developed in the Brazilian territory, giving  an overview of the views of various authors and from there, to characterize and present the collection that is considered the largest collection Guarani archaeological ceramics collected in one site and available for research. This study aimed  to  contribute  to  a  detailed  characterization  of   archaeological ceramic artwork could expand the knowledge about these traces regional innovating  and expanding the types of occupation and national understanding of a population.


Arqueologia e cultura Guarani 1

2

3

1 Mapa Político do Estado do Paraná, retirado do site oficial do Município de Altônia, com um ponto em vermelho localizando a região do Sítio arqueológico Córrego da Lagoa 2. 2 Representações gráficas de Cambuchí e Cambuchí Caguabã respectivamente. (LA SALVIA & BROCHADO, 1989). 3

Números totais de fragmentos analisados.

RHAA 14

55



A Virgem amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração, do Museu de Arte de São Paulo The Virgin nursing the Child and Saint John the Baptist in adoration of the Art Museum of São Paulo - MASP

FeRnAndA MARinHo Doutoranda em História da Arte pelo IFCH, Unicamp. Bolsista CNPq. E-mail: fernandamarinhoc@yahoo.com.br Phd student in Art History, iFCH, Unicamp. CnPq Sponsorship. e-mail: fernandamarinhoc@yahoo.com.br

ReSUMo A pintura Virgem amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração, do Museu de Arte de São Paulo, atribuída a Giovanni Pietro Rizzoli, conhecido como Giampietrino, aponta relações com o cenário produtivo do Cinquecento lombardo caracterizado pela presença de Leonardo da Vinci. no entanto, a partir desta pintura podemos ampliar as possibilidades de diálogos artísticos traçados por este autor, enriquecendo a sua trajetória ainda pouco conhecida. PAlAvRAS-ChAve

Giampietrino, Renascimento Lombardo, Leonardo da Vinci.

The painting Virgin Nursing Child and Saint John the Baptist in adoration, of the Museum of Modern Art in Sao Paulo – MASP, attributed to Giovanni Pietro Rizzoli, known as Giampietrino points out the relations with the productive scenario of the Lombard Cinquecento characterized by the presence of Leonardo da Vinci. However, by this painting we can widen the possibilities of the artistic dialogs traced by this author, enriching his still obscure journey. ABSTRACT

KeywoRdS

Giampietrino, Lombard Renaissance, Leonardo da Vinci.

RHAA 14

57


Fernanda Marinho A pintura Virgem amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração (Figura 1), proveniente da Coleção Simonetti e do Studio d’Arte Palma de Roma, foi doada ao Museu de Arte de São Paulo (MASP) por Tereza Bandeira de Mello e Silvério Ceglia, em 1947. Sua autoria foi atribuída a Giovanni Pietro Rizzoli, conhecido como Giampietrino, primeiramente por ettore Camesasca1 e mantida posteriormente por Luiz Marques,2 não suscitando, portanto, até o presente momento opiniões divergentes a este respeito. A polêmica está mais voltada à identificação de Giampietrino do que às obras a ele relacionadas, ou seja, apesar de encontrarmos muitas atribuições a este pintor, pouco se sabe a seu respeito. Para melhor compreendermos o cenário no qual este artista se insere, considerando o impacto causado pela presença de Leonardo da Vinci em Milão no final do Quattrocento, cabe-nos entender o perfil da arte lombarda do início deste século. Venturi3 analisa o percurso formal quattrocentesco lombardo a partir dos irmãos Benedetto e Bonifácio Bembo, destacando do primeiro a minúcia caligráfica, e do segundo o preciosismo da forma do políptico de Torrechiara e a rigidez das vestes nos retratos de Bianca Maria Visconti e Francesco Sforza (ambas conservadas na Pinacoteca de Brera, Milão). Caracteriza a arte lombarda pelos seus aspectos consideravelmente mais próximos dos resquícios da forma gótica do que pelos anseios renascentistas que já despontavam nos centros artísticos da itália. esta forte ligação mantida com as esquematizações medievais, mesmo no período do Renascimento, pode ser a razão das constantes associações da Lombardia à periferia italiana. A história da arte tende a estabelecer uma divisão territorial entre o centro produtivo e as suas margens, diferenciando-os principalmente a partir de uma suposta capacidade de originalidade inventiva. Roma, Florença e Veneza são frequentemente denominadas como o berço do Renascimento, enquanto que a Lombardia se caracterizaria por um anacronismo e dependência destes centros.

The painting Virgin nursing the Child and St. John the Baptist in adoration (Figure 1) from the Simonetti Collection and Studio d’Arte Palma in Rome, was donated to the Museu de Arte de São Paulo (MASP) by Teresa Bandeira de Mello and Silverio Ceglia in 1947. its authorship was attributed to Giovanni Pietro Rizzoli, known as Giampietrino, first by Ettore Camesasca1 and maintained thereafter by Luiz Marques,2 not raising, therefore, different opinions about it. The controversy is more focused on Giampietrino´s identity than the works attributed to him, that is, although we can find many references to this painter, little is known about him. To better understand the scenario in which this artist was part of, considering the impact caused by Leonardo da Vinci´s presence in Milan at the end of the Quattrocento, we must understand the profile of this century´s Lombard art. Venturi3 analyzes the formal path of the quattrocentesco Lombard through the brothers Bonifacio and Benedetto Bembo. Bonifacio known by the detail and preciousness of the calligraphic form of the altarpiece Torrechiara and, Benedetto by the rigidities of the dress in the pictures of Bianca Maria Visconti and Francesco Sforza (both kept in the Pinacoteca Brera, Milan). The Lombard art was characterized by its aspects considerably closer to the remnants of the Gothic than the Renaissance desires that were coming up in the artistic centers of italy. This strong link maintained, even during the Renaissance, with the medieval schematics, may be the reason why Lombardy was constantly associated to the outskirts of italy. Art history tends to establish a territorial division between the production center and its outskirts, differentiating them mostly from an alleged ability of inventive originality. Rome, Florence and Venice are often referred to as the cradle of Renaissance, while Lombardy is characterized by an anachronism and dependence of these centers.

CAMeSASCA, ettore. Trésors du Musée d’Art de São Paulo: de Raphael a Corot (I). Martigny: Fondation Pierre Gianadda, 1988. / CAMeSASCA, ettore. Da Raffaello a Goya...da Van Gogh a Picasso - 50 dipinti dal Museu de Arte di San Paolo del Brasile. Milano: Gabriele Mazzotta edizioni, 1987. 2 Catálogo Raisonné da Arte italiana do Museu de Arte de São Paulo, which is an upgrade of previous publications, the catalog and summary of 1963 and the inventory of 1982, both the PM Bardi. 3 VenTURi, A. Storia dell’arte italiana. (1915) Vii La Pittura del Quattrocento Parte iV. Milano: Ulrico Hoepli, 1983. 1

CAMeSASCA, ettore. Trésors du Musée d’Art de São Paulo: de Raphael a Corot (I). Martigny: Fondation Pierre Gianadda, 1988. / CAMeSASCA, ettore. Da Raffaello a Goya... da Van Gogh a Picasso – 50 dipinti dal Museu de Arte di San Paolo del Brasile. Milano: Gabriele Mazzotta edizioni, 1987. 2 Catálogo Raisonné da Arte italiana no Museu de Arte de São Paulo, que consiste em uma atualização de publicações anteriores, o catálogo e sumário de 1963 e o inventário de 1982, ambos de P. M. Bardi. 3 VenTURi, A. Storia dell’arte italiana. (1915) Vii La Pittura del Quattrocento Parte iV. Milano: Ulrico Hoepli, 1983. 1

58

RHAA 14


A Virgem de Giampietrino no MASP Berenson4 weaves rigid criticism towards the Lombard culture regarding the relationship established with these referral centers throughout the Renaissance, adopting them as a productive model. in other words, he seems to suggest that the Lombard Renaissance art was characterized, among other things, by a lack of identity, based on very prosperous artistic productions of the cities named above. This trial is justified by the intense practice of copying works from the great masters, which, according to the author, is mainly due to the absence of a “genius in Milan”.5 Copying for him was directly related to the lack of creative ability:

Berenson4 tece rígidas críticas à cultura lombarda no que diz respeito à relação que estabeleceu com tais centros de referência ao longo do Renascimento, adotando-os como modelo produtivo. em outras palavras, parece sugerir que a arte do Renascimento lombardo caracterizou-se, entre outras questões, por uma falta de identidade própria, muito baseada nas prósperas produções artísticas das cidades acima citadas. Tal julgamento justifica-se pela intensa prática da cópia de trabalhos de grandes mestres, que segundo o autor, deve-se principalmente à ausência de um “gênio em Milão”.5 A cópia para ele estava diretamente relacionada à ausência de capacidade criativa:

[...] mas a imitação, por parte do artista inábil será vazia e infecunda. na realidade, se este artista pudesse criar qualquer coisa de vivo e substancial, não precisaria imitar. Será uma imitação que nos mostrará a epiderme da beleza morta.6

[...] mas a imitação, por parte do artista inábil será vazia e infecunda. na realidade, se este artista pudesse criar qualquer coisa de vivo e substancial, não precisaria imitar. Será uma imitação que nos mostrará a epiderme da beleza morta.6

The connection between the identity of Lombard art, especially after Leonardo da Vinci, and the practice of copying is present since Vasari, who, writing about this region of italy, also mentioned that aspect, as shown below: [...] ma tornando ai pittori milanese, poichè Lionardo da Vinci vi ebbe lavorato il cenacolo sopra detto, molti cercarono d’imitarlo, e questi furono Marco Uggioni et altri, de’ qualli si è ragionato nella vitta di lui. et oltre quelli lo imitò molto bene Cesare da Sesto, anche’egli milanese, e fece, più di quel che s’è detto nella vita di dosso, un gran quadro che è nelle case della Zecca di Milano...7

However, while Berenson criticizes this lack of identity in the Milanese art, for Venturi its development was precisely connected to the increasing contacts established with such productive

4 BeRenSon, Bernhard. I Pittori Italiani del Rinascimento. (1932) Traduzione di emilio Cecchi. Milano: Ulrico Hoepli editore, 1935. 5 BeRenSon, 1935, p. 219. 6 “But the imitation, by the artist will be awkward empty and barren. in fact, if the artist could create something substantial and alive he would not need to imitate. it will be an imitation that will show us the skin of dead beauty”. BeRenSon, 1935, p. 220. 7 “But back to the Milanese painters, after Leonardo da Vinci worked on the dining room above, many began to imitate him, and these were Marco d’oggiono and others, whom are associated with him. Another one of those who followed his example, Cesare da Sesto, also from Milan, made more than those referred to in the life of Dosso, a big painting that is in the houses of Zecca from Milan [...]”. in: VASARi, Giorgio. Le Vite dei più eccellenti pittori, scultori e architetti. Grandi Tascabili economici newton, 2007, p. 1095.

A conexão entre a identidade da arte lombarda, principalmente pós Leonardo da Vinci, e a prática da cópia se faz presente desde Vasari, que ao escrever sobre esta região italiana, mesmo resumidamente, não deixa de citar tal aspecto, como vemos a seguir: [...] ma tornando ai pittori milanese, poichè Lionardo da Vinci vi ebbe lavorato il cenacolo sopra detto, molti cercarono d’imitarlo, e questi furono Marco Uggioni et altri, de’ qualli si è ragionato nella vitta di lui. et oltre quelli lo imitò molto bene Cesare da Sesto, anche’egli milanese, e fece, più di quel che s’è detto nella vita di dosso, un gran quadro che è nelle case della Zecca di Milano...7

no entanto, ao mesmo tempo em que Berenson critica esta dita falta de identidade própria da arte milanesa, o seu desenvolvimento, para Venturi, estava atrelado justamente aos crescentes contatos estabelecidos com tais centros produtivos. elege a decoração da Capela Portinari na igreja de San eustorgio, em Milão, como uma das maiores manifestações da pintura setentrional da época, pintada por Michelozzo entre 1462 e 1468, artista lombardo, mas formado em escola florentina. 4 BeRenSon, Bernhard. I Pittori Italiani del Rinascimento. (1932) Traduzione di emilio Cecchi. Milano: Ulrico Hoepli editore, 1935. 5 BeRenSon, 1935, p. 219. 6 BeRenSon, 1935, p. 220. 7 “Mas voltando aos pintores milaneses, depois que Leonardo da Vinci trabalhou no refeitório supracitado, muitos passaram a imitá-lo, e estes foram Marco d’oggiono e outros, dos quais se associaram a ele. outro daqueles que o imitou, Cesare da Sesto, também milanês, e fez mais do que aqueles referidos na vida de dosso, um grande quadro que está nas casas de Zecca de Milão [...]”. in: VASARi, Giorgio. Le Vite dei più eccellenti pittori, scultori e architetti. Grandi Tascabili economici newton, 2007, p. 1095.

RHAA 14

59


Fernanda Marinho Outra importante figura é Vincenzo Foppa (1427/30-1515/16), que segundo o autor interpreta as formas bembianas, mantendo assim o traço característico da tradição gótica, como nas suas representações da Virgem que apresentam um ar de austeridade e severidade. Mas ao mesmo tempo já mostra interesse nas novidades formais trazidas pelo Renascimento, como na sua pintura Crucifixão (Accademia Carrara, Bergamo) onde introduz a noção de espaço perspéctico a partir do efeito de afunilamento da paisagem. As obras de Foppa parecem ser as que mais denunciam a transição formal lombarda de reestruturação dos enrijecidos esquemas góticos a partir das novas experimentações renascentistas que fizeram das sólidas formas representações mais fluidas. Percebemos tais assimilações nas obras deste artista, principalmente devido ao contato com a arte de Bramante, evidenciada no afresco Virgem com Menino, São João Batista e São João Evangelista (Pinacoteca de Brera, Milão) e no investimento arquitetônico de sua composição. A presença de Leonardo e Bramante, incontestavelmente, suscitou uma “transformação radical, de estrutura da cultura figurativa lombarda na segunda metade do Quattrocento”, como bem assinalado por Argan.8 no entanto, para Berenson tais mudanças não pareciam indicar outro caráter artístico diferente daquele caracterizado pela cópia e pela graça, como se refere à “tonalidade de gentileza e sentimentalismo”,9 como características principais desta escola milanesa. Segundo o autor, Leonardo apenas teria contribuído indispensavelmente para que a esta graça10 fosse acrescida beleza. entretanto, muitos historiadores da arte destacam apenas aspectos negativos em relação à presença de Leonardo em Milão, devido a esta pressuposta uniformidade formal. Pietro Carlo Marani11 expõe tais questões focalizadas na recepção dos leonardescos pela crítica moderna de arte. Afirma que excetuando Solário (1460-1524), para Berenson; Marco d’oggiono (c. 1467-1524), Ambrogio de Predis (c. 1455-1508), Bernardino Luini (1480-1532), Andrea Solário e Bartolomeu

centers. He elected the decoration of the Portinari Chapel in the Church of San eustorgio, in Milan, one of the largest demonstrations of northern painting at that time. it was painted by Michelozzo between 1462 and 1468, Lombard artist, but trained in the Florentine school. Another important name is Vincenzo Foppa (1427/30 - 1515/16) who, according to the author, interpreted the bembians forms, thus maintaining the Gothic tradition characteristics, as in his depictions of the Virgin that present an air of austerity and severity. At the same time he showed interest in formal novelties brought by the Renaissance, as in his painting Crucifixion (Accademia Carrara, Bergamo) which introduces a perspective space by the narrowing effect in the landscape. Foppa’s works seem to be the pieces that show the most the formal Lombard transition of restructuring the stiff Gothic schemes based on new renaissance experiments that turned the solid forms into more fluid representations. We see such assimilations in the works of this artist, primarily due to the contact with Bramante´s art, shown in the fresco Madonna with Child, St. John the Baptist and Saint John the Baptist (Pinacoteca di Brera, Milan) and at the architectural investment of its composition. The presence of Leonardo and Bramante undoubtedly raised a “radical transformation of the structure of the Lombard figurative culture in the second half of the Quattrocento”, as well detected by Argan.8 However, for Berenson such changes did not seem to indicate another artistic aspect than that characterized by copy and grace, as he refers to as the “tone of kindness and sentimentality”,9 as the main characteristics of this Milanese school. According to the author, Leonardo would only have contributed indispensably to add a greater beauty to this grace.10 However many art historians highlight only the negative aspects related to the presence of Leonardo in Milan because of this assumed formal uniformity. Pietro Carlo Marani11 exposes these

ARGAn, Giulio Carlo. História da arte Italiana: de Giotto a Leonardo. vol. 2. São Paulo: Cosac & naify, 2003, p. 372. 9 BeRenSon, 1935; p. 220. 10 BeRnSon, 1935; p. 220, better explains the concept of grace by stating that this interpretation has two sides and may be synonymous of both inferiority and success, because while giving formal characteristics, as seen above, related to the “tone of kindness and sentimentality,” the grace would be what remains of beauty. 11 Pietro C. Marani at his article “The Question of Leonardo’s Bottega: Practices and the Transmissions of Leonardo’s ideas on Art and Painting”. in: The Legacy of Leonardo – Painters in Lombardy 1490-1530; Milano: Skira, 1998. 8

ARGAn, Giulio Carlo. História da arte Italiana: de Giotto a Leonardo. vol. 2. São Paulo: Cosac & naify, 2003, p. 372. 9 BeRenSon, 1935, p. 220. 10 BeRenSon, 1935, p. 220, explica melhor o conceito de graça afirmando que este possui dois lados interpretativos, podendo ser sinônimo tanto de inferioridade quanto de sucesso, pois apesar de conferir características formais, como vistas mais acima, relacionadas à “tonalidade de gentileza e sentimentalismo”, a graça seria aquilo que resta da beleza. 11 Pietro C. Marani em seu artigo “The Question of Leonardo’s Bottega: Practices and the Transmissions of Leonardo’s ideas on Art and Painting”. in: The Legacy of Leonardo – Painters in Lombardy 1490-1530; Milano: Skira, 1998. 8

60

RHAA 14


A Virgem de Giampietrino no MASP aspects focusing on how the critics of modern art received the Leonardesques. He states that except Solarium (1460-1524), for Berenson, Marco d’oggiono (c. 1467 to 1524), Ambrogio de Predis (c. 1455 to 1508), Bernardino Luini (1480-1532), Solarium and Andrea Bartolomeo Veneto (active between 1502-1531), for Geddo; Giovanni Antonio Boltraffio (c. 1467 to 1515) and Luini, for Longhi, is often said that the influence was detrimental to leonardesque Milanese painting. However, he says this critical trend has been tempered particularly after the latest compilation of inventories of works from this historical period, more reliable than those of the past, which allowed the identification of other Leonardesque, such as Master of the Pala Sforzesca (active from 1490-1520), Giampietrino, Boltraffio, Cesare da Sesto (1477-1523) and to a greater extent Marco d’oggiono. At the same time these new studies have expanded the scope of Leonardo´s influence in the Lombard capital, they have helped to determine the specificity of each of these artists related to the master. We can thus say that lately there has been a gradual renewal of studies on the Milan school of Leonardo, caused mainly by such recent inventory of old collections and also the analysis of new documents discovered, that enable us to study the prism of their more autonomous careers, and not necessarily always linked to the Florentine master. The anonymity of Giampietrino is mainly due to the lack of documentation that can brings us closer to a confirmation of his identity and the several variations of his name on the already known documents. it is known, however, that he is inserted in the art scene of the Cinquecento Lombard12 and worked for the workbench by Leonardo da Vinci in Milan between 1497 and 1500. The application of the technique demonstrates a close relation with the master´s work, that changed the course of art in Lombardy, creating a large school of followers, like Marco d’oggiono, Cesare da Sesto (c. 1477 to 1523), Bernardino Luini, Boltraffio, among others that would set a new artistic life in this region.

“With Milan at its Center, present-day Lombardy includes Varese and Como to the northwest; Pavia, Cremona, Brescia, Bergamo, and Mantua are its other major cities. in the sixteenth century, Mantua was an independent state ruled by the Gonzaga family, while Bergamo and Brescia were both part of Venice’s western terraferma. The proximity of the latter two to Milan, however, is deeply significant for the development of their artistic schools, and their painters are frequently grouped with other Lombard artists […]” BAYeR, Andrea. “Sixteenth-Century italian Painting in Lombardy and emilia-Romagna”. The Metropolitan Museum of Art Bulletin, new Series, v. 60, n. 4, 2003, p. 5.

12

Veneto (ativo entre 1502 e 1531), para Geddo; Giovanni Antonio Boltraffio (c. 1467-1515) e Luini, para Longhi, é de costume dizer que a influência leonardesca foi prejudicial à pintura milanesa. no entanto, diz ter sido esta tendência crítica amenizada, principalmente depois das últimas compilações de inventários das obras deste recorte histórico, mais confiável que as do passado, que possibilitaram a identificação de outros leonardescos, como Mestre da Pala Sforzesca (ativo entre 1490 e 1520), Giampietrino, Boltraffio, Cesare da Sesto (1477-1523) e em maior extensão Marco d’oggiono. estes novos estudos, ao mesmo tempo em que teriam ampliado o alcance das influências de Leonardo na capital lombarda, teriam ajudado a determinar a especificidade de cada um destes artistas relacionados ao mestre. desta forma, podemos dizer que ultimamente tem ocorrido uma gradativa renovação dos estudos sobre a escola milanesa de Leonardo, causada principalmente por tais recentes inventariados de antigos acervos e também pelas análises de novos documentos descobertos, que possibilitam que os estudemos sob o prisma de suas trajetórias artísticas mais autônomas, não necessariamente sempre atreladas ao mestre florentino. o anonimato de Giampietrino deve-se, principalmente, à falta de documentações mais consistentes, isto é, que nos aproximem de uma confirmação da sua identidade e à série de derivações de seu nome naqueles documentos já conhecidos. Sabe-se, entretanto, que está inserido no cenário artístico do Cinquecento lombardo12 e que trabalhou para a oficina instalada por Leonardo da Vinci em Milão entre 1497 e 1500. A aplicação da sua técnica mostra intensa relação com as produções do mestre que mudou o curso artístico da Lombardia, formando assim, uma grande escola de seguidores, como Marco d’oggiono, Cesare da Sesto (c. 1477-1523), Bernardino Luini, Boltraffio, entre outros que viriam definir uma nova trajetória artística nessa região. 12 “With Milan at its Center, present-day Lombardy includes Varese and Como to the northwest; Pavia, Cremona, Brescia, Bergamo, and Mantua are its other major cities. in the sixteenth century, Mantua was an independent state ruled by the Gonzaga family, while Bergamo and Brescia were both part of Venice’s western terraferma. The proximity of the latter two to Milan, however, is deeply significant for the development of their artistic schools, and their painters are frequently grouped with other Lombard artists […]” BAYeR, Andrea. Sixteenth-Century italian Painting in Lombardy and emilia-Romagna. The Metropolitan Museum of Art Bulletin, new Series, v. 60, n. 4, 2003, p. 5. / “Com Milão em seu centro, hoje em dia a Lombardia inclui Varese e Como no nordeste; Pavia, Cremona, Brescia, Bergamo e Mantua são as suas maiores cidades. no século 16, Mantua era um estado independente governado pela família Gonzaga, enquanto Bergamo e Brescia eram ambas parte da terra firme de Veneza. A proximidade das duas últimas a Milão, entretanto, é profundamente significante para o desenvolvimento de suas escolas artísticas, e seus pintores são frequentemente agrupados com outros artistas lombardos [...]” (Tradução livre da autora).

RHAA 14

61


Fernanda Marinho Pretende-se aqui examinar a pintura em questão sob um ponto de vista distinto daquele que estabelece a conexão entre Giampietrino e Leonardo da Vinci, ampliando os possíveis diálogos traçados pelo pintor, estabelecidos principalmente com artistas do norte europeu13 ou mesmo do ativo cenário veneziano seja a partir de contatos diretos ou indiretos.

A Identidade de Giampietrino

The Identity of Giampietrino

Para uma análise mais efetiva da pintura Virgem amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração, procurando compreendê-la dentro do léxico produtivo de Giampietrino e de seu meio atuante, pensa-se ser importante a elaboração de uma ordem cronológica de sua vida ativa como pintor. no entanto, ao mesmo tempo em que este objetivo é traçado, deparamos com uma clara dificuldade que repousa em uma questão preliminar: quem foi Giampietrino? os documentos atualmente a ele relacionados apontam derivações de seu nome, nos levando a cogitar, sem maiores precisões, que as aproximações formais tratam de uma mesma pessoa. Seja referido como “Gioanpietro”, no Códice Atlântico, por Leonardo da Vinci; “Pietro Rizzo Milanese”, no Tratado da Pintura, de 13 Tal determinação geográfica vale ser aqui compreendida segundo as considerações de Bernard Aikema e Beverly Louise Brown (“Venice: Where North meets South”. in: Renaissance Venice and the north. editores: Thomes and Hudson, 1999) que entendem as divisões europeias segundo os aspectos geográficos e políticos da época: “The fifteenth and the sixteenth centuries were extremely varied and changing periods throughout all of europe. Generally speaking during this time europe was divided not only into constantly shifting local political units, but also into a larger geographic regions – determined by physical barriers such as rivers, seas and mountains – that more or less maintained homogeneous cultural identities. The magnificent peaks and precipices of Alps, for example, divided Europe north and south, presenting at times as much of a psychological barrier between climates and cultures as they did a physical one. But thanks to human endeavor what divides often also unites and the political, social, economic and cultural contact back and forth across the Alps in this period was prodigious unflagging. It therefore comes as something as a surprise to find that historical studies have usually clung to strict regional divisions separating the north from the South” (página 19). “os séculos 15 e 16 foram períodos extremamente variados e mutantes em toda a europa. Grosso modo, durante esta época a europa estava dividida não apenas em unidades políticas constantemente variantes, mas também em largas regiões geográficas – determinadas por barreiras físicas como rios, mares e montanhas – que mais ou menos mantiveram identidades culturais homogêneas. os mais altos picos e precipícios dos Alpes, por exemplo, dividiram a europa de norte a sul, presentes na época muito mais como barreira psicológica entre climas e culturas do que barreira física. Mas graças ao esforço humano, o que divide frequentemente também une, e o contato político, social, econômico e cultural antes e depois de cruzar os Alpes neste período era prodigiosamente incessante. isto, portanto, vem como algo surpreendente de achar que os estudos históricos têm normalmente se agregado em função de definir as divisões regionais separando o norte do Sul”.

62

The intention of this article is to examine the painting in question by a different point of view than the one that establishes the connection between Giampietrino and Leonardo da Vinci, expanding the possible dialogues drawn by the painter, set primarily with artists from northern europe 13 or even the active Venetian scenario through direct and indirect contacts.

RHAA 14

For a more effective analysis of the painting Virgin nursing the child and St. John the Baptist in adoration, seeking to understand it within the productive lexicon of Giampietrino and its active environment, is thought to be important to draw up a chronological order of his active life as a painter. However, while this goal is outlined, we face a clear difficulty that lies in a preliminary question: who was Giampietrino? The documents that currently refer to him point to variations of his name, leading us to wonder, without further detail than the formal approaches, that it is the same person. Referred to as “Gioanpietro” in the Atlantic Codex, by Leonardo da Vinci; “Pietro Rizzo Milanese” in the Treatise of Painting, by Lomazzo; “Gio Pedrini” in Memories, by Ambrogio Mazenta; or even as “Rizzo” in the documental quotes done for the Duomo of Milan. We may be talking about Giampietrino in all these cases.

This geographical determination is worth being understood according to considerations of Bernard Aikema e Beverly Louise Brown (“Venice: Where North meets South”. in: Renaissance Venice and the north. editores: Thomes and Hudson, 1999) who understand the european divisions by the geographic and politic aspects of that time: “The fifteenth and the sixteenth centuries were extremely varied and changing periods throughout all of europe. Generally speaking during this time europe was divided not only into constantly shifting local political units, but also into a larger geographic regions – determined by physical barriers such as rivers, seas and mountains – that more or less maintained homogeneous cultural identities. The magnificent peaks and precipices of Alps, for example, divided europe north and south, presenting at times as much of a psychological barrier between climates and cultures as they did a physical one. But thanks to human endeavor what divides often also unites and the political, social, economic and cultural contact back and forth across the Alps in this period was prodigious unflagging. It therefore comes as something as a surprise to find that historical studies have usually clung to strict regional divisions separating the north from the South” (page 19).

13


A Virgem de Giampietrino no MASP Shell and Sironi14 organized a compendium of documents possibly related to this artist.15 We say “possibly” due to the absence of a main document or other evidence that aggregates information already found, and thus confirm that the names indicated above refer or not to the same person. The article is devoted mainly to the analysis of possible connections between Giampietrino and allusions to Giovanni Pietro Rizzoli. However, on the first notes the authors mention the existence of data about Pietro Rizzo, documented between 1481 and 1500,16 which shows links with the Scuola di San Luca and the duomo in Milan. Because of the early dating of these activities, Shell and Sironi decisively exclude the possibility of identification with Giampietrino, whose work, according to them, is certainly dated during the Cinquecento. on the other hand, they state in their article that “Gio. Pedrini” quoted by Ambrogio Mazenta17 as one of the disciples of Leonardo da Vinci could be a variation of Giovanni Pietro, a name pretty close to Giovanni Pietro Rizzoli. The documents examined regarding Rizzoli are dated later-between 1508 and 1547, which for Shell and Sironi could point to a stronger connection to Giampietrino. The first report documented, dated 1508, mentions his apprentice Ugo da Faiate, for whom he paid 15 scudi and to whom he provided accommodation and food during one year of work (a price above the average, which could lead us to wonder that his pupil had had experience as a painter before). There are also records of another disciple, Giovanni Francesco Boccaldoli, who in 1517 complaint to his master about the delay on his payment and on having to provide the master with six

14 SHeLL, Janice; SiRoni, Grazioso. “Some documents for Giovanni Pietro Rizzoli: il Giampietrino?” in: Raccolta Vinciana. Fascicolo XXV. Milano: Castelo Sforzesco, 1993. 15 See: MoTTA, e. “L’Università dei pittori milanese nel 1481”. in: Archivo Storico Lombardo, 1895, p. 413. / SHeLL, Janice. “The Scuola di San Luca, or Universitas Pictorum, in Renaissance Milan”. in: Arte Lombarda, 104, 1993/1, p. 89-91. / Archivo di Stato di Milano, Fondo notoriale, not. Benino Cairati, f. 2186, 15 February, 1489. / Annali del duomo di Milano, iii, Milan, 1880, p. 75. 16 “There was a ‘real’ painter named Giovanni Pietro Rizzo, who can be documented between 1481 and 1500 or thereabouts. Rizzo’s name appears in a procura executed for the Scuola di San Luca in 1481; in 1489 he took an apprentice; in 1493 did work for the fabbrica of the Milan duomo”. in: SHeLL, Janice; SiRoni, Grazioso. “Some documents for Giovanni Pietro Rizzoli: il Giampietrino?” in: Raccolta Vinciana. Fascicolo XXV. Milano: Castelo Sforzesco, 1993, p. 132. 17 Le Memories su Leonardi da Vinci di don Ambrogio Mazenta ripubblicate ed illustrate da d. Luigi Gramatica, Milan, 1919, p. 18.

Lomazzo; “Gio Pedrino”, em Memories, de Ambrogio Mazenta; ou mesmo como “Rizzo”, nas citações documentais como as dos trabalhos feitos para o duomo de Milão, por exemplo, podemos estar falando de Giampietrino em todos estes casos. Tratemos, portanto, destas evidências a ele relacionadas como um ponto de partida para a análise da pintura em questão. Shell e Sironi14 organizaram um compêndio dos documentos possivelmente relacionados ao nosso artista de interesse.15 diz-se “possivelmente” devido ao fato da ausência de um documento principal ou outro tipo de evidência que agregue as informações já encontradas, podendo assim confirmar que os nomes apontados acima se refiram ou não a uma mesma pessoa. o artigo dedica-se basicamente à análise das possíveis relações entre Giampietrino e as alusões a Giovanni Pietro Rizzoli. no entanto, já nas primeiras notas os autores mencionam a existência de dados referentes a um Giovanni Pietro Rizzo, documentado entre 1481 e 1500,16 que teria ligações com a Scuola de San Luca e o duomo de Milão. devido à precoce datação de suas atividades, neste caso Shell e Sironi excluem decisivamente a possibilidade de identificação com Giampietrino, cujos trabalhos, segundo eles, são seguramente datados do Cinquecento. no entanto, por outro lado consideram que o “Gio Pedrino” citado por Ambrogio Mazenta17 como um dos discípulos de Leonardo da Vinci possa ser uma derivação de Giovanni Pietro, uma designação consideravelmente próxima à de Giovanni Pietro Rizzoli. os documentos analisados, referentes a Rizzoli, apresentam datações mais tardias, compreendidas entre 1508 e 1547, o que para Shell e Sironi poderia acusar uma relação maior 14 SHeLL, Janice; SiRoni, Grazioso. “Some documents for Giovanni Pietro Rizzoli: il Giampietrino?” in: Raccolta Vinciana. Fascicolo XXV. Milano: Castelo Sforzesco, 1993. 15 Para os documentos mais relevantes ver: MoTTA, e. “L’Università dei pittori milanese nel 1481”. in: Archivo Storico Lombardo, 1895, p. 413. / SHeLL, Janice. “The Scuola di San Luca, or Universitas Pictorum, in Renaissance Milan”. in: Arte Lombarda, 104, 1993/1, p. 89-91. / Archivo di Stato di Milano, Fondo notoriale, not. Benino Cairati, f. 2.186, 15 February, 1489. / Annali del duomo di Milano, iii, Milan, 1880, p. 75. 16 “There was a ‘real’ painter named Giovanni Pietro Rizzo, who can be documented between 1481 and 1500 or thereabouts. Rizzo’s name appears in a procura executed for the Scuola di San Luca in 1481; in 1489 he took an apprentice; in 1493 did work for the fabbrica of the Milan duomo”. in: SHeLL, Janice; SiRoni, Grazioso. “Some documents for Giovanni Pietro Rizzoli: il Giampietrino?” in: Raccolta Vinciana. Fascicolo XXV. Milano: Castelo Sforzesco, 1993, p. 132. / “existiu um pintor ‘de verdade’ nomeado Giovanni Pietro Rizzo, que pode ser documentado entre 1481 e 1500 aproximadamente. o nome Rizzo aparece na procura da fabbrica do duomo de Milão”. (Tradução livre da autora) 17 Le Memories su Leonardi da Vinci di don Ambrogio Mazenta ripubblicate ed illustrate da d. Luigi Gramatica, Milan, 1919, p. 18.

RHAA 14

63


Fernanda Marinho com Giampietrino. A primeira notícia documentada, datada de 1508, menciona o seu aprendiz Ugo da Faiate, para quem pagava 15 scudi, além de fornecer hospedagem e alimentação, durante um ano de trabalho (um preço acima da média, o que poderia nos levar a cogitar que seu discípulo já havia tido experiências como pintor anteriormente). Há registros também de outro discípulo, Giovanni Francesco Boccaldoli, que em 1517 teria efetuado uma queixa ao seu mestre a respeito do atraso de seu pagamento, além de ter que lhe fornecer seis tonéis de vinho regularmente. os documentos, de modo geral, nos dão a impressão de que Giampietrino possa ter tido uma vida economicamente confortável, pois além da presença de dois discípulos, em 1509 teria comprado dos monges de San Pietro em Gessate a paróquia de San Protásio pelo custo de 2.350 liras, apesar de ter morado com seu pai, Galeazzo, na paróquia de São Tommaso, em Porta Cumana até pelo menos 1511. desse mesmo ano existe um protesto assinado por ele contra a Scuola di San Luca. Há, portanto, aqui uma primeira coincidência entre os nomes de Giovanni Pietro Rizzo e Rizzoli: ambos mostram relações com a Scuola. e junto a esta evidência soma-se o contrato da oficina do Duomo de Milão em 1533, que encomendaria a Rizzoli uma série de cartões para a execução de tapeçarias destinadas à representação da vida da Virgem, o que seria uma segunda coincidência, se lembrarmos da participação de Giovanni Pietro Rizzo nesta oficina em 1493. Shell e Sironi também apontam um vínculo entre Rizzoli e a ordem dos Hieronimitas da igreja de San Cosmo e damiano, corroborado por dois testemunhos dados por ele a respeito da comprovação de pagamentos efetuados pelo monastério, segundo os autores datados de 1515 e 1517. Sabe-se que para esta ordem trabalhou em duas encomendas: o retábulo da Virgem com Menino com São Jerônimo e São João Batista, para a igreja de San Marino em Pavia (Figura 2); e um tríptico Virgem com Menino, São Jerônimo, São João Batista, São Pedro e São Paulo, em ospedaleto Lodigiano (Figura 3). Possivelmente Giampietrino era contratado pela ordem, o que leva Shell e Sironi a cogitarem uma ligação com Angelico Marliani, um dos monges do Castellazo, em cujo refeitório se encontrava a Última Ceia, destruída em 1943 e atribuída hoje a Giampietrino (relacionando-o desta vez a Rizzoli). no entanto, como Motta nos descreve abaixo, a relação entre a ordem Hieronimita e Giampietrino pode ampliar nossas considerações a respeito da identificação de Rizzoli com Rizzo, o primeiro nome descartado pelos autores como possibilidade de aproximação ao nosso artista de interesse: 64

RHAA 14

barrels of wine regularly. The documents generally give us an overall impression that Giampietrino may have had a financially comfortable life. Beyond the presence of two students, in 1509 he bought the parish of San Protásio from the monks of San Pietro in Gessate, for 2350 liras, despite having lived with his father Galeazzo in the parish of San Tommaso, in Porta Cumana, until at least 1511. in the same year there was a protest signed by Giampietrino against the Scuola di San Luca. That being said, we can see here a first match between the names of Rizzo and Giovanni Pietro Rizzoli: both show a connection with the Scuola. Add to this evidence an agreement, made in 1533, between the Milan´s Cathedral workshop and Rizzoli, in which the Cathedral ordered a series of cards for the production of tapestries for the representation of the Virgin´s life. That would be a second coincidence, if we remember Giovanni Pietro Rizzo was part of this workshop in 1493. Shell and Sironi also show a link between Rizzoli and the Hieronymites order of the church of San Cosmo e damiano corroborated by two statements given by Rizzoli about the proof of payments made by the monastery, according to the authors dated of 1515 and 1517. it is known that he worked for the order of the Hieronymites in two projects: the altarpiece of the Virgin and Child with St. Jerome and St. John the Baptist, for the church of San Marino in Pavia (Figure 2) and a triptych Madonna and Child, St. Jerome, St. John the Baptist, St. Peter and St. Paul, in ospedaleto Lodigiano (Figure 3). Giampietrino was possibly hired by the order, which leads Shell and Sironi to wonder about a link with Marliani Angelico, one of the monks of Castellaz, in which dining room was the Last Supper, destroyed in 1943 and attributed today to Giampietrino (now relating his name to Rizzoli´s). However, as Motta described below, the relationship between the Hieronymite order and Giampietrino can expand our considerations about the identification of Rizzoli with Rizzo, the first name disregarded by the authors as a possible connection with the artist of interest: L’università o scuola de Milano, come quelle di Cremona e d’altre città d’italia, era sotto la protezione di San Luca evangelista e radunavansi e di lei affigliati nella chiesa dei SS. Cosma e damiano, dappoi


A Virgem de Giampietrino no MASP trasformata in teatro, e nota ancora più per la belissima porta verso via Filodramatici.18

Given the proximity between the school and the order, we can ponder that Rizzo of the end of the fifteenth century would not be far from Rizzoli of the beginning of the next century, since according to the documents examined by the two authors the the church of San Cosmo e damiano was the church of the order of the Hieronymites. That is where, as we see in the quote above, the Scuola di San Luca was situated. The connection between these names gets narrower, making it difficult to deny any identification between them. despite the fact that such references are at least twenty-six years distant from each other (between the first date related to Rizzo, 1482, and the first date related to Rizzoli, 1508), we are more and more inclined to approach them. Although she does not mention Rizzo, Cristina Geddo presents us with a document that can help argue for this reason: the annual income record of residents of Milan, created by a Senate´s decree between 1524 and 1529, where is written “Porta Cumana Holy Protasio the Monacho / Jo Magistro. Pietro Rizzoli depentore - ducati 250”19, without any reference to any other painter of similar name. Shell and Sironi point out that the latest documentation reviewed indicates a positive career, because Rizzoli in 1537 would have been part of a group of consultants from the duomo, among two other artists, niccolò Appiani and Cristoforo Bossi. in the same year Rizzoli assessed in 25 to 30 scudi the commission payment of the fellowship of the church Santa Maria in Savona, to the sculptor Andrea Corbetta and in 1543, he partnered with the merchant Alessandro Bizozeri in order to buy goods

18 MoTTA, emilio. “L’università dei pittori Milanese nel 1481 con alter documenti d’arte del Quattrocento”. in: Archivo Storico, 1895, p. 409. / “The University and School of Milan, like that of Cremona and other cities in italy, was under the protection of the Saint Luke and it was located next to the church of San Cosmo e damiano, which was transformed into a theater and then got even more distinct by the beautiful gate at Filodramatici Street”. 19 Archivo Storico Cívico di Milano. Famiglie, cart 1629: estimo. Rubrica de’ S.S.Reddituarii Abitanti nelle Parrocchie di Milano e loro entrate in ragione di ducati annui, 1524-1529, f. 224 v. Publicado e comentado em: Geddo, Cristina. “La Madonna di Castel Vitone del Giampietrino”. in: PedReTTi, Carlo. (org.) Achademia Leonardi Vinci. Journal of Leonardo Studies & Bibliography of Vinciana. Vol. Vii. Florença: Giunti, 1994, p. 57-67. / “Porta Cumana Sam Protásio at Mônaco / Master Jo. Pietro Rizzoli painter – 250 ducados”.

L’università o scuola de Milano, come quelle di Cremona e d’altre città d’italia, era sotto la protezione di San Luca evangelista e radunavansi e di lei affigliati nella chiesa dei SS. Cosma e Damiano, dappoi trasformata in teatro, e nota ancora più per la belissima porta verso via Filodramatici.18

Sabendo desta proximidade entre a escola e a ordem, ponderamos cada vez mais ser possível pensar que Rizzo do final do século 15 não estaria muito distante de Rizzoli do início do século seguinte, uma vez que segundo os documentos analisados pelos dois autores em questão a igreja da ordem Hieronimita era a de San Cosmo e damiano, onde, como percebemos na citação acima, localizava-se a Scuola de San Luca. Cada vez mais as relações entre estes nomes se estreitam, dificultando que neguemos alguma identificação entre eles. Apesar de se tratar de referências de pelo menos 26 anos de diferença (entre a primeira data relativa a Rizzo, 1482, e a primeira a Rizzoli, 1508), estamos cada vez mais inclinados a aproximá-los. Apesar de não mencionar Rizzo, Cristina Geddo nos apresenta um documento que pode nos ajudar a argumentar a este favor: o registro de renda anual dos residentes de Milão, compilado pelo decreto do Senado entre 1524 e 1529, onde se escreve “Porta Cumana Santo Protasio a Monacho / Magistro Jo. Pietro Rizzoli depentore – ducati 250”,19 não mencionando outro pintor de nome parecido. Shell e Sironi destacam que as últimas documentações analisadas indicam uma positiva carreira profissional, pois em 1537 Rizzoli teria feito parte de um grupo de consultores do duomo, entre outros dois artistas, niccolò Appiani e Cristoforo Bossi. nesse mesmo ano teria avaliado entre 25 e 30 scudi o pagamento de uma encomenda da confraternidade da igreja de Santa Maria, em Savona, ao escultor Andrea Corbetta e em 1543, se associado ao comerciante Alessandro Bizozeri com a intenção de comprarem bens a serem vendidos fora da 18 MoTTA, emilio. “L’università dei pittori Milanese nel 1481 con alter documenti d’arte del Quattrocento”. in: Archivo Storico, 1895, p. 409. / “A Universidade ou escola de Milão, como aquela de Cremona e de outras cidades da itália, estava sobre a proteção de São Lucas evangelista e se localizava junto à igreja de São Cosme e damião, depois transformada em teatro, e distinta ainda mais pela belíssima porta da rua Filodramatici”. (Tradução livre da autora) 19 Archivo Storico Cívico di Milano. Famiglie, cart 1629: estimo. Rubrica de’ S.S. Reddituarii Abitanti nelle Parrocchie di Milano e loro entrate in ragione di ducati annui, 1524-1529, f. 224 v. Publicado e comentado em: Geddo, Cristina. “La Madonna di Castel Vitone del Giampietrino”. in: PedReTTi, Carlo. (org.) Achademia Leonardi Vinci. Journal of Leonardo Studies & Bibliography of Vinciana. Vol. Vii. Florença: Giunti, 1994, p. 57-67. / “Porta Cumana São Protásio em Mônaco / Mestre Jo. Pietro Rizzoli pintor – 250 ducados”. (Tradução livre da autora)

RHAA 14

65


Fernanda Marinho itália, principalmente na espanha.20 E por fim, em 1547, doaria a generosa quantia de 2.500 liras à sua filha Angélica em razão de seu casamento com Giovanni Francesco Sormani.

to be sold out of italy, mainly in Spain.20 Finally, in 1547, Rizzoli donated a generous 2500 lire to his daughter Angelica in reason of her wedding to Giovanni Francesco Sormani.

A maioria dos documentos existentes, como visto aqui, refere-se mais a Giovanni Pietro Rizzoli do que a Giovanni Pietro Rizzo. no entanto, ainda que escassas as evidências de um ponto comum entre eles, foi possível destacar algumas considerações, que pelo menos não descartam a possibilidade de estarmos nos referindo à mesma pessoa. Para nos ajudar a acreditar que nestes casos analisados nos referíamos a Giampietrino somam-se a estes documentos outras evidências, como o Codice Atlantico, de Leonardo da Vinci, no qual se encontra uma inscrição sua, datada entre 1497 e 1500, na qual podemos observar uma lista de cinco nomes, possivelmente relacionados à sua primeira oficina de Milão, onde entre eles encontramos o de “Gianpietro”.21 em 1584, em seu livro Vii do Tratado da Pintura22 Lomazzo refere-se a “Giovanni Pietro Rizzoli” como um dos discípulos mais famosos de Leonardo, e no apêndice deste mesmo livro – “tavola dei nomi de gl’artefici” – especifica que este é um “Pietro Riccio”, pintor milanês. Nesta referência percebemos que pareciam comuns tais variações do nome do artista, o que nos leva a cogitar que Pietro Riccio e Giovanni Pietro Rizzoli se tratavam de Gianpietro mencionado por Leonardo, uma designação muito mais próxima à de Giampietrino.

Most of the existing documents, as seen here, refer more to Giovanni Pietro Rizzoli than Pietro Rizzo. However, even limited evidence of a common point between them, it was possible to highlight some considerations, at least not disregard the possibility that we are referring to the same person. To help us believe that in the analyzed cases we are referring to Giampietrino, there are other evidence that can be added to the already existing documents. evidences like the Codice Atlantico of Leonardo da Vinci, where we can see a list of five names, dated between 1497 and 1500, possibly related to his first workshop in Milan, where we can find the name “Gianpietro”.21 in 1584, Lomazzo in his book Vii of the Treatise on painting22 refers to “Giovanni Pietro Rizzoli,” as one of the most famous disciples of Leonardo and in the appendix of the same book - “tavola dei nomi of gl’artefici” – he specifies that he is “Pietro Riccio,” a Milanese painter. This reference shows that these variations of the name of the artist were common, which leads us to wonder that Pietro Riccio and Giovanni Pietro Rizzoli were the Gianpietro, mentioned by Leonardo, a much closer variation to Giampietrino.

Levando em conta tais considerações, poderíamos assumir que a sua vida ativa teria sido iniciada pelo menos em 1481, por meio de alguma ligação com a Scuola di San Luca e que tenha permanecido vivo pelo menos até 1547, em razão do mais recente documento conhecido, o que compreenderia só neste período 66 anos de vida, sem contar com aproximadamente dez anos antes deste primeiro documento (uma faixa etária possível para um início de carreira). Se a data dos documentos realmente corresponder à época dos eventos que trata, este cálculo é razoável e podemos considerar que Giovanni Pietro Rizzo, Rizzoli ou Giampietrino tenha tido uma vida ativa bastante intensa e produtiva, de abundâncias econômicas e fama dentro de seu meio artístico. Segundo estes autores, no documento lê-se que Rizzoli teria investido 300 liras e Bizozeri 1.500. Além deste acordo, menciona-se também que o comerciante deveria treinar o filho de Rizzoli, Gerolamo, por cinco anos. 21 dA VinCi, Leonardo. Codice Atlantico. Volume iii; 264 rb, p. 713. Firenze: Giunti, 1973-80 (facsimile). 22 LoMAZZo, Giovanni Paolo. Tratatto dell’arte della pittura, scultura et architettura. Milão: P. G. Ponzio, 1585. 20

66

RHAA 14

Taking into account these considerations, one would assume that his active life would have started at least in 1481, through some connection with the Scuola di San Luca and that he remained alive at least until 1547. That is based on the latest known document totalizing until this time 66 years of life not counting about ten years before the first document (a reasonable age to start a career). if the date on the documents actually correspond to the time of the events in question, the calculation is reasonable and we can consider that Pietro Rizzo, Rizzoli or Giampietrino had a very intense and productive life with financial abundance and fame within his artistic milieu. it is important, however, to clarify that to take this connection to be true is still a dangerous position in the context of studies of this painter. Although we consider Shell´s opinion to be radical when he eliminates any possibility of identification of Rizzo with Giampietrino (leading us towards

20 According to those authors, in this document is read that Rizzoli would had invested 300 liras and Bizozeri 1500. Beyond this deal, it mentions also that the trader had to teach Rizzoli’s son during 5 years. 21 dA VinCi, Leonardo. Codice Atlantico. Volume iii; 264 rb, pg 713. Firenze: Giunti, 1973-80 (facsimile) 22 LoMAZZo, Giovanni Paolo. Tratatto dell’arte della pittura, scultura et architettura. Milão: P.G. Ponzio, 1585.


A Virgem de Giampietrino no MASP Pietro Marani´s opinion),23 we cannot adopt the exact opposite as a starting point for this research. However, it was possible to expand the field of research about this artist from the data so far uncontested. Let us start with the analysis of the painting of the church of Pavia. This work has been attributed to Bernardino Lanino (c. 1512 to 1581),24 Cesare da Sesto25 and Salai26 (c. 1480-1524) before Giampietrino, only in 1879,27 when studies about him began to grow. in its epigraph it can be seen an inscription about the request for the painting by Lodovica Colletti, in reason of the death of her husband, the hieronymite knight Giovanni Simone Fornari, who died in 1506, an early date for the painting (dated on the epigraph 1521). The involvement of Giampietrino with that family leads us to contemplate another possible relationship of the artist: Simone Fornari (the late Giovanni´s grandfather) was Galeazzo Maria Sforza´s adviser and he financed a considerable amount to Sforza, in 1475. in return for this service Fornari received

23 Marani in his article Per il Giampietrino: nuove analisi nella Pinacoteca di Brera e un grande inedito. in: Raccolta Vinciana, Facículo XXiii. Milano, Castelo Sforzesco, 1989, pg 33 a 55: “La Shell è scettica sulla possibilità di far concidere il ‘Gianpietrino’ citato da Leonardo com il Giovanni Pietro Rizzi di cui parla il Lomazzo e di collegare a questo le opere pittoriche che vanno sotto al nome del Giampietrino. Giovanni Pietro Rizzi è infatti l’artista che stipula un contratto nel 1481 con la Scuola di San Luca e che lavora per la Fabbrica del duomo di Milano nel 1493, date che sembrano troppo precocci rispetto alla cronologia tradizionalmente assunta per i dipinti del cosidetto Giampietrino. Tuttavia, l’appunto di Leonardo citato nella nota precedente, riferisce di un ‘Gianpietro’ vivente verso il 1497-1500 e che potrebbe proprio alludere, piu che al fantomatico Giampietrino, a Giovanni Pietro Rizzi”. (pg 34). / “Shell is skeptical about the possibility of matching ‘Gianpietro’ mentioned by Leonardo, with Pietro Rizzi mentioned by Lomazzo and to attribute to Lomazzo the pictorial works that are linked to the name of Giampietrino. Pietro Rizzi is actually the artist who stipulates a contract in 1481 with the Scuola di San Luca and who worked for the Fabbrica del duomo in Milan in 1493, date that seems too early regarding the traditional chronology related to the paintings of the so called Giampietrino. However, the indication of Leonardo cited in previous note refers to a Gianpietro who lived between 1497 and 1500 and could refer to, rather than the imaginary Giampietrino, to Giovanni Pietro Rizzi. (Free translation by the author) 24 Attribution firstly sugested by Franceco Bartoli, in 1777 and after registered in MALASPinA, Luigi. Guida di Pavia. Pavia, 1819. 25 MoRBio, Carlo. Storie dei municipi italiani illustrate com documenti inediti, notizie biobibliographiche e di Belle Arte, I, Milano, 1836, p. 128. 26 SACCHI, Defendente. “Appendice. Bibliografia”. Gazzetta Privilegiata di Mliano, v. 213, n. 31, jul. 1836, p. 837. 27 LÜBKE, W. Geschichte der Italienischen Malerei vom vierten bis ins sechzehnte Jahrhundert, II, Stuttgart, 1879, p. 448.

É importante, no entanto, esclarecermos desde já que assumir esta relação como verdadeira é ainda uma posição perigosa no âmbito dos estudos relativos a este pintor. Apesar de considerarmos a opinião de Shell radical quando elimina qualquer possibilidade de identificação de Rizzo com Giampietrino (nos aproximando assim mais a Pietro Marani),23 também não podemos adotar o radicalismo oposto como ponto de partida desta pesquisa. Contudo, foi possível ampliar o campo de investigação a respeito deste artista a partir de dados até agora não contestados. Comecemos, portanto, pela pintura da igreja de Pavia. esta obra já foi atribuída a Bernardino Lanino (c. 1512-1581),24 a Cesare da Sesto25 e Salai26 (c. 1480-1524), antes de Giampietrino, apenas em 1879,27 quando os estudos a seu respeito começaram a ser ampliados. A pintura de Pavia registra em sua epígrafe a inscrição a respeito de sua encomenda por Lodovica Colletti, em razão da morte de seu marido, o cavaleiro heronimitano Giovanni Simone Fornari, falecido em 1506, data precoce para a pintura (datada na epígrafe de 1521). o envolvimento de Giampietrino com esta família nos leva a cogitar uma outra possível relação do artista: Simone Fornari (avô paterno do falecido Giovanni) era conselheiro de Galeazzo Maria Sforza, tendo ainda Fornari Marani expõe sua opinião a respeito na segunda nota de seu artigo Per il Giampietrino: nuove analisi nella Pinacoteca di Brera e un grande inedito. in: Raccolta Vinciana, Fascículo XXiii. Milano, Castelo Sforzesco, 1989, pp. 33 a 55: “La Shell è scettica sulla possibilità di far concidere il ‘Gianpietrino’ citato da Leonardo com il Giovanni Pietro Rizzi di cui parla il Lomazzo e di collegare a questo le opere pittoriche che vanno sotto al nome del Giampietrino. Giovanni Pietro Rizzi è infatti l’artista che stipula un contratto nel 1481 con la Scuola di San Luca e che lavora per la Fabbrica del duomo di Milano nel 1493, date che sembrano troppo precocci rispetto alla cronologia tradizionalmente assunta per i dipinti del cosidetto Giampietrino. Tuttavia, l’appunto di Leonardo citato nella nota precedente, riferisce di un ‘Gianpietro’ vivente verso il 1497-1500 e che potrebbe proprio alludere, piu che al fantomatico Giampietrino, a Giovanni Pietro Rizzi”. (p. 34). / “A Shell é cética quanto à possibilidade de coincidir o ‘Gianpietro’ citado por Leonardo, com Giovanni Pietro Rizzi mencionado por Lomazzo e de relacionar a este as obras pictóricas que estão ligadas ao nome de Giampietrino. Giovanni Pietro Rizzi é na realidade o artista que estipula um contrato em 1481 com a Scuola di San Luca e que trabalhava para a Fabbrica do duomo de Milão em 1493, data que parece muito precoce em relação à cronologia tradicionalmente relativa às pinturas do chamado Giampietrino. Todavia, o apontamento de Leonardo, citado na nota precedente, refere-se a um Gianpietro vivo entre 1497 e 1500 e que poderia propriamente aludir, mais que ao imaginário Giampietrino, a Giovanni Pietro Rizzi.” (Tradução livre da autora) 24 Atribuição primeiramente sugerida por Francesco Bartoli, em 1777 e depois registrada em MALASPinA, Luigi. Guida di Pavia. Pavia, 1819. 25 MoRBio, Carlo. Storie dei municipi italiani illustrate com documenti inediti, notizie biobibliographiche e di Belle Arte, I, Milano, 1836, p. 128. 26 SACCHI, Defendente. “Appendice. Bibliografia”. Gazzetta Privilegiata di Milano, v. 213, n. 31, jul. 1836, p. 837. 27 LÜBKE, W. Geschichte der Italienischen Malerei vom vierten bis ins sechzehnte Jahrhundert, II, Stuttgart, 1879, p. 448. 23

RHAA 14

67


Fernanda Marinho lhe financiado uma considerável quantia em 1475. Em troca desse serviço, recebia proteção do governo Sforza, que foi estendida à sua família, e depois corroborada por Luís Xii, em 1500 durante o governo francês. Giovanni foi proclamado cavaleiro da ordem Hierosolimitana28 em 1494, na igreja de San Sepolcro em Jerusalém, na ocasião de uma viagem à Terra Santa, e posteriormente, em 1499, torna-se embaixador do rei francês.29 Cabe-nos questionar a razão do atraso registrado entre a morte do cavaleiro e a encomenda da pintura. Podemos considerar duas possibilidades: a ausência de Giampietrino para a sua execução, visto que no ano de 1506 muitos leonardescos milaneses ainda circulavam por outras rotas (o que também lhe conferiria considerável destaque entre os artistas da ordem Hierosolimita) ou então a probabilidade de a pintura ter sido destinada a outro artista, que por razões desconhecidas não a tenha executado, sendo assim transferida a Giampietrino. Shell30 analisou as corporações acadêmicas milanesas durante o Renascimento, especificamente aquela à qual o nome de Rizzo aparece atrelado nas documentações anteriormente mencionadas e também analisadas pela mesma autora. devido às escassas evidências que nos ajudem a entender o funcionamento da Scuola di San Luca, Shell amplia sua pesquisa por meio de estudos comparativos com outras organizações acadêmicas da época. Sabe-se que havia quatro tipos de corporações: Collegio, Scuole, Università e Paratico, que se diferenciavam por vezes a partir de suas representações diretivas, podendo estar mais coligadas ao governo ou à igreja. da Scuola di San Luca tem-se notícia de um processo datado de 1481,31 que sugere o encontro dos membros de sua corporação (contexto no qual se insere a primeira referência conhecida ao nome Giovanni Pietro Rizzo) para submeterem o status da Scuola ao duque, podendo desta forma, elevá-la ao status de Università. A respeito das regras Vale observar que esta ordem Hierosolimitana não é aquela anteriormente mencionada – ordem Hieronimita – da qual Rizzoli fez parte e que era sediada na igreja de San Cosma e damiano, como esclarecido por Luiz Motta. A primeira diz respeito aos fiéis naturais de Jerusalém, tendo São João Batista como seu principal protetor. Já a segunda representa os eremitas de São Jerônimo. Provavelmente Giampietrino também traçou vínculo com a Hierosolimitana, pelo que determinadas pinturas indicam, como esta de Pavia. 29 Geddo, Cristina. “La Pala de Pavia del Giampietrino: documenti sulla Committenza”. Bollettino della Società Pavese di Storia Patria. Como – Litografia. New Press, v. XLVii, n. XCV, 1995. 30 SHeLL, Janice. “The Scuola di San Luca, or Universitas Pictorum, in Renaissance Milan”. Arte Lombarda. Unione Stampa, Periódica Italiana, n. 104, 1993. 31 Ver documento 3, publicado em: SHeLL, Janice. “The Scuola di San Luca, or Universitas Pictorum, in Renaissance Milan”. Arte Lombarda. Unione Stampa, Periódica Italiana, n. 104, 1993, p. 89. 28

68

RHAA 14

protection from the Sforza government, favor that was extended to his family, and then confirmed by Louis Xii in 1500 during the French government. Giovanni was proclaimed a Knight of Jerusalemite28 in 1494, at the church of San Sepolcro in Jerusalem during a trip to the Holy Land, and later, in 1499, became ambassador of the French king.29 We must question the reason for the delay recorded between the death of the knight and the commission of the painting. We consider two possibilities: the absence of Giampietrino for its implementation, since the year 1506 many Leonardesque Milanese still circulated in other routes (which also would give him considerable prominence among the artists of the order of Jerusalemites) or the probability that the painting had been intended for another artist, who, for unknown reasons, did not do the work transferring the responsibility to Giampietrino. Shell30 reviewed academic Milanese corporations during the Renaissance, specifically the one to which the name of Rizzo had become associated in the documents previously mentioned. Because of little evidence to help us understand how the Scuola di San Luca was organized, Shell had to widen her research through comparative studies with other academic organizations of that time. it is known that there were four types of corporations: Collegio, Scuole, Università e Paratico, which sometimes differed from their representation policies and could be more related to the government or the church. The Scuola di San Luca is known about process dated 148131 that suggests a meeting of the members of this corporation (the context in which falls the first known reference to the name Pietro Rizzo) to submit the status of the Scuola to the duke and thus elevate it to the status of Università. Regarding the academic rules little is known, but according to the author, the workshops of the Scuola San Giuseppe

28 it is worth noticing that this order of Jerusalemite is not the one previously mentioned - order Hieronymite - which was part of Rizzoli and was based in the Church of San Cosma e damiano, as highlighted by Luiz Motta. The first one concerns to the true nature of Jerusalem, and St. John the Baptist as their main protector. The second one represents the Hermits of St. Jerome. Giampietrino probably also drew a link with Jerusalemite as the paintings indicate, like this of Pavia. 29 Geddo, Cristina. “La Pala de Pavia del Giampietrino: documenti sulla Committenza”. Bollettino della Società Pavese di Storia Patria. Como – Litografia. New Press, v. XLVii, n. XCV, 1995. 30 SHeLL, Janice. “The Scuola di San Luca, or Universitas Pictorum, in Renaissance Milan”. Arte Lombarda. Unione Stampa, Periódica Italiana, n. 104, 1993. 31 Ver documento 3, publicado em: SHeLL, Janice. “The Scuola di San Luca, or Universitas Pictorum, in Renaissance Milan”. Arte Lombarda. Unione Stampa, Periódica Italiana, n. 104, 1993, p. 89.


A Virgem de Giampietrino no MASP determined that the wood carvers were to meet at least five years prior experience with a master before enrolling at Scuola and the artists could only be hired under contract if they were enrolled. With this assumption, in order to consider that Giampietrino really worked for the order of Jerusalemites or other orders, we must believe that he graduated in some Scuola in Milan; and recalling the documents shown here, the relations between Giampietrino and the controversial Rizzo, linked to the Scuola di San Luca become narrower. Besides these evidences we can add a question: in the article Some documents for Giovanni Pietro Rizzoli, Shell and Sironi, when referring to the first document related thereto, dated 1508, stated: “At this time Rizzoli was unemancipated, and living with his father Galeazzo in the parish of San Tommaso in cruce sicariorum in Porta Cumana”.32 if we recall, this information about the address of the artist was first published by Motta in the 1481 list of claim of forty-eight names of artists of the Scuola, referring to it, as follows: “Mag Ioh. Petrus de Rixijs fil. Domini Autonij, P. Cum., paer S. Thomae in terra Mara. Lavorò al duomo di Milano nel 1492”.33 We realize that despite his radicalism in identifying both names, even Shell suggests an approach. We are about to consider, in this way, how such information, no matter how few they are, can

32 SHeLL, Janice; SiRoni, Grazioso. “Some documents for Giovanni Pietro Rizzoli: il Giampietrino?” in: Raccolta Vinciana. Fascicolo XXV. Milano: Castelo Sforzesco, 1993, p. 122. / “At this time Rizzoli was not yet independent, and lived with his father Galeazzo in the parish of San Tommaso in cruce sicaroirum in Port Cumana ‘. (Free translation by the author). in Shell and Sironi´s translation of the document in question (Archivi di Stato di Milano, fondo notarile, not. Battista Bossi, f. 3151), we find the term “emancipated”. Here we can consider the use of the term in relation to the connection between the artist and his father, once he does not have a home address, and not necessarily in relation to his age or professional reasons. The paper that follows (translated in note 35) suggests that Petrus Rixijs worked for the Cathedral of Milan in 1492, prior to the document that refers to his emancipation (1508). The document dated 1509 (see page 9) shows a reference to the purchase of the parish in Monaco, and it also states that even then the painter continued to live with his father until 1511. Finally, between the years 1524 and 1529 he is introduced Magistro. Jo Pietro Rizzoli (translated in note 21), giving him greater autonomy. 33 Annali, appen. ii, 218. Publicado e comentado em: MoTTA, emilio. “L’università dei pitori milanese nel 1481 con altri documenti d’arte del Quattrocento”. Archivo Storico Civico di Milano / “Mag. Ioh. Petrus de Rixijs, filho de domini Autonij, Porta Cumana, paer S. Thomae em terra Mara. Trabalhou no duomo de Milão em 1492”. (Tradução livre da autora).

acadêmicas pouco se sabe, mas segundo a autora, as oficinas da Scuola de San Giuseppe determinavam que os entalhadores de madeira devessem cumprir o mínimo de cinco anos de experiência prévia com algum mestre à sua matrícula na Scuola, e os artistas só poderiam ser contratados para um trabalho por encomenda caso estivessem matriculados. Partindo desse princípio, para que ponderemos que Giampietrino tenha realmente trabalhado para a ordem Hierosolimita ou mesmo em outras encomendas, devemos considerar que ele tenha se formado em alguma Scuola milanesa, e relembrando os documentos aqui expostos, estreitam-se as relações entre nosso artista de interesse e o polêmico Rizzo, atrelado à Scuola di San Luca. Além destas evidências, podemos adicionar um questionamento: no artigo Some documents for Giovanni Pietro Rizzoli, Shell e Sironi ao se referirem ao primeiro documento a ele relacionado, datado de 1508, declaram: “At this time Rizzoli was unemancipated, and living with his father Galeazzo in the parish of San Tommaso in cruce sicariorum in Porta Cumana”.32 Se recordarmos, esta informação a respeito do endereço do artista foi primeiramente publicada por Motta na lista de reivindicação de 1481, dos 48 nomes de artistas ligados à Scuola, referindo-se da seguinte forma: “Mag Ioh. Petrus de Rixijs fil. Domini Autonij, P. Cum., paer S. Thomae in terra Mara. Lavorò al duomo di Milano nel 1492”.33 SHeLL, Janice; SiRoni, Grazioso. “Some documents for Giovanni Pietro Rizzoli: il Giampietrino?” in: Raccolta Vinciana. Fascicolo XXV. Milano: Castelo Sforzesco, 1993, p. 122. / “nesta época Rizzoli ainda não era independente, e morava com seu pai, Galeazzo, na paróquia de San Tommaso in cruce sicaroirum em Porta Cumana.” (Tradução livre da autora). na tradução de Shell e Sironi do documento mencionado (Archivi di Stato di Milano, fondo notarile, not. Battista Bossi, f. 3.151), encontramos o termo “emancipado”. Podemos aqui considerar o emprego desta expressão em relação à ligação do artista com seu pai, por ainda não possuir um endereço próprio e não necessariamente em relação à sua idade, tampouco por razões profissionais. No documento que segue (traduzido na nota 35) sugere que Petrus de Rixijs trabalhou para o duomo de Milão em 1492, data anterior ao documento que se refere à sua emancipação (1508). no documento datado de 1509 (ver página 9) já encontramos a menção da compra da paróquia em Mônaco, onde também afirma que ainda assim o pintor continuou a morar com seu pai até 1511. E por fim, entre os anos de 1524 e 1529 é apresentado como Magistro Jo. Pietro Rizzoli (traduzido na nota 21), o que lhe confere maior autonomia. 33 Annali, appen. ii, 218. Publicado e comentado em: MoTTA, emilio. “L’università dei pitori milanese nel 1481 con altri documenti d’arte del Quattrocento”. Archivo Storico Civico di Milano / “Mag. Ioh. Petrus de Rixijs, filho de Domini Autonij, Porta Cumana, paer S. Thomae em terra Mara. Trabalhou no duomo de Milão em 1492”. (Tradução livre da autora) 32

RHAA 14

69


Fernanda Marinho Percebemos que apesar de seu radicalismo em identificar ambos os nomes, até mesmo Shell sugere uma aproximação dos dois. Vejamos, desta maneira, como tais informações a seu respeito, por mais escassas que sejam, podem ajudar a estudar a obra conservada no MASP.

A Virgem Amamentando o Menino e São João Batista em Adoração para Além do Leonardismo Lombardo A datação da pintura Virgem amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração, apontada entre 1500 e 1520 por Luiz Marques no Catálogo do MASP,34 é justificada pelo motivo desta obra não se tratar de uma “derivação stricto sensu” de Leonardo da Vinci. este arco temporal abarca um período milanês menos intenso na vida do mestre florentino, uma vez que depois de ter deixado a cidade em 1499, seus regressos tornaram-se mais esporádicos a partir de 1506, levantando assim a possibilidade de se tratar de uma época de contato menos efetivo entre o mestre e seu discípulo. Tal datação implica duas principais questões: o leonardismo evidente no qual a figura de Giampietrino é sempre pautada, adicionado a uma possível expansão das fronteiras pictóricas que considera novas articulações simbólico-formais traçadas pelo artista. os personagens da pintura do MASP parecem consistir em derivações de determinadas composições de Leonardo, principalmente da Virgem das Rochas (Louvre) que segundo Michael W. Kwakkelstein35 teria sido pintada a partir de modelos escultóricos de argila que possivelmente tornaram-se objetos de estudo de seu ateliê. A feição da Virgem, a posição de São João Batista e o gesto do Menino da pintura de Leonardo traçam fortes semelhanças com a do MASP. esta mesma proximidade formal aparece entre os demais leonardescos. nas representações do modelo do Menino, variando por vezes apenas o ângulo de seu posicionamento de acordo com a harmonia compositiva, podemos destacar a Madona com Menino, de Bernardino de’ Conti (Pinacoteca do Castelo Sforzesco); Madona com Menino, São João Batista e São Sebastião, de Boltraffio (Louvre); outra de mesmo tema e autoria, conservada em MARQUeS, Luiz. (coordenação geral). Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Arte italiana, 1998. 35 KWAKKELSTEIN, Michael W. “The use of sculptural models by Italian renaissance painters: Leonardo da Vinci’s Madonna of the Rocks reconsidered in light of his working procedures”. Gazette des Beaux-Arts. 6ème Période, Tome CXXXiii, 1999. 34

70

RHAA 14

help us study the work stored at the Art Museum of Sao Paulo - MASP.

The Virgin Nursing the Child and Saint John the Baptist in Adoration Beyond the Lombard Leonardism The dating of the painting Virgin nursing the child and St. John the Baptist in adoration between 1500 and 1520 indicated by Luiz Marques in the MASP Catalog34 is justified by the fact that the painting is not a “stricto sensu derivation” of Leonardo da Vinci´s work. This temporal arch covers a Milanese period less intense in the life of the Florentine master, since after leaving the city in 1499, his returns became more sporadic starting in 1506, raising the possibility that this is a time of less effective contact between the master and his disciple. The dating in question then implies two main issues: the clear leonardism where Giampietrino’s images are always based on, added to a possible expansion of pictorial borders that considers new symbolicformal articulations drawn by the artist. The characters in the painting at the MASP seem to consist of derivations of certain compositions of Leonardo, especially the Virgin of the Rocks (Louvre) that according to Michael W. Kwakkelstein35 was painted from models of clay sculptures that possibly became objects of study in his studio. The Virgin´s face, the position of St. John the Baptist and the Child´s gesture in Leonardo’s painting draw strong similarities with the one at the MASP. This same formal proximity appears among the other Leonardesque painters. in the model representations of the child, sometimes only varying the angle of his position according to the compositional harmony, we can highlight the Madonna with Child, by Bernardino de’Conti (Pinacoteca the Castle), Madonna with Child, St. John the Baptist and San Sebastian, by Boltraffio (Louvre), another of the same subject and author kept in Budapest (Szépmüvészti Múzeum), and also the Madonna and Child and St. John the Baptist, by Cesare da Sesto (national Museum of Ancient Art in Lisbon). The same formal allusion occurs with the Virgin, however, it seems to be limited to her facial features and hair, as noted in a study on silver tip from a woman’s head, attributed to Boltraffio

MARQUeS, Luiz. (coordenação geral). Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Arte italiana, 1998. 35 KWAKKELSTEIN, Michael W. “The use of sculptural models by italian renaissance painters: Leonardo da Vinci’s Madonna of the Rocks reconsidered in light of his working procedures”. Gazette des Beaux-Arts. 6° Période, Tome CXXXiii, 1999. 34


A Virgem de Giampietrino no MASP (Windsor Castle); in Study of head of a young woman, by Giampietrino (Gabinetto disegni and stampe degli Uffizi); or in two Madonnas by Boltraffio (national Gallery in London and Chatsworth). About the similarities found in the image of St. John the Baptist, it can be pointed Bernardino Luini´s work (national Gallery, London) and the painting in question here, attributed to Giampietrino. This painting gathers three models mentioned here: the feature of the Virgin and the design of her hair draw a direct reference to the Virgin of the Rocks (Louvre), by Leonardo, as well as the twisted gesture of the Child, despite being a little more laying down and the kneeling position of John the Baptist; describing a compilation of trends experimented by Leonardesques once the impact generated by this pictorial reference in Milan was established. Such similarities are in agreement with the dating by Luiz Marques as this painting presents an aesthetic aspect post 1480, since it already has considerable familiarity with the artistic novelties announced by Leonardo in the Milanese scene. What formal qualities, therefore, would approach the painting in question to the period from the turn of the century and the early decades of the Cinquecento? To help answer this question, it is worth drawing a comparison between the painting and a group of works attributed to Giampietrino and dated the same period: three of pagan themes - Leda (Staatliche Museen, Kassel - Figure 4); Ninfa Hegéria (Brive Sforza, Milan - Figure 5) and Sophonisba (Collection Borromeo, isola Bella), and two of religious themes - Madonna of the cherries (Rob Smeets Collection, Milan) and Madonna and Child (Galleria Borghese, Rome). From the first group we have strong references to Leonardo, starting with Leda, dated between 1505 and 1510,36 that does not deny being a variation of Ledas on their knees, by Leonardo (devonshire Collection, Chatsworth and Museum Boijmans Van Beuningen, Rotterdam), which showed similarities with compositional lines of Ninfa Hegéria, dated the same period. The female features of all four paintings discussed here (including in this first group the painting from the MASP) show strong similarity, as well as the brightness of the pigmentation of the flesh. The image of St. John the Baptist (MASP) could be replaced by any of Leda´s sons and the silver lining of the painting´s landscape suggests the setting where Leda and ninfa Hegéria meet. embedded in these compositions there is a clear knowledge of the expressive power of the characters´ looks proven in both the vector paths of the compositions of

36 SHeLL, Janice. “Marco d’oggiono”. in: The Legacy of Leonardo – Painters in Lombardy 1490-1530. Milano: Skira editore, 1998.

Budapeste (Szépmüvészti Múzeum); e também Madona com Menino e São João Batista, de Cesare da Sesto (Museu nacional de Arte Antiga de Lisboa). A mesma alusão formal ocorre com a figura da Virgem, no entanto, esta parece limitar-se mais aos seus traços faciais e seu cabelo, como notamos em um estudo em ponta de prata de uma cabeça de mulher, atribuído a Boltraffio (Windsor Castle). No Estudo de cabeça de uma jovem, de Giampietrino (Gabinetto disegni e stampe degli Uffizi); ou então em duas Madonas, de Boltraffio (National Gallery de Londres e Chatsworth). Quanto às semelhanças encontradas na figura de São João Batista, pode-se apontar a de Bernardino Luini (national Gallery, Londres) e a pintura atribuída a Giampietrino que aqui analisamos. esta, por sua vez, reúne os três modelos aqui mencionados: a feição da Virgem e o desenho de seu cabelo traçam uma referência direta à Virgem das Rochas (Louvre), de Leonardo, assim como a torção gestual do Menino, apesar de se encontrar um pouco mais deitado, e a posição ajoelhada de São João Batista, tratando-se, portanto, de uma compilação das tendências formais experimentadas pelos leonardescos depois de estabelecido o impacto gerado por esta referência pictórica em Milão. Tais semelhanças vão ao encontro da datação de Luiz Marques, uma vez que tal pintura apresenta uma carga estética pós 1480, uma vez que já possui uma considerável familiaridade com as novidades artísticas anunciadas por Leonardo no cenário milanês. Que qualidades formais, portanto, aproximariam a pintura em análise ao período compreendido entre a virada do século e as primeiras décadas do Cinquecento? Para ajudar a responder esta pergunta, vale traçar uma análise comparativa entre ela e um grupo de obras atribuídas a Giampietrino e datadas do mesmo período: três de motivos pagãos – Leda (Staatliche Museen, Kassel – Figura 4); Ninfa Hegéria (Brivo Sforza, Milão – Figura 5) e Sophonisba (Borromeo Collection, isola Bella); e duas de motivos religiosos – Madona das cerejas (Rob Smeets Collection, Milão) e Madona com Menino (Galeria Borghese, Roma). do primeiro grupo temos fortes referências a Leonardo a começar por Leda, datada entre 1505 e 1510,36 que não nega ser uma derivação das Ledas ajoelhadas de Leonardo (devonshire Collection, Chatsworth e Museum Boijmans Van Beuningen, Rotterdam), que também apontam semelhanças com os traços compositivos da Ninfa Hegéria, datada da mesma época. As feições femininas de todas as quatro pinturas aqui analisadas (incluindo neste primeiro grupo a pintura do 36 SHeLL, Janice. “Marco d’oggiono”. in: The Legacy of Leonardo – Painters in Lombardy 1490-1530. Milano: Skira editore, 1998.

RHAA 14

71


Fernanda Marinho MASP) apresentam forte semelhança, assim como o brilho da pigmentação da carne. A figura de São João Batista (MASP) poderia ser substituída por qualquer um dos filhos de Leda, assim como a fresta de paisagem desta mesma pintura parece anunciar a ambientação onde Leda e a ninfa Hegéria se encontram. Há embutido nestas composições um claro conhecimento da força expressiva dos olhares de seus personagens evidenciados tanto nos vetores traçados das composições de Kassel e do MASP, quanto na determinação do fixo olhar para nós, espectadores, notada também na de Kassel e da Brivo Sforza. enquanto deste primeiro grupo pudemos destacar relações mais ligadas às escolhas formais da composição, no segundo grupo vamos um pouco além principalmente por se tratar de obras religiosas de temáticas coincidentes. Todas as três demonstram elevada familiaridade com a simbologia do hortus conclusus,37 destacando a oposição das ambientações interna e externa por meio não apenas da presença da paisagem revelada pela janela ao fundo, mas sobretudo no investimento de uma interioridade quase uterina, marcada pela relação materna entre a Madona e o Menino envoltos por pesados drapejamentos do cortinado e de suas vestimentas. nas pinturas da Galeria Borghese e do MASP a representação da amamentação reforça esta ideia. em ambas o seio materno exposto por uma fenda do vestido introduz a temática da Virgo Lactans, extensamente explorada entre os leonardescos. no entanto, a paisagem da primeira em muito se difere da segunda, uma vez que aponta maiores referências à cultura figurativa do norte europeu devido a uma maior definição linear de suas formas, diferenciando com clareza cada elemento da paisagem, enquanto que a outra ainda está mais atrelada às úmidas perspectivas leonardescas. duas 37 A virgindade de Maria já consistiu em um tema bastante polêmico. nos evangelhos de Mateus, Marcos e João existem menções aos “irmãos” de Cristo, exemplificando como um deles o apóstolo Paulo. Poderíamos deduzir que Maria e José tiveram outros filhos depois da concepção de Jesus. No entanto, os evangelhos de Lucas e Mateus frisam a sua virgindade e a concepção espiritual de Cristo, o que levou a maioria dos primeiros mestres cristãos a concluir ser verdadeira a sua eterna castidade. Mas este argumento ainda não bastava, o que os levou a elaborar aprofundados estudos. Mas tal suporte bíblico não foi achado no novo Testamento, apenas no livro do Cântico dos Cânticos na seguinte passagem: “Hortus conclusus soror me sponsa, hortus conclusu fons signatus” . Tal versículo foi encontrado por São Jerônimo, um dos maiores estudiosos da bíblia, que rapidamente relacionou a ideia do jardim fechado à eterna virgindade de Maria. Santo Ambrósio também dedicou vários de seus escritos a este estudo, possuindo até mesmo um tratado chamado De Virginibus onde considera as seguintes virtudes da Virgem: “o segredo da modéstia, a bandeira da fé, o silêncio da devoção, a Virgem dentro de casa, a companheira para o mistério [de Cristo], a Mãe no templo”. Sabemos que este santo é o padroeiro da cidade de Milão, o que pode justificar as inúmeras pinturas que retratam a Virgem mais em ambientação interna do que externa, ou mesmo sugerindo a exterioridade deixando ainda mais fortalecida a simbologia do hortus conclusus, como na pintura do MASP.

72

RHAA 14

Kassel and the one at the MASP, and in determining the stare also noticed in Kassel and Brivo Sforza compositions. While in this first group we might highlight closer links to the choices of formal composition, in the second group we will go a bit further, especially as they are religious works of overlapping themes. All three showed a high familiarity with the symbolism of hortus conclusus37 highlighting the opposition of the internal and external environments not only through the presence of the landscape revealed by the window in the background, but especially on the investment of an almost uterine intimacy, marked by the maternal relationship between the Madonna and Child surrounded by heavy draperies from the curtains and their clothing. in paintings found at the Borghese Gallery and at the MASP the breastfeeding representation reinforces this idea. in both the mother’s breast exposed by a slit in her dress introduces the theme of Virgo Lactans, widely exploited among Leonardesque. However, the landscape of the first painting is very different from the second one, as it points to references of figurative culture in northern Europe due to a higher linear resolution of its forms, clearly differentiating each element of the landscape, while the painting found at the MASP is still tied to the humid leonardesque perspectives. Two other paintings of this artist help us further corroborate this dating: Madonna with Child, St. Jerome and St. John the Baptist (ospedaletto Lodigiano) and one of same theme found in the Church of San Marino in Pavia. The idea of interiority is further strengthened in the first

37 The virginity of Mary has already consisted a very controversial topic. in the Gospels of Matthew, Mark and John mention the existence of “brothers” of Christ, exemplifying Apostle Paul. We could deduce that Mary and Joseph had other children after Jesus’ conception. However, the Gospels of Matthew and Luke emphasize her virginity and spiritual conception of Christ, which led most of the early Christian masters to the conclusion to be true her eternal chastity. But this argument was not suffice, which led them to develop in-depth studies. But this biblical support was not found in the new Testament, only in the book Song of Songs in the following passage: “Hortus conclusus soror me sponsa, hortus conclusu fons signatus. This verse was found by St. Jerome, one of the greatest scholars of the Bible, which quickly linked the idea of the enclosed garden to the eternal virginity of Mary. St. Ambrose also devoted some of his writings in this study, including having a treatise called de Virginibus which considers the following virtues of the Virgin: “The secret of modesty, the flag of faith, the silence of devotion, the Virgin in the house, the companion to the mystery [of Christ], the Mother in the temple”. We know that this saint is the patron saint of Milan, which may explain the many paintings that depict the Virgin in ambiance more internal than external, or even suggesting the exterior surface further strengthened the symbolism of hortus conclusus, as in the MASP’s painting.


A Virgem de Giampietrino no MASP work mainly because of the scenic spatiality that is not limited to the polarity of inside vs. outside, highlighted by the investment on the tiles and the centralization of the window that announces the landscape composition, but also introduces an intermediary plan between these poles where it represents a ladder to the left and a tabernacle to the right. in the second work the scene is located on an external environment, however, there is an element of great importance: the curtain, that at the same time seems to protect the sacred characters and creates a more intimate and less exposed setting, hides the ruins of the pagan temple invaded by the Christian saints. in the ospedaletto Lodigiano painting the same green mantle involves the columns of the tabernacle, alluding to the idea of protection, a symbolism that is repeated in the painting at the MASP. it is known that the altarpiece of San Marino is dated 152138 and david Alan Brown approached ospedaletto Lodigiano in 1520,39 the same time as the painting of the MASP was inserted. Therefore, considering such issues and emphasizing the formal qualities of the painting in question, that presents relations focused on the experience accumulated from the novelties raised by the presence of Leonardo in Milan, as well as an announcement of the expansion of his artistic dialogues encouraged by the arising migration originated from the French invasion, we could say that the dating that seems more appropriate would be included in the final period of the temporal arch of the dating suggested by Luiz Marques, from 1520.

38 There is an inscription about the commission and its date in the epigraph at the bottom of the painting: “Quod vivis cedens and Joe (hannes) Simon Furnarius eques hierosol (imitanus) / extreme iniunxit vote piiss (iMo) eius coniux Lodovico Colleta / AC obsequentissimus filius Autonicus erect hoc sacello dicatoque / i for Virginia hac icona feliciter sacrosanctu (m) debitum / persolvebant / factum vides / 1521 die 21 december (ris)”. in: PReLLini, C. La chiesa di San Marino in Pavia. note storiche and descrittive. Appendice all’Almanacco Holy Pavese per l’anno 1882, page 30. According to Geddo, the epigraph explains that the painting was commissioned to absolve a testamentary provision of the knight Giovanni Simone Fornari, his wife Ludovica Colletti and their son Autonico, and put in place on december 21, 1521. 39 BROWN, David Alan. “Leonardo e i leonardeschi a Brera”. The Burlington magazine. Milan, 1987. Geddo, Cristina. “Le pale d’altare di Giampietrino: ipotesi per um percorso stilistico”. in: Arte Lombarda, 1992, 2, dates the same painting between 1516 and 1520, because according to the author the parish of ospedaletto Lodiginao, where the work is located, was built by the Balbi family between these years. The importance of this research is that this painting was probably executed before that of MASP, but not with too many years difference.

outras pinturas do artista nos ajudam ainda mais a corroborar essa datação: Madona com Menino, São Jerônimo e São João Batista (ospedaletto Lodigiano) e uma de mesmo tema da igreja de San Marino, em Pavia. A ideia de interioridade é ainda mais fortalecida na primeira obra, principalmente devido à espacialidade cênica que não se limita à polaridade do dentro × fora, marcada pelo investimento no ladrilhado e na centralização da janela que anuncia a paisagem na composição, mas introduz também um plano intermediário entre estes polos onde representa uma escada à esquerda e um tabernáculo à direita. na segunda obra a cena localiza-se em ambientação externa, no entanto, há um elemento de elevada importância: o cortinado, que ao mesmo tempo em que parece proteger os personagens sagrados criando uma ambientação mais intimista e menos exposta, esconde as ruínas do templo pagão invadidas pelos santos cristãos. na pintura de ospedaletto Lodigiano esta mesma cortina verde envolve as colunas do tabernáculo, aludindo à ideia de proteção, uma simbologia que se repete na pintura do MASP. Sabe-se que o retábulo de San Marino está datado de 1521,38 e david Alan Brown aproximou a pintura de ospedaletto Lodigiano à década de 1520,39 a mesma época que a pintura do MASP foi inserida. Considerando, portanto, tais questões e relevando as qualidades formais da pintura analisada, que apresenta tanto relações voltadas às experiências acumuladas a partir das novidades suscitadas pela presença de Leonardo em Milão, quanto um anúncio da expansão de seus diálogos artísticos incitados pelas migrações advindas com a invasão francesa, poderíamos dizer que a datação que nos parece mais apropriada estaria compreendida no período final do arco temporal de sua datação sugerida por Luiz Marques, isto é, a partir de 1520. 38 Há uma inscrição a respeito da encomenda e sua data na epígrafe na base da pintura: “Quod e vivis cedens Jô(hannes) Simon Furnarius eques hierosol(imitanus) / extremo iniunxit voto piiss(imo) eius coniux Lodovica Colleta / AC obsequentissimus filius Autonicus erecto hoc sacello dicatoque / dei parae Virgini hac icona feliciter sacrosanctu(m) debitum / persolvebant / factum vides / 1521 die 21 decemb(ris)”. in: PReLLini, C. La chiesa di San Marino in Pavia. note storiche e descrittive. Appendice all’Almanacco Sacro Pavese per l’anno 1882; p. 30. Segundo Geddo, a epígrafe explica que a pintura foi encomendada para absolver uma disposição testamentária do cavaleiro Giovanni Simone Fornari de sua mulher Ludovica Colletti e do filho Autonico, e posta no local em 21 de dezembro de 1521. 39 BROWN, David Alan. “Leonardo e i leonardeschi a Brera”. The Burlington magazine. Milan, 1987. Geddo, Cristina. “Le pale d’altare di Giampietrino: ipotesi per um percorso stilistico”. in: Arte Lombarda, 1992, 2, data a mesma pintura entre 1516 e 1520, pois segundo a autora a paróquia de ospedaletto Lodigiano, onde a obra se encontra, foi construída pela família Balbi entre estes mesmos anos. o que nos vale nesta pesquisa é ter em mente que esta pintura provavelmente foi executada antes daquela do MASP, mas sem muitos anos de diferença.

RHAA 14

73


Fernanda Marinho Mapeando mais cuidadosamente o contexto no qual a pintura do MASP se insere podemos perceber as mudanças que as qualidades formais de sua produção sofreram nesta época. Pretende-se aqui entender o enriquecimento da forma de Giampietrino a partir da crescente elaboração de uma maniera mais individual, menos pautada nas diretrizes de Leonardo da Vinci, naquela suposta padronização formal, já muito criticada entre os historiadores da arte modernos, provocada pelo impacto das novidades apresentadas pelo mestre florentino no meio milanês. É tentador assumir uma interpretação romântica desta vontade de superação da forma, de alargamento das fronteiras artísticas para além daquelas introduzidas pelo mestre, procurando referências externas ao seu cenário nativo. entretanto, não podemos esquecer que muitos dos diálogos traçados por Giampietrino, principalmente depois das invasões francesas, já haviam sido estabelecidos por Leonardo, e em virtude disso, ao se mudar para Milão levara consigo os resquícios desses contatos entranhados em suas obras. Paul Hills afirma em seu artigo Leonardo and Flemish Painting40 que desde as suas produções no ateliê de Verrocchio, da Vinci já havia estabelecido contato com outras culturas, exemplificando por meio da pintura Estigmatização de São Francisco (Philadelphia Museum of Art, Filadélfia), de Jan van Eyck (c. 1395-1441), cujas estratificações rochosas da paisagem teriam influenciado o Batismo de Cristo (Galleria degli Uffizi, Florença), ou então a assombrosa expressão de Lázaro (Gallerie degli Uffizi, Florença), de Nicolas Froment (c. 1435-1486) e a clara antecedência nórdica de seus estudos grotescos. esta obra, segundo Hills, teria sido levada à itália em 1462, como presente a Cosimo de Médici, possível ocasião em que Leonardo a teria visto. outra possível razão desta expansão formal de Giampietrino pode estar ligada às determinações dos encomendantes de suas pinturas, informações estas que desconhecemos por falta de documentações. no entanto, sabemos que as encomendas são destinadas a determinados artistas de acordo com suas habilidades, e por mais que Giampietrino tenha sido contratado a pintar novas temáticas e técnicas variadas das quais era acostumado a executar, provavelmente buscou modelos inspiradores às suas produções. e é nesta busca que repousa o interesse desta pesquisa, que permitiu a expansão da sua forma, e o colocou diante de tais novidades que aqui tratamos. 40 HiLLS, Paul. “Leonardo and Flemish Painting”. The Burlington Magazine, v. 122, n. 930, set. 1980, p. 608-615.

74

RHAA 14

Mapping more carefully the context in which the painting of the MASP is part of we can perceive the changes that the formal qualities of his production suffered in the period in question. This is to understand the enrichment of Giampietrino´s form, from the increasing development of a more individual maniera, less ruled by guidelines of Leonardo da Vinci, in that alleged formal standardization, highly criticized by the modern art historians, caused by the impact of novelties introduced by the Florentine master in the Milanese milieu. it is tempting to take a romantic interpretation of this desire to overcome the form of extension of the artistic boundaries beyond those introduced by the master, looking for references outside their native landscape. We must not forget, however, that many of the dialogues drawn by Giampietrino, particularly after the French invasion, had already been established by Leonardo and, for that reason, when he moved to Milan he took with him the remnants of these contacts ingrained in his works. Paul Hills in his article Leonardo and the Flemish Painting40 says that since his productions in the Verrocchio’ studio, Leonardo had already established contact with other cultures, which is exemplified by the painting Stigmatization of St. Francis (Philadelphia Museum of Art, Philadelphia), by Jan van eyck (c. 1395 to 1441). The rock strata of the landscape would have influenced the Baptism of Christ (Galleria degli Uffizi, Florence), or the haunting expression of Lazarus (Gallerie degli Uffizi, Florence), by Nicolas Froment (c. 1435 - c. 1486) and Leonardo´s clear nordic anticipation of grotesque studies. Jan van eyck’s work, according to Hills, would have been taken to italy in 1462 as a gift to Cosimo de Medici, possible occasion when Leonardo would have seen it. Another possible reason for this formal expansion of Giampietrino may be linked to the determinations of the commissioners of his paintings. information unknown, due to lack of documentation. However, we know that the commissions were destined for a number of certain artists according to their abilities and, as much as Giampietrino was hired to paint new themes and various techniques rather than the ones he was accustomed to, he probably sought inspiring models to his productions. it is in this quest that

40 HiLLS, Paul. “Leonardo and Flemish Painting”. The Burlington Magazine, v. 122, n. 930, set. 1980, p. 608-615.


A Virgem de Giampietrino no MASP lays the interest of this research, which allowed the expansion of his form and that put him in connection with those novelties. The flow of artistic languages between northern and southern europe was more intense since the fifteenth century, as well noticed by Maria Berbara about the huge impact that the production of Memling (ca. 1440 to 1494), Rogier van der Weyden, and Petrus Christus (c. 1410/20 - 1475/76) caused even “in an italy more deeply convinced of the firmness of its classical vocation”.41 it seems, therefore, that it was in accordance with this cultural climate that Giampietrino traced his formal choices, trying not to revolutionize the art scene in Milan, but to extract the most out of the contacts he had established. We can observe aspects of Nordic culture absorbed by Giampietrino probably not only from his own contacts, but mainly from Leonardo da Vinci´s works, already entrenched in the transit of these cultural languages. According to Shell to look at this formal nordic confluence in Lombard art, we can even go back to a period prior to the arrival of the Florentine master. She points out connections not only between artists from Milan and northern europe, but perceives that the court – then still under the Sforza dynasty -, was interested in the nordic culture: [...] flemish painting was far from unknown in Milan and Zanetto Bugatto, renowned as a portraitist, had studied in Brussels with Rogier van der Weyden. Some years earlier, around 1444, Francesco Sforza’s half brother Alessandro, Signore di Pesaro, had in fact commissioned a painting from the shop of van der Weyden. In the central panel of the Sforza Altarpiece are depicted Christ on the cross flanked by the Virgin and Saint John the evangelist; keeling in the foreground are Alessandro, Alessandro’s first wife Costanza, and Costanza’s brother Rodolfo Varamo. […] Antonello da Messina, who had a strong Flemish orientation, was highly regarded in Milan as well, so much so that an attempt was made to lure him to the city to replace Zanetto upon the latter’s death in 1475.42

41 BeRBARA, Maria. “Para enganar a vista exterior: um aspecto das relações artísticas entre itália, Portugal e os Países Baixos durante o Renascimento”. in: Anais ANPAP, 2007. Access in: <http://ppgartes.files.wordpress. com/2007/10/anpap.pdf>. 42 SHeLL, Janice. “Leonardo and the Lombard Traditionalists”. in: The Legacy of Leonardo – Painters in Lombardy 1490-1530. Milano: Skira editore, 1998, p. 83.

O fluxo das linguagens artísticas entre o norte e o sul da Europa intensificava-se desde o século 15, como bem reparado por Maria Berbara a respeito do enorme impacto que as produções de Memling (c. 1440-1494), Rogier van der Weyden e Petrus Christus (c. 1410/20-1475/76) causavam mesmo “em uma Itália cada vez mais profundamente convencida da solidez de sua vocação clássica”.41 Parece-nos ser, portanto, mais de acordo com este clima cultural que Giampietrino buscava traçar suas escolhas formais, procurando não revolucionar o cenário artístico milanês, mas sim extrair ao máximo dos contatos que estabelecia. Percebemos os aspectos desta cultura nórdica absorvidos por Giampietrino, provavelmente não apenas a partir de seus próprios contatos, mas principalmente das obras de Leonardo da Vinci, já entranhadas no trânsito destas linguagens culturais. Segundo Shell, para analisarmos esta confluência formal nórdica na arte lombarda, podemos remontar até mesmo a um período anterior à chegada do mestre florentino. Shell aponta vínculos não apenas entre artistas milaneses e do norte europeu, mas assinala o interesse da própria corte, na época ainda sob dinastia dos Sforza, pela cultura nórdica: [...] flemish painting was far from unknown in Milan and Zanetto Bugatto, renowned as a portraitist, had studied in Brussels with Rogier van der Weyden. Some years earlier, around 1444, Francesco Sforza’s half brother Alessandro, Signore di Pesaro, had in fact commissioned a painting from the shop of van der Weyden. In the central panel of the Sforza Altarpiece are depicted Christ on the cross flanked by the Virgin and Saint John the Evangelist; keeling in the foreground are Alessandro, Alessandro’s first wife Costanza, and Costanza’s brother Rodolfo Varamo. […] Antonello da Messina, who had a strong Flemish orientation, was highly regarded in Milan as well, so much so that an attempt was made to lure him to the city to replace Zanetto upon the latter’s death in 1475.42

BeRBARA, Maria. “Para enganar a vista exterior: um aspecto das relações artísticas entre itália, Portugal e os Países Baixos durante o Renascimento”. in: Anais ANPAP, 2007. Disponível em: <http://ppgartes.files.wordpress.com/2007/10/ anpap.pdf>. 42 “... a pintura flamenga estava longe de ser desconhecida em Milão e Zanetto Bugatto, famoso como retratista, estudou em Bruxelas com Rogier van der Weyden. Alguns anos antes, cerca de 1440, o meio irmão de Francesco Sforza, Alessandro, Senhor de Pesaro, encomendou uma pintura do ateliê de van der Weyden. No painel central do Retábulo Sforza estão retratados Cristo na cruz, ao seu lado, a Virgem e São João evangelista; ajoelhados em primeiro plano estão Alessandro, sua primeira mulher Costanza com seu irmão Rodolfo Varamo. “[...] Antonello da Messina que teve uma forte orientação flamenga, foi tão altamente estimado em Milão também, que tentaram seduzi-lo à cidade para substituir Zanetto até sua morte em 1475”. (Tradução livre da autora). SHeLL, Janice. “Leonardo and the Lombard Traditionalists”. in: The Legacy of Leonardo – Painters in Lombardy 1490-1530. Milano: Skira editore, 1998, p. 83. 41

RHAA 14

75


Fernanda Marinho Hills43 repara uma modificação da estrutura perspéctica de Leonardo, em Adoração dos pastores (Galleria degli Uffizi, Florença). os preceitos de Alberti44 de fixação do horizonte na altura dos olhos são abandonados, dando lugar a uma nova perspectiva mais panorâmica, permitindo-nos observar a Madona ao centro de corpo inteiro. A pintura do MASP repete esta estrutura, apesar de mais tímida, mas ainda assim retratando a Virgem da cabeça aos pés. no entanto, nesta pintura há um elemento que pode aproximar ainda mais seu autor às produções nórdicas. Sem assimilações precedentes a Leonardo, este elemento é quase como uma citação literal desta referência cultural, sendo executado com poucas modificações: a fresta da janela que introduz a paisagem do quadro. Sabemos que a controvérsia entre a prevalência da cor ou do desenho, como discutido acima, apareceu no Cinquecento sob diversos binômios, como mão × cérebro; matéria × intelecto; mundano × divino; e paisagem × figura. Dentro desta última os críticos da época dividiam os italianos como os mestres da representação de figuras, sendo a paisagem uma vocação flamenga, podendo ilustrar esta noção a seguinte frase de Lampsonius: “Própria Belgarum laus est bene pingere rura; Ausoniorum, homines pingere, sine deos. Nec mirum in capite Ausonius, sed Belga cerebrum, Non temere in gnaua sertur habere manu”.45 A importância da paisagem é inegavelmente considerável, e mesmo nesta aparente rivalidade com a figura, Giampietrino consegue investir em ambas as tradições: na pintura Sagrada Família (Pinacoteca Ambrosiana) há uma evidente alusão à Virgem das Rochas, de Leonardo e ao mesmo tempo uma experimentação desta paisagística nórdica de ricas cores e detalhes, assim como a Sagrada Família com São Roque e Anjos

Hills43 notices a change in the perspective structure of Leonardo in Adoration of the Shepherds (Galleria degli Uffizi, Florence). Alberti’s precepts44 of fixing the horizon at eye level are abandoned resulting in a new panoramic perspective, allowing us to see the Madonna in the center of the entire body. The painting of the MASP repeats this structure, although slightly, but still portraying the Virgin from head to toe. There is, however, one element in this painting that can approach its author to the nordic productions. no previous assimilations to Leonardo, this element is almost a verbatim quotation of cultural reference, running with a few modifications: a crack in the window that introduces the landscape of the picture. We know that the controversy between the prevalence of color or design, as discussed above, appeared in the Cinquecento in various binomials, such as hand × brain; material × intellect; mundane × divine and landscape × picture. Within the latter the critics of that time divided the italians as masters of image representation, being the landscape a Flemish vocation. illustrate this concept we can read the following phrase of Lampsonius: “Própria Belgarum laus est bene pingere rura; Ausoniorum, homines pingere, sine deos. Nec mirum in capite Ausonius, sed Belga cerebrum, Non temere in gnaua sertur habere manu”.45 The importance of the landscape is undeniable, and even with this apparent rivalry with the figure, Giampietrino invested in both traditions: the Holy Family painting (Pinacoteca Ambrosiana ) is an obvious allusion to the Virgin of the Rocks of Leonardo and at the same time an experimentation of this northern landscape of rich color and detail, as well as the Holy Family with St. Roque and Angels Musicians (Pinacoteca

HiLLS, Paul. 1980. These precepts are related to the foundation of linear perspective, as explained by BLUnT, Anthony. Artistic Theory in italy from 1450 to 1600. Translation: John Jr. Sao Paulo Moura: Cosac & naify, 2001, p. 26. “He even invented a device to record the appearance of such an intersection, that means, a connection that the painter situated between him and the object itself to be painted, and in which he could trace the precise contours that appeared through it. This idea of the pyramid that leads the eye to the object seen is the foundation of linear perspective, so much so that the connection of Alberti is just a method to register the right view of an object according to the linear perspective...” 45 “The glory of the Belgians is painting the fields, the italians, men and gods, which is why it is said, rightly, that the italian has a brain in his head, and the Belgian in their hands”. (Tradução Maria Berbara) in: BeRBARA, Maria. Anais AnPAP, 2007. 43

44

HiLLS, Paul. 1980. Tais preceitos referem-se ao fundamento da perspectiva linear, como explicado por BLUnT, Anthony. Teoria artística na itália 1450-1600. Tradução: João Moura Jr. São Paulo: Cosac & naify, 2001, p. 26. “ele até inventou um estratagema para registrar a aparência de uma tal interseção, ou seja, uma rede que o pintor situava entre ele e o próprio objeto a ser pintado, e na qual poderia traçar com precisão os contornos que surgiam através dela. essa ideia da pirâmide que conduz o objeto visto ao olho é o fundamento da perspectiva linear, de tal modo que a rede de Alberti é apenas um método para registrar a visão correta de um objeto de acordo com a perspectiva linear...” 45 “A glória própria dos belgas é bem pintar os campos; a dos italianos, homens ou deuses; é por isso que se diz, com razão, que o italiano tem o cérebro em sua cabeça, e o belga, em sua mão”: (Tradução Maria Berbara) in: BeRBARA, Maria. Anais AnPAP, 2007. 43 44

76

RHAA 14


A Virgem de Giampietrino no MASP Ambrosiana, Milan – 8) and the paintings of ospedaletto Lodigiano. in these instances, we can perceive Giampietrino familiarity with this subject, sometimes ranging between the investment of the Leonardesque sfumato applying a fading color to demarcate the distance of the plans, and this more typical technique of the nordic culture that seems not to differentiate the application of color according with the depth of the scene.

Músicos (Pinacoteca Ambrosiana, Milão) e na pintura de ospedaletto Lodigiano. nestes exemplos, percebemos a familiaridade de Giampietrino com o tema, variando por vezes entre o investimento do sfumato leonardesco que aplica um esmaecimento cromático ao demarcar o distanciamento dos planos e esta técnica mais própria da cultura nórdica, que parece não diferenciar a aplicação da cor de acordo com a profundidade da cena.

Although we believe that the career of Giampietrino has begun even before its activities with Leonardo da Vinci, probably around the 1480s, the first productions attributed to him are those that already indicate the contact between them. As seen, it is probable that the reason why his first known works date back only from the early sixteenth century was the teaching method used by his master. The relentless graphic productions were closer to consist of a moto mentale than simple schizzi,46 that is the drawings, most of them drawn in a point of silver, were not aimed solely to the refinement of the trace and calculation of proportions, but to the extent of the intrinsic form.47 These first activities of the workshop, therefore, were much focused on the studies of the charts that preceded any contact with brush on canvas. Thus, we can imagine that Giampietrino may have obtained at this early stage more contact with the drawing than with the color application techniques, by inserting it in the context of the Tuscan Vasarian idea of disegno as an intellectual practice. However, we see that the chromaticism in his productions will receive a new place, making the controversy between artists and theorists of the time, to coexist in the same work,

Apesar de considerarmos que a carreira de Giampietrino tenha começado antes mesmo de suas atividades com Leonardo da Vinci, provavelmente por volta da década de 1480, as primeiras produções a ele relacionadas são aquelas que já indicam o contato entre ambos. Como visto, é provável que a razão de suas primeiras obras conhecidas datarem apenas a partir do início do século 16 tenha sido o método de ensino aplicado pelo seu mestre. As incansáveis produções gráficas estavam mais próximas de consistirem em moto mentale do que em simples schizzi,46 ou seja, os desenhos, a grande maioria em ponta de prata, não se destinavam apenas ao refinamento do traço e do cálculo de suas proporções, mas sim, ao alcance da intrínseca forma.47 estas primeiras atividades do ateliê, portanto, estavam muito voltadas aos estudos gráficos que antecediam qualquer contato com pincel sobre tela. desta maneira, ponderamos que Giampietrino possa ter obtido nesta fase inicial um contato maior com o desenho do que com as técnicas de aplicação cromática, se inserindo mais no contexto toscano da ideia vasariana de disegno como prática intelectual. no entanto, perceberemos que o cromatismo receberá em suas produções um novo lugar, fazendo conviver na mesma obra a polêmica discutida entre artistas e teóricos do tempo, como

46 At the chapter “Leonardo’s Method for Working out Compositions”. In: Richard Woodfield (Ed.). The Essential Gombrich. London: Phaidon, 1996, Gombrich explains the compositional technique of Leonardo da Vinci from this fundamental concept of the moto mentale that prioritizes the outline of the form (schizzi) as creative incitation rather than aiming to achieve the perfect line, as shown in the folowing: “one can see that what matters to Leonardo is the moto mentale, and that even he occasionally resorts to a plain scrawl because his attention is not on the bellezza and bontà delle [...] membra. (GoMBRiCH, 1996, p. 215) / “it may be noted that what is important to Leonardo is the mental movement and that he still occasionally uses a full draft because his attention is not on the beauty and goodness of the members.” (Free translation by the author) 47 Gombrich, 1996, p. 220, introduces us to the concept of intrinsic form as a compromise that Leonardo determines between a good painter and forms of nature, and therefore, not considering that such drafts (schizzi) are sufficient as a source of inspiration in the creation, being combined with the knowledge of size and proportion from examples provided by nature.

46 No capítulo “Leonardo’s Method for Working out Compositions”. In: Richard Woodfield (Ed.). The Essencial Gombrich. London: Phaidon, 1996, Gombrich explica a técnica compositiva de Leonardo da Vinci a partir deste conceito fundamental do moto mentale que prioriza o esboço da forma (schizzi) como incitação criativa em vez de objetivar o alcance da linha perfeita, como segue no trecho: “one can see that matters for Leonardo is the moto mentale, and that he occasionally even resorts to a plain scrawl because his attention is not on the bellezza e bontà delle [...] membra”. (GoMBRiCH, 1996, p. 215) / “Pode-se notar que o que importa para Leonardo é o movimento mental e aquilo que ele ocasionalmente ainda recorre a um pleno rascunho porque sua atenção não está na beleza e bondade dos membros”. (Tradução livre da autora) 47 Gombrich, 1996, p. 220, nos apresenta o conceito da intrínseca forma como um compromisso que Leonardo determina entre um bom pintor e as formas da natureza, não considerando, portanto, que os tais rascunhos (schizzi) bastem como fonte inspiradora na criação, devendo ser, portanto, combinados ao conhecimento do tamanho e proporção dos exemplos que a natureza nos fornece.

RHAA 14

77


Fernanda Marinho Vasari,48 que dizia ser o desenho o pai das três artes, nomeando Michelangelo (1475-1564) seu maior realizador; e Lodovico dolce (1508-1568)49 um dos que defendiam a superioridade da cor devido à sua aproximação às nuances da natureza, elevando Ticiano à suprema expressão desta forma. Cristina Geddo50 esquematiza o desenvolvimento da forma de Giampietrino em três momentos fundamentais: o primeiro representado pelo tríptico de ospedaletto Lodigiano, situado até o segundo decênio do Cinquecento e ainda muito conectado a Leonardo e Marco d’oggiono; o segundo, pela pintura do altar da igreja de San Marino, em Pavia, a única obra datada do pintor, 1521, marcando o seu interesse pelas novidades trazidas por Cesare da Sesto; e o terceiro momento que se estende até o final da metade do século, apresentando uma volta às raízes leonardescas. o tríptico da primeira fase, atribuído a Giampietrino por Suida,51 é datado por Geddo entre os anos de 1516, quando a família Balbi construiu a VASARi, Giorgio. Le Vite dei più eccellenti pittori, scultori e architetti. edizione Giuntina, Capítulo XV, Volume V, p. 111. “Perchè il disegno, padre delle ter arti nostre architettura, scultura e pittura, procedendo dall’intelletto cava di molte cose un giudizio universale simile a una forma overo idea di tutte le cose della natura, la quale è singolarissima nelle sue misure, di qui è che non solo nei corpi umani e degli animali, ma nelle piante ancora e nelle fabriche e sculture e pitture, cognosce la proporzione che ha il tutto con le parti e che hanno le parti fra loro e col tutto insieme; e perchè da questa cognizione nasce un certo concetto e giudizio, che si chiama disegno, si può conchiudere che esso disegno altro non sia che una apparente espressione e dichiarazione del concetto che si ha nell’animo, e di quello che altri si è nella mente imaginato e fabricato nell’idea”. / “Porque o desenho, pai das nossas três artes, arquitetura, escultura e pintura, procedendo do intelecto extrai de muitas coisas um juízo universal parecido a uma forma, pode-se dizer de todas as coisas da natureza, a qual é muito semelhante nos seus tamanhos, do qual está não apenas nos corpos humanos e nos animais, mas nas plantas ainda e nas construções, esculturas e pinturas, conhece a proporção de tudo com as partes e das partes com o todo e tudo junto; e porque desta cognição nasce um certo conceito e juízo, que se chama desenho, se pode concluir que esse desenho não seja outra coisa que não uma aparente expressão e declaração do conceito que existe no ânimo, e daquele que outros se fazem na mente imaginados e fabricados na ideia.” Vasari, nesta parte do livro, analisa a importância do desenho nas três formas artísticas, argumentando que para a arquitetura é utilizado no projeto de construção, e por causa disso não é nada além de linhas, uma vez que a execução do projeto consiste em trabalho de carpinteiros e pedreiros e não de arquitetos; na escultura, o desenho permite a visualização dos diversos ângulos antes de iniciar a modelagem; e na pintura serve principalmente para contornar as figuras, dando-lhes relevo. 49 Lodovico dolce escreveu em 1557 O Aretino, um diálogo sobre a pintura considerado um dos primeiros textos a abordar os fundamentos da doutrina colorista, no qual explicitaria sua ideia a respeito da arte do colorido como o maior responsável pela expressão da carne, uma das mais difíceis representações. Ver A Pintura. Textos essenciais. Vol. 9: o desenho e a cor. Jacqueline Lichtenstein (direção). São Paulo: editora 34, 2006. 50 Geddo, in: Arte Lombarda, 1992. 51 SUIDA, W. E. Leonardo und sein Kreis. München, 1929, p. 213, 214, 301. 48

78

RHAA 14

like Vasari48 who said that drawing was the father of three arts, naming Michelangelo (1475-1564) its greatest director, and Lodovico dolce (1508-1568)49 one of those who defended the superiority of color due to its closeness to nature´s nuances, elevating Titian to the supreme expression of this form. Cristina Geddo50 outlines the development of Giampietrino´s form in three key moments: the first one represented by the triptych of Ospedaletto Lodigiano, situated up to the second decade of the Cinquecento and still very connected to Leonardo and Marco d’oggiono, the second one by the painting of the altar of Church of San Marino in Pavia, the only dated work of the painter, in 1521, marking his interest in the novelties brought by Cesare da Sesto, and the third moment that extends

VASARi, Giorgio. Le Vite dei Most Excellent Painters, Sculptors, and architetti. edizione Giuntina, Chapter XV, Volume V, p. 111. “Perchè il disegno, padre delle ter arti nostre architettura, scultura e pittura, procedendo dall’intelletto cava di molte cose un giudizio universale simile a una forma overo idea di tutte le cose della natura, la quale è singolarissima nelle sue misure, di qui è che non solo nei corpi umani e degli animali, ma nelle piante ancora e nelle fabriche e sculture e pitture, cognosce la proporzione che ha il tutto con le parti e che hanno le parti fra loro e col tutto insieme; e perchè da questa cognizione nasce un certo concetto e giudizio, che si chiama disegno, si può conchiudere che esso disegno altro non sia che una apparente espressione e dichiarazione del concetto che si ha nell’animo, e di quello che altri si è nella mente imaginato e fabricato nell’idea”... / “Because the design, the father of three arts, architecture, sculpture and painting, originating from the intellect extracts from several things a judgment similar to a form, you can say of all things in nature, which are very similar in their sizes, which are not only in human bodies and animals, but also in plants and buildings, sculptures and paintings, know the proportion of all parts and the parts with the whole and all together, and because of this cognition a certain concept and judgment are born, which are called drawing, one can conclude that this drawing is nothing but an apparent expression and declaration of the concept that exists in the mind, and that others are made in the mind conceived and manufactured in the idea”. Vasari, in this part of the book examines the importance of drawing in three artistic forms, arguing that for the architecture it is used in the construction project, and that makes it nothing but lines, since the implementation of the project is the work of carpenters and builders, not architects; in sculpture, the design allows the visualization of different angles before the artist starts modeling; in painting it serves mainly to contour the images, giving them relief. 49 Lodovico dolce wrote in 1557 The Aretino, a dialogue about painting considered one of the first texts about the fundamentals of the colorist doctrine, where he would explain his idea of coloring art as the biggest responsible for the expression of the flesh, one of the hardest representations a painter can do. See Painting. essential texts. Vol 9: The design and color. Jacqueline Lichtenstein (direction). São Paulo: editora 34, 2006. 50 Geddo, in: Arte Lombarda, 1992. 48


A Virgem de Giampietrino no MASP to the end of the half of the century, with his return to the leonardesque roots. The triptych of the first stage, attributed to Giampietrino by Suida,51 is dated by Geddo between the years 1516, when the Balbi family built the parish where the painting is,52 and in 1520, a year before the date of the painting of San Marino, in similar thematics. His leonardism, seconded by the author, is corroborated when we think of the feature of the Virgin of the Rocks and the playful relationship between the Madonna and child as noted in the Santa Ana studies (national Gallery, London). The central composition of the triptych still looks attached to a formal didacticism, as if the artist did not seek his examples in nature, but in his studio´s productive legacy. The landscape of the window detects that naive application of the technique, the deepness plans are excessively demarcated by different textures and linear settings, moving from the curly bush to the winding path that leads our eyes to a first sharper architecture than the second at the top culminating in the representation of the last mountain that emphasizes the Leonardesque sfumato. This landscape can be compared to Marco d’oggiono’s Crespi altarpiece, Madonna with Child, Angels Musicians, Saints and Donors, at Musée de Beaux-Arts (now loaned to the Louvre). The same ingenuity noticed at Giampietrino’s painting is perceived here. its natural or architectural components would appear to be consist more of pictorial exercises than elements that add narrative importance to the scene, besides its atmospheric perspective being still primary, with abrupt application not smooth. The second phase, represented by the Pavia’s painting shifts Giampietrino´s focus, according to Geddo, to Cesare da Sesto, to whose painting Madonna and Child, St. John the Baptist and St. George (Fine Arts Museums, Samuel H. Kress Collection, San Francisco) he establishes a direct dialogue. its landscapes are more integrated into the narrative of the scene and a maturity of his forms as well as the use of symbolism in his compositions are noticed. The third phase, called by the author as a time characterized by a return to the Leonardo roots, is also commented in Geddo´s article, which presents a new work attributed to Giampietrino, The entry into Jerusalem (private collection, last seen in an antiques market in Prato), about which she highlights: Il dipinto appare infatti sintomatico della difficoltà del pittore di innovare gli schemi di streto leonardismo

51 SUIDA, W.E. Leonardo und sein Kreis. München, 1929, p. 213, 214, 301. 52 AGneLLi, G. Lodi e il suo territorio nella storia, nella geografia e nell’arte. Lodi, 1917, p. 792.

paróquia onde a pintura se encontra,52 e 1520, um ano antes da datação da pintura de San Marino, de temáticas coincidentes. o seu leonardismo, destacado pela autora, é corroborado quando pensamos na feição da Virgem das Rochas e na relação lúdica entre a Madona e seu filho como notado nos estudos para a Santa Ana (National Gallery, Londres). A composição central do tríptico ainda se mostra presa a um didatismo formal, como se o artista não procurasse na natureza seus exemplos, mas sim no legado produtivo de seu mestre e ateliê. A paisagem da janela denuncia esta ingenuidade da aplicação da técnica, os planos de profundidade são excessivamente demarcados por diferentes texturas e definições lineares, passando do crespo arbusto, ao caminho sinuoso que conduz nossos olhares a uma primeira arquitetura mais definida que a segunda ao topo, culminando na representação da última montanha que enfatiza o sfumato leonardesco. A esta paisagem podemos comparar aquela do políptico de Crespi de Marco d’oggiono, Madona com Menino, Anjos Músicos, Santos e doadores, do Musée de Beaux-Arts (emprestada hoje ao Louvre). A mesma ingenuidade notada na pintura de Giampietrino é aqui percebida. Seus componentes naturais ou arquitetônicos parecem consistir mais em exercícios pictóricos do que em elementos que acrescentem importância narrativa à cena, além de sua perspectiva atmosférica ser ainda primária, de aplicação abrupta, pouco suave. A segunda fase, representada pela pintura de Pavia, desloca seu foco de atenção, segundo Geddo, para Cesare da Sesto, com cuja pintura Madona com Menino, São João Batista e São Jorge (Fine Arts Museums, Samuel H. Kress Collection, San Francisco) estabelece diálogo direto. Suas paisagens são mais integradas à narrativa da cena e percebemos um amadurecimento tanto da forma de Giampietrino quanto do uso da simbologia em suas composições. A terceira fase, assinalada pela autora como um momento caracterizado por uma volta às raízes de Leonardo, é comentada também em seu artigo que nos apresenta uma nova obra atribuída a Giampietrino, o ingresso em Jerusalém (acervo particular, vista pela última vez em um mercado de antiguidades em Prato), a respeito da qual destaca: Il dipinto appare infatti sintomatico della difficoltà del pittore di innovare gli schemi di streto leonardismo in cui se era formato,

52 AGneLLi, G. Lodi e il suo territorio nella storia, nella geografia e nell’arte. Lodi, 1917, p. 792.

RHAA 14

79


Fernanda Marinho ormai in via di superamento in una data che non devrebbe precedere il quarto decennio del Cinquecento, non potendo egli attingere alla cultura lombrada preleonardesca, evidentemente avvertita come arcaica per chi era cresciuto alla scuola del maestro fiorentino, e mantenendosi a distanza tanto dalla sintesi operata da Bernadino Luini quanto delle novità di Gaudenzio Ferrari.53

Segundo Geddo, esta dita falta de inovações, característica deste período, poderia ser identificada nesta pintura a partir da repetição de diversos elementos já conhecidos, como por exemplo, os gestuais e posições dos apóstolos da Última Ceia e a feição de Maria na pintura Adoração do Menino com São Roque em relação à mulher de chapéu vermelho. outro motivo da crítica da autora refere-se também à sua dificuldade em elaborar composições articuladas com muitas figuras. A grande maioria das pinturas de Giampietrino consiste em narrativas de poucos personagens, cenas mais íntimas e de interiores. nesta, entretanto, o confuso esquema de distribuição de personagens do qual Geddo se refere parece denunciar mais uma ansiedade do artista em capturar as grandes tendências pictóricas do que em fechar-se em um retorno dos esquemas de Leonardo, como assinalado pela autora. Podemos ponderar que Giampietrino pretendia compilar em uma mesma pintura tanto as práticas desenvolvidas junto ao mestre florentino, quanto absorver as novidades advindas com as composições do norte europeu, que agregam um grande número de personagens em um único foco narrativo cênico. Como exemplo, podemos pensar na produção de Hugo van der Goes, que Leonardo conheceu como Lamentação da morte de Cristo (Kunsthistorisches Museum, Viena) e Morte da Virgem (Groeninge Museum, Bruges), que organizam seus personagens voltados ao mesmo foco, o centro narrativo da obra, mas fornecendo a cada um deles uma importância rítmica na leitura da composição, diferentemente da organização apresentada nesta composição de Giampietrino. Tal esquematização da trajetória do pintor elaborada por Geddo nos ajuda a pensar melhor a localização temporal Geddo, Cristina. “Um inédito ‘ingresso a Gerusalemme’ del Giampietrino”. in: PedReTTi, Carlo. (ed.). Achademia Leonardi Vinci. Journal of Leonardo Studies & Bibliography of Vinciana. Volume X. Firenze: Giunyi Publishing Group, 1997, p. 215. / “A pintura parece de fato sintomática da dificuldade do pintor de inovar os esquemas de estreito leonardismo no qual se formou, já em via de superação em uma data que não deveria preceder o quarto decênio do Cinquecento, não podendo atingir a cultura lombarda pré-leonardesca, evidentemente percebida como arcaica por quem cresceu na escola do mestre florentino, e mantendo-se distante tanto da síntese operada por Bernardino Luini quando da novidade de Gaudenzio Ferrari”. (Tradução livre da autora)

53

80

RHAA 14

in cui se era formato, ormai in via di superamento in una data che non devrebbe precedere il quarto decennio del Cinquecento, non potendo egli attingere alla cultura lombrada preleonardesca, evidentemente avvertita come arcaica per chi era cresciuto alla scuola del maestro fiorentino, e mantenendosi a distanza tanto dalla sintesi operata da Bernadino Luini quanto delle novità di Gaudenzio Ferrari.53

This so-called lack of innovation, characteristic of this period, according to Geddo, could be identified in this painting from the repetition of many familiar elements, such as the gestures and positions of the apostles in the Last Supper and Mary´s feature in the painting Adoration of the Child with San Roque in relation to the woman in the red hat. Another reason for the author criticism refers also to the difficulty of elaborating compositions combined with many images. The vast majority of Giampietrino’s paintings consist of narratives with few characters, more intimate scenes and interiors. in this picture, however, the confusing distribution pattern of the characters which Geddo refers to, seem to denounce the anxiety of the artist to capture the major pictorial trends than closing on a return to Leonardo´s forms, as pointed by the author. We may speculate that Giampietrino intended to gather on the same painting the practices developed by the Florentine master, as well as to absorb the novelties arising with the compositions of northern europe, which add a large number of characters in a single scenic narrative focus. As an example, we can consider the production of Hugo van der Goes, known by Leonardo as Lamentation of the death of Christ (Kunsthistorisches Museum, Vienna) and The Virgin’s death (Groeninge Museum, Bruges), that organize the characters facing the same focus, the center of the narrative work, but giving each one an important rhythmic reading of the composition, unlike the organization presented in Giampietrino´s composition. This outline of the painter´s journey drawn by Geddo helps us think about the temporal location of the painting of the MASP. We have already

53 Geddo, Cristina. “Um inédito ‘ingresso a Gerusalemme’ del Giampietrino”. in: PedReTTi, Carlo. (ed.). Achademia Leonardi Vinci. Journal of Leonardo Studies & Bibliography of Vinciana. Volume X. Firenze: Giunyi Publishing Group, 1997, p. 215. / “The painting appears in fact symptomatic of the difficulty of the artist to innovate the Leonardim schemes in which he graduated, difficulty being overcome in a date that should not precede the fourth decade of the Cinquecento, not being able to achieve the pre-crop leonardesque, clearly perceived as archaic by who grew up in the Florentine´s master school, and staying away from both the synthesis powered by Bernardino Luini and the novelty of Gaudenzio Ferrari. (Free translation by the author)


A Virgem de Giampietrino no MASP discussed its characteristics after 1520 and here we see that the year 1540, approximate date of Entrance in Jerusalem, suggested by the author, would be advanced to the MASP painting. The restlessness of Giampietrino´s forms was not so pronounced, the assimilation of new art was still percolating in his compositions more smoothly through a controlled absorption of the technique and a more flexible improvement, an elaboration of graphic shape combined with the chromatic enrichment and the constant symbolic search beyond the boundaries set by Leonardo in Milan.

da pintura do MASP. Já analisamos suas características pós 1520, e aqui percebemos que o ano de 1540, data aproximada de ingresso a Jerusalém sugerida pela autora, seria avançada para a pintura conservada no acervo nacional. A inquietação das formas de Giampietrino ainda não estava tão acentuada, a assimilação das novidades artísticas ainda se infiltrava em suas composições de maneira mais suave por meio de uma absorção controlada da técnica e do seu aprimoramento mais flexível, uma elaboração gráfica da forma combinada ao seu enriquecimento cromático e às constantes buscas simbólicas para além das fronteiras estabelecidas por Leonardo em Milão.

As much as we feel that the MASP painting could be better placed in context from the second decade of the Cinquecento, this was not distant of the echoes of the cultural restructuring of the turn of the century. About Giampietrino we have no documentation that suggests he moved to another city or even traveled, accompanying his master or due to commissions. The only experiences outside Milan we know of are only in ospedaletto Lodigiano and in Pavia, where he did the paintings mentioned earlier; Savona when he supervised Andrea Corbetta´s work and Como, when, in 1517 he established contact with the abbot niccolò Lampugnano. However, to consider the possibility that he actually circulated on routes further away would not be an incoherent idea, since he does not deny strong influences of different visual sources and has probably enjoyed a rich and intense professional life. Add to these reasons the constant movement of Leonardesques, mainly during this phase of redefinition of the formal boundaries of Lombard artists in the new cultural scene which was being organized in Milan. We know, for example, that Boltraffio went to Bologna, Marco d’oggiono moved to his hometown Lecco and after to Savona, having worked before with Giovanni Agostino da Lodi (active from c. 1467 to 1524) in Venice between the years 1495 and 1504, Francesco napoletano (active between c. 1490 and 1520) also moved to the Venetian capital in 1501, besides Andrea Solarium who during the years 1507 and 1508 lived in France.54

Por mais que consideremos que a nossa pintura de interesse esteja mais bem inserida no contexto a partir da segunda década do Cinquecento, esta não estava distante dos ecos da então reestruturação cultural lombarda da virada do século. de Giampietrino não temos nenhum documento que sugira ter se mudado para outra cidade ou mesmo viajado, seja acompanhando seu mestre, seja por encomenda de trabalhos. Suas únicas experiências fora de Milão que se tem notícia são apenas em ospedaletto Lodigiano e na cidade de Pavia, onde executou as pinturas aqui referidas; Savona, quando supervisionou o trabalho de Andrea Corbetta; e Como, quando em 1517 estabeleceu contato com o abade niccolò Lampugnano. no entanto, ponderar a possibilidade de ter circulado por rotas mais distantes não seria uma ideia incoerente, uma vez que além de não negar uma forte influência de diversas fontes visuais, como aqui veremos, é provável que tenha usufruído uma rica e intensa vida profissional. A tais razões soma-se a constante circulação dos leonardescos, principalmente durante esta fase de redefinição das fronteiras formais dos artistas lombardos no novo cenário cultural que se organizava em Milão. Sabemos que Boltraffio, por exemplo, foi para Bologna; Marco d’oggiono mudou-se para sua cidade natal, Lecco, e posteriormente Savona, tendo antes disso trabalhado com Giovani Agostino da Lodi (ativo entre c. 1467-1524) em Veneza entre os anos de 1495 e 1504; Francesco napoletano (ativo entre c. 1490 e 1520) também se deslocou para a capital vêneta em 1501; além de Andrea Solário, que durante os anos de 1507 e 1508 encontrava-se na França.54

54 informations found at: BoRA, Giulio. “i leonardeschi a Veneza: verso la ‘maniera moderna’”. in: Leonardo e Venezia. Bonpiani, 1992.; MATTHEW, Louisa C. Esperienze veneziane si artisti nordici: annotazioni. in: Il Rinascimento a Venezia e la pittura del Nord ai tempi di Bellini, Dürer, Tiziano. A cura di Bernard Aikema, Beverly Louise Brown. Bonpiani, 1999.

Percebemos uma predileção destes artistas por Veneza, e esta escolha pode ser justificada pelo clima cosmopolita da 54 informações retiradas de: BoRA, Giulio. “i leonardeschi a Veneza: verso la ‘maniera moderna’”. in: Leonardo e Venezia. Bonpiani, 1992.; MATTHEW, Louisa C. Esperienze veneziane si artisti nordici: annotazioni. in: Il Rinascimento a Venezia e la pittura del Nord ai tempi di Bellini, Dürer, Tiziano. A cura di Bernard Aikema, Beverly Louise Brown. Bonpiani, 1999.

RHAA 14

81


Fernanda Marinho cidade,55 que fez Aikema e Louise Brown destacarem-na dentre as demais cidades italianas que também expandiram suas fronteiras culturais em relação aos contatos estabelecidos com os países do norte da europa: it is obvious that the interest in northern art was not a Venetian phenomenon [...] Throughout italy – Ferrara, Florence, Milan, Genoa and naples were the most important centers [...] All of the italian cities mentioned above had important economic ties with the major northern centers of commerce such as Bruges and Augsburg [...] during the Renaissance Venice was one of the largest city in europe and consequently one of the busiest centers for all levels of exchange, be they economic, cultural, or artistic. its strategic position between the north and the South as well the east and the West, made it a cosmopolitan center open to influences of the most varied kind.56

Tendo Milão se libertado havia dois séculos da dinastia dos Visconti seguida da dos Sforza, este destino parecia tentador. Tal migração, contudo, já despontava mesmo antes de Leonardo abandonar a capital lombarda. Uma das primeiras viagens que se tem notícia é a de Andrea Solário, que em 1490 acompanhou seu irmão Cristoforo (ativo entre c. 1489-1520), onde lá permaneceram durante alguns anos, quando Andrea deixou trabalhos datados entre 1495 e 1496. este artista mostra uma experiência veneziana bastante intensa e, portanto, é a ele que a fase de amadurecimento de Giampietrino é constantemente associada, principalmente no que se refere ao crescente investimento cromático de suas composições, como percebemos ao aproximar Salomé (coleção privada de Londres) e Salomé com a cabeça de São João Batista (national Gallery, Londres) àquela de mesmo tema de autoria de Solário (Kunsthistorisches Museum, Viena). Uma relação ainda mais direta entre o nosso artista de interesse e Veneza é estabelecida a partir das pinturas 55 Este clima é justificado em LUCCO, Mauro. “La pittura a Venezia nel primo Cinquecento”. in: La Pittura in Italia. Il Cinquecento. Gregori Mina (cura). ed. electa. San Paolo, 1997, p. 149; quando caracteriza a cidade tanto por ser um importante polo comercial, quanto um centro de intensas circulações de artistas viajantes, exemplificando com o caso de Dürer. 56 AIKEMA; BROWN, 1999, p. 20 e 21 / “É óbvio que o interesse na arte do norte não foi um fenômeno veneziano [...] em toda itália – Ferrara, Florença, Milão, Genova e nápoles eram os centros mais importantes [...] Todas as cidades italianas citadas acima tiveram importância econômica ligada aos maiores centros de comércio do norte como Bruges e Augsburg [...] durante o Renascimento Veneza foi uma das maiores cidades na europa e consequentemente um dos centros mais ativos para todos os níveis de troca, seja econômico, cultural ou artístico. Sua posição estratégica entre o norte e o Sul como o oriente e ocidente, a tornou um centro cosmopolita aberto a influências dos mais variados tipos.” (Tradução livre da autora)

82

RHAA 14

We notice a predilection of these artists for Venice and the choice can be justified by the cosmopolitan atmosphere of the city55 that made Aikema and Louise Brown to highlight it among the other italian cities that also expanded their cultural boundaries in relation to established contacts with the countries of northern europe: it is obvious that the interest in northern art was not a Venetian phenomenon [...] Throughout italy – Ferrara, Florence, Milan, Genoa and naples were the most important centers […] All of the italian cities mentioned above had important economic ties with the major northern centers of commerce such as Bruges and Augsburg [...] during the Renaissance Venice was one of the largest city in europe and consequently one of the busiest centers for all levels of exchange, be they economic, cultural, or artistic. its strategic position between the north and the South as well the East and the West, made it a cosmopolitan center open to influences of the most varied kind.56

Since Milan had been released after two centuries of dynasties of Visconti and Sforza this destiny seemed tempting. This migration, however, began to dawn even before Leonardo abandoned the Lombard capital. One of the first known trips was Andrea Solarium’s, who in 1490 accompanied his brother Cristoforo (active from c. 1489 to 1520). They stayed for a few years and Andrea produced works dating from 1495 to 1496. This artist shows quite an intense Venetian experience and, therefore, Giampietrino´s maturity phase is constantly associated with Andrea´s work, regarding to the increasing investment in color of his compositions, as we see when approaching Salomé (private collection in London) and Salome with the head of John the Baptist (national Gallery, London) to the one of the same theme painted by Solario (Kunsthistorisches Museum, Vienna). An even more direct relation between Giampietrino and Venice is drawn on the paintings Sophonisba of his authorship (Museo Castelvecchio, Verona) and the one of Caroto (Isola Bella, Borromeo Collection). The influence is quite clear, what can differentiate them is the Lombard artist´s fascination in representing the nude, whether through nuances, more so for religious paintings, such as scenes of the Virgin

This city atmosphere is justified in LUCCO, Mauro. “La pittura a Venezia nel primo Cinquecento”. in: La Pittura in Italia. Il Cinquecento. Gregori Mina (cura). ed. electa. San Paolo, 1997, p. 149; when characterizes the city as an important industrial pole, and a center of intense circulations of travelers artists, exemplifying dürer. 56 AIKEMA; BROWN, 1999, p. 20 e 21. 55


A Virgem de Giampietrino no MASP breastfeeding the Child, as the one in the MASP, or even in profane themes, as in Leda (Staatliche Museen, Kassel), Ninfa Hegéria (Brive Sforza Collection, Milan) and Dido (Collection Borromeo, isola Bella). We know that in 1507 Caroto was in Milan, when the contact between them was probably established, however, Giampietrino´s painting is dated by art historians to the second decade of the Cinquecento, a distant period for a possible contact between these artists. That being said, we can contemplate two possibilities: even if he was in Milan at the same time, Giampietrino may have had a belated knowledge of the Venetian´s painting, or, more likely, only from 1520 he would begin to show a greater interest in other formal sources, other artistic natures, just when we consider the expansion of his artistic dialogues. The comparison between the two works helps us better understand how Giampietrino would be placed in the theoretical discussion of disegno and color once he combined the skills brought from Leonardo’ studio with these new absorptions. The intense draperies of Caroto share the scene with the character, they only suggest the body form denounced by Giampietrino. The color application of the Venetian composition helps getting the volumes, textures, depth, while the Lombard composition seems to invest more in developing graphical forms, the weight of the drapery, the limits of the images are still more highlighted by stronger lines than the brush. We observe here that Giampietrino’s interest in the Venetians palettes, although shy at execution, appeared to be in the process of assimilation. Let us draw a second comparison that can perhaps suggest an improvement: we will take as a reference a Venetian work, but an engraving, Diana the huntress (Fine Arts Museum, San Francisco), by Jacopo Veronesi (c. 1505-1565) dated 1526, which initially does not seem appropriate for the debate in question, since our focus is on the application of color. However, this comparative combination can help us understand the progress of Giampietrino’s color that seemed to have found in the engraving a creative stimulus for the implementation of his new palette, as shown in the painting displayed at the Metropolitan Museum of Art, new York. That strong linear outline present on Sophonisba is here diluted with a thicker brush, already investing in the rich details of the Venetian red, as in the not shy chromatic employment of color experienced by Bernardino Luini in the church of San Giorgio al Palazzo in Milan. The nude remains a characteristic, but if we compare it with those

Sophonisba, de Giampietrino (Museu Castelvecchio, Verona) e de Caroto (isola Bela, Borromeo Collection). A influência é bastante clara, no entanto o que a diferencia é este fascínio do artista lombardo pela representação do nu, seja ele por meio de nuances, mais no caso das pinturas religiosas, como as cenas de amamentação da Virgem, vide a do MASP que aqui estudamos, ou mesmo nos temas profanos, como em Leda (Staatliche Museen, Kassel), ninfa Hegéria (Brivo Sforza Collection, Milão) e dido (Borromeo Collection, isola Bella). Sabemos que em 1507 Caroto encontrava-se em Milão, quando provavelmente o contato entre ambos foi estabelecido. no entanto, a pintura de Giampietrino é datada pelos historiadores da arte à segunda década do Cinquecento, um período já distante deste possível contato entre tais artistas. Podemos, desta forma, cogitar duas possibilidades: ainda que estivesse em Milão na mesma época, Giampietrino pode ter tido um conhecimento tardio da pintura do veneziano, ou, mais provavelmente, apenas a partir de 1520 é que começaria a apresentar maior interesse por outras fontes formais, outras naturezas artísticas, justamente nesta época em que consideramos a expansão de seus diálogos artísticos. A comparação entre ambas as obras nos ajuda a melhor perceber como Giampietrino se situaria na discussão teórica do disegno e da cor, uma vez que passava a combinar os conhecimentos que trazia do ateliê de Leonardo a estas novas absorções. os intensos drapejamentos de Caroto dividem o protagonismo da cena com a personagem; eles apenas sugerem a forma corporal denunciada por Giampietrino. A aplicação cromática da composição veneziana ajuda na obtenção da volumetria, das texturas e da profundidade, enquanto que a lombarda parece investir mais na elaboração gráfica de suas formas e no peso do panejamento; os limites das figuras ainda são marcados mais por um reforço linear do que pela pincelada. Percebemos aqui que o interesse de Giampietrino nos intensos investimentos das paletas venezianas, ainda que tímido na execução, parecia encontrar-se em fase de assimilação na prática. Tracemos, portanto, uma segunda comparação que possa talvez sugerir um avanço: tomemos como ponto de referência ainda uma obra veneziana, no entanto uma gravura, diana caçadora (Fine Arts Museum, São Francisco), de Jacopo Veronesis (c. 1505-1565) datada de 1526, que inicialmente parece não ser apropriada para o debate em questão, já que estamos focalizados na aplicação da cor. no entanto, esta combinação comparativa pode nos ajudar a perceber os RHAA 14

83


Fernanda Marinho progressos cromáticos de Giampietrino, que pareceu ter visto na gravura um estímulo criativo para a aplicação de sua nova paleta, na pintura do Metropolitan Museum of Art, de nova iorque. Aquele forte esquema linear marcado na Sophonisba é aqui diluído em uma pincelada mais densa, já investindo nos ricos detalhes do vermelho veneziano, como naquele nada tímido emprego cromático experimentado por Bernardino Luini na igreja de San Giorgio al Palazzo, em Milão. o nu permanece característico, mas se compararmos este com aquelas demais representações profanas do início da carreira, ainda muito imbuídas no universo de Leonardo, notamos a abertura formal que Giampietrino se permitiu experimentar, que explora novas texturas, novas tonalidades da pigmentação da carne e uma renovada gama de cores vivas. Um novo interesse formal que o artista viria explorar de maneira peculiar como dito por Marani: A distanza di um secolo, quando sembra che tale attenzione per il “movimento” leonardesco nel suo complesso stia ravvivandosi ulteriormente, si va sottolinando anche l’alta qualità pittorica delle opere che vanno sotto al nome del Giampietrino, cercando di definirne le peculiarità: essa appare fondarsi sulla qualità diafana degli incarnati, stesi per finissime velature, sui tocchi evanescenti di rosa, sui riverbi che i panneggi rossi producono su mani e incarnati, recuperando una particolarità che già era stata del Bramantino, sulla constitenza trasparente della materia quando descrive rocce e paesaggi; questo stile pittorico, che s’avvale, nella scelta delle sue tipologie, di modeli vinciani, trova equivalente in certa produzione del Luini e di Giovanni Agostino da Lodi, che forse, talvolta supera, e nell’impostazione spaziale di Cesare da Sesto, cui talora il Giampietrino ricorre.57

devido a toda efervescência cultural que dominava Milão e a estas mudanças que despontavam na forma artística de Giampietrino, não podemos negar a sua inserção no quadro da polêmica discussão localizada entre as tradições florentinas,

other profane representations of the beginning of his career, still very much linked with Leonardo, we notice the novelties that Giampietrino was experimenting, by exploring new textures, new shades of the flesh´s pigmentation and a renewed range of colors. A new formal interest that the artist would explore in a peculiar way, as said by Marani: A distanza di um secolo, quando sembra che tale attenzione per il ‘movimento’ leonardesco nel suo complesso stia ravvivandosi ulteriormente, si va sottolinando anche l’alta qualità pittorica delle opere che vanno sotto al nome del Giampietrino, cercando di definirne le peculiarità: essa appare fondarsi sulla qualità diafana degli incarnati, stesi per finissime velature, sui tocchi evanescenti di rosa, sui riverbi che i panneggi rossi producono su mani e incarnati, recuperando una particolarità che già era stata del Bramantino, sulla constitenza trasparente della materia quando descrive rocce e paesaggi; questo stile pittorico, che s’avvale, nella scelta delle sue tipologie, di modeli vinciani, trova equivalente in certa produzione del Luini e di Giovanni Agostino da Lodi, che forse, talvolta supera, e nell’impostazione spaziale di Cesare da Sesto, cui talora il Giampietrino ricorre.57

Because of all the cultural effervescence which dominated Milan and all these formal changes that started to appear in Giampietrino’s art, we cannot deny his inclusion under the controversial discussion between the Florentine traditions, closer to his native school of thought, and the Venitian traditions that were presented as possibilities for renewal and expansion of their cultural boundaries. Giampietrino did both, trying to take from each of them the formal aspects that would enrich his productions. These dialogues seem to have yielded

MARAni, Pietro Carlo. “Per il Giampietrino: nuove analisi nella Pinacoteca di Brera e un grande inedito”. in: Raccolta Vinciana. Fasciculo XXiii. Milano: Castelo Sforzesco, 1989, pg. 35. / “distancing a century, when it seems that such attention given to the Leonardian movement is being revived, the high quality of pictorial works attributed to Giampietrino is also demonstrated trying to define his style: that appears to be based on the diaphanous quality achieved with the embodiment of a thin veiling of an evanescent touch of pink on the reverberations that red drapery produce in the hands and in flesh color, retrieving a feature that once was Bramantino´s on the transparent consistency of the matter when depicting rocks and landscapes; this pictorial style, which uses, in its choice of types of Vinciani models, is similar to certain productions of Luini and Giovanni Agostino da Lodi, perhaps surpassed time or another, and in the spatial placement of Cesare da Sesto, to which Giampietrino occasionally resorts to”. (Free translation by the author)

57

57 MARAni, Pietro Carlo. “Per il Giampietrino: nuove analisi nella Pinacoteca di Brera e un grande inedito”. in: Raccolta Vinciana. Fascículo XXiii. Milano: Castelo Sforzesco, 1989, p. 35. / “À distância de um século, quando parece que tal atenção pelo movimento leonardesco na sua totalidade estivesse se reavivando novamente, vai sendo evidenciada também a alta qualidade pictórica das obras atribuídas a Giampietrino, procurando definir sua peculiaridade: essa parece fundar-se sobre a qualidade diáfana dos encarnados alcançados com a finíssima veladura sobre o toque evanescente de rosa, sobre as reverberações que os panejamentos vermelhos produzem nas mãos e na cor da carne, recuperando uma particularidade que já foi de Bramantino, sobre a consistência transparente da matéria quando retrata rochas e paisagens; este estilo pictórico, que utiliza, na escolha das suas tipologias, dos modelos vincianos, encontra equivalência em certas produções de Luini e de Giovanni Agostino da Lodi, que talvez seja superada vez ou outra, e na impostação espacial de Cesare da Sesto, a que de vez em quando Giampietrino recorre.” (Tradução livre da autora)

84

RHAA 14


A Virgem de Giampietrino no MASP good results, since according to Bernard Aikema,58 Titian himself, the anchor of this aesthetic bias59 sought formal references in Giampietrino´s work, as pointed out here by the author, such as Mary Magdalene (Titian at the Palazzo Pitti, in Florence and Giampietrino from a Florentine private collection, but which copy, executed by the same author can be seen in the Hermitage Museum). The relation between these paintings, proposed by Aikema, is even more evident if we consider the one of same theme by Giampietrino, at the Mansi Collection, in Lucca. This tag provides a stronger bond with Titian’s, especially regarding what david Rosand calls “special genre that the artist (Titian) created for his contemporaries: a religious image, in the overt sensuality of its appeal, that devotional at once inspires and sustains delection”.60 The representation of the nude shows an increasingly solid feature tied to Giampietrino. The nudity of Hermitage’s Magdalenes and the ones in the Florentine´s private collection is more evident, more exposed. Her long hair has an important stage presence, but is still seen as a separate element of the body. on the other hand, the paintings of Titian (Palazzo Pitti) and Mansi Collection represent the naked body linked to the hair avoiding the exposure of the saint, almost like a blend of the flesh with her hair clusters, as seen in the representations of daphne when she turns into a laurel to escape Apollo. Aikema associates the work of the private collection to Santa Catarina also by Giampietrino, where the hair does not have the same role but the body expression is represented in the same fragile way with her hands covering her breasts alluding

AiKeMA, Bernard. “Titian’s Mary Magdalen in the Palazzo Pitti: an ambiguous painting and its Critics”. in: Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, v. 57, 1994, p. 43. “its nature becomes clear when we compare Titian’s figure with another half-length representation of Mary Magdalen, usually attributed to Leonardo da Vinci’s follower Giampietrino, wich may have served as Titian’s compositional prototype”. 59 This capital importance given to Titian as a representative color application in the discussion between disegno and color is very well explained in Painting. essential texts. Vol 9: The design and color. Jacqueline Lichtenstein (direction). São Paulo: editora 34, 2006, p. 23, as in the passage that follows, when referring to Aretino, by Lodovico Dolce: “When dolce exalts the color of Titian, he does so always praising his unique way of painting the flesh, of representing the tenderness and softness of a carnation to the point that their bodies give the impression to be moving, breathing, in short, to be alive: ‘This leg’, he writes about a subject on a Titian’s picture, ‘seems to be real flesh, not a painting’.”. 60 RoSAnd, david. Titian. new York, 1978, p. 106. 58

mais próximas à sua escola nativa, ao terreno mais conhecido e dominado, e as tradições venezianas, que se apresentaram como possibilidades de renovação, de expansão de suas fronteiras culturais. Giampietrino fez conviver ambas, procurando extrair de cada uma delas os aspectos formais que mais enriqueceriam suas produções. os diálogos que estabeleceu parecem ter-lhe rendido bons frutos, uma vez que segundo Bernard Aikema,58 o próprio Ticiano, âncora desta polarização estética,59 teria buscado referências formais nas produções de Giampietrino, como aquela que o autor destaca Maria Madalena (de Ticiano no Palazzo Pitti, em Florença e de Giampietrino em coleção privada florentina, mas cuja cópia executada pelo mesmo autor pode ser vista no Hermitage Museum). A relação que Aikema propõe entre estas pinturas é ainda mais evidente se pensarmos naquela de mesmo tema de Giampietrino, mas da Mansi Collection, de Lucca. esta sim, estabelece um vínculo mais intenso com a de Ticiano, principalmente no que diz respeito àquilo que david Rosand chama de “special genre that the artist (Ticiano) created for his contemporaries: a religious image, over in the sensuality of its appeal, that at once inspires devotional and sustains delection”.60 A representação do nu mostra-se cada vez mais uma sólida característica atrelada a Giampietrino. A nudez das Madalenas do Hermitage e da coleção privada de Florença é mais evidente, mais exposta. o seu longo cabelo assume uma importante presença cênica, mas ainda é visto como um elemento separado do corpo. Já nas pinturas de Ticiano (Palazzo 58 AiKeMA, Bernard. Titian’s Mary Magdalen in the Palazzo Pitti: an ambiguous painting and its Critics. In: Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Vol. 57, 1994, p. 48. “Its nature becomes clear when we compare Titian’s figure with another half-length representation of Mary Magdalen, usually attributed to Leonardo da Vinci’s follower Giampietrino, wich may have served as Titian’s compositional prototype”. / “Sua natureza fica clara quando comparamos a figura de Ticiano com outra representação do busto de Maria Madalena, normalmente atribuída ao seguidor de Leonardo da Vinci, Giampietrino, que deve ter servido de protótipo compositivo a Ticiano.” (Tradução livre da autora) 59 Esta capital importância dada à figura de Ticiano como representante da aplicação cromática na discussão entre disegno e cor é muito bem explicada em A Pintura. Textos essenciais. Vol. 9: o desenho e a cor. Jacqueline Lichtenstein (direção). São Paulo: editora 34, 2006, p. 23; como no trecho que segue, quando se refere ao Aretino, de Lodovico dolce: “Quando dolce exalta o colorido de Ticiano, o faz sempre elogiando sua maneira incomparável de pintar as carnes, de representar a delicadeza e a suavidade de uma carnação, a ponto de os corpos darem a impressão de se moverem, de respirarem, em suma, de estarem vivos: ‘essa perna’, escreve ele a propósito de uma figura de Ticiano, ‘parece ser de carne verdadeira, e não uma pintura’”. 60 RoSAnd, david. Titian. new York, 1978, p. 106. / “[...] gênero especial que o artista criou para seus contemporâneos: uma imagem religiosa, que evidencia sensualidade em sua aparência, inspirando devoção e deleite”. (Tradução livre da autora)

RHAA 14

85


Fernanda Marinho Pitti) e da Mansi Collection representam o corpo nu interligado aos cabelos que evitam a exposição da santa, quase como uma simbiose da carne com seus cachos, como nas representações de dafne quando se transforma em loureiro ao fugir de Apolo. Aikema associa a obra da coleção particular à Santa Catarina, também de Giampietrino, na qual os cabelos não cumprem o mesmo papel, mas a expressão do corpo aparece da mesma maneira frágil devido às suas mãos que tapam os seios, aludindo à busca de proteção. o brilho da carne nestas pinturas de Giampietrino já aponta um possível conhecimento do artista pela acurada técnica da aplicação cromática. Poderíamos, ainda, cogitar ter sido o seu gosto pela representação do nu um dos maiores fatores que o tenham levado a investigar as produções venezianas e seu detalhamento na construção pictórica dos corpos. este emprego cromático leva-nos a estabelecer outro vínculo formal, deslocando os diálogos de Giampietrino de Veneza para Ferrara, especificamente para o centro artístico no qual Garofalo (1481-1559) era atuante. Suas aproximações são bastante evidentes. Tomemos como exemplos iniciais duas pinturas, a Madona com Menino, de Garofalo (Louvre) e outra do mesmo tema de Giampietrino (Pinacoteca di Brera). nota-se que retratam momentos diferentes, mas a ambientação da cena é extremamente parecida, tanto na parte interna, demarcada pela presença do cortinado verde, quanto na paisagem construída por diferentes planos e cores que muito bem definem seus detalhes, como a vegetação, os personagens que se distanciam da cena principal, a presença de água e a úmida atmosfera empregada pelo típico sfumato de Leonardo. o desenho Virgem com Menino, São José e Santos (Museè Conde, Chantilly) do mesmo ferrarense aplica também o elemento da cortina sendo suspensa por anjos e atrelada ao cenário da paisagem, assim como vemos naquela de San Marino, de Giampietrino. não temos nenhuma pista a respeito de qualquer viagem do milanês a Ferrara. Mas sabemos, graças a Vasari, que Garofalo circulou bastante pela itália, tendo até residido em Roma por um tempo, onde entrou em contato com Rafael (1483-1520) e Michelangelo: Mandando poi l’anno 1505 per lui Messer ieronimo Sagrato, gentiluomo ferrarese, il quale stava in Roma, Benvenuto vi tornò di bonissima voglia e massimamente per vedere i miracoli che si predicavano di Raffaello da Urbino e della cappella di Giulio stata dipinta da Buonarroto. Ma giunto Benvenuto in Roma, restò quasi disperato, non che stupito nel vedere la grazia e la vivezza che avevano le pitture di Raffaello e la profondità del disegno di

86

RHAA 14

to a search for protection. The brightness of the flesh in these Giampietrino’s paintings already points to a possible knowledge of the artist about the technique of applying accurate color. We could even contemplate that his taste for the nude representation is one of the major factors that led him to investigate the Venetian productions and their pictorial detail of the construction of the bodies. This use of color leads us to make another formal dialogue shifting Giampietrino from Venice to Ferrara, specifically to the art center in which Garofalo (1481 - 1559) was active. Their similarities are quite obvious. Let us use first as examples two paintings, the Madonna with Child, by Garofalo (Louvre) and another of same theme by Giampietrino (Pinacoteca di Brera). note that they depict different moments, but the ambience of the scene is extremely similar, both on the inside, marked by the presence of the green curtain, and on the outside with the landscape built by different levels and colors that define their fine details, such as vegetation, characters that are distant from the main scene, the presence of water and the damp atmosphere employed by typical Leonardo´s sfumato. The drawing Virgin and Child, St. Joseph and Saints (Musee Conde, Chantilly – image 25) by the same Ferrarese artist also shows the curtain element being suspended by angels and tied to the landscape as we see in the San Marino’s painting by Giampietrino. There is no evidence about any trip the Milanese took to Ferrara. But we know, thanks to Vasari, that Garofalo circulated widely in italy, having lived in Rome for a while, where he made contact with Raphael (1483 - 1520) and Michelangelo: Mandando poi l’anno 1505 per lui Messer ieronimo Sagrato, gentiluomo ferrarese, il quale stava in Roma, Benvenuto vi tornò di bonissima voglia e massimamente per vedere i miracoli che si predicavano di Raffaello da Urbino e della cappella di Giulio stata dipinta da Buonarroto. Ma giunto Benvenuto in Roma, restò quasi disperato, non che stupito nel vedere la grazia e la vivezza che avevano le pitture di Raffaello e la profondità del disegno di Michelagnolo, onde malediva le maniere


A Virgem de Giampietrino no MASP di Lombardia e quella che avea con tanto stidio e stento imparato a Mantoa [...]61

in this passage Vasari relates the return of Garofalo to Rome, but his first visit to the city is also commented by him, which occurred in 1500. This elevation towards the art forms seen in Rome, raising in him a feeling of regret for not graduating from that school, earned him the nickname, according to Pouncey,62 “Rafael Ferrarese”. The raphaelesque’s memories were not limited to his experience from living in Rome, but remained rooted in his style throughout his career. in the painting Circumcision (Capitoline Museums, Rome) we can highlight the two images on the right side and one on the left side and compare them to the ones of same location in the painting School of Athens, at the Stanza della Segnatura, by Raphael (Vatican Museum, Rome). When we trace such art links we realize that even if Giampietrino did not have a direct professional relation with Garofalo or Raphael, or even with the nordic artists that were circulating in italy, among others possibly linked to his work, he was inserted in a time when the Lombard art was expanding its horizons, re-discovering new frontiers. A cultural opening that may have started with the Sforza dynasty itself by showing interest in Nordic art, but which was heavily influenced by the French invasion, leading to a much greater cultural contact with other parts of europe, and encouraging the artists to circulate by routes never explored. We must understand here not only how Giampietrino fit into this context but also, and mainly, how he acted in this scenario leading to new discoveries in his production and in the Milanese art in general.

Michelagnolo, onde malediva le maniere di Lombardia e quella che avea con tanto stidio e stento imparato a Mantoa [...]61

neste trecho Vasari relata a volta de Garofalo a Roma, mas a sua primeira visita à cidade também é comentada por ele, tendo ocorrido em 1500. esta exaltação com as manifestações artísticas lá vistas, suscitando-lhe ainda o referido sentimento de arrependimento por não ter se formado em tal escola, rendeu-lhe o apelido, segundo Pouncey,62 de “Rafael ferrarense”. As lembranças rafaelescas não se limitaram ao tempo de experiência de sua estada romana, mas permaneceram entranhadas em sua forma ao longo de sua carreira artística. na pintura Circuncisão (Museus Capitolinos, Roma) podemos destacar as duas figuras da lateral direita e outra da lateral esquerda em relação às da mesma localização da Escola de Atenas, da Stanza della Segnatura, de Rafael (Museu do Vaticano, Roma). Ao traçarmos tais vínculos artísticos percebemos que mesmo que Giampietrino não tenha tido uma relação direta de produção com Garofalo, Rafael ou com os artistas nórdicos que pela itália circulavam, entre outros possivelmente vinculados aos seus trabalhos, ele está inserido em um momento no qual a arte lombarda ampliava seus horizontes, redescobrindo novas fronteiras. Uma abertura cultural que talvez tenha começado com a própria dinastia dos Sforza ao demonstrar interesse pela arte nórdica, mas que foi profundamente influenciada pelas consequências da invasão francesa, suscitando tanto um maior contato cultural com outras partes da europa, quanto fazendo seus artistas circularem por rotas nunca exploradas. e cabe-nos perceber aqui não apenas como Giampietrino se inseriu neste contexto, mas também e principalmente, como atuou nele, provocando novas descobertas à sua produção e à arte milanesa em geral.

Translation: Fernanda Marinho Review: Carolina Felicissimo (carolinafelicissimo@gmail.com)

61 “Called after the year 1505 by Messer ieronimo Sagrat, Ferrarese noble, who was in Rome, Benvenuto returns especially to see the miracles that were announced about Raphael of Urbino and the Giulio Chapel painted by Michelangelo. When arrived in Rome, Benvenuto was almost desperate and surprised to see the grace and vivacity that the paintings of Raphael and the depth of the drawing by Michelangelo had, at that moment he regretted having learned from the Mantovani and Lombard school […]” in: Vasari, 2007, p. 1077. 62 PoUnCeY, Philip. “drawings by Garofalo”. in: The Burlignton Magazine, v. 97, n. 628, jul. 1995, p. 196.

61 “Convocado depois do ano de 1505 por Messer ieronimo Sagrato, nobre ferrarense, que estava em Roma, Benvenuto retorna de boa vontade e principalmente para ver os milagres que se anunciavam sobre Rafael de Urbino e da Capela de Giulio pintada por Buonarroti. Quando Benvenuto chegou a Roma, ficou quase desesperado e surpreso ao ver a graça e a vivacidade que haviam nas pinturas de Rafael e a profundidade do desenho de Michelangelo; naquele momento arrependeuse de ter aprendido na escola lombarda e mantovana [...]”. in: Vasari, 2007, p. 1077. 62 PoUnCeY, Philip. “drawings by Garofalo”. in: The Burlignton Magazine, v. 97, n. 628, jul. 1995, p. 196.

RHAA 14

87


Fernanda Marinho 1 Virgem amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração / Giampietrino / Museu de Arte de São Paulo (MASP - SP). Óleo sobre tela: 86 × 88 cm. 2 Madona com Menino, São Jerônimo e São João Batista / Giampietrino / San Marino (Pavia). 3 Madona com Menino, São Jerônimo e São João Batista / Giampietrino / Ospedaletto Lodigiano.

3

1

2 88

RHAA 14


A Virgem de Giampietrino no MASP 4 Leda / Giampietrino / Staatliche Museen (Kassel). Óleo sobre tela: 128 × 106 cm. 5

Ninfa Hegéria / Giampietrino / Brivo Sforza (Milão).

4

5 RHAA 14

89



Apresentação da indústria lítica do sítio arqueológico Caconde 6 Presentation of the lithic industry of the Caconde 6 archaeological site

GAbRIELLA bARbOSA RODRIGUES Universidade Estadual de Campinas. E-mail: gab.rodrigues@gmail.com State University of Campinas. E-mail: gab.rodrigues@gmail.com

bRUNO SANCHES RANzANI DA SILvA Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: brunorzn@gmail.com Federal University of Minas Gerais. E-mail: brunorzn@gmail.com

FERNANDO ALExANDRE SOLTyS Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: fbyller@yahoo.com.br Federal University of Minas Gerais. E-mail: fbyller@yahoo.com.br

resumo O propósito deste artigo é apresentar a indústria lítica do sítio Caconde 6, um dos sítios identificados no Projeto de Resgate Arqueológico UHE Caconde, na cidade de mesmo nome, nordeste do Estado de São Paulo. O Projeto de Resgate é responsabilidade da empresa de consultoria arqueológica Documento: Patrimônio cultural, Antropologia e Arqueologia Ltda. A análise desse material inaugura, também, a parceria entre a Documento e o Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas, formando assim o NEE – Arqueologia Pública. O material do presente artigo foi analisado por estudantes da universidade, no laboratório recém-aberto no campus pela parceria. PAlAvrAs-chAve

Indústria Lítica, Projeto de Resgate Arqueológico UHE Caconde, Caconde 6.

AbstrAct The main goal of this article is to present the lithic industry of the Caconde 6 archaeological site, identified by the Projeto de Resgate Arqueológico UHE Caconde (Archaeological Rescue Project UHE Caconde), located in the city of Caconde, in the northeast of São Paulo State, Brazil. This rescue project was undertaken by the archaeological consultancy company Documento: Patrimônio cultural, Antropologia e Arqueologia Ltda (Document: Cultural patrimony, Anthropology and Archaeology Ltd.). The present analysis also marks the beginning of a partnership between Documento and the Núcleo de Estudos Estratégicos / NEE (Centre of Strategic Studies) of the Universidade Estadual de Campinas (Campinas State University), forming NEE – Arqueologia Pública (NEE – Public Archaeology). The material was analyzed by students of the university, in a newly opened laboratory at the campus. Keywords

Lithic Industry, Archeological Rescue Project UHE Caconde, Caconde 6.

RHAA 14

91


Gabriella Barbosa Rodrigues, Bruno Sanches Ranzani da Silva, Fernando Alexandre Soltys Introdução

Introduction

Este artigo pretende apresentar o material proveniente do sítio Caconde 6, localizado no município de Caconde (SP), em uma das margens da usina hidrelétrica que tem o nome da cidade. A pesquisa no sítio Caconde 6 está inserida no “Projeto de Resgate Arqueológico da Usina Hidrelétrica Caconde”, sob coordenação geral da Profª Dra. Erika M. Robrahn-González, em parceria entre a empresa Documento Patrimônio Cultural, Arqueologia e Antropologia Ltda. e a AES Tietê, empresa responsável pela usina.

This article intends to present the material recovered from the Caconde 6 site, located in the Caconde / SP municipality, on one of the margins of the Caconde hydroelectric station. The research at the Caconde 6 site was undertaken as part of the Projeto de Resgate Arqueológico UHE Caconde (Archaeological rescue project of the Caconde Hydroeletric Station), coordinated by Professor Erika M. Robrahn-González, and in partnership between Documento Patrimônio Cultural, Arqueologia e Antropologia Ltda. and AES Tietê, who are responsible for the hydroelectric station.

O registro arqueológico da indústria lítica de Caconde 6 será apresentado de acordo com suas propriedades tecnológicas, que se mostraram, prima facie, bastante diversas. Como poderá ser observado adiante, há artefatos mais trabalhados e outros que podem ser considerados mais brutos, sugerindo diferentes tratamentos com o material. O estudo do material arqueológico através de atributos tecnológicos e morfológicos não é a única metodologia aplicável, entretanto, foi aqui adotada por evidenciar o “gesto técnico” que produziu o vestígio. Apesar de nosso objetivo ser apenas de apresentar a indústria e não trabalhar o sítio arqueológico num contexto cultural, a abordagem permite correlacionar as peças a etapas do processo de lascamento.1 Para caracterizar as peças usamos como base bibliográfica, além de autores nacionais como Bueno e Silva-Méndes, alguns livros que fazem descrições de material lítico de sítios europeus. Como não são comprovadas no brasil certas técnicas de manejo do lítico encontradas em sítios do velho mundo, muitos dos atributos que evocariam certa tecnologia foram considerados por um aspecto morfológico. É o caso das lâminas e lascas siret. Ainda assim, optamos por manter essas definições para não descartar a possibilidade de que tais técnicas possam ter sido usadas aqui.2 Sabemos também que o uso de quantificações é representativo somente a partir de determinado número de dados. Em muitos casos deste trabalho, as quantificações e gráficos foram utilizados, antes de tudo, para efeito de exposição do registro.

The archaeological register of the lithic industry of Caconde 6 will be presented according to its technological characteristics, which were, from initial impressions, very diverse. As it will be observed, the artifacts range from well worked to little worked, suggesting different treatments of the material. The study of the archaeological materials based on their technical and morphological attributes is not the only applicable method. However, it was implemented here since it evidences the “technical gestures” that produced these pieces. Even though our objective is to only present the industry and not to study the archaeological site in a cultural context, this approach allows the correlation of the artifacts to the various processes of flake knapping.1 In order to characterize the lithics, we used a bibliographical database consisting of Brazilian works by authors such as Bueno and SilvaMéndes as well as books describing lithic material from European sites. Since some techniques of lithic working at sites of the old world have not been proven to have taken place in Brazil, many of the attributes that have in old world instances been taken to imply a certain technology, were, in our work, considered solely for their morphological aspects. However, in the case of the blades and siret flakes we have chosen to maintain these definitions so that the possibility that such techniques might have been used is not discarded.2 We also acknowledge that the use of quantifications can only be considered as

BUENO, Lucas de Melo Reis. “Variabilidade Tecnológica nos Sítios Líticos da Região do Lajeado, Médio Rio Tocantins”. Revista do MAE/ USP, 2007 p. 49. 2 INIzAN, M. L.; REDURON, M.; ROCHE, H.; TIxIER, J. Technologie de la pierre taillée. Meudon: CREP, 1995.

1

BUENO, Lucas de Melo Reis. “Variabilidade Tecnológica nos Sítios Líticos da Região do Lajeado, Médio Rio Tocantins”. Revista do MAE/ USP, 2007 p. 49. 2 INIzAN, M. L.; REDURON, M.; ROCHE, H.; TIxIER, J. Technologie de la pierre taillée. Meudon: CREP, 1995. 1

92

RHAA 14


Sítio arqueológico Caconde 6 representative when derived from assemblages providing an adequate amount of data. Therefore, in many instances the quantifications and graphs used in this study are included only in order to present the register. The material was recovered during two seasons of field work – the first occurred in June 2007 and the second between November and December of the same year – this allowed the observation of the site during times with different rates of flow over the dam. After the field work seasons, all material was taken to the archaeology laboratory of the Universidade Estadual de Campinas / UNICAMP (Campinas State University): Laboratório de Arqueologia da Universidade Estadual de Campinas, situated in the Núcleo de Estudos Estratégicos / NEE (Center of Strategic Studies), at the Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH (Institute of Philosophy and Human Sciences) and under the care of Prof. Dr. Pedro Paulo Funari and of Dr. Erika Robrahn-González. This was the first work undertaken at the laboratory and was begun in October 2007. Three student trainees participated in the laboratory analyses: Bruno da Silva, Fernando Soltys and Gabriella Rodrigues; who, at the time, were all undergraduate students in the fourth year of a History degree course and had participated of the first season of field works in Caconde.

O material provém de duas etapas de campo — a primeira ocorreu em junho de 2007 e a segunda etapa entre novembro e dezembro do mesmo ano — que permitiram observar o sítio em diferentes níveis de vazão da represa. Após a etapa de campo, todo o material foi levado ao Laboratório de Arqueologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), situado no Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE), no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), sob a responsabilidade do Prof. Dr. Pedro Paulo Funari e da Dra. Erika RobrahnGonzález. Tratou-se do primeiro trabalho desse Laboratório, iniciado no mês de outubro de 2007. Participaram da análise laboratorial três estagiários, a saber: Bruno da Silva, Fernando Soltys e Gabriella Rodrigues, todos, à época, alunos do quarto ano de graduação do curso de História e que haviam participado da primeira etapa do trabalho de campo em Caconde.

First Contact with the Material and Initial Information

Cada vestígio foi analisado, tendo os menores de 20 mm recebido tratamento especial, ou seja: foram agrupados em lotes e analisados em conjunto. Assim, os demais receberam um número individual sequencial, acompanhado da sigla do sítio arqueológico — neste caso, Ca6.

The material was, to a great extent, already cleaned and sorted. It had been separated from non-archaeological materials and had already been processed, during which time the pieces were numbered and organized according to their distribution at the site. Each piece was processed, in a way that artifacts smaller then 20 mm received special treatment – they were grouped in batches, and analyzed conjointly. The pieces larger than 20 mm received individual and sequential numbers, followed by the site’s code – which is in this case is Ca6. The numbered pieces total 566 and the batches add up to 141, in which there are 663 microflakes, micro-blades and other smaller materials. All flaked material added up to 415 pieces (73%) and there is only 1 (0.18%) polished lithic artifact. With regard to their original locations at the site, the distribution of the pieces was reasonably even. In the sondages, the largest quantities of materials were concentrated in the first levels and

Primeiro Contato com o Material e Informações Iniciais O material, que em grande parte já estava lavado e triado — ou seja, já havia sido separado de peças não-arqueológicas — passou pelo processo de curadoria, que corresponde à numeração e organização das peças de acordo com sua distribuição no sítio.

As peças numeradas correspondem a um universo de 566 vestígios líticos, e os lotes, num total de 141, correspondem a 663 microlascas, microlâminas e outros materiais menores. Os líticos lascados somam 415 peças (73%) e há apenas um (0,18%) lítico polido. Quanto à proveniência, a distribuição dos vestígios é razoavelmente equitativa. Nas sondagens, a maior quantidade de material estava concentrada logo nos primeiros níveis diminuindo vertiginosamente conforme aumentava a profundidade. No Setor de escavação A, a maior concentração de vestígios deu-se a partir do segundo nível (de 5 a 10 cm) até o quarto nível (de 15 a 20 cm) e dentre eles, especialmente as quadrículas de número 3. RHAA 14

93


Gabriella Barbosa Rodrigues, Bruno Sanches Ranzani da Silva, Fernando Alexandre Soltys Análise Lítica Para a etapa de análise, foi preparada uma ficha na qual cada peça era identificada e tinha seus atributos classificados. Cada peça foi identificada quanto à classe, ao tipo, à matériaprima, à presença ou ausência de córtex, quanto a marcas de queima, sinais de uso, quanto ao tipo de talão (no caso das lascas) e quanto ao tamanho (comprimento, largura e espessura) medido em milímetros. Para este trabalho, “classe” foi definido a partir de características técnicas e morfológicas, nas seguintes categorias: 1. lasca; 2. artefato; 3. núcleo; 4. detrito; 5. instrumento; 6. seixo ou fragmento de seixo; 7. bloco ou fragmento de bloco; 8. fragmento térmico; 9. fragmento de lasca. As classes 1, 2, 3 e 5 poderiam apresentar subdivisões, que correspondem ao atributo “tipo”. Cada um desses tipos serão definidos adiante. Na sequência todas as peças foram classificadas quanto à matéria-prima a partir da qual se deu sua confecção. A identificação da matéria-prima e o estudo de suas propriedades são de grande importância para pesquisas acerca da indústria lítica. A escolha do material a ser trabalhado era parte do processo de fabricação do artefato e, portanto, era baseada em conhecimento adquirido pelo trato com a rocha, por sua observação. Em muitos casos, a matéria-prima era trazida de longe, para ser trabalhada na comunidade; ou rochas menos próprias eram trabalhadas pela urgência de determinada situação. Além disso, há a possibilidade de uma matéria-prima ter sido preparada para o trabalho, por exemplo, por meio do aquecimento pelo fogo. Por isso, classificamos também o material quanto à presença ou ausência de marcas de queima. Os sinais de queima, no entanto, podem significar apenas que a peça queimou-se de forma acidental, ou que era uma rocha que servia de base para uma fogueira, por exemplo, pois estudos em arqueologia experimental demonstram que a possibilidade dessa prática de trabalhar o material lítico controlando a temperatura ser comum é muito baixa, visto que sua praticidade é praticamente nula. No entanto, julgamos prudente separar por queima para obter uma descrição mais completa do registro. Ainda na análise mais geral, todo material foi classificado quanto à presença ou ausência de córtex. Grosso modo, o córtex seria a parte externa de uma rocha (neste caso), que está em contato com o ambiente. Segundo alguns autores, no processo 94

RHAA 14

decreased rapidly with the increase in depth. In excavation Sector A, the grater concentrations of pieces were recovered from the second level (from 5 to 10 cm) to the fourth level (from 15 to 20 cm), especially in quadrant number 3. Analysis of Lithic Materials To aid analysis, a record sheet was prepared for identifying each piece and classifying their attributes. Each piece was identified according to class, type, raw material, presence or absence of cortex, evidence of burning, use ware evidence, butt type (in the case of flakes) and size (length, width and thickness) measured in millimeters. For this study, “class” was defined due to technical and morphological characteristics in the following categories: 1. flake; 2. artifact; 3. core; 4. detritus; 5. tool; 6. cobble or cobble fragment; 7. block or block fragment; 8. thermic fragment; 9. flake fragment. The classes 1, 2, 3 and 5 could present subdivisions, corresponding to the attribute “type”. Each of these types will be defined bellow. All pieces were classified according to their raw materials. The identification of raw material and the study of their properties are of great importance in researches in lithic industries. The choice of material to be worked on was part of the process of the artifact’s manufacture and was, therefore, based on knowledge acquired from handling the rock and by observing its properties. In many cases, the raw material was acquired from sources situated some distances away to be worked in the community; while in other cases less adequate rocks were used due to the urgency of some situations. Furthermore, there is a possibility of raw materials being pre-treated, for example, through fire heating. Therefore, we also analyzed the material noting the presence or absence of burning evidence. However, evidence of burning might most likely indicate that the piece was burned accidentally or that it was used as a base for a hearth, since experimental archaeology has demonstrated that the practice of working lithic materials by controlling their temperature is very unlikely, given that it affords very little practical advantage. In any case, we deemed the recording of burning evidence prudent, in order to obtain a more complete description of the material. Regarding the more general analyses, all materials were classified according to the presence or absence of cortex. The cortex is the external part of a natural rock, which has been in contact


Sítio arqueológico Caconde 6 with the environment. According to some authors, during the knapping process, eliminating the cortex would be the first objective.3 The proportion of cortex on each piece was not ascertained, unless when it determines the type of flake found – as will be described below. On the other hand, in some cases it was possible to identify the origin of the raw materials based or the nature of the cortex – whether the raw material came from a vein or a cobble. We also looked for use ware evidence on the pieces. In certain cases, such in the case of tools, the presence of use ware evidence is a condition sine qua non for a pieces inclusion in this class. Each of these attributes will be specified along with the individual presentation of classes. beforehand, however, we present a graph (Graph 1) illustrating the proportion of pieces according to class. Characterization of Classes

de lascamento, eliminar o córtex seria o primeiro objetivo.3 A quantidade de córtex em cada peça não foi determinada, a não ser quando determina o tipo de lasca encontrada — como será descrito abaixo. Por outro lado, em alguns casos foi possível identificar a qualidade desse córtex, se de veio ou de seixo. Ainda verificamos também marcas de uso em cada uma das peças. Em certos casos, como por exemplo nos instrumentos, o sinal de uso é condição sine qua non para sua adequação nessa classe. Cada um desses atributos será especificado, conforme se der a apresentação individual das classes. Antes disso, entretanto, apresentamos o gráfico que distribui o material quanto à classe (Gráfico 1).

Especificação das Classes

1. Flakes

1. Lascas

“Flakes are formed by removals from a block of raw material” though percussion or pressure “and have in common a certain number of characteristics formed by the propagation of waves of fracture, on hard rocks”. 4 Within this assemblage, 335 (59%) are flakes, subdivided according to the sub-groups illustrated in graph (Graph 2). With flake analyses, it is also usual to classify the butt, the “platform of impact” that is formed during the flaking process.5 It is on the butt that the “point of impact” (which is the exact location where force is applied in the removal of the flake6) is located. For this study, we subdivided the butt

“As lascas provêm de retiradas sobre todo bloco de matéria-prima” através de percussão ou pressão “e têm em comum um número determinado de características pela propagação de ondas de fratura, nas rochas duras”.4 Dentre todas as peças da coleção, 59% (335) são lascas, subdivididas de acordo com o gráfico (Gráfico 2).

3 See ANDREFSKY Jr., William. Lithics: macroscopic approach to analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 101. JOHNSON, Jay K. “The utility of production: trajectory modeling as a framework for regional analysis”. In: DONALD H.; GEORGE O. (Eds.) Alternative approaches to lithic analysis. Washington: Archaeological Papers of the American Anthropological Association, 1989, p. 119-138. 4 INIzAN, M. L.; REDURON, M.; ROCHE, H.; TIxIER, J., Op. cit., p. 34. 5 SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da. Caçadores-coletores na serra de Paranapiacaba durante a transição do holoceno médio para o tardio (5920-1000 anos AP). Masters dissertation for the post-graduation program of the Museu de Arqueologia e Etnologia (Museum of Archaeology and Ethnology) of the Universidade de São Paulo (São Paulo University), tutored by Paulo De Blasis, São Paulo: MAE-USP, 2007, p. 296. 6 ANDREFSKY Jr., William, Op. cit., p. xxv.

Na análise das lascas, convenciona-se também classificar seu talão, a “plataforma de impacto” que se forma durante a retirada de uma lasca.5 É no talão que se encontra o “ponto de impacto”, local exato onde se aplica força para retirada da lasca.6 Para este estudo, subdividimos a categoria talão da seguinte maneira: 1 – cortical; 2 – liso; 3 – diedro; 4 – facetado; 5 – linear; 6 – esmigalhado; 7 – puntiforme; 8 – retocado; 3 Sobre isto, ver ANDREFSKY Jr., William. Lithics: macroscopic approach to analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 101. JOHNSON, Jay K. “The utility of production: trajectory modeling as a framework for regional analysis”. In: DONALD H.; GEORGE, O. (Eds.) Alternative approaches to lithic analysis. Washington: Archaeological Papers of the American Anthropological Association, 1989, p. 119-138. 4 INIzAN, M. L.; REDURON, M.; ROCHE, H.; TIxIER, J., Op. cit., p. 34. 5 SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da. Caçadores-coletores na serra de Paranapiacaba durante a transição do holoceno médio para o tardio (5920-1000 anos AP). Dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, sob a orientação de Paulo De Blasis, São Paulo: MAEUSP, 2007, p. 296. 6 ANDREFSKY Jr., William., Op. cit., p. xxv.

RHAA 14

95


Gabriella Barbosa Rodrigues, Bruno Sanches Ranzani da Silva, Fernando Alexandre Soltys 9 – preparo de talão; 10 – asa de pássaro. O terceiro gráfico apresenta sua distribuição na coleção (Gráfico 3). Quanto à matéria-prima, as lascas são predominantemente de quartzo — hialino e leitoso —, mas há também um grande número de lascas de sílex, especialmente o marrom (Gráfico 4). A presença de córtex é minoritária, correspondendo a 104 lascas ou 31%. Predomina o córtex de veio. Os indícios de queima aparecem em 27% (89) das lascas. Os sinais de uso não são frequentes, equivalendo a 3% (10) de todas as lascas. As lascas desta coleção variam muito em tamanho, tendo a menor delas 3 mm de comprimento, a maior 108 mm. A média é de 29 mm. 2. Artefatos e instrumentos Artefatos são objetos produzidos pela ação humana,7 resultantes de um lascamento que define sua função. Já os instrumentos são peças utilizadas sem terem sido previamente preparadas, ou seja, foram utilizadas em estado bruto. Os artefatos em Caconde 6 somam 38 peças, correspondem a 6,7% da coleção, enquanto os instrumentos equivalem a 2,8%, ou 16 peças. Artefatos e instrumentos foram classificados de acordo com as seguintes categorias: 1. raspadores; 2. furadores; 3. plainas; 4. percutores; 5. almofarizes; 6. pontas-projéteis; 7. lasca retocada; 8. lesma; 9. polido; 10. artefato fragmentado; 11. bifacial; e 12. batedor (Gráfico 5 e Gráfico 6). Afora critérios estabelecidos para a análise de todo o material, como matéria-prima, presença ou ausência de córtex e sinais de uso e de queima, os artefatos e instrumentos também foram analisados de acordo com novos critérios, a saber: o suporte, que caracteriza a peça a partir da qual o artefato foi confeccionado e o bordo ativo, ou seja, o gume. A caracterização do bordo ativo de cada artefato se deu a partir da medida de seu ângulo, pela delineação do gume e pelo tipo de retoque presente no bordo. Além disso, os artefatos foram analisados de acordo com a presença de lascamento nas faces interna e externa, caracterizando-os como unifaciais ou bifaciais. 2.1. Raspadores

Os artefatos classificados como raspadores equivalem a 13 ou 34% de todos os artefatos, e podem ser divididos em duas subcategorias. A primeira delas compreende peças de 7

ANDREFSKY Jr., William, Op. cit., p. xxi.

96

category in the following manner: 1 – cortical; 2 – flat; 3 – dihedral; 4 – facetted; 5 – linear; 6 – crushed; 7 – punctiform; 8 – retouched; 9 – prepared butt; 10 – winged. Graph three presents the distribution of butt subdivisions within the assemblage (Graph 3). Regarding raw materials, the flakes are pronominally quartz – hyaline and milky –, but there is also a large number of chert flakes, especially brown (Graph 4). The presence of cortex is minor, corresponding to 104 flakes or 31%. The cortex evidencing raw materials coming from veins is predominant. Evidence of burning is present on 89 (27%) of the flakes. Use ware evidence is not frequent, only being present on 10 flakes (3%). The flakes in this assemblage vary greatly in size, the smaller measuring 3 mm in length and the larger, 108 mm. The mean is 29 mm. 2. Artifacts and tools Artifacts are objects produced by human action,7 resulting from deliberate flaking which defines its function. Conversely, tools are pieces used without being previously prepared, meaning, they were used in their natural form. The artifacts in Caconde 6 total 38 pieces, corresponding to 6.7% of the assemblage, while tools total 16 pieces (2.8%). Artifacts and tools were classified according to the following categories: 1. scraper; 2. awl; 3. plain scraper (plaina); 4. percussor; 5. mortar; 6. projectile point; 7. retouched flake; 8. slug-shaped scraper; 9. polished; 10. fragmentary artifact; 11. bifacial artifact; and 12. hammer stone (Graph 5 and Graph 6). Other then the criteria used for the analyses of all material, such as raw material type, presence or absence of cortex, use ware marks and evidence of burning, the artifacts and tools were also analyzed according to the following criteria: the source material, which characterizes the piece from which the artifact was made, and the working edge, meaning, the cutting edge. The characterization of the working edge of each artifact was achieved by measuring each angle, the delineation of the cutting edge and by the type of retouch present in the edge. Furthermore, the artifacts where analyzed according to the presence of flaking on the internal and external faces, charactering them as a unifacial or bifacial.

7

RHAA 14

ANDREFSKY Jr., William, Op. cit., p. xxi.


Sítio arqueológico Caconde 6 2.1. Scraper

The artifacts classified as scrapers total 13 (34% of all artifacts) and can be sub-divided into two subcategories. The first subcategory consists of pieces of quartz and chert and they are all of medium sizes, with the smallest measuring 23 mm in length and the largest 80 mm, with an average length of 49 mm. These pieces are relatively heavy, which along with their sizes, suggest that their source material – which may have been a thick flake or fragment of a block or cobble – naturally exhibited the shape and size desired for making the scraper. From that, through retouches to the edges (expedient technology) cutting edges were formed, which in this assemblage may be rectilinear, denticulated rectilinear, convex or convex with a beak. These scrapers are all unifacial and present use ware evidence on the working edges. Cortex is present on 85 (7%) of them; there are signs of burning on 42 (9%) and all of them exhibit use ware evidence. Still in quartz, there is another piece, of a multifunctional nature, maybe utilized as a scraper or as an awl. It was formed by the application of peripheral marginal retouches; it is unifacial, exhibits cortex and use ware evidence. It measures 48 × 33 × 20 mm. The second subcategory of scrapers corresponds to 2 pieces (15.4%) in chert, one of them complete and the other fragmentary. The complete piece was classified as a discoidal mini-scraper (Figure 1), made from a flake with dimensions of 15 × 32 × 31.5 mm, unifacial, with invasive retouches that cross the entire piece in order to mold its discoidal form, complemented by peripheral retouches on the cutting edge, or on the working edge, that corresponds to the totality of the circumference. The quantity of retouches throughout the piece suggests that this is a worn-out artifact. There is use ware evidence along the entire cutting edge. There is no cortex present or evidence of burning. The fragmented piece, also made from a flake, presents a portion of existing edge that indicates, in a similar way to the previous example, the presence of invasive retouches, complemented by peripheral ones, forming a convex and denticulated working edge. The piece not only exhibits no cortex or signs of burning, there is also no use ware evidence, which all suggest that the piece had been broken during the manufacturing process. 2.2. Awl

Awls “present a point, with retouched edges. The pieces are triangular; some are long and thin,

quartzo e sílex, todas de porte mediano, sendo a menor de 23 mm de comprimento, a maior de 80 mm e o comprimento médio de 49 mm. Essas peças são relativamente pesadas, o que, juntamente com seus tamanhos, sugerem que seu suporte — que pode ser fragmento de bloco, fragmento de seixo ou lasca espessa — já possuía forma e tamanho natural desejáveis para a fabricação do raspador. A partir disso, através de bordos com retoques (tecnologia expedita) foram confeccionados os gumes, podendo ser, neste caso, retilíneo, retilíneo denticulado, convexo, ou convexo com bico. Esses raspadores são todos unifaciais e possuem marcas de uso nos bordos ativos. Há presença de córtex em 85,7% deles; há sinais de queima em 42,9% e todos possuem marcas de uso. Ainda de quartzo, há uma outra peça, de caráter multifuncional, podendo ter sido usada como um raspador ou como um furador. Sua fabricação se deu por meio de retoques periféricos marginais; é unifacial, possui córtex e marcas de uso. Mede 48 × 33 × 20 mm. A segunda subcategoria de raspadores corresponde a 2 peças (15,4%) de sílex, sendo uma inteira e uma fragmentada. A peça inteira foi classificada como um minirraspador circular (Figura 1), confeccionado a partir de lasca, de 15 × 32 × 31,5 mm, unifacial, com retoques invadentes que atravessam toda a peça para moldar sua forma circular, complementados por retoques periféricos no gume, ou bordo ativo, que corresponde a toda a sua circunferência. A quantidade de retoques em toda a peça sugere tratar-se de um artefato esgotado. Há marcas de uso em todo o gume. Não há córtex nem sinal de queima. Na peça fragmentada, também confeccionada sobre uma lasca, a porção de bordo existente indica, assim como na anterior, a presença de retoques invadentes, complementados por periféricos, formando um bordo ativo convexo denticulado. Além de não apresentar córtex nem sinal de queima, não há marcas de uso, o que sugere que a peça tenha sido quebrada ainda durante o processo de confecção. 2.2. Furadores

Furadores “apresentam uma ponta, sendo as arestas retocadas. As peças são triédricas, podendo ser longas e delgadas, com uma ponta fina, ou grossas e curtas, com ponta RHAA 14

97


Gabriella Barbosa Rodrigues, Bruno Sanches Ranzani da Silva, Fernando Alexandre Soltys em ângulo mais aberto”8. Os furadores desta coleção (Figura 2) são todos unifaciais, com grande variação de tamanho: o menor possui 28 mm de comprimento, o maior 78 mm e a média de tamanho é de 49 mm. Foram confeccionados sobre lasca, detrito, fragmento de bloco ou de seixo que já apresentavam pontas triédricas. Nos bordos laterais próximos à ponta ocorrem retoques periféricos paralelos e marginais isolados. Em apenas uma peça há retoques invadentes, caracterizando uma tecnologia mais refinada. Apresentam marcas de uso (desgaste) nas pontas, 29% (2) apresentam córtex e nenhum apresenta marca de queima. 2.3. Plainas

A plaina é um artefato com função de raspador, mas diferencia-se do que classificamos acima como raspadores pelo fato de seus bordos formarem ângulos maiores de 90º. Nesta coleção há 2 (5%) plainas (Figura 3), todas confeccionadas a partir de suportes naturalmente altos, como seixos, blocos e fragmentos de bloco. Retoques periféricos profundos e marginais caracterizam seus bordos como abruptos, de tipo retilíneo denticulado, convexo ou convexo denticulado. São todos unifaciais, de quartzo, com marcas de uso nos bordos ativos. Ambas apresentam córtex e 1 (50%) apresenta sinais de queima.

with a thin point, while others are thick and short, with their points forming a more open angle”.8 The awls of this assemblage (Figure 2) are all unifacial, and exhibit a great range in sizes: the smallest measures 28 mm in length, the largest 78 mm, and the mean length is 49 mm. They were fabricated from flakes, detritus, and fragments of blocks or cobbles that already presented triangular points. On the lateral edges near the point, peripheral parallel and isolated marginal retouches occur. In only one piece are there invasive retouches, characterizing a more refined technology. They exhibit use ware evidence on the points, 2 (29%) present cortex and none presents burning evidence. 2.3. Plain scraper (plaina)

Plain scrapers are artifacts with the same function as scrapers, but differ physically from those pieces we classified as scrapers above in the fact that their edges form angles larger then 90º. In this assemblage, there are 2 (5%) plain scraper (Figure 3), both of them made from naturally high source materials, such as cobbles, blocks and block fragments. Deep marginal peripheral retouches characterize their edges as abrupt, of the denticulated rectilinear type, convex or denticulated convex. They are all unifacial, made of quartz, with use ware evidence on the working edges. Both present cortex and 1 (50%) presents evidence of burning.

2.4. Percutores

2.4. Percussor

O percutor é a ferramenta que viabiliza o lascamento por percussão, ou seja, a retirada de lascas por meio de batidas. Nem sempre o percutor entra em contato direto com a pedra a ser lascada, podendo bater numa peça intermediária, técnica determinada lascamento por percussão indireto.9

A percussor is a tool that is used to achieve flaking, meaning, the removal of flakes through hits. The percussor does not always make direct contact with the stone to be flaked – maybe hitting an intermediate piece of material – which is a technique called flaking by indirect percursion.9 The percussors of this assemblage are all tools, meaning that they consist, in this case, of cobbles used in their raw state, i.e. without being processed by way of flaking, even though some of them are fragmented. The use ware evidence (resulting from percussion) might be concentrated on only

Os percutores desta coleção são todos instrumentos, ou seja, correspondem, neste caso, a seixos utilizados em estado bruto, i.e., sem terem sido lascados, embora alguns encontremse fragmentados. As marcas de uso (percussão) podem se concentrar em apenas uma porção do seixo, como em toda a sua circunferência. São todos de quartzo, totalmente revestidos pelo córtex, sem marcas de queima. 8 ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika. Marion. A ocupação pré-colonial do vale do rio Ribeira de Iguape, São Paulo: os grupos ceramistas do médio curso. Dissertação de mestrado em Antropologia Social do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação de Ulpiano Bezerra de Meneses, São Paulo: FFLCH-USP, 1989, p. 100. 9 ANDREFSKY Jr., William, Op. cit., p. 11.

98

RHAA 14

ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika. Marion. A ocupação pré-colonial do vale do rio Ribeira de Iguape, São Paulo: os grupos ceramistas do médio curso. Masters dissertation in Social Anthtropology for the post-graduation program of the Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (Faculty of Philosophy, Letters and Human Sciences) of the Universidade de São Paulo (São Paulo University), tutored by Ulpiano Bezerra de Meneses, São Paulo: FFLCH-USP, 1989, p. 100.

8

9

ANDREFSKY Jr., William, Op. cit., p. 11.


Sítio arqueológico Caconde 6 a portion of the cobble or on its entire surface. They are all of quartz, completely covered by cortex and with no evidence of burning. 2.5. Projectile point

These are specific artifacts, generally bifacial, with working edges that converge in a point. by definition, they are composed of a “triangular shaped base (almost always)”, fins, that contribute to the “projectile’s aerodynamics and to the formation of its edges”, a tang, “the area where the butt is retouched, as well as an area for hafting the projectile to a shaft” and a pointed profile, by which the distal portion serves to perforate.10 There are three examples of projectile points in this assemblage (Figure 4). Two are complete and one is a distal fragment of a point. All of them where made from flakes, are bifacial and of quartz. The complete pieces present a rectilinear tang with fins larger then 90º and the lateral edges are rectilinear. both are very asymmetric. One of them exhibits a broken point end. In both cases, the tang’s size is disproportional to the body of the projectile point, suggesting extensive reworking of the pieces. Their lengths are 31 mm and 51 mm, none of the examples include cortex, 1 (33%) exhibits evidence of burning and all three demonstrate use ware evidence. 2.6. Retouched flake

Retouched flakes are artifacts derived from unifacial flakes, for which the working edges – either rectilinear or convex – are located at the lateral or distal portion of the piece, delineated by invasive retouches and marginal peripheral retouches, with the function of accentuating the cutting edge. One example exhibits retouches on the opposite edge to the working edge. The lengths vary from 42 mm to 117 mm, with a mean length of 70 mm. There are 3 retouched flakes among the assemblage, 1 (33%) includes cortex, 1 (33%) shows evidence of burning and 2 (67%) exhibit use ware evidence. 2.7. Slug-shaped scraper

Slug-shaped scrapers are plane-convex artifacts, bifacial and made from retouched flakes. “[…] objects with direct peripheral retouching, an oblong shape, generally with a pointed extremity while the other is more rounded”.11 Prous attributes the robust shape of slug-shaped scrapers

SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da, Op. cit., p. 305-7. 11 PROUS, André Pierre. Arqueologia Brasileira. brasília: Unb, 1992, p. 74. 10

2.5. Pontas-projéteis

São artefatos específicos, geralmente bifaciais, com bordos ativos que convergem em ponta. Por definição, são compostas de uma “base (quase sempre) triangular”, as aletas, que contribuem para a “aerodinâmica do projétil e na formação dos bordos”, um pedúnculo, “setor onde se registra o talão retocado, assim como setor de encabamento em haste da mesma” e uma extremidade aguda, ou seja, a parte distal cuja função é perfurar.10 Há três exemplares de pontas de projétil na coleção (Figura 4). Dois estão inteiros e um corresponde ao fragmento distal de uma ponta. Todos foram confeccionados a partir de lascas, são bifaciais, de quartzo. As peças inteiras apresentam pedúnculo retilíneo com aletas maiores que 90º e os bordos laterais são retilíneos. Ambas são bastante assimétricas. Uma delas apresenta a extremidade aguda fragmentada. Em ambos os casos, o tamanho do pedúnculo é desproporcional ao corpo da ponta-projétil, sugerindo intenso reavivamento das peças. Seus comprimentos equivalem a 31 e 51 mm, nenhuma possui córtex, 1 (33%) apresenta sinais de queima e as 3 possuem marcas de uso. 2.6. Lascas retocadas

As lascas retocadas são artefatos sobre lasca, unifaciais, cujos bordos ativos, retilíneo ou convexo, encontram-se na porção lateral ou distal, delineados por retoques invadentes e periféricos marginais, com a função de aguçar o gume. Em um dos exemplares também há retoques no bordo oposto ao ativo. Os comprimentos variam entre 42 e 117 mm, sendo a média igual a 70 mm. Há 3 lascas retocadas entre os artefatos, 33% (1) apresenta córtex, 33% (1) tem sinais de queima e 67% (2) possuem marcas de uso. 2.7. Lesma

As lesmas são artefatos plano-convexos, bifaciais, feitos em base de lasca retocada. “[...] objetos com retoque direto periférico, de forma oblonga, com uma extremidade geralmente pontuada e a outra mais arredondada”.11 Prous atribui sua forma robusta à aplicação na confecção de objetos de madeira,12 mas acredita-se que sua função possa ir mais além. Há duas lesmas 10 11 12

SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da, Op. cit., p. 305-7. PROUS, André Pierre. Arqueologia Brasileira. brasília: Unb, 1992, p. 74. Ibid.

RHAA 14

99


Gabriella Barbosa Rodrigues, Bruno Sanches Ranzani da Silva, Fernando Alexandre Soltys na coleção, ambas são unifaciais, confeccionadas sobre lasca espessa, de sílex marrom e com dimensões bem distintas: a menor com 52 × 22 × 16 mm e a maior com 96,5 × 40 × 22 mm (Figura 6). Os bordos laterais plano-convexos possuem retoques invadentes e periféricos marginais que convergem em ponta. A menor delas apresenta retoques invadentes interrompidos e não sequenciados, o que sugere tratar-se de um artefato esgotado. Ambas possuem marcas de uso ao longo dos bordos ativos e sinais de queima. Nenhuma delas possui córtex. 2.8. Polido

A técnica do polimento consiste num processo de “abrasão de uma rocha por meio de outra — dura e granulosa — geralmente com a intervenção de uma pasta abrasiva intermediária (areia + água)”.13 Há apenas 1 artefato polido neste material. Trata-se de uma peça de rocha básica, semicircular chata, com 138 × 99 × 33 mm. Possui marcas de polimento em duas faces laterais opostas, sendo que numa delas o polimento resultou numa reentrância. Na lateral oposta a essa reentrância existem três superfícies retilíneas em sequência, e numa delas há marcas de batida/percussão. As faces polidas, tanto pela quantidade como pela diversidade de características, sugerem um instrumento multifuncional. 2.9. Artefato fragmentado

Os artefatos fragmentados são “todo e qualquer fragmento que apresente morfologia completa e diagnóstica de um artefato de origem lítica lascada”.14 Correspondem a 16% (6) dos artefatos da coleção. Por apresentarem-se fragmentados, ou seja, não estão completos, não podem ser analisados como os demais artefatos e instrumentos. O que pode ser dito sobre eles é que, nos fragmentos que temos em mãos, 33% (2) apresentam marcas de queima e 67% (4) apresentam córtex. 2.10. bifacial

Os artefatos bifaciais são peças “amplamente modificadas e têm dois lados ou faces que se encontram para formar um único bordo que circunscreve o artefato inteiro; ambas as faces mostram evidências de retiradas anteriores”.15 Três artefatos 13 PROUS, André Pierre. Apuntes para el análisis de industrias líticas. Noia: Fundación Frederico Maciñeira, 2004, p. 11. 14 SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da, Op. cit., p. 310. 15 ANDREFSKY Jr., William, Op. cit., p. 76.

100

RHAA 14

to their use in fabricating wooden objects,12 but believes that their function could be wider. The assemblage has two slug-shaped scrapers. Both are unifacial, made from a thick flake of brown chert and have very different sizes: the smaller measuring 52 × 22 × 16 mm and the larger measuring 96.5 × 40 × 22 mm (Figure 6). The plane-convex lateral edges exhibit invasive and peripheral marginal retouching, that converge in a point. The smaller of them presents interrupted and non-sequenced invasive retouching, that suggests that it is a worn out artifact. Both exhibit use ware evidence all along the working edges and evidence of burning. None of them have cortex. 2.8. Polished artifact

The technique of polishing consists of a process of “abrasion of a rock by another – hard and granular – generally with the addition of an intermediate abrasive paste (sand + water)”.13 There is only one polished artifact in this assemblage. It is a basic rock piece, semi-circular and flat, measuring 138 × 99 × 33 mm. The piece exhibits marks resulting from polishing on two opposite lateral faces. The polishing on one face resulted in a groove. On the opposite lateral to this groove there are three rectilinear surfaces, in sequence, and one of them shows marks of percussion. The polished faces, due to the quantity and diversity of characteristics, suggest a multifunctional object. 2.9. Fragmented artifact

Fragmented artifacts are “each and every fragment that suggests the complete morphology and can diagnose an artifact of flaked lithic origin”.14 They are represented by 6 (16%) of the assemblage’s artifacts. Since these artifacts are fragmentary they cannot be analyzed along with the other artifacts and tools. But what can be said about them is that 2 (33%) exhibit evidence of burning and 4 (67%) include cortex. 2.10. bifacial artifact

Bifacial artifacts are pieces “widely modified, with two sides or faces meeting to form a single edge that defines the entire artifact; both faces

Ibid. PROUS, André Pierre. Apuntes para el análisis de industrias líticas. Noia: Fundación Frederico Maciñeira, 2004, p. 11. 14 SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da, Op. cit., p. 310.

12 13


Sítio arqueológico Caconde 6 show evidence of previous removals”.15 Three artifacts in the assemblage were identified as bifacial and they differ very much from each other. One of them is fragmentary but we suggest that it is a pre-shaped piece of a projectile point, made from a flake of quartz. Both of its faces present only invasive retouching, which cross the entire piece, defining its morphology and thickness, and no peripheral retouching. Also, there is no use ware evidence, which may suggest a breakage during the process of debitage. It does not include cortex or evidence of burning. Another piece was classified as a scraper with parallel working edges, with one being denticulated and the other convex with a beak. On the internal face it exhibits three thin and invasive retouches, which led to its classification as bifacial. However, in contrast to the previous piece, this bifacial retouching does not result in a morphological definition of the piece, but in an adaptation in its internal face. Its source material is also a flake made of chert, including cortex, showing evidence of burning but no use ware evidence. The third piece was classified as a longitudinal plane-convex scraper, with one convex lateral and one concave lateral (boomerang shape) (Figure 5). It presents two retouched edges, but only one of them is a working edge. On the concave lateral, it presents unifacial invasive and peripheral marginal retouching; on the convex lateral it presents bifacial retouches, both invasive and peripheral marginal. Its morphology suggests that the face with bifacial removals had a function of grasping and the retouches have been executed to thin the cutting edge, making its use easier. Its source material is a thick flake, without cortex or evidence of burning. Use ware evidence is evident right along the working edge. 2.11. Hammer stone

Also an instrument, the hammer stone is an unworked fragment of basic rock. It presents intense marks of percussion, on the inferior face. It presents cortex on its entire surface and no evidence of burning. 3. Cores A core is “a mass of homogeneous lithic material that has had flakes removed from its

15

ANDREFSKY Jr., William, Op. cit., p. 76.

foram caracterizados apenas como bifaciais na coleção e eles são muito diferentes entre si. Um deles está fragmentado e sugere ser uma pré-forma de ponta-projétil, confeccionado sobre lasca, de quartzo. Em ambas as faces apresenta apenas retoques invadentes, que atravessam toda a peça para definir sua morfologia e espessura, e nenhum tipo de retoque periférico. Também não há sinais de uso, o que pode sugerir quebra durante o processo de debitagem. Não apresenta córtex nem marca de queima. A outra peça pode ser classificada como um raspador com bordos ativos paralelos, sendo um denticulado e outro convexo com bico. Na face interna apresenta três retoques finos e invadentes, o que motivou sua inclusão na categoria bifacial. Todavia, ao contrário da peça anterior, esse retoque bifacial não resulta numa definição morfológica da peça, trata-se apenas de uma adequação em sua face interna. Seu suporte também é uma lasca, de sílex, com córtex, com queima e sem marcas de uso. A terceira peça também pode ser classificada como um raspador longitudinal plano-convexo, com uma lateral convexa e outra côncava (formato de “bumerangue”) (Figura 5). Possui dois bordos retocados, mas apenas um deles é o bordo ativo. Na lateral côncava possui retoque unifacial invadente e periférico marginal; na convexa possui retoques bifaciais tanto invadentes quanto periféricos marginais. A morfologia sugere que a face com retiradas bifaciais tenha função de preensão e os retoques tenham sido executados para desbastar o gume, facilitando o manuseio. Seu suporte é uma lasca espessa, sem córtex e sem queima. As marcas de uso encontram-se ao longo do bordo ativo. 2.11. batedor

Também um instrumento, o batedor desta coleção é um fragmento bruto de rocha básica. Possui marcas intensas de batida, ou percussão, na face inferior. Possui córtex em todo o seu entorno e não tem marcas de queima. 3. Núcleos Um núcleo é “uma massa de material lítico homogêneo que teve lascas removidas de sua superfície”. Sua função é “fornecer lascas que possam ser usadas para produção de ferramentas”.16 16

ANDREFSKY Jr., William, Op. cit., p. 12.

RHAA 14

101


Gabriella Barbosa Rodrigues, Bruno Sanches Ranzani da Silva, Fernando Alexandre Soltys Nas escavações em Caconde 6, foram encontrados 7 núcleos (1,24% dentre todos os vestígios), sendo 6 deles globulares (tipo 1) e apenas 1 discoidal (tipo 2). Os núcleos globulares são assim chamados, pois sofrem retiradas de diferentes direções tendendo a adquirir um formato globular.17 Por outro lado, o núcleo discoidal, também multidirecional, sofre retiradas “de forma centrípeta ou centrífuga, formando uma secção biconvexa”.18 Quanto à matéria-prima, os núcleos estão distribuídos da seguinte maneira: dois são de sílex, quatro de quartzo e um de quartzito. Há córtex em 3 deles (43%), 2 apresentam sinais de queima (29%) e todos foram utilizados. 4. Detritos

surface”. Its function is to “provide flakes that may be used for the production of tools”.16 During the excavations at Caconde 6, 7 cores were found (1.24% of all pieces), 6 of them being globular (type 1) and only 1 discoidal (type 2). Globular cores are named after the shape they tend to get after flake removals in several different directions.17 Conversely, the flake removals from discoidal cores, while also multidirectional, are carried out “in centripetal or centrifuge movements, forming a biconvex section”.18 As for the raw materials, the cores are present in the following materials: two are made of chert, four of quartz and one of quartzite. There is cortex on 3 (43%) of them, 2 (29%) present evidence of burning and all exhibit use ware evidence. 4. Detritus

Os detritos, ou fragmentos de matéria-prima,

The detritus, or fragments of raw material,

[...] correspondem a um agrupamento de vestígios líticos em que não há possibilidade de leitura adequada de sua morfologia por apresentar duas ou mais faces de fratura sem elementos diagnósticos precisos. Entram nessa classe fragmentos de lasca com mais de três secções fraturadas, assim como porções de fragmentos de núcleo em que não está clara a origem do impacto. Acidentes de lascamento, técnicas de espatifamento, testes de matéria-prima e retirada de arestas do núcleo com percutores duros cuja força aplicada é maior que a resistência média do material ou difratada em linhas determinadas por impurezas internas correspondem à maior parte desta classe de vestígios.19

No sítio Caconde 6 somam 112 líticos, cuja matériaprima distribui-se conforme o gráfico (Gráfico 7). Há presença de córtex em 30% dos detritos. Quinze por cento deles apresentam marcas de queima e nenhum apresenta sinal de uso.

[...] correspond to a grouping of lithic material for which there is no possibility of adequately reading morphology or which present no precise diagnostic elements on two or more of their faces of fracture. In this category are placed fragments of flake with more then three fractured faces, as well as portions of core fragments, for which the origin of the impact is not clear. Flaking accidents, fracturing techniques, tests of raw materials and also the removals from core edges with hard percussors where the force applied is either greater then the average resistance of the material or is diffracted by internal impurities, correspond to the majority of this class of vestiges.19

Within the lithic assemblage form the Caconde 6 site, 112 pieces of detritus were identified, with the following distribution of raw material (Graph 7). There is cortex present on 30% of the detritus. 15% of the pieces exhibit evidence of burning and none present use ware evidence.

5. Seixos e fragmentos de seixo

5. Cobbles and fragments of cobble´s

Os seixos são geralmente utilizados como suportes de núcleos.20 Foram encontrados quatro seixos ou fragmentos de seixo que não foram utilizados. Quanto à matéria-prima, eles dividem-se em: dois de quartzito, um de arenito silicificado e um cuja matéria-prima não foi identificada.

Cobbles are generally used as the source material for cores.20 Four un-worked cobbles or fragments of cobbles were found. Two are of quartzite, one is of silicificated sandstone and one is of an un-identified material.

16

17 18 19 20

SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da, Op. cit., p. 303. Ibid. SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da, Op. cit., p. 308. Ibid.

102

17 18 19 20

RHAA 14

ANDREFSKY Jr., William, Op. cit., p. 12. SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da, Op. cit., p. 303. Ibid. SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da, Op. cit., p. 308. Ibid.


Sítio arqueológico Caconde 6 Since they are raw stones, they all present cortex (cobble). One of them exhibits evidence of burning and none exhibit use ware evidence. 6. Blocks and block fragments Blocks, or pieces of them, can be associated with the extraction of raw on a large scale. It is possible that blocks were transported to the site and there they were broken up.21 Ten blocks or block fragments were identified, two of them being of parent-rock. The raw materials are quartz (4) and “green stone” (3) – a rock with green coloring which if it comes into contact with a persons skin leaves green marks – and three where of un-identifiable materials. All include cortex and none exhibit evidence of burning or use ware evidence. 7. Thermic fragments Thermic fragments can result from direct exposure to heat, generally unintentional, that transforms the raw material, “deforming it and creating ridges, altering the natural morphological state of the source material”.22 Conversely, when it comes to preparing the raw material, the heat may not be applied directly, but instead surround the source material or else the source material might be placed over layers of sediments that are directly placed on a fire. There are 8 thermic fragments in the assemblage. 2 (25%) include cortex (1 evidencing the raw material was a cobble and 1 demonstrating the raw material was from a vein) and none show use ware evidence. Seven pieces (87%) are of chert and one (13%) is of quartz. 8. Flake fragments Flake fragments differ from fragmented flake since they represent the distal portion of flakes, meaning that they do not exhibit the information that could allow its characterization as butt, point of impact, or bulb of percussion. Therefore, it is not possible to classify the flake. There are 34 such pieces in the assemblage, of the following raw materials (Graph 8). Cortex is a present on 8 (24%) of them, 7 (21%) exhibit evidence of burning and 2 (6%) present use ware evidence.

21 22

SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da, Op. cit., p. 309. SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da, Op. cit., p. 310.

Visto que são pedras brutas, todos possuem córtex (de seixo). Um deles apresenta sinais de queima e nenhum possui marcas de uso. 6. Blocos, fragmentos de bloco Os blocos, ou pedaços deles, podem estar associados à extração de matéria-prima em profusão. É possível que os blocos fossem transportados para o sítio, e lá debitados.21 Foram coletados dez blocos ou fragmentos, sendo dois deles amostras de rocha-mãe. As matérias-primas variam entre o quartzo (4), a “pedra verde” (3) — uma rocha de coloração esverdeada que deixa marcas dessa cor quando em contato com a pele — e três não tiveram a matéria-prima identificada. Todos possuem córtex, nenhum apresenta sinais de queima nem de uso. 7. Fragmentos térmicos Os fragmentos térmicos podem ser de duas naturezas. Podem ser resultado de exposição direta ao calor, geralmente não intencional, que transforma a matéria-prima, “deformando-a e criando enrugamentos, alterando o estado morfológico natural do suporte”.22 Por outro lado, quando se trata de preparo de matéria-prima, o calor não era aplicado diretamente, mas circundava o suporte ou este era colocado sobre outras camadas de sedimentos que estavam, por sua vez, postas sobre o fogo. Há 8 fragmentos térmicos na coleção. Dois (25%) possuem córtex (1 de seixo e 1 de veio), nenhum possui marcas de uso. A maioria é de sílex (87%), e um é de quartzo (13%). 8. Fragmentos de lasca Os fragmentos de lascas diferenciam-se das lascas fragmentadas por tratarem-se da parte distal da lasca, ou seja, não conservam as informações que permitem caracterizá-la como talão, ponto de impacto, bulbo. Dessa forma, não é possível classificar a lasca. São 34 na coleção, das seguintes matérias-primas (Gráfico 8). Há presença de córtex em 24% delas (8), 21% (7) possuem marcas de queima e 2 (6%) apresentam sinais de uso. 21 22

SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da, Op. cit., p. 309. SILVA-MÉNDES, Gerson Levi da, Op. cit., p. 310.

RHAA 14

103


Gabriella Barbosa Rodrigues, Bruno Sanches Ranzani da Silva, Fernando Alexandre Soltys Conclusão

Conclusion

Como foi indicado ao longo do artigo, dada a diferença de características morfológicas, tecnológicas e estilísticas entre alguns artefatos e instrumentos produzidos, sugerimos a existência de duas indústrias líticas diversas em Caconde 6. A partir disso, podemos supor que se trataria de dois momentos diferentes de ocupação do sítio, ou ainda, dois grupos humanos distintos, embora não haja indícios de tal situação na estratigrafia. No entanto, essa diferença pode ter se perdido devido ao mau estado de conservação em que se encontrava Caconde 6. Por outro lado, como o trabalho de campo ainda não está encerrado, pois trata-se de um projeto que continua em andamento, tal hipótese pode vir a ser desenvolvida, com o surgimento de mais informações e escavações em outros sítios arqueológicos da área, quando esta hipótese poderá ser testada e ampliada.

As indicated throughout this work, given the morphological, technological and stylistic differences between some of the artifacts and tools analyzed, we suggest the existence of two distinct lithic industries at Caconde 6. From this, we can speculate that there may have been two different moments of occupation at the site, or possibly, two distinct population groups, although there is no evidence of such a situation in the stratigraphy. The relevant evidence could have been lost due to the preservation conditions of site Caconde 6. However, as the field works are not yet completed, this hypothesis may still be refined with the aid of new excavations at this and other archaeological sites in the area and this hypothesis might be tested.

104

RHAA 14

Translation: Sarah Hissa (sarahhissa@hotmail.com)


Sítio arqueológico Caconde 6

1 2

3

4

5 1

Minirraspador circular de sílex.

2

Exemplos de Furadores da coleção Caconde 6.

3

Exemplo de Plaina da coleção Caconde 6.

5

Exemplo de Biface “Bumerangue”.

4

Pontas-projéteis da coleção Caconde 6.

6

Exemplo de Lesma da coleção Caconde 6.

6

RHAA 14

105


Gabriella Barbosa Rodrigues, Bruno Sanches Ranzani da Silva, Fernando Alexandre Soltys 1

Distribuição dos vestígios quanto à classe em Caconde 6.

2

Distribuição das lascas quanto ao tipo em Caconde 6.

3

Distribuição das lascas quanto ao talão em Caconde 6.

4

Distribuição das lascas quanto à matéria-prima em Caconde 6.

1 2

Tipos de talão 4; 1% 27; 8% Preparo de talão Talão asa de pássaro 1; 0% Talão retocado 9; 3% Talão puntiforme

22; 7% Talão cortical

5; 1% Talão esmigalhando 39;12% Talão linear 12; 4% Talão facetado 4; 1% Talão diedro

210; 63% Talão liso

3

106

4

RHAA 14


Sítio arqueológico Caconde 6 5

Distribuição dos artefatos quanto ao tipo em Caconde 6.

6

Distribuição dos instrumentos quanto ao tipo em Caconde 6.

7

Distribuição dos detritos quanto à matéria-prima em Caconde 6.

8

Distribuição dos fragmentos de lasca quanto à matéria-prima em Caconde 6.

7 5

8 6

RHAA 14

107



Dez lesenas renascimentais na Villa Zeri: origem e contexto Dieci lesene rinascimentali a Villa Zeri: origine e contesto

PAtRícIA DALcAnALE MEnESES Mestre em História da Arte pela Unicamp e Doutora em História da Arte Moderna pela Università degli Studi di Pisa, Itália. E-mail: pdmeneses@yahoo.com Laureata presso l’Università di campinas e Dottore di ricerca in Storia dell’Arte Moderna presso l’Università degli Studi di Pisa. E-mail: pdmeneses@yahoo.com

A sede da Fundação Federico Zeri em Mentana, próximo a Roma, abriga, como se sabe, diversas obras de arte, entre as quais dez lesenas renascimentais, ligadas ao cardeal Giuliano Della Rovere, futuro papa Júlio II. Este artigo pretende analisar a sua proveniência e a provável autoria, a ser situada no círculo do escultor Andrea Bregno. Resumo

PalavRas-chave

Federico Zeri.

Renascimento, Escultura, Andrea Bregno, Giuliano Della Rovere,

Riassunto La sede della Fondazione Federico Zeri a Mentana ospita, com’è noto, diverse opere d’arte, tra le quali dieci lesene rinascimentali, forse collegabili al cardinale Giuliano Della Rovere, futuro papa Giulio II. Questo articolo intende analizzare la loro provenienza e probabile paternità, da collocarsi intorno alla cerchia dello scultore Andrea Bregno. PaRole chiave

Federico Zeri.

Rinascimento, Scultura, Andrea Bregno, Giuliano Della Rovere,

RHAA 14

109


Patrícia Dalcanale Meneses A sede da Fundação Federico Zeri, em Mentana, próximo a Roma, abriga, como se sabe, diversas obras de arte, elementos de ornamentação arquitetônica, além de uma coleção de epígrafes antigas. Zeri construiu a Villa durante os anos 1960, com um projeto do arquiteto romano Andrea Busiri Vici (1903-1989). A obra começou em 1963, e o projeto misturou formas clássicas com artefatos históricos inseridos no edifício. De acordo com o próprio Zeri:

La sede della Fondazione Federico Zeri a Mentana ospita, com’è noto, diverse opere d’arte, pezzi di ornamento architettonico e anche un’importante collezione di epigrafi antiche. Lo Zeri si fece costruire la villa negli anni 60 dall’architetto romano Andrea Busiri Vici (1903-1989). La costruzione fu cominciata nel 1963 e il progetto mischiò forme classiche con pezzi storici inseriti nell’edificio. Secondo lo stesso Zeri:

Muitos anos antes de começar a obra da casa, eu tinha acumulado pacientemente lesenas, pedaços de teto, tijolos romanos, telhas, molduras de portas de mármore e fragmentos de pedra. A casa foi, por assim dizer, elaborada em torno desses elementos, cada um dos quais foi inserido no seu lugar certo e adaptado ao conjunto.1

Molti anni prima di iniziare i lavori per la casa avevo accumulato pazientemente colonne, pezzi di soffitto, mattoni romani, tegole, cornici di porte in marmo e frammenti di pietre. La casa fu per così dire elaborata intorno a questi elementi, ciascuno dei quali fu inserito nel suo posto giusto e fuso nell’insieme.1

Entre os objetos recolhidos por Zeri, estão dez lesenas de mármore entalhado, aqui numeradas de acordo com a sua disposição atual (Figura 11), usadas para decorar as estantes da parte superior da biblioteca (à qual se tem acesso através de uma pequena escada em caracol no salão principal). trata-se de peças muito belas que, ainda que não sejam de todo desconhecidas, jamais foram estudadas. Isto porque estavam conservadas em uma parte mais ou menos íntima da casa do grande historiador. Ele recebia os colegas e os estudantes quase sempre no térreo da sua biblioteca, indo buscar de vez em quando algum livro pessoalmente no primeiro andar. Assim, as lesenas permaneceram praticamente inéditas. Após a sua morte e a criação da fundação em sua homenagem, a Villa de Mentana foi utilizada raramente por ocasião de alguns eventos e cursos restritos. Em tempos mais recentes, a sede da fundação, juntamente com a coleção inteira de livros de Zeri, foi transferida para Bolonha, e a Villa, que já era pouco frequentada, agora está completamente fechada ao público. Dada a excepcional qualidade dessas dez obras, este artigo se propõe a investigar sua origem e proveniência. Das dez lesenas, cinco podem ser ligadas a um contexto específico, como veremos mais adiante. Destas cinco, quatro (Figuras 1-4) são claramente interligáveis, estilisticamente falando, e têm uma particularidade que nos permite intuir a sua proveniência: elas seguem uma simetria, uma certa ordem nos motivos, intercalando maços de frutas e motivos da arte da guerra, ou seja, armas, instrumentos, troféus e brasões. Mais importante, porém, é que duas contêm o brasão cardinalício dos Della Rovere, e duas apresentam a seguinte inscrição: IUL 1

ZERI, F. Confesso che ho sbagliato. Milão, 1995, p. 148.

110

tra gli oggetti raccolti da Zeri si trovano dieci lesene in marmo lavorato, qui numerate d’accordo con la loro disposizione attuale (Figura 11), usate per decorare le mensole della parte superiore della biblioteca (alla quale si accede attraverso una piccola scala a chiocciola dal salone principale). Si trattano di pezzi molto belli che, anche se non del tutto sconosciuti, non sono mai stati studiati. Questo perché erano rinchiuse in una parte più o meno intima della dimora del grande storico. Egli riceveva i colleghi, gli studenti quasi sempre al pianterreno della sua biblioteca, andando a prendere di persona qualche libro al primo piano. così le lesene sono rimaste pressoché inedite. Dopo la sua morte e la creazione della fondazione in suo onore, la villa a Mentana fu utilizzata di rado per alcuni eventi e corsi ristretti. In tempi più recenti, la sede della fondazione, insieme all’intera biblioteca Zeri, fu trasferita a Bologna, e la villa, che era già poco frequentata, adesso è completamente chiusa al pubblico. Data l’eccezionale qualità di queste opere, quest’articolo si propone ad investigare la loro origine e provenienza. Delle dieci lesene, cinque sono collegabili ad un contesto specifico, come vedremo. Di queste cinque, quattro, in particolare, sono stilisticamente collegabili fra loro: hanno una particolarità che lascia intuire la loro provenienza (Figure 1-4): seguono una simmetria, un certo ordine dei motivi, intercalando un fastello di frutti con motivi dell’arte della guerra, ossia, armi, strumenti, trofei e stemmi. Più importante, però, è che due recano lo stemma cardinalizio dei Della Rovere, e due presentano delle targhe

1

RHAA 14

F. Zeri, Confesso che ho sbagliato. Milano, 1995, p. 148.


Dez Lesenas na Villa Zeri con l’iscrizione IUL cAR / S P / AD VInc. Per convenienza d’ora in poi chiameremo questi quattro pezzi lesene Della Rovere. Ora, a Roma e dintorni, furono cinque le sedi amministrate dal cardinale Giuliano Della Rovere: San Pietro in Vincoli, SS. Apostoli, Sant’Agnese Fuori le Mura, Sant’Aurea in Ostia Antica e Santa Maria in Grottaferrata. La scritta ci permette già di escludere dalla lista dei possibili luoghi di origine almeno due posti: Ostia e Grottaferrata, dove il cardinale si fa sempre nominare IUL CARD OSTIEN nelle epigrafi. Nelle altre chiese, prevale il titolo con cui era maggiormente conosciuto, ossia, cardinale di San Pietro in Vincoli. Ed inizialmente è proprio alla chiesa titolare che viene subito da pensare. Quella, però, non era ancora fornita di un palazzo annesso alla basilica,2 dove ospitare decorazioni tanto signorili, e il convento di San Pietro in Vincoli fu terminato soltanto quando il cardinale era già diventato Papa Giulio II. La chiesa, anche se sede cardinalizia, era collocata in un posto piuttosto isolato della città,3 e dunque non era tanto in vista da meritare un investimento di tale portata. Guardando i pezzi, così belli e raffinati, viene da pensare che queste suppellettili provengano proprio dal palazzo e convento dei SS. Apostoli, che ricevette in commenda dopo la morte del cugino Pietro Riario. È ovvio che Giuliano Della Rovere aveva altre chiese e palazzi a Roma che poteva abbellire, ma il complesso di SS. Apostoli era quello principale, dove decise di stabilire la sua abitazione e sistemare la sua collezione di marmi antichi,4 e dove ospitare anche tutti i ricevimenti ufficiali. San Pietro in Vincoli non fu mai la sede dove i Della Rovere fecero le loro dimostrazioni di potere più importanti.5 neanche la chiesa di Sant’Agnese fuori le Mura, che fu ristrutturata dal cardinale, ricevette particolari attenzioni e decorazioni araldiche elaborate, come sono queste lesene.6

cfr. A. IPPOLItI. Il complesso di San Pietro in Vincoli e la committenza Della Rovere (1467-1520). Roma, 1999. 3 G. cAStI e G. ZAnDRI. Le chiese di Roma illustrate. San Pietro in Vincoli. Roma, 1999, p. 97. 4 Per la collezione di antichità di Giuliano Della Rovere, cfr. S. MAGIStER. Arte e politica: la collezione di antichità del cardinale Giuliano Della Rovere nei palazzi ai Santi Apostoli. Roma, 2002. 5 cfr. P. MEnESES. “O complexo de San Pietro in Vincoli e a atividade de Baccio Pontelli a Roma”, RHAA, v. 13, 2010, p. 5-16. 6 cfr. P. MEnESES. Baccio Pontelli a Roma: l’attività dell’architetto fiorentino per Giuliano Della Rovere. Pisa, 2010.

cARD / S P / AD VInc. Por conveniência, de agora em diante, chamaremos estas quatro peças de lesenas Della Rovere. Ora, em Roma e arredores, foram cinco as sedes administradas pelo cardeal Giuliano Della Rovere: San Pietro in Vincoli; SS. Apostoli; Sant’Agnese fuori le mura; Sant’Aurea, em Ostia antica; e Santa Maria, em Grottaferrata. A escrita nos permite já excluir da lista dois possíveis lugares de origem: Ostia e Grottaferrata, onde o cardeal se faz sempre chamar por IUL cARD OStIEn, nas epígrafes. nas outras igrejas prevalece o título com o qual era mais conhecido, isto é, cardeal de San Pietro in Vincoli. E, inicialmente, é logo na igreja titular que pensamos. Mas esta não contava ainda com um palácio cardinalício anexo à basílica,2 onde fosse possível abrigar decorações tão senhoris, e o convento de San Pietro in Vincoli foi terminado somente quando o cardeal havia já se tornado o Papa Júlio II. A igreja, ainda que fosse uma sede cardinalícia, encontrava-se em um lugar bastante isolado da cidade,3 não muito à vista, e dificilmente mereceria um tal investimento. As peças, tão belas e refinadas, de fato nos fazem pensar que provêm justamente do palácio e convento de SS. Apostoli, que ele recebeu em comenda após a morte do primo Pietro Riario. É óbvio que Giuliano Della Rovere tinha outras igrejas e palácios em Roma que podia ornar, mas o complexo de SS. Apostoli era o principal, onde ele decidiu estabelecer a sua residência e organizar a sua coleção de mármores antigos,4 onde sediou todas as recepções oficiais. San Pietro in Vincoli nunca foi a sede onde os Della Rovere fizeram suas principais demonstrações de poder.5 nem a igreja de Sant’Agnese fuori le mura, que foi reformada pelo cardeal, recebeu particular atenção ou decorações heráldicas elaboradas, como estas lesenas.6 Penso, então, que as lesenas de Zeri fizeram parte da decoração do palácio de SS. Apostoli, iniciada em torno dos

2

cf. IPPOLItI, A. Il complesso di San Pietro in Vincoli e la committenza Della Rovere (1467-1520). Roma, 1999. 3 cAStI, G. e ZAnDRI, G. Le chiese di Roma illustrate. San Pietro in Vincoli. Roma, 1999, p. 97. 4 Para a coleção de antiguidades de Giuliano Della Rovere, vide MAGIStER, S. Arte e politica: la collezione di antichità del cardinale Giuliano Della Rovere nei palazzi ai Santi Apostoli. Roma, 2002. 5 cf. MEnESES, P. “O complexo de San Pietro in Vincoli e a atividade de Baccio Pontelli a Roma”, RHAA, v. 13, 2010, p. 5-16. 6 cf. MEnESES, P. Baccio Pontelli a Roma: l’attività dell’architetto fiorentino per Giuliano Della Rovere. Pisa, 2010. 2

RHAA 14

111


Patrícia Dalcanale Meneses anos 1481-1482.7 Diversos motivos das quatro lesenas Della Rovere, que contêm os referimentos diretos a Giuliano, são muito parecidos com motivos presentes na decoração do palácio, como nos bancos marmóreos de inspiração urbinate, espalhados por vários cômodos, seja à direita seja à esquerda da basílica. Um bom exemplo é este detalhe de vaso/troféu pendurado, que decora o segundo cômodo do andar nobre do palácio Del Vaso, hoje convento de SS. Apostoli (Figura 12). Um vaso muito similar a esse aparece nesta peça da Villa Zeri, pendurado do mesmo modo, mas diante de prato (Figura 13). Mas é a lesena no 6 (Figura 6), que não contém brasão nem inscrições, a que nos fornece o ponto de contato mais claro e seguro com SS. Apostoli. Em um cômodo da Palazzina Della Rovere, o chamado Salão turco, ainda é conservada uma lareira decorada com belíssimos relevos marmóreos quatrocentescos. A relação com a lesena de Mentana não poderia ser mais clara (Figura 14a). Podemos notar um motivo em particular, uma mão que segura um chapéu sacerdotal, presente de maneira idêntica nos dois casos, na mesma posição, embaixo, e que faz pensar numa mais que provável origem no palácio de SS. Apostoli. Mas este não é o único ponto em comum. Elas têm a mesma conformação com os motivos sobre algum elemento que pende para baixo: tecidos e fios de pérolas, para as pilastras do Salão turco; e pêndulos com pingentes variados, para a lesena de Villa Zeri. Infelizmente o Salão turco não é aberto ao público nem aos estudiosos, e uma análise direta das obras não foi possível.8 tive acesso, todavia, às medidas dessas duas peças laterais, e elas correspondem, de fato, à lesena de Villa Zeri. Elas têm a mesma largura, que oscila entre 22 e 23 cm. com relação à altura, há uma discrepância de seis centímetros, mas que é perfeitamente explicável se observarmos bem as peças. As lesenas do Salão turco têm uma moldura mais larga na parte inferior, e por isso medem 130 cm. na obra da Villa Zeri, cuja 7 Para a decoração do palácio de SS. Apostoli, vide: SAntILLI, F. Chiese di Roma illustrate: La Basilica dei SS. Apostoli. Roma, 1925; GAttI, I. “Il convento dei SS. Apostoli a Roma”. In Miscellanea francescana, n. 79, II, 1972, p. 390-440; FInOccHI GHERSI, L. “Ornamenti all’antica in alcune fabbriche commissionate dal cardinale Giuliano Della Rovere”. In Quaderni dell’Istituto di Storia dell’Architettura, n. 15/20, 1992, p. 355-366; Id. “Il Palazzo Riario – Della Rovere ai SS. Apostoli”. In F. Benzi (a cura di), Sisto IV: le arti a Roma nel primo Rinascimento. Atti del convegno. Roma, 2000, p. 445-457; SAFARIK, E. Palazzo Colonna. Roma, 1999; MAGIStER, S. Arte e politica: la collezione di antichità del cardinale Giuliano Della Rovere nei palazzi ai Santi Apostoli. Roma, 2002; MEnESES, P. Baccio Pontelli a Roma: l’attività dell’architetto fiorentino per Giuliano Della Rovere. Pisa, 2010. 8 Agradeço a dott.sa Patrizia Piergiovanni que, a meu pedido, gentilmente mediu a lareira.

112

RHAA 14

credo che le lesene di Zeri risalgano, dunque, alla decorazione del palazzo ai SS. Apostoli, iniziata intorno agli anni 1481-1482.7 Diversi motivi delle quattro lesene Della Rovere, che presentano i riferimenti a Giuliano, sono molto simili a dei motivi presenti nella decorazione del palazzo, come nei sedili marmorei di ispirazione urbinate sparsi le diverse stanze, sia a destra che a sinistra della Basilica. Un bell’esempio è questo dettaglio di un vaso/trofeo appeso, che decora la seconda stanza del piano nobile del detto palazzo del Vaso, oggi convento dei SS. Apostoli (Figura 12). Un vaso molto simile a questo compare nella lesena di Villa Zeri, appeso allo stesso modo, ma davanti ad un vassoio (Figura 13). È la lesena n. 6 (Figura 6), però, che non reca stemmi né iscrizioni, a fornirci il punto di contatto più chiaro e sicuro con SS. Apostoli. In una stanza della Palazzina, il cosiddetto Salone turco, è tuttora presente un camino decorato da bellissimi rilievi marmorei quattrocenteschi. Il legame con la lesena di Mentana, non potrebbe essere più palese (Figura 14a). Possiamo notare un motivo in particolare, un cappello sacerdotale teso da una mano, che è presente in ambedue i casi, nella stessa posizione, in basso, e che fa pensare ad una più che probabile appartenenza al Palazzo ai SS. Apostoli. Ma questo non è l’unico punto in comune; tutte hanno la stessa conformazione, con i motivi che sovrastano qualcosa che pende verso il basso: drappeggi e fili di perline per i pilastri del Salone turco e pendenti con ciondoli vari alla punta per la lesena di Villa Zeri. Purtroppo il Salone turco non è aperto né al pubblico, né agli studiosi, ed un’analisi diretta dei pezzi del camino non fu possibile. tuttavia, ho avuto accesso alle misure di questi due pezzi,8 ed

Per la decorazione del palazzo dei SS. Apostoli, si veda: F. Santilli. Chiese di Roma illustrate: La Basilica dei SS. Apostoli. Roma, 1925; I. Gatti. “Il convento dei SS. Apostoli a Roma”. In Miscellanea francescana, n. 79, II, 1972, p. 390-440; L. Finocchi Ghersi. “Ornamenti all’antica in alcune fabbriche commissionate dal cardinale Giuliano Della Rovere”. In Quaderni dell’Istituto di Storia dell’Architettura, n. 15/20, 1992, p. 355-366; Id. “Il Palazzo Riario - Della Rovere ai SS. Apostoli”. In F. Benzi (a cura di), Sisto IV: le arti a Roma nel primo Rinascimento. Atti del convegno. Roma, 2000, p. 445-457; S. Magister. Arte e politica: la collezione di antichità del cardinale Giuliano Della Rovere ai palazzi ai Santi Apostoli. Roma, 2002; E. Safarik. Palazzo Colonna. Roma, 1999; e P. Meneses. Baccio Pontelli a Roma: l’attività dell’architetto fiorentino per Giuliano Della Rovere. Pisa 2010. 8 Ringrazio la dott.sa Patrizia Piergiovanni per, in seguito alla mia richiesta, aver gentilmente fatto misurare il camino. 7


Dez Lesenas na Villa Zeri esse corrispondono, di fatto, alla lesena di Villa Zeri. Hanno la stessa larghezza, che oscilla fra 22 e 23 cm. Per quanto riguarda l’altezza, c’è un divario di sei centimetri, ma che è perfettamente spiegabile se guardiamo bene i pezzi. Le lesene del camino del Salone turco hanno una cornice più larga nella parte bassa (Figura 14b), e per questo misurano 130 cm. nel pezzo di Villa Zeri, che di superficie visibile misura 124 cm, non si vede questo prolungamento della cornice verso il basso, che o fu tagliato o rimane coperto dalla struttura in legno delle mensole della biblioteca. tutto indica, quindi, che questa lesena faccia parte della decorazione originale della Palazzina di Giuliano Della Rovere, e che ornasse, come le sue simili, un camino. ce n’erano tanti nel palazzo, ma le numerose modifiche fatte nell’edificio ne hanno causato la dispersione. nel palazzo del Vaso, per fare un esempio, i camini che ornavano ognuna delle tre stanze del piano nobile erano ancora in opera nel 1925.9 Oggi, di questi arredi resta soltanto uno stipite marmoreo decorato con rilievi vegetali, esposto nella prima stanza, ma che purtroppo non sappiamo a quale ambiente appartenesse. Dello stesso modo che i rilievi dal palazzo testimoniano l’attività di più scultori, i pezzi di Villa Zeri si presentano come il risultato del lavoro di mani diverse: le lesene Della Rovere, simili fra loro, a quanto pare non furono scolpite dalla stessa mano che eseguì la lesena n. 6, che richiama il camino del Salone turco. Per quanto riguarda il responsabile di queste decorazioni, l’esecuzione delle lesene fin qui analizzate sembra essere dovuta alla bottega dello scultore Andrea Bregno. L’artista aveva già lavorato per i Della Rovere nella decorazione della chiesa di Santa Maria del Popolo e pure nella tomba di Pietro Riario a SS. Apostoli. L’ideazione del programma decorativo, tuttavia, pone qualche dubbio. Anche se troviamo motivi tipici della cerchia dello scultore, sono presenti anche certe panoplie che hanno armi diverse, e una cura particolare nei loro dettagli, che fanno pensare all’ambiente urbinate.

superfície visível mede 124 cm, não se vê esse prolongamento da moldura, que, ou foi cortado, ou permanece coberto pela estrutura de madeira das estantes da biblioteca. tudo indica, dessa forma, que esta lesena fazia parte da decoração original da Palazzina de Giuliano Della Rovere e que ornava, como as suas similares, uma lareira. Existiam tantas no palácio, mas as numerosas modificações feitas no edifício causaram a sua dispersão. no palácio Del Vaso, por exemplo, as lareiras que ornavam cada uma das três salas do andar nobre estavam ainda em seu lugar em 1925.9 Hoje, dessas lareiras, resta somente uma pequena pilastra decorada com relevos vegetais, exposta na primeira sala, mas que não sabemos à qual cômodo pertenceu. Do mesmo modo que os relevos do palácio testemunham a atividade de diversos escultores, as peças da Villa Zeri se apresentam como o resultado do trabalho de várias mãos: as lesenas Della Rovere, semelhantes entre si, aparentemente não foram trabalhadas pela mesma mão que realizou a lesena no 6, que recorda a lareira do Salão turco. no que diz respeito ao responsável por essas decorações, a execução das lesenas até aqui analisadas parece proceder da oficina do escultor Andrea Bregno. O artista já havia trabalhado para os Della Rovere na ornamentação da igreja de Santa Maria Del Popolo, como também no monumento fúnebre de Pietro Riario, em SS. Apostoli. A idealização do programa decorativo, contudo, deixa algumas dúvidas. Apesar de encontrarmos motivos típicos do círculo artístico do escultor, também estão presentes certas panóplias que contêm armas muito variadas, e podemos notar um cuidado muito particular dos detalhes, que faz pensar no ambiente cultural de Urbino.

Il palazzo ducale di Urbino rappresenta, infatti, un modello fondamentale da seguire per i Della Rovere, essendo la sede di una corte umanistica esemplare e un’abitazione modernissima. E Federico da Montefeltro era pure alleato del

O palácio ducal de Urbino representa, de fato, um modelo fundamental a ser seguido pelos Della Rovere, sendo ele sede de uma corte humanista exemplar, além de uma habitação moderníssima. Federico da Montefeltro era, ainda por cima, aliado do papa, figurando assim como uma válida alternativa ao modelo cultural florentino durante um período como aquele, de guerra contra os Médici. E o único artista proveniente de Urbino que estava em Roma naquela época era o arquiteto Baccio Pontelli, mas não conhecemos nenhum indício que prove uma sua participação direta no canteiro de SS. Apostoli. no mínimo, podemos dizer que a escolha dos motivos decorativos foi inspirada nos relevos e artefatos marmóreos do palácio de Urbino.

9 crf. F. SAntILLI. Chiese di Roma illustrate: La Basilica dei SS. Apostoli. Roma, 1925, p. 100.

9 cf. SAntILLI. F. Chiese di Roma illustrate: La Basilica dei SS. Apostoli. Roma, 1925, p. 100.

RHAA 14

113


Patrícia Dalcanale Meneses As primeiras quatro lesenas têm um estilo muito semelhante àquele da balaustrada das capelas Della Rovere e Montemirabile, em Santa Maria Del Popolo. Os maços de pera da capela Montemirabile estão amarrados e pendem, em ambos os casos, de um nó muito particular, e não de uma fita, como é comum ver em tantos relevos do período, como por exemplo no portal do Paraíso do hospital de Santo Spirito in Sassia, sempre atribuído a Bregno. Além disso, as armas nessas balaustradas são muito próximas àquelas presentes nos quatro exemplares da Villa Zeri. Já a quinta pilastra (no 6) tem um estilo completamente diferente, com os relevos muitos altos, menos refinados que os das lesenas Della Rovere. Também iconograficamente ela se diferencia das outras peças de decoração do palácio de SS. Apostoli, com a única exceção da lareira do Salão turco. Ambas as obras lembram claramente o antigo altar de Santa Maria Del Popolo, um dos poucos trabalhos assinados de Bregno, hoje conservado na sacristia da igreja. Essas diferenças apresentam um problema de solução não simples. nós falamos inicialmente de dez lesenas que decoram a Villa Zeri e até aqui foram analisadas somente cinco. O que acontece é que não temos como saber, com certeza, se todas as dez lesenas são procedentes do mesmo lugar, ou se pertencem a contextos diferentes. como vimos, não é possível basear-se unicamente nas variações estilísticas para excluir as outras cinco que, com efeito, têm alguma afinidade iconográfica com as primeiras; mas ao mesmo tempo não temos nenhum indício conclusivo que possa indicar a sua origem. Estas peças (Figuras 5, 7, 8, 9 e 10), muito diferentes entre si, seja no estilo, seja nas medidas, não têm nenhuma característica que nos permite identificar com segurança a sua proveniência. Podemos falar somente de semelhanças pontuais e afinidades e formular hipóteses. Aquela que parece ter mais pontos em comum com a decoração do palácio é a pilastra no 8 (Figura 8). Apresenta medidas muito próximas àquelas da lesena no 6 (20-22 × 125 cm) e os relevos são similares a algumas decorações de âmbito bregnesco. também os dois fragmentos de lesena (Figuras 9 e 10), que seguramente formam um par coerente, poderiam vir do complexo de SS. Apostoli. Essas duas peças parecem cortadas, mas poderiam também fazer parte de uma moldura de porta ou janela com um motivo decorativo contínuo formado por diversos pedaços de mármore adjacentes, como se via na antiga janela (não mais existente) da terceira sala do palácio Del Vaso. Ainda que o estilo não seja tão refinado como o das lesenas 114

RHAA 14

papa, figurando così come una valida alternativa al modello culturale fiorentino, durante questo periodo di guerra contro i Medici. E l’unico artista proveniente da Urbino presente a Roma in quell’epoca era l’architetto Baccio Pontelli, ma non conosciamo nessun indizio che provi una sua partecipazione diretta nel cantiere di SS. Apostoli. come minimo, possiamo dire che la scelta dei motivi decorativi è stata ispirata nei rilievi e infissi marmorei del palazzo urbinate. Le prime quattro lesene hanno uno stile molto simile a quello delle balaustre delle cappelle Della Rovere e Montemirabile a Santa Maria del Popolo. I mazzi di pere della cappella Montemirabile sono raccolti e pendono, in entrambi i casi, da un nodo molto particolare, e non da una fascia com’è solito vedere in tanti rilievi del periodo, come per esempio nel portale del Paradiso dell’Ospedale di Santo Spirito, sempre attribuito al Bregno. Inoltre, le armi che pendono nelle due balaustre sono anche molto somiglianti a quelle presenti nei quattro esemplari di Villa Zeri. Già il quinto pilastro (n. 6) presenta uno stile completamente diverso, con i rilievi molto sporgenti, meno raffinati di quelli delle lesene Della Rovere. Anche iconograficamente questa si differenzia di altri pezzi della decorazione del palazzo dei SS. Apostoli, trovando i suoi unici riscontri nel citato camino del Salone turco. Entrambi richiamano chiaramente l’antico altare di S. Maria del Popolo, una delle poche opere firmate dal Bregno, oggi conservato nella sagrestia della chiesa (Figura 15). Queste differenze pongono un problema di non facile soluzione. Abbiamo parlato inizialmente di dieci lesene che decorano Villa Zeri e finora sono state analizzate soltanto cinque. Si dà il caso che non abbiamo modo di sapere con certezza se tutte le dieci lesene provengono dallo stesso luogo, o se sono appartenenti a contesti diversi. come abbiamo visto, non è possibile basarsi unicamente sulle differenze stilistiche per escludere le altre cinque, che hanno, infatti, una certa affinità iconografica con le prime, ma allo stesso tempo non abbiamo trovato nessun indizio conclusivo che possa indicare la loro origine. Questi pezzi (Figuras 5, 7, 8, 9 e 10), molto diversi fra loro sia nello stile come nella misura, non hanno nessun tratto che permetta di identificare con sicurezza la loro provenienza. È possibile parlare soltanto di somiglianze puntuali e affinità, e formulare delle ipotesi. Quello che sembra avere più punti in comune con la decorazione bregnesca del palazzo sarebbe


Dez Lesenas na Villa Zeri il pilastro n. 8 (Figura 8). Ha misure molto vicine a quelle della lesena n. 6 (circa 20/22 × 125 cm) e i rilievi sono collegabili ad alcuni decorazioni di ambito bregnesco. Anche questi due frammenti di lesene (Figuras 9 e 10), che sicuramente formano una coppia coerente, potrebbero provenire dal complesso dei SS. Apostoli. Questi due pezzi sembrano tagliati, ma potrebbero anche far parte di una cornice di porta o finestra con un motivo decorativo continuo, però formata da diversi pezzi di marmo messi insieme, come si vedeva nell’antica finestra (non più esistente come tale) della terza sala del Palazzo del Vaso. Anche se lo stile non sembra raffinato come quello delle lesene Della Rovere, l’iconografia si accorda a quella che si vede in generale nel palazzo. Molto probabilmente Federico Zeri trovò queste lesene sul mercato antiquario, anche se aveva, in effetti, rapporti con la famiglia colonna, in particolare con la principessa Isabelle Sursock colonna come si apprende dalla sua autobiografia.10 È molto improbabile che questi pezzi siano stati tolti dal complesso in tempi recenti: i (pochi) frammenti lapidei trovati sciolti nel palazzo furono gelosamente conservati e murati nel giardino e in una stanza annessa alla Sala del Mascherone, formando il lapidario. Devono essere stati dispersi dopo uno dei tanti riadattamenti fatti lungo i secoli. nonostante questa dispersione, queste suppellettili rimasero insieme e molto probabilmente furono acquistati dallo storico come un gruppo. Lo stesso Zeri doveva avere le sue idee sui pezzi che decoravano la sua biblioteca: se guardiamo la loro disposizione negli ambienti, è possibile percepire che furono distribuiti secondo una logica molto chiara che distingueva lo stile, le dimensioni, e le diverse affinità delle lesene (Figura 11). Salendo la scala a chiocciola che porta alla parte superiore della biblioteca si arriva in un ambiente decorato da un’unica lesena, la n. 5, non a caso quella più diversa dalle altre sia come stile, in certi punti molto piatto, senza profondità, sia come misura (20 × 105 cm) (Figura 5). Forse questa è l’unica vera eccezione del gruppo, perché, in effetti, tutti gli altri pezzi potrebbero benissimo provenire dal palazzo ai SS. Apostoli. Questo, invece, lascia molti dubbi, sia perché questo horror vacui presente nella lesena non esiste nell’opera del

10

F. Zeri. Confesso che ho sbagliato. Milano, 1995, p. 117-8.

Della Rovere, a iconografia concorda com aquela que se vê em geral no palácio. Muito provavelmente Federico Zeri encontrou estas lesenas no mercado antiquário, apesar de ter mantido relações com a família colonna, em particular com a princesa Isabelle Sursock Colonna, como se lê em sua autobiografia.10 É bastante improvável que estas peças tenham sido retiradas do complexo em tempos recentes: os (poucos) fragmentos lapídeos encontrados no palácio foram cuidadosamente conservados e murados no jardim e em um cômodo anexo à Sala Del Mascherone, formando o chamado lapidário. Eles devem ter sido dispersos depois de uma das tantas reformas feitas ao longo dos séculos. Apesar desta dispersão, estas obras permaneceram unidas e muito possivelmente foram compradas em conjunto pelo historiador. O próprio Zeri deveria ter suas ideias sobre as peças que decoravam a sua biblioteca: se observarmos a disposição delas no ambiente, podemos perceber que foram distribuídas segundo uma certa lógica muito clara que distingue o estilo, as dimensões e as diversas afinidades entre elas (Figura 11). Subindo a escada em caracol que leva à parte superior da biblioteca, chega-se a um ambiente decorado por uma única lesena, a no 5 (Figura 5), não por acaso aquela que apresenta mais diferenças, seja como estilo, em certo ponto muito plano, sem profundidade, seja no que diz respeito às medidas (20 × 105 cm). Esta é, talvez, a única verdadeira exceção do grupo, porque, para todos os efeitos, todas as outras peças poderiam vir do palácio de SS. Apostoli. Esta, ao contrário, deixa muitas dúvidas, seja porque o horror vacui presente nesta lesena não existe na obra de Andrea Bregno, seja por causa do estado de conservação muito pior do que o das outras. As lesenas aqui denominadas Della Rovere, por outro lado, ornam a primeira sala à direita, e têm uma inegável afinidade entre si, já ilustrada acima. O cômodo à extrema esquerda é decorado com o par de fragmentos de lesenas com o motivo interrompido (Figuras 9 e 10). Finalmente, as últimas três pilastras ficam no ambiente à esquerda da escada, e as suas dimensões são bastante semelhantes (em particular as medidas das lesenas 6 e 8). também a moldura é a mesma nas três peças. É possível que, frequentando e conhecendo o palácio colonna, Federico Zeri tenha percebido que essas obras, mas particularmente a lesena no 6 que lembra fortemente a lareira 10

ZERI, F. Confesso che ho sbagliato. Milão, 1995, p. 117-8.

RHAA 14

115


Patrícia Dalcanale Meneses do Salão turco, formavam um grupo originário do complexo – talvez com a exceção da pilastra no 5. Estas obras dão a ideia do quão rico era o esquema decorativo do palácio, comparável, naquela época, só ao seu modelo urbinate. O artista responsável foi muito hábil ao adaptar os motivos e valores feltrescos a um novo contexto político, aquele romano, aproveitando, quando possível, as semelhanças entre os dois personagens. como Federico da Montefeltro, Giuliano Della Rovere era muito ligado à atividade militar. Além de participar ativamente nas questões políticas do estado pontifício, a fim de defender o território e os interesses da Santa Sé, ele se envolvia também na ação real, participando de várias campanhas militares, como por exemplo o assédio de Osimo em 1486-1487. nem a tiara papal o fará abandonar a atividade bélica, como demonstra a campanha de 1506 contra os Bentivoglio de Bolonha.11 Apesar de seu empenho militar, ele continuava a ser um religioso na corte papal, e como tal construiu os seus palácios romanos. Foi criado, então, um programa decorativo para SS. Apostoli que retomasse a sofisticação do palácio de Federico e aproveitasse todos os espaços disponíveis para ressaltar essa dupla característica do mecenas, alternando panóplias e símbolos religiosos. Foi considerada também a destinação do edifício, ou seja, um palácio privado inserido em um ambiente religioso, pois os dois aspectos, que poderíamos até definir como vida ativa e vida contemplativa, estão bem equilibrados. O lado guerreiro do cardeal é mais bem sublinhado, por outro lado, nos ambientes de relevância militar, como Ostia e Grottaferrata, onde o elemento sacro quase desaparece.

11

cf. SHAW, c. Giulio II. torino, 1995, p. 156-7.

116

Bregno, sia a causa dello stato di conservazione molto peggiore rispetto agli altri pezzi. Le lesene qui nominate Della Rovere, invece, ornano la prima stanza a destra, e hanno un’innegabile affinità fra loro, già illustrata sopra. Il vano all’estrema sinistra è decorato con il paio di frammenti di lesene con il motivo interrotto (n 9 e 10). Infine, gli ultimi tre pilastri sono nell’ambiente al lato sinistro dalla scala, e le loro dimensioni sono abbastanza simili (in particolare le misure delle lesene 6 e 8, come abbiamo visto). Anche la cornice è la stessa in tutti e tre pezzi. È possibile che, frequentando e conoscendo il Palazzo colonna, Federico Zeri abbia capito che queste suppellettili, ma particolarmente la lesena n. 6 che richiama fortemente il camino del Salone turco, formavano un gruppo proveniente dal complesso – forse con l’eccezione del pilastro n. 5. Questi pezzi danno l’idea di quanto ricco fosse lo schema decorativo del palazzo, paragonabile, a quell’epoca, soltanto al suo modello urbinate. L’artista responsabile fu molto abile nel adattare i motivi e i valori feltreschi a un nuovo contesto politico, quello romano, approfittando, quando possibile, le somiglianze fra i due personaggi. come Federico da Montefeltro, Giuliano Della Rovere era molto legato all’attività militare. Oltre a partecipare attivamente alle questioni politiche dello stato pontificio, per difendere il territorio e gli interessi della Santa Sede egli si impegnava anche nell’azione vera e propria, prendendo parte a diverse campagne militari, come per esempio l’assedio di Osimo nel 1486-1487. neanche la tiara papale gli farà abbandonare l’attività di condottiero, come dimostra la campagna del 1506 contro i Bentivoglio di Bologna.11 nonostante il suo impegno militare, restava sempre un religioso alla corte papale, e come tale costruì i suoi palazzi romani. Si creò, dunque, un programma decorativo per SS. Apostoli che riprendeva la sofisticazione del palazzo di Federico, e approfittava di tutti gli spazi disponibili per risaltare questa doppia caratteristica del committente, alternando panoplie e simboli religiosi. Si è considerata anche la destinazione dell’edificio, ossia, un palazzo privato inserito in un ambiente religioso, perché i due aspetti, che possiamo pure definire vita attiva e contemplativa, sono abbastanza equilibrati. Il lato guerriero del cardinale è più sottolineato, invece, negli ambienti di rilevanza militare come Ostia e Grottaferrata, dove l’elemento sacro quasi scompare.

11

RHAA 14

cfr. c. Shaw. Giulio II. torino, 1995, p. 156-7.


Dez Lesenas na Villa Zeri 1

2

3

4

1

Lesena n. 1, Villa Zeri, Mentana.

2

Lesena n. 2, Villa Zeri, Mentana.

3

Lesena n. 3, Villa Zeri, Mentana.

4

Lesena n. 4, Villa Zeri, Mentana.

RHAA 14

117


PatrĂ­cia Dalcanale Meneses 5

6

7

5

Lesena n. 5, Villa Zeri, Mentana.

6

Lesena n. 6, Villa Zeri, Mentana.

7

Lesena n. 7, Villa Zeri, Mentana.

118

RHAA 14


Dez Lesenas na Villa Zeri 8

8

Lesena n. 8, Villa Zeri, Mentana.

9

Lesena n. 9, Villa Zeri, Mentana.

10

Lesena n. 10, Villa Zeri, Mentana.

11 Esquema da parte superior da biblioteca Zeri, com distribuição das obras. Reconstituição gráfica: Daniele Giardina.

9

10

11

RHAA 14

119


Patr铆cia Dalcanale Meneses 12

12 Detalhe de banco marm贸reo, segunda sala do andar nobre, Convento de SS. Apostoli, Roma. 13

13

120

RHAA 14

Detalhe da lesena n. 1, Villa Zeri, Mentana.


Dez Lesenas na Villa Zeri

14a

14b

14a e 14b Lareira, Salão Turco, Palazzo Colonna, Roma (retirado de Safarik, 1999).

RHAA 14

121


PatrĂ­cia Dalcanale Meneses

15 Andrea Bregno. Detalhe do antigo altar maior, Santa Maria Del Popolo, Roma.

15

122

RHAA 14


Caracterização de crostas de origem biológica em sítios arqueológicos no Vale do Rio Peruaçu – MG Characterization of crusts of biological origin in archaeological sites in the Peruaçu River Valley - MG

LUÍZA MARIA DE MELO PINHEIRO

Doutoranda em Química, Departamento de Química, Instituto de Ciências Exatas – ICEx, UFMG. E-mail: luizaquim@yahoo.com.br PhD Student in Chemistry, Chemistry Department, Institute of Mathematical Sciences – ICEx, UFMG. E-mail: luizaquim@yahoo.com.br

MARIA IRENE YOSHIDA

Doutora em Química, Professora Associada II, Departamento de Química, Instituto de Ciências Exatas – ICEx, UFMG, Bolsista de Produtividade do CNPq. E-mail: mirene@qui.ufmg.br PhD in Chemistry, Associate Professor II, Chemistry Department, Institute of Mathematical Sciences – ICEx, UFMG. Researcher of CNPq Productivity. E-mail: mirene@ufmg.br

LUIZ ANTÔNIO CRUZ SOUZA

Doutor em Química, Professor Associado II, Laboratório de Ciência da Conservação – LACICOR, Escola de Belas Artes, UFMG, Bolsista de Produtividade do CNPq. E-mail: luiz-souza@ufmg.br PhD in Chemistry, Associate Professor II, Laboratory of Conservation Science – LACICOR, School of Fine Arts, UFMG. Researcher of CNPq Productivity. E-mail: luiz-souza@ufmg.br

Resumo A presença de crostas de diferentes composições é uma ameaça para o patrimônio cultural. No Brasil, a maioria das pinturas pré-históricas se encontra em paredões expostos às intempéries. Para esta pesquisa, foram coletadas amostras no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, em Minas Gerais. A caracterização físico-química foi feita por análise térmica, EDS, DRX e FTIR. As análises indicaram a presença de carbonato de cálcio (CaCO3 ), como um produto de degradação da rocha, e de oxalato de cálcio (CaC2O4·2H2O) e sulfato de cálcio (CaSO4·2H2O) em áreas onde cresce um micro-organismo. Este micro-organismo é provavelmente o líquen Aspicilia calcarea, que já foi encontrado em alguns sítios arqueológicos em outros países. PalavRas-chave

Arqueologia Brasileira, Arte Rupestre, Análise Térmica, Oxalato de Cálcio, Líquen.

abstRact The presence of crusts of different composition and origin is a threat to cultural heritage. In Brazil, most of the prehistoric paintings are found on rock walls exposed to atmospheric weathering. For this research, samples were taken in the Cavernas do Peruaçu National Park, located in Minas Gerais. The physico-chemical characterization was carried out using thermal analysis, EDS, XRD and FTIR. The analyses indicated the presence of calcium carbonate (CaCO3 ), as a degradation product and showed calcium oxalate (CaC2O4·2H2O) and calcium sulfate (CaSO4·2H2O) in areas where a microorganism grows. This microorganism, probably the lichen Aspicilia calcarea, has already been found in archaeological sites around the globe. KeywoRds

Brazilian Archaeology, Rock Paintings, Thermal Analysis, Calcium Oxalate, Lichen.

RHAA 14

123


Luíza Maria de Melo Pinheiro, Maria Irene Yoshida, Luiz Antônio Cruz Souza Introdução

Introduction

A ocupação do território brasileiro desde os tempos pré-históricos é evidenciada pela existência de sítios arqueológicos em todas as regiões. Apenas no Estado de Minas Gerais, os pesquisadores já relataram muitas centenas deles. Branco e Souza1 descreveram as principais causas de degradação num abrigo no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu. O Rio Peruaçu corre em uma região de rocha calcária e acredita-se ter sido no passado um rio subterrâneo, e as várias cavernas hoje existentes em seu curso são o resultado de grandes desabamentos de rochas.2 O Parque Nacional Cavernas do Peruaçu localiza-se no norte de Minas Gerais, a 620 quilômetros de Belo Horizonte. Tem uma área de 56.800 ha e concentra um grande número de sítios espeleológicos e arqueológicos. Nessa região, o clima é quente e seco, com uma estação chuvosa no período de novembro a abril. A passagem de povos pré-históricos é atestada por restos de fogueiras, sepultamentos, peças de cerâmica, pinturas e gravuras, havendo evidência de ocupação humana de 12.000 anos B.P.3 Em relação às pinturas rupestres, foram identificados diferentes estilos pictóricos. A tradição pictórica mais antiga é denominada Nordeste, típica desta região brasileira, que se espalhou para outras áreas.4 A tradição pictórica típica do Vale do Rio Peruaçu denomina-se São Francisco, e encontram-se também exemplos da tradição Nordeste.5

The occupation of the Brazilian territory since prehistoric times is evidenced by the existence of archaeological sites in all the regions. In the State of Minas Gerais alone, researchers have already reported many hundreds of them. Branco and Souza1 have described the main causes of degradation in a shelter in the Cavernas do Peruaçu National Park. The Peruaçu River runs through an area of calcareous rock and it was believed it was once a subterranean river, and the several caves now existing are the result of massive rock falls.2 The Cavernas do Peruaçu National Park is located in the North of Minas Gerais, 620 km from the capital, Belo Horizonte. It has an area of 56,800 ha, and concentrates a large number of speleological and archaeological sites. In this region, the climate typically is hot and dry, with a rainy season in the period from November through April. The passage of prehistoric peoples is attested by fire remains, burial sites, pottery, pictographs and petroglyphs, with evidence of human occupation since 12,000 years B.P.3 Regarding the rock paintings, different pictorial styles were identified. The oldest pictorial tradition found in Brazil is called Nordeste predominantly in the northeastern Brazilian region, which spread for other areas.4 The pictorial tradition typical of the Peruaçu River valley is denominated São Francisco, and a few examples of the Nordeste tradition are also present.5

O foco desta pesquisa é a análise físico-química de uma crosta branca encontrada em diferentes áreas no parque. Foram escolhidos três sítios: Malhador, Janelão e Toca Vermelha. Os primeiros são paredões rochosos com pinturas expostas à luz solar direta e à chuva, e são conhecidos e visitados há muito tempo, antes da criação do parque em 1999. O terceiro sítio é pouco conhecido e propiciou uma oportunidade para comparação. As pinturas estão em melhor estado de conservação e, embora também tenham sido executadas sobre paredões de rocha, estão abrigadas da luz solar direta e da chuva. A escolha dos sítios se 1 BRANCO, H. D. O. C.; SOUZA, L. A. C. “Rock art conservation in the Peruaçu valley, Minas Gerais, Brazil”. In: Preprints of the 13th Triennial Meeting of the ICOM Committee for Conservation. Rio de Janeiro, 2002, p. 556-559. 2 AULER, A.; RUBBIOLI, E.; BRANDI, R. 2001. “As Grandes Cavernas do Brasil”. In: Grupo Bambuí de Pesquisas Espeleológicas, Belo Horizonte, 2001. 3 PROUS, A.; BAETA, A. M. “Arte rupestre no vale do Rio Peruaçu. Aspectos gerais”, O Carste, v. 13, n. 3, 2001, p. 152-158. 4 MARTIN, G.; ASÓN, I. “Arte rupestre pré-histórico en Brasil: la tradición Nordeste”, Revista de História da Arte e Arqueologia, n. 4, 2000, p. 7-26. 5 RIBEIRO, L.; ISNARDIS, A. “Os conjuntos gráficos do Alto-médio São Francisco (Vale do Peruaçu e Montalvânia) – Caracterização e sequências sucessórias”. In: Arquivos do Museu de História Natural – UFMG, Belo Horizonte, v. XVII/XVIII, 1996/1997, p. 243-285.

124

RHAA 14

The focus of this research is the physicochemical analysis of a white crust found in different areas within the park. Three shelters were chosen: Malhador, Janelão and Toca Vermelha.

BRANCO, H. D. O. C.; SOUZA, L. A. C. “Rock art conservation in the Peruaçu valley, Minas Gerais, Brazil”. In: Preprints of the 13th Triennial Meeting of the ICOM Committee for Conservation. Rio de Janeiro, 2002, p. 556-559. 2 AULER, A.; RUBBIOLI, E.; BRANDI, R. 2001. “As Grandes Cavernas do Brasil”. In: Grupo Bambuí de Pesquisas Espeleológicas, Belo Horizonte, 2001. 3 PROUS, A.; BAETA, A. M. “Arte rupestre no vale do Rio Peruaçu. Aspectos gerais”, O Carste, v. 13, n. 3, 2001, p. 152-158. 4 MARTIN, G.; ASÓN, I. “Arte rupestre prehistórico en Brasil: la tradición Nordeste”, Revista de História da Arte e Arqueologia, n. 4, 2000, p. 7-26. 5 RIBEIRO, L.; ISNARDIS, A. “Os conjuntos gráficos do Alto-médio São Francisco (Vale do Peruaçu e Moltalvânia) – Caracterização e seqüências sucessórias”. In: Arquivos do Museu de História Natural – UFMG, Belo Horizonte, v. XVII/XVIII, 1996/1997, p. 243-285. 1


Sítios arqueológicos do Peruaçu The first two are rock walls with paintings exposed to direct sunlight and rain, known and visited for many years before the creation of the park in 1999. The third shelter is not widely known and provided an opportunity for comparison. The paintings are in a better state of preservation and, although they were executed on walls, these are sheltered from direct sunlight and rain. The choice of the shelters was based mostly on the presence of the white crust, covering areas with or without paintings. In the Malhador shelter, a large wall is almost totally covered with it, which has brought about the destruction of the rock art. It is possible to see remains of the paint under the crust (Figure 1) (Figure 2). In the Janelão Shelter the crusts are not so large or so thick and there is lesser damage to the paintings related to them. In Toca Vermelha the crust is restricted to a very small area. There are several works that describe the presence of crusts and films caused by microorganisms on monuments and rock paintings in many countries. Special attention has been given to films of oxalate salts, in two symposia held in Milan, Italy, in 1989 and 1996 (International Symposia on Oxalate Films in the Conservation of Works of Art). This is the first study of such a crust on an archaeological site in Brazil. At first sight, the crust seems to originate from the action of a lichen upon the rock, which is dissolved by the acids secreted by the lichen. The reaction produces thus calcium salts, one of which is calcium oxalate, since oxalic acid is a very common lichen acid. Materials and Methods The photographic documentation of the damaged areas, with or without paintings, was carried out prior to sampling. The samples were taken from the Malhador and the Janelão shelters. The existence of the crusts in the Malhador shelter has been known for some years and, due to their size and thickness, it was easier to photograph and sample. The samples were taken mostly with the use of instruments for microscopic surgery, but in the most damaged areas it was possible to take larger ones. Some samples are small fragments scraped off the rock wall and contain layers of the rock substrate, pigments and the crust. A large, thin fragment, about 7 × 4 cm, was taken from an area without paintings. It was covered by the lichen and provided material for the analysis of the degradation products. The description of the samples is shown in Table 1.

baseou, principalmente, na presença da crosta branca, cobrindo áreas com ou sem pinturas. No Abrigo do Malhador, um grande paredão se encontra quase completamente coberto por ela, o que causou a destruição das pinturas. É possível ver restos do pigmento sob a crosta (Figura 1) e (Figura 2). No Abrigo do Janelão as crostas não são tão grandes ou tão espessas, e o dano causado por elas é menor. Na Toca Vermelha a crosta se restringe a uma área muito pequena. Vários trabalhos na literatura descrevem a presença de crostas e filmes causados por micro-organismos em monumentos e pinturas rupestres em vários países. Foi dada especial atenção aos filmes de oxalato de cálcio, em dois simpósios ocorridos em Milão, na Itália, em 1989 e em 1996 (Simpósios Internacionais sobre Filmes de Oxalato na Conservação de Obras de Arte). Este é o primeiro estudo de uma crosta desse tipo em sítio arqueológico no Brasil. À primeira vista, a crosta parece ter origem na ação de um líquen sobre a rocha calcária, que é dissolvida pelos ácidos secretados pelo líquen. A reação produz sais de cálcio, sendo um deles o oxalato de cálcio, uma vez que o ácido oxálico é um ácido liquênico muito comum. Materiais e Métodos Foi feita a documentação fotográfica das áreas degradadas, com ou sem pinturas, antes da coleta de amostras. As amostras foram retiradas dos Abrigos do Malhador e do Janelão. A existência das crostas no Abrigo do Malhador já é conhecida há muitos anos e, devido a seu tamanho e espessura, foi mais fácil fotografá-las e coletar o material. As amostras foram retiradas, em sua maioria, com instrumentos para microcirurgia, mas nas áreas mais danificadas foi possível retirar amostras maiores. Algumas delas são pequenos fragmentos raspados do paredão e contêm camadas do substrato, do pigmento e da crosta. Um fragmento maior da rocha, de cerca de 7 × 4 cm, foi retirado de uma área sem pinturas. Estava coberto pelo micro-organismo e forneceu material para a análise dos produtos de degradação. A descrição das amostras está na Tabela 1. Tabela 1 Descrição das amostras coletadas nos sítios arqueológicos do Vale do Peruaçu. Amostra

Abrigo

Descrição

1912T

Malhador

1915T

Malhador

1919T

Janelão

Material raspado da crosta Fragmento coberto pela crosta (7 × 4 cm) Fragmento da rocha suporte

RHAA 14

125


Luíza Maria de Melo Pinheiro, Maria Irene Yoshida, Luiz Antônio Cruz Souza No laboratório, as amostras foram observadas e fotografadas com um microscópio estereoscópico Olympus, modelo SZ-CTV, equipado com uma câmera digital Roper Scientific Photometrics. Foram realizadas as seguintes análises e usados os instrumentos a seguir descritos. A análise térmica: termogravimetria (TG) e a análise térmica diferencial (DTA) foram realizadas com um aparelho Netzsch STA 409EP, com fluxo de ar de 100 mL min–1 e razão de aquecimento de 10 °C min–1 até 950 °C, num cadinho de alumina; difração de raios X (DRX): difratômetro Rigaku, radiação Cu Kα, operando a 30 mA e 40 kV, a 4° min–1; espectroscopia por energia dispersiva (EDS): aparelho Shimadzu modelo EDX-800, com tubo de ródio, intervalo de detecção: Na-U; espectroscopia no infravermelho com transformada de Fourier (FTIR): espectrômetro Bomem MB-series Michelson (4000-400 cm–1, resolução de 4 cm–1).

Resultados e Discussão O micro-organismo cresce sobre a rocha, originando-se numa pequena área e formando um padrão circular (Figura 3). Após a morte, o micro-organismo se desprende do substrato, deixando sobre a rocha uma massa branca de sais e matéria orgânica. Uma foto tirada do fragmento 1915T (Figura 4) mostra características similares às do líquen Aspicilia calcarea, uma espécie que cresce em rochas em áreas de clima quente e semiárido.6,7 Retirou-se material de um fragmento de rocha (amostra 1919T), e o resultado de EDS (Ca: 96%) indicou a composição da rocha (CaCO3, carbonato de cálcio). A análise por EDS para a crosta branca (amostra 1915T) revela um alto teor de Ca (64%), atribuído à produção de sulfato de cálcio e de oxalato de cálcio pelo micro-organismo. A presença de sulfato de cálcio é também atestada por um alto teor de S (33%). Mantendo-se em mente o intervalo de detecção do aparelho (Na-U), outra explicação para o alto teor de cálcio é o fato de que C e O da calcita não são detectados. Na Tabela 2 estão descritos os minerais identificados por DRX, incluindo os resultados para os resíduos da análise térmica. Os resultados de DRX mostram

Table 1 Description of the samples taken from the archaeological shelters of Peruaçu Valley.

126

RHAA 14

Shelter

Description

1912T

Malhador

Rock substrate with white crust

1915T

Malhador

Thin fragment (7 cm large, 4 cm wide) with white crust

1919T

Janelão

Fragment of rock substrate

In the laboratory, the samples were observed and photographed using a model SZ-CTV Olympus stereomicroscope equipped with a Roper Scientific Photometrics digital camera. The following analytical methods and instruments were used: thermal analysis: thermogravimetry (TG) and differential thermal analysis (DTA) were carried out on a Netzsch STA 409EP instrument, with air flow rate of 100 mL min-1 and heating rate of 10 °C min-1 up to 950 °C, in an alumina crucible; X-ray diffraction (XRD): Rigaku instrument, Cu Kα radiation, operating at 30 mA and 40 kV, at 4° min-1; energy dispersive spectroscopy (EDS): EDX-800 model Shimadzu instrument, with a rhodium tube, detection interval: Na-U; Fourier-transform infrared spectroscopy (FTIR): spectra recorded by a Bomem MB-series Michelson spectrophotometer in the transmission mode (4000-400 cm-1, 4 cm-1 resolution). Results and Discussion The lichen grows on the rock originating from a small spot and forming a circular pattern (Figure 3). After death, it falls off the substrate, leaving upon it a white mass of salts and organic material. A picture taken from fragment 1915T (Figure 4) shows features similar to those of the lichen Aspicilia calcarea, a species that grows on rocks in dry and hot semiarid climates.6,7 Material was taken from a rock fragment (sample 1919T) and the EDS result (Ca: 96 %)

RUSS, J.; KALUARACHCHI, W. D.; DRUMMOND, L.; EDWARDS, H. G. M. “The nature of a whewellite-rich rock crust associated with pictographs in southwestern Texas”, Studies in Conservation, v. 44, 1999, p. 91-103. 7 RUSS, J.; PALMA, R. L.; LOYD, D. H.; BOUTTON, T. W.; COY, M. A. “Origin of the whewellite-rich rock crust in the lower Pecos region of Southwest Texas and its significance to paleoclimate reconstructions”, Quaternary Research, v. 46, n. 1, 1996, p. 27-36. 6

6 RUSS, J.; KALUARACHCHI, W. D.; DRUMMOND, L.; EDWARDS, H. G. M. “The nature of a whewellite-rich rock crust associated with pictographs in southwestern Texas”, Studies in Conservation, v. 44, 1999, p. 91-103. 7 RUSS, J.; PALMA, R. L.; LOYD, D. H.; BOUTTON, T. W.; COY, M. A. “Origin of the whewellite-rich rock crust in the lower Pecos region of Southwest Texas and its significance to paleoclimate reconstructions”, Quaternary Research, v. 46, n. 1, 1996, p. 27-36.

Sample


Sítios arqueológicos do Peruaçu indicates the rock composition (CaCO3, calcium carbonate). The EDS analysis for the white crust (sample 1915T) shows high Ca and S contents (Ca: 64 %; S: 33 %), which are attributed to the production of calcium sulfate and calcium oxalate by the microorganism. It must be kept in mind the detection interval of the equipment (Na-U), thus C and O of calcite are excluded, which accounts for the very high calcium content. Table 2 shows the mineral phases identified by X-ray powder diffraction (XRD), including the results for the sample residues after the thermal analyses. The XRD results show the minerals formed by the weathering of the rock or the action of the microorganism. Thus, aragonite (CaCO3) is a product of rock weathering and gypsum (CaSO4.2H2O) and weddellite (CaC2O4.2H2O) are the products formed by the microbiological action. Table 2 X-ray powder diffraction results for the samples taken from the archaeological shelters. Sample

Identified minerals

Identified minerals (residues from TG/ DTA analyses)

1912T

gypsum, weddellite

calcite, aragonite, portlandite

1915T

gypsum, weddellite

portlandite, anhydrite

1919T

calcite

Portlandite

os minerais formados pela intemperização da rocha ou pela ação do micro-organismo. Assim, a aragonita (CaCO3) é um produto de intemperização e a gipsita (CaSO4·2H2O) e a wedelita (CaC2O4·2H2O) são os produtos formados pela ação microbiológica. Tabela 2 Resultados de difração de raios X das amostras coletadas nos sítios arqueológicos.

Weddellite

1912T

1915T

TG (% mass)

TG (% mass)

Tpeak DTA/°C

TG (% mass)

Tpeak DTA/°C

22.0

17.5

140.9 endo 178.1 endo

18.4

143.8 endo 196.6 endo

17.1

23.3

466.1 exo

22.8

468.5 exo

26.8

16.4

719.8 endo

23.2

739.7 endo

It is possible to identify three mass loss steps in the curves, which agree with the thermal

Minerais identificados

1912T

Gipsita, wedelita

1915T 1919T

Gipsita, wedelita Calcita

Minerais identificados nos resíduos Calcita, aragonita, portlandita Portlandita, anidrita Portlandita

Embora algumas amostras contenham pigmentos, o limite de detecção não foi suficiente para sua identificação. Os resultados da análise térmica confirmam a presença desses minerais, conforme se vê a seguir (Tabela 3), para as amostras 1912T e 1915T, comparados com os valores teóricos para a decomposição térmica da wedelita. Tabela 3 Resultados de termogravimetria (TG) e análise térmica diferencial (DTA) para as amostras 1912T e 1915T – Comparação com a wedelita.

Although some of the samples contain pigments, the detection limit was not sufficient for the identification of these phases. The thermal analyses results confirm the presence of these minerals. Table 3 shows the results for samples 1912T and 1915T, compared to the theoretical values for the thermal decomposition of weddellite. Table 3 Thermogravimetry (TG) and differential thermal analysis (DTA) results for samples 1912T and 1915T – Comparison with weddellite.

Amostra

Wedelita

1912T

TG (% perda de massa)

TG (% perda de massa)

22.0

17.5

17.1 26.8

23.3 16.4

Tpico DTA/°C 140.9 endo 178.1 endo 466.1 exo 719.8 endo

1915T TG (% perda de massa) 18.4 22.8 23.2

Tpico DTA/°C 143.8 endo 196.6 endo 468.5 exo 739.7 endo

É possível identificar três etapas de perda de massa nas curvas, o que está de acordo com a decomposição térmica de CaC2O4·2H2O.8,9 A diferença nos valores percentuais, quando KUTAISH, N.; AGGARWAL, P.; DOLLIMORE, D. “Thermal analysis of calcium oxalate samples obtained by various preparative routes”, Thermochimica Acta, v. 297, 1997, p. 131-137. 9 FROST, R. L.; WEIER, M. L. “Thermal treatment of whewellite – a thermal analysis and Raman spectroscopic study”, Thermochimica Acta, v. 409, 2004, p.79-85. 8

RHAA 14

127


Luíza Maria de Melo Pinheiro, Maria Irene Yoshida, Luiz Antônio Cruz Souza se compara com o produto puro, deve-se ao fato de que há outras substâncias nas amostras, incluindo material orgânico do micro-organismo, o que resultou numa porcentagem mais alta de perda na segunda etapa. O material orgânico é completamente decomposto na faixa de 450-500 °C. O pico exotérmico pronunciado na curva DTA (464-468 °C) é devido à liberação de CO(g) pelo CaC2O4 anidro e a reação do gás com a atmosfera do forno, gerando CO2(g). As diferenças nas outras etapas devem-se à presença da gipsita (CaSO4·2H2O), que perde água junto com o oxalato na mesma etapa, causando um teor menor de perda de massa na terceira etapa. Na Tabela 4 tem-se a comparação entre as curvas TG/ DTA para as amostras e a gipsita (produto comercial). A desidratação ocorre em duas etapas (valores encontrados na literatura: 162 e 174 °C),10 e outro fenômeno é a cristalização de CaSO4 anidro (378 °C).10 Os resultados de DRX para os resíduos da análise térmica, vistos na Tabela 2, confirmam os minerais identificados. Para as amostras contendo gipsita e wedelita, verificou-se que os resíduos continham portlandita (Ca(OH)2) e anidrita (CaSO4), e até mesmo calcita e aragonita em pequenas quantidades.

decomposition of CaC2O4.2H2O8,9. The differences in the percentage values, when one compares with the pure product, are due to the fact that the samples contain other substances, including the organic material from the microorganism, which accounts for a higher percentage of mass loss in the second step. This organic material is completely decomposed around 450-500 °C. The pronounced exothermic peak in the DTA curve (at 464-468 °C) is due to the liberation of CO(g) by anhydrous CaC2O4 and the reaction of the gas with the oven atmosphere, producing CO2(g). The differences in the other steps is accounted for by the presence of gypsum (CaSO4.2H2O), which loses water at the same step with the oxalate, causing a lower overall mass loss percentage in the third step. A comparison between the TG/DTA curves for the samples and gypsum (commercial product) is shown in Table 4. The dehydration occurs in two steps (values found in the literature: 162 e 174 °C)10 and the other feature is the crystallization of anhydrous CaSO4 (378 °C).10 Table 4 Thermogravimetry (TG) and differential thermal analysis (DTA) results for samples 1912T and 1915T – Comparison with gypsum.

Tabela 4 Resultados de termogravimetria (TG) e análise térmica diferencial (DTA) para as amostras 1912T e 1915T – Comparação com a gipsita. Gipsita

TG (% perda de massa)

22.1 –

Tpico DTA/°C

151.7 endo 162.2 endo 375.0 exo

1912T

TG (% perda de massa)

17.5 –

Tpico DTA/°C

140.9 endo 178.1 endo 354.7 exo

1915T

TG (% perda de massa)

18.4 –

Tpico DTA/°C

143.8 endo 196.6 endo 365.0 exo

O resíduo da decomposição do oxalato de cálcio é CaO, que absorve água rapidamente e transforma-se em Ca(OH)2. Se a amostra não for analisada imediatamente, absorverá também CO2, daí a presença de carbonato de cálcio. A evidência dos espectros de FTIR confirma a presença desses minerais nas amostras. A banda a 3550-3200 cm–1 (Figura 5) corresponde a estiramentos (simétrico e assimétrico) das moléculas de água da gipsita e da wedelita. A banda 10 HATAKEYAMA, T.; LIU, Z. Handbook of thermal analysis. Chichester: John Wiley & Sons, 1998.

128

RHAA 14

Gypsum

1912T

1915T

TG Tpeak (% mass DTA/°C loss)

TG Tpeak (% mass DTA/°C loss)

TG Tpeak (% mass DTA/°C loss)

22.1

151.7 endo 162.2 endo

17.5

140.9 endo 178.1 endo

18.4

143.8 endo 196.6 endo

375.0 exo

354.7 exo

360,0 exo

The XRD results for the thermal analysis residues showed in Table 2 confirm the minerals identified so far. For the samples containing gypsum and weddellite, the residues were found to contain portlandite (Ca(OH)2) and anhydrite (CaSO4), and even calcite and aragonite in small amounts. The residue for the thermal decomposition of calcium oxalate is CaO, which rapidly absorbs water and becomes Ca(OH)2. If the sample is not very soon analyzed, it

KUTAISH, N.; AGGARWAL, P.; DOLLIMORE, D. “Thermal analysis of calcium oxalate samples obtained by various preparative routes”, Thermochimica Acta, v. 297, 1997, p. 131-137. 9 FROST, R. L.; WEIER, M. L. “Thermal treatment of whewellite – a thermal analysis and Raman spectroscopic study”, Thermochimica Acta, v. 409, 2004, p. 79-85. 10 HATAKEYAMA, T.; LIU, Z. Handbook of thermal analysis. Chichester: John Wiley & Sons, 1998.

8


Sítios arqueológicos do Peruaçu absorbs also CO2, hence the presence of calcium carbonate. The evidence provided by the FTIR spectra also confirms the presence of these minerals in the samples. The band at 3550-3200 cm-1 (Figure 5) corresponds to stretching (symmetric and asymmetric) of the water molecules in gypsum and weddellite. The band at 16681612 cm-1 is attributed to the presence of CaSO4.2H2O (HOH bending) and CaC2O4.2H2O (CO asymmetric stretching).11 Other bands from the oxalate are at 1316 cm-1 (CO symmetric stretching) and at 781 cm-1 (OCO bending).12 The bands at 1118, 671 and 603 cm-1 are also attributed to CaSO4.2H2O12. Sample 1919T, a fragment of the substrate, is mainly composed by calcite (Figure 6), with typical bands at 1796, 1432, 877 and 712 cm-1 11. Also present is a very small amount of gypsum, confirmed by the small bands at 1146, 670 and 604 cm-1. Conclusions The analyses showed that the main components of the white crust are calcium oxalate dihydrate (CaC2O4.2H2O, weddellite) and calcium sulfate dihydrate (CaSO4.2H2O, gypsum). The microorganism takes micronutrients from the calcareous rock and eliminates the excess calcium in the form of these minerals. Oxalic acid is known to be eliminated by different specimens of microorganisms, which accounts for the formation of weddellite. The observation of the physical features of the microorganism and the existence of a typically hot and dry climate in the region have led to its identification as Aspicilia calcarea, already found in other countries under the same environmental conditions. The differences in damage to the paintings is associated to the exposure to sunlight: in the Malhador shelter the exposure is greater and also the damages. In Toca Vermelha, the recent presence of the lichen may be attributed to increasing dryness of the climate. Many species of algae, fungi, lichens and bacteria are known to colonize all kinds of rocks, which is the natural path to soil formation,

NAKAMOTO, K. Infrared and Raman Spectra of Inorganic and Coordination Compounds. 5th ed. New York: John Wiley & Sons, 1997. 12 DEI, L.; MAURO, M.; BITOSSI, G. “Characterization of salt efflorescences in cultural heritage conservation by thermal analysis”, Thermochimica Acta, v. 317, 1998, p. 133-140.

a 1668-1612 cm–1 é atribuída à presença de CaSO4·2H2O (deformação HOH) e de CaC2O4·2H2O (estiramento assimétrico CO).11 Outras bandas do oxalato estão a 1316 cm–1 (estiramento simétrico CO) e a 781 cm–1 (deformação OCO)12. As bandas a 1118, 671 e 603 cm–1 são também atribuídas a CaSO4·2H2O.12 A amostra 1919T, um fragmento do substrato, é composta principalmente por calcita (Figura 6), com as bandas típicas a 1796, 1432, 877 e 712 cm–1. Há também uma pequena quantidade de gipsita, o que se confirma pelas pequenas bandas a 1146, 670 e 604 cm–1.

Conclusões As análises mostraram que os componentes principais da crosta branca são o oxalato de cálcio diidratado (CaC2O4·2H2O, wedelita) e o sulfato de cálcio diidratado (CaSO4·2H2O, gipsita). O micro-organismo retira micronutrientes da rocha calcária e elimina o excesso de cálcio sob a forma desses minerais. O ácido oxálico é eliminado por várias espécies de micro-organismos, o que explica a formação da wedelita. A observação das características físicas do micro-organismo e o clima tipicamente quente e seco da região levam à suspeita de que pode tratar-se do líquen Aspicilia calcarea, encontrado em outros países com as mesmas condições climáticas. As diferenças nos danos às pinturas estão associadas à exposição à luz solar: no Abrigo do Malhador a exposição é maior e também os danos. Na Toca Vermelha, a presença recente do líquen pode ser atribuída à diminuição da umidade. Muitas espécies de algas, fungos, liquens e bactérias colonizam todo tipo de rochas, o que leva à formação dos solos, mas não é um processo desejável nos sítios arqueológicos. Por causa de sua grande variedade, esses micro-organismos possuem diferentes estratégias de sobrevivência e são encontrados em todos os tipos de ambiente. Embora a existência das crostas produzidas pelo líquen seja conhecida há muitos anos, apenas recentemente deu-se a devida atenção ao problema. A informação a respeito das crostas servirá para auxiliar os trabalhos de conservação em outros sítios arqueológicos no Brasil.

11

NAKAMOTO, K. Infrared and Raman Spectra of Inorganic and Coordination Compounds. 5th ed., New York: John Wiley & Sons, 1997. 12 DEI, L.; MAURO, M.; BITOSSI, G. “Characterization of salt efflorescences in cultural heritage conservation by thermal analysis”, Thermochimica Acta, v. 317, 1998, p. 133-140. 11

RHAA 14

129


Luíza Maria de Melo Pinheiro, Maria Irene Yoshida, Luiz Antônio Cruz Souza Agradecimentos Os autores agradecem o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a FINEP (Projeto RestauraBR Finep 1330/04) o financiamento; e o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), órgão ambiental responsável pela manutenção dos parques nacionais.

but it is not a desirable process in archaeological sites. Because of their variety and different survival strategies, these microorganisms are found in sites all around the globe. Although the presence of the white crusts produced by the lichen has been detected for many years ago, only recently has the issue been granted the necessary attention. The information concerning these crusts will help in works of conservation in other archaeological sites in Brazil. Acknowledgements The authors acknowledge the Brazilian agency CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) and FINEP (Project RestauraBR Finep 1330/04) for financial support, and the national environmental authority IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), responsible for national parks maintenance.

130

RHAA 14


Sítios arqueológicos do Peruaçu 1

2

1 Crosta branca num paredão rochoso no Abrigo do Malhador. 2 Detalhe da crosta: o pigmento vermelho é visível. 3

Forma de crescimento do micro-organismo.

3

RHAA 14

131


Luíza Maria de Melo Pinheiro, Maria Irene Yoshida, Luiz Antônio Cruz Souza 4

5

4 Amostra 1915T: detalhe da crosta branca associada à ação do micro-organismo sobre a rocha. 5 Espectro FTIR para a amostra 1915T. Bandas características da gipsita (g) e wedelita (o). 6 Espectro FTIR para a amostra 1919T. Bandas características da calcita (c) e gipsita (g).

6

132

RHAA 14


La primera crónica religiosa del Caribe: la “Relación acerca de las antigüedades de los Indios” (c.1496), del jerónimo Ramón Pané The first Caribbean religious chronicle: the “Account of the Antiquities of the Indians” (c.1496), by the hieronymite Ramón Pané

LouRdES doMíNguEz Investigadora titular y asesora del Gabinete de Arqueología de la Oficina del Historiador de la Ciudad de La Habana, Profesora titular adjunta de la Facultad de Filosofía e Historia, del Instituto Superior de Arte y del Colegio Universitario San Gerónimo de la Habana. E-mail: chinopelon36@gmail.com Research supervisor and Advisor to the Archaeology Cabinet of  the Historians office in Havana, Professor at the Philosophy and  History Faculty, at the Superior Institute of  Art and at the St Jerome College at Havana. E-mail: chinopelon36@gmail.com

LuIz ESTEvAM dE oLIvEIRA FERNANdES Profesor adjunto de la Universidad Federal de Ouro Preto, Investigador titular del Núcleo de Estudios en Historia de la Historiografía y Modernidad (UFOP), Investigador colaborador del IFCH-Unicamp. E-mail: leof79@gmail.com Professor at Federal university of  ouro Preto, Research supervisor of  the Study group in History of  Historiography and Modernity (uFoP),  Research Fellow at IFCH-unicamp. E-mail: leof79@gmail.com

resumen

El  documento  que  presentamos  es  uno  de  los  primeros  relatos  hechos  por  europeos  sobre  los  indígenas  en  el  Nuevo  Mundo,  pocos  años  después  de  la  llegada  de Cristóbal Colón. Su autor, Ramón Pané, era fraile de la orden de los Jerónimos, ha  permanecido algunos años entre los indios Taino e ha producido el primer relato hecho  por un religioso sobre eses pueblos. Además de presentar algunas noticias sobre la obra  y su autor, ofrecemos al lector una clave de lectura para el documento. PAlAbrAs clAves

Crónica, América, Alteridad, Ramón Pané.

AbstrAct  The document here presented is one of  the first accounts made by Europeans  about the Indians in the New World, just a few years after the arrival of  Christopher  Columbus. The author, Ramón Pané, was a hieronymite friar and stayed for a couple of   years among the Taino Indians, producing the first account made by a religious writer  about these people. Besides presenting some notices about the author and his work, we  offer a key to the reading of  the document. Keywords

Chronicle, America, Alterity, Ramón Pané.

RHAA 14

133


Lourdes domínguez, Luiz Estevam de oliveira Fernandes En 1492 llega a las tierras que después se conocerían con  el nombre de América, el marino genovés Cristóbal Colón; este  primer viaje marcó el destino de dos pueblos, una buena parte  del mundo conocido en Europa hasta ese momento y a otro, el  no conocido aún y del cual no se tenía noticia aparentemente. Si en el primer viaje que efectuó Colón había escasamente  tres  embarcaciones  y  un  pequeño  número  de  marineros,  en  el  segundo,  hubo  un  90%  más  de  barcos  y  qué  decir  de  la cantidad de hombres que llegaron. EI Almirante, como ya  era llamado, tenía ideas muy concretas para el emplazamiento  en estas tierras de una asentamiento español y para lograr ese  objetivo  necesitaba  conocer  muy  bien  el  grupo  humano  que  vivía en ellas; por este motivo realiza una serie de actividades  para lograr conocerlos, entre las cuales fue la más importante,  la observación de su modo de vida, por diferentes vías. EI llamado descubridor ya se había percatado de algunas  de sus regularidades, pero necesitaba saber cómo pensaban esos  hombres y cuáles eran sus intereses, por tal razón en la segunda  viaje, le encomienda a un joven clérigo, de su confianza, que  parta desde la Isabela a otro cacicazgo cercano y permanezca  seguidamente durante un largo tiempo en esa aldea para que  le  confeccione  una  relación  de  cómo  vivían,  cuáles  eran  sus  formas de vida y sobre todo de sus pensamientos y su religión. de esta manera el religioso de la orden de los Jerónimos  llamado Fray Ramón Pané parte hacia el pueblo de un cacique  llamado  guarionex  siguiendo  la  orden  de  Colón,  teniendo  algunas  alteraciones  en  el  derrotero  cambiando  después  al  cacicazgo de Mabiatué en donde se mantuvo hasta 1496.

In  1492,  the  genoese  sailor  Christopher  Columbus  arrived  in  the  lands  that  would  be  known as America; this first voyage marked the  fate of  two populations: a great deal of  European  known world until that moment and another, one  still unknown of  which, apparently, no one had  ever heard of  before. If  in Columbus first voyage there were scarcely  three vessels and a small number of  sailors, the  second  one  had  about  90%  more  ships  and  an  enhanced  number  of   man  that  came  along.  The Admiral, as he was already called, had solid  concrete ideas for the establishment of  a Spanish  settlement  and,  to  make  sure  his  project  would  turn out right, he needed to well acknowledge the  human groups that lived in the area; that is why  he realized a series of  activities that were intended  to  make  contact  and  get  to  know  them,  among  all the most significant one was to observe, in a  variety of  manners, their way of  living. The  so-called  discoverer  had  already  taken  notice of  some of  their peculiarities, but he still  needed  to  understand  how  those  men  thought  and  what  their  interests  were.  Therefore,  he  commissioned  a  young  cleric  of   his  trust  to  depart  from  Isabela,  go  to  a  near  cacicazgo,  stay  there for a long time, and write an account about  how  they  lived,  which  were  there  habits,  and  moreover, their thought and beliefs.  Thus,  following  Columbus  orders,  the  hieronymite friar Ramón Pané went to the Indian  settlement  of   the  cacique  named  guarionex.  Having to change his itinerary, he latter stayed in  the Mabiatué cacicazgo, where he lived until 1496.

durante todas estas mudanzas Pané intercambió con los  moradores de aquellas zonas de la Isla y sobre todo convivió  con  ellos,  de  ambos  grupos  tomó  sus  ideas  y  conformó  su  relación en aquel mismo año o dos años después.

In  the  meantime,  Pané  interacted  with  the  people who inhabited in those areas of  the island,  living among them, collecting their ideas. He may  have written his account in the same year he left  this experience or even two years after.

EI  documento  llamado  “Relación  acerca  de  las  antigüedades de los Indios” presenta una claridad de expresión  en lo que concierne a la vida cotidiana de estos grupos humanos,  lo que ha permitido, a partir de él un estudio etnohistórico y  una ayuda inmensa a la arqueología. Por ser una información  de  primera  mano  insustituible,  y  de  gran  valor,  es  que  este  documento representa, como diría el Profesor José Juan Arrom,  en la primer pagina de la introducción que hice sobre Pané, que  “marca un hito en la historia cultural de América”, además de  “constituir la piedra angular de los estudios etnológicos en este  hemisferio”.

The  document  called  “An  account  of   the  Antiquities of  the Indians” reveals a crystal clear  expression in what concerns the ordinary life of   those human groups, allowing us to realize some  ethno-historic studies and offering a great deal of   help to Archaeology. Being of  such significance,  this account, as Professor José Juan Arrom said in  the first page of  his introduction to Pané’s work,  “establishes a division mark in American Cultural  History” and “constitutes the angle stone of  the  ethnologic studies in this hemisphere”.

134

RHAA 14

The original text is lost. Little is known about  the  friar’s  life,  though  it  is  likely  that  he  was


La primera crónica religiosa del Caribe Catalan because Las Casas, in Apologética, chapter  CXX, asseverates that Pané was “a Catalan who  had taken the hermit orders […], he was a simple  man, of  good intuition who knew something of   the Indians idiom”. The dominican also stated,  in chapter CLXvII, that Friar Ramon “came [to  Española] five years before me”. other chroniclers used Pané’s opuscule: Pedro  Mártir  de  Anglería  in  his  Década  I,  book  IX,  chapters  Iv  to  vII,  and  Las  Casas,  Apologética, chapters CXX, CLXvI and CLXvII, for instance.  In  more  recent  times,  there  were  some  Spanish  editions of  the “Account”, from which of  them  we reproduce the one we think to be the best.  Thirty-five  years  after  the  edition  made  by  Professor  Arrom,  with  a  new  and  refined  translation of  the document in Italian, under the  auspices of  the Mexican Editorial Siglo XXI, and  after more than 50 years since it has been made,  we found this opportunity to reproduce the text  in  these  pages.  We  think  this  will  considerably  help the American historiography, and also give  a  new  life  to  the  text,  as  well  as  enormously  contribute  to  the  Taino  Archaeology.  We  have  only  reproduced  the  document,  not  Arrom  footnotes because we understand that is the result  of   such  a  profound  research  that  it  constitutes  another book. Therefore, we have attained to the  “Account” itself. The English translation is kindly  offered by Professor Peter Bakewell, to whom we  would like to thank. About  the  document’s  significance  and  matter  contained  it  is  little  to  be  said,  only  that  this  is  the  first  chronicle  written  in  Spanish  America  regarding  the  men  found  in  these  first  encounters that are known as discovery. We offer,  nonetheless, a reading key to Pané’s original as an  interpretative suggestion. His  text  follows  a  traditional  line  of   the  medieval  religious  chronicle  in  which  the  exact  measure  of   time  has  no  great  important.  So,  Pané’s  account  draws  a  biblical  argumentation  line, beginning with the world’s creation, passing  through the men and women creation (according  to  Indians’  reports),  to  the  native  relation  with  the supernatural and with death. The issue of  the  creation of  the world is written after the Fall of   men narrated right at the beginning of  the text.  But he justifies: “I fear that I am telling last things  first and first last; but I put it down just as I had  it from the natives of  the country”.

El original de su texto está perdido. Tampoco se conoce  mucho  de  la  vida  del  fraile,  pero  es  muy  probable  que  Pané  fuese catalán, pues Las Casas, en la Apologética, cap. CXX, dice  de Fr. Ramón que era “un catalán que había tomado hábito de  ermitaño  [...],  hombre  simple  y  de  buena  intuición  que  sabía  algo de la lengua de los indios”. El mismo dominico, en el cap.  CLXvII, dice de Fray Ramón que él “vino a ella [a Española]  cinco años antes que yo”. otros  cronistas  se  aprovecharan  de  este  opúsculo  de  Pané:  Pedro  Mártir  de  Anglería  en  su  Década  I,  lib.  IX,  caps.  Iv a vII, y Las Casas en su Apologética, Caps. CXX, CLXvI y  CLXvII,  por  ejemplo.  En  los  tiempos más  contemporáneos,  hube algunas ediciones en castellano de esta “Relación”, de las  cuales reproduciremos la que consideramos la mejor.  A 35 años de la edición realizada por el Profesor Arrom,  con  una  nueva  traducción  acotada  y  refinada  del  documento  en italiano y auspiciada por la Editorial Siglo XXI de México,  y  a  más  de  50  años  de  hecha,  encontramos  la  razón  para  reproducirla en estas páginas. Lo consideramos una ayuda a la  historiografía americana, y una revitalización de esta literatura,  así como una imprescindible colaboración a la Arqueología de  los  Tainos.  Solo  hemos  reproducido  el  documento  traducido  sin  las  acotaciones  de  Arrom  porque  entendemos  que  este  aspecto es de su autoría y es el resultado de una investigación  tan profunda que en si es otro libro, por eso solo nos remitimos  a la obra principal. La traducción al inglés fue muy gentilmente  cedida  por  el  Profesor  Peter  Bakewell,  a  quien  somos  muy  agradecidos. Que trata el documento y cuál es su importancia, es breve  lo que podríamos decir, solo en decir que es la primera crónica  escrita en América Hispana sobre los hombres encontrados en  este  primer  encuentro  que  se  llama  descubrimiento,  le  da  un  valor inestimable. ofrecemos, todavía, una clave de lectura del  original de Pané como sugerencia interpretativa. Su texto sigue una línea de tradición de la crónica medieval  religiosa, en la cual el tiempo, medido en términos exactos, no  es  importante.  Luego,  la  narración  de  Pané  sigue  una  línea  argumentativa bíblica, comenzando con la creación del mundo,  después la creación de los hombres y mujeres (de acuerdo con  su visión  acerca de los  relatos  indígenas) hasta  la  relación  de  los nativos con el sobrenatural y con la muerte. El problema  de  la  creación  del  mundo  lo  pone  en  el  texto  después  de  la  del hombre, que abre la narración. Pero lo justifica: “creo que  pongo primero lo que debiera ser último y lo último primero” o  RHAA 14

135


Lourdes domínguez, Luiz Estevam de oliveira Fernandes “volvamos ahora a lo que debíamos haber puesto primero, esto  es, a la opinión que tienen sobre el origen y principio del mar”. La gran novedad de la relación de Pané es la presencia  de  la  alteridad  americana.  No  se  sabía  al  cierto  si  se  trataba  de un Nuevo Mundo (como después le llamaran los europeos  a América) o de un antiguo, aunque igualmente desconocido.  de esta forma, nos queda la pregunta: ¿Cómo Pané retrató la  nueva  realidad  cerca  de  él  teniendo  como  base  las  ideas  que  traía de la vieja Europa? Es lícito suponer que el religioso preguntaba lo que bien  entendía a los indios e interpretaba las contestaciones conforme  su formación religiosa e intelectual. El Jerónimo dice: “todo lo  que escribo así lo narran ellos, como lo escribo, y así lo pongo  como lo he entendido de los del resto del país”. Por eso, Pané  expone  cuestiones  cruciales  para  el  pensamiento  católico  del  fin  del  siglo  15:  la  creación,  la  universalidad  del  mensaje  de  dios, la naturaleza aristotélica de los hombres, entre otros. La  forma  con  que  hace  creíble  su  texto  es  consonante  a  los  demás  cronistas  de  su  generación.  Lo  que  el  autor  fue  testigo es digno de fe. En segundo lugar, lo que el autor ha oído  de fuente considerada confiable. Es posible leer, cuando narra  las creencias indígenas: “Porque yo lo he visto en parte con mis  ojos, bien que de las otras cosas conté solamente lo que había  oído  a  muchos,  en  especial  a  los  principales,  con  quienes  he  tratado más que con otros”. Todo lo que saca de novedoso lo compara a su mundo  de  referencias:  una  guayaba  tiene  sabor  de  membrillo  para  el  religioso  así  como  el  “cazabe  es  el  pan  que  se  come  en  el  país”. La religión indígena, por no encontrar mucho de similar  al  cristianismo,  lo  tacha  de  “hechicería”,  cosa  del  diablo  o  demonio. Lo más de los asuntos espirituales, lo expone, como  afirmamos, en una lógica bíblica, capaz de encontrar mártires  entre  los  indígenas  conversos  muertos  por  otros  aun  infieles  o milagros, como en el episodio del aparecimiento de la cruz. Además, Pané inaugura lugares comunes en la tradición  de la crónica del Nuevo Mundo, cómo la presencia de augurios  indígenas  previendo  la  Conquista,  la  persistencia  de  las  costumbres indias después de la catequesis, la posible y deseable  separación de los neófitos nativos de los demás colonos (para  evitar que se confundiesen acerca del verdadero cristianismo) y  el debate sobre el uso de la violencia en el esfuerzo catequético. Conforme  lo  hemos  expuesto,  se  ha  cuidado  de  reproducir la traducción del Prof. Arrom en toda su plenitud y  se ha mantenido la sintaxis y la ortografía por la planteada en  136

RHAA 14

The  greatest  novelty  about  Pané’s  account  is  the  presence  of   the  American  alterity.  No  one  was really sure if  that was a New World (as the  Europeans latter called America) or an old one,  though  entirely  unknown.  Thus,  there  is  left  a  question: how did Pané pictured the new reality  around  him  having  only  the  tools  he  brought  from the old Europe with him? It is allowed to wonder if  the religious asked  whatever he wanted to the Indians and translated  the  answers  organizing  them  in  his  intellectual  and  religious  framework,  though  the  anchorite  said:  “I  put  it  down  just  as  I  had  it  from  the  natives  of   the  country”.  That  is  why  Pané  exposes crucial subjects to the catholic thinking  of the 15th century: the creation, the universality  of  god’s message, the Aristotelian nature of  men  etc. The way in which he justifies and turns it into  a credible text is consonant to others chroniclers  of   his  generation.  What  the  author  testified  is  worthy of  faith. In second place, what the author  heard is a trustable source. This is possible to be  apprehended when he writes about the Indians’  beliefs:  “These  deceptions  I  have  seen  with  my  own eyes, whereas the other things I told about I  heard of  only from others, especially from their  principal  men--because  these  men  believe  these  fables more firmly than the others”.  Everything  new  he  compares  with  his  world  of   reverences:  one  guava  tastes  like  quince  to  the religious, as the “cassava, which is the bread  of   that  country”.  The  Indian  religion,  as  it  did  not  well  matched  with  Christianity,  is  called  “sorceries”,  devil’s  or  demon’s  thing.  other  spiritual  matters  are  exposed,  as  we  have  said  before, in a biblical logic, one that is able to find  martyrs among the converted Indians who were  killed by others still infidel, or miracles, as in the  episode of  the appearance of  the Cross.  Pané  also  inaugurates  commonplaces  in  the  tradition of  the New World’s chronicle, such as  the presence of  Indians’ presages foretelling the  Conquest, the persistence of  Indian’s habits after  they were already been christened, a possible and  desirable separation  between the neophytes and  the other colonists (in order to avoid a confusion  about the real Christianity) and the debate about  the use of  violence in the catechesis effort.   As  we  have  assured,  we  have  taken  care  of   reproducing  the  Professor  Arrom  translation  in  its  fullness,  keeping  the  original  1974  edition’s


La primera crónica religiosa del Caribe syntaxes  and  orthography,  always  with  his  approval.  The  same  is  made  with  Professor’s  Bakewell English translation.

la edición de 1974, siempre con su consentimiento. Lo mismo  se pasa con la traducción para el inglés hecha por el Profesor  Bakewell.

***

THE RELACIóN oF FRAy RAMóN PANE I, Fray Ramón, a poor anchorite of  the order  of   St.  Jerome,  write  by  order  of   the  illustrious  Lord  Admiral,  viceroy,  and  governor  of   the  islands and mainland of  the Indies what I have  been  able  to  learn  concerning  the  beliefs  and  idolatry of  the Indians, and the manner in which  they worship their gods. of  these matters I shall  give an account in the present treatise. Each one  adores the idols or cemies that he has in his house  in some special way and with some special rites.  They  believe  that  there  is  an  immortal  being  in  the  sky  whom  none  can  see  and  who  has  a  mother but no beginning. They call him yocahu  vagua  Maorocoti,  and  his  mother  Atabex,  yermaoguacar,  Apito,  and  zuimaco,  which  are  five different names. I write only of  the Indians  of   the  island  of   Española,  for  I  know  nothing  about the other islands and have never seen them.  These Indians also know whence they came and  where the sun and moon had their beginning, and  how the sea was made, and of  the place to which  the  dead  go.  They  believe  that  the  dead  people  appear on the roads to one who walks alone, but  when many go together, the dead do not appear.  All  this  they  were  taught  by  their  forebears,  for  they cannot read or count above ten.

I. Of the Place from Which the Indians Came, and How They Came In  Española  there  is  a  province  called  Caonao,  in  which  is  found  a  mountain  called  Canta,  having  two  caves  named  Cacibayagua  and  Amayauba.  From  Cacibayagua  came  the  majority  of   the  people  who  settled  the  island.  When  they  lived  in  that  cave,  they  posted  a  guard  at  night,  and  they  intrusted  that  charge  to  a  man  named  Marocael;  they  say  that  one  day the sun carried him off  because he was late  in coming to the door. Seeing that the sun had  carried away this man for neglecting his duties,  they  closed  the  door  to  him,  and  so  he  was  changed into a stone near that door. They say

*** RELACIóN dE FRAy RAMóN PANé ACERCA dE  LAS ANTIgüEdAdES dE LoS INdIoS, LAS CuALES,  CoN dILIgENCIA, CoMo HoMBRE QuE SABE  LA  LENguA dE ELLoS, LAS HA RECogIdo PoR   MANdATo dEL ALMIRANTE yo,  fray  Ramón,  pobre  ermitaño  de  la  orden  de  San  Jerónimo,  por  mandato  del  ilustre  señor  Almirante  y  virrey  y  gobernador  de  las  Islas  y  de  la  Tierra  Firme  de  las  Indias,  escribo lo que he podido aprender y saber de las creencias e  idolatrías de los indios, y de como veneran a sus dioses. de lo  cual ahora trataré en la presente relación. Cada uno, al adorar los ídolos que tienen en casa, llamados  por  ellos  cemíes,  observa  un  particular  modo  y  superstición.  Creen  que  está  en  el  cielo  y  es  inmortal,  y  que  nadie  puede  verlo, y que tiene madre, mas no tiene principio, y a este llaman  yúcahu Bagua Maórocoti, y a su madre llaman Atabey, yermao,  guacar, Apito y zuimaco, que son cinco nombres. Estos de los  que escribo son de la isla Española, porque de las otras islas no  se cosa alguna por no haberlas visto jamás. Saben asimismo de  que parte vinieron, y de donde tuvieron origen el sol y la luna,  y como se hizo el mar y donde van los muertos.y creen que los  muertos se les aparecen por los caminos cuando alguno va solo,  porque, cuando van muchos juntos, no se les aparecen. Todo  esto les han hecho creer sus antepasados, porque ellos no saben  leer, ni contar sino hasta diez.

Capitulo I: De que Parte Han Venido los Indios y en Modo La  Española  tiene  una  provincia  llamada  Caonao,  en  la  que  está  una  montaña,  que  se  llama  Cauta,  que  tiene  dos  cuevas  nombradas  Cacibajagua  una  y  Amayaúna  la  otra.  de  Cacibajagua salió la mayor parte de la gente que pobló la isla. Esta gente, estando en aquellas cuevas, hacia guardia de noche,  y  se  había  encomendado  este  cuidado  a  uno  que  se  llamaba  Mácocael,  el  cual,  porque  un  día  tardó  en  volver  a  la  puerta,  dicen  que  se  lo  llevó  el  Sol.  visto,  pues,  que  el  Sol  se  había  RHAA 14

137


Lourdes domínguez, Luiz Estevam de oliveira Fernandes llevado a éste por su mala guardia, le cerraron la puerta y así  fue transformado en piedra cerca de la puerta. después dicen  que otros, habiendo ido a pescar, fueron presos por el Sol, y se  convirtieron en árboles que ellos llaman jobos, y de otro modo  se llaman mirobálanos. El motivo por el cual Mácocael velaba y  hacia la guardia era para ver a que parte mandaría o repartiría la  gente, y parece que se tardó para su mayor mal.

that  others  who  had  gone  fishing  were  caught  by the sun and changed into the trees call jobos  or myrobalans. The reason why Marocael kept  guard  was  to  see  in  what  direction  he  should  send  or  distribute  the  people;  and  his  lateness  was his undoing.

II. How the Women Were Separated from the Men

Capitulo II: Como se Separaron los Hombres de las Mujeres Sucedió que uno, que tenía por nombre guahayona, dijo  a otro que se llamaba yahubaba, que fuese a coger una hierba  llamada  digo,  con  la  que  se  limpian  el  cuerpo  cuando  van  a  lavarse. Este salió antes de amanecer, y le cogió el Sol por el  camino, y se convirtió en pájaro que canta por la mañana, como  el ruiseñor, y se llama yahubabayael. guahayona, viendo que  no volvía el que había a enviado a coger digo, resolvió salir de  la dicha cueva Cacibajagua.

It once happened that guaguyona told another  man  named  yadruvava  to  go  to  pick  the  herb  called  digo  with  which  they  clean  their  bodies  when they bathe. He went out before dawn, and  the  sun  caught  him  on  the  road  and  changed  him  into  a  bird  which  sings  in  the  morning,  like  the  nightingale;  it  is  called  yahuba  Bayael.  guaguyona, seeing that the man he had sent to  look for digo did not return, decided to come out  of  the cave Cacibayagua.

III.

Capitulo III: Que Guahayona, Indignado, Resolvió Marcharse, Viendo que no Volvían Aquellos que Había Mandado a Coger el Dilo para Lavarse y dijo a las mujeres “dejad a vuestros maridos, y vámonos   a otras tierras y llevemos mucho güeyo. dejad a vuestros hijos  y  llevemos  solamente  la  hierba  con  nosotros,  que  después  volveremos por ellos.

Then guaguyona, angry because the men he  had sent to pick digo for his bath did not return,  decided to go away and said to the women, “Leave  your husbands, and we shall go to other lands and  take much digo with us. Leave your children, for  we shall take only the herb with us; later we shall  return for the children.

IV.

Capitulo IV guahayona  partió  con  todas  las  mujeres,  y  se  fue  en  busca  de  otros  países,  y  llego  a  Matininó,  donde  enseguida  dejó  a  las  mujeres,  y  se  fue  a  otra  region,  llamada  guanín,  y  habían dejado a los niños pequeños junto a un arroyo. después,  cuando el hambre comenzó a molestarles, dicen que lloraban y  llamaban a sus madres que se habían ido y los padres no podían  dar remedio a los hijos, que llamaban con hambre a las madres,  diciendo “mama” para hablar, pero verdaderamente para pedir  la teta. y llorando así, y pidiendo teta, diciendo “toa, toa”como  quien  pide  una  cosa  con  gran  deseo  y  muy  despacio,  fueron  transformados en pequeños animales, a manera de ranas, que  138

RHAA 14

guaguyona left with all the women, and went  in search of  other lands, and came to Matininó,  where he soon left the women and departed for  another  region  called  guanín.  The  women  had  left their little children by a brook, and when the  latter began to grow hungry, they wept and called  on their mothers who had gone away. The fathers  could not help their children, and in their hunger  the children called out “mama”; they were really  asking  for  the  breast.  So,  weeping  and  asking  for the breast, and saying too, too like one who  insistently asks for something, they were changed  into little animals like frogs, called tona, because  they  had  asked  for  the  breast.  That  is  how  the  men were left without women.


La primera crónica religiosa del Caribe V. How the Women Returned from the Island of Española, Which Was Formerly Called Haiti, that Being the Name of Its Inhabitants; and this and the Other Islands Are Called Bouhí As these Indians have no alphabet or writing,  they  cannot  give  a  coherent  account  of   these  matters, but they have them from their forebears.  Therefore their accounts do  not agree, nor  is it  possible to write down in an orderly fashion what  they say. When guaguyona (he who carried off   all the women) went away, he also took with him  the  wives  of   his  cacique  Anacacuya,  deceiving  these  women  as  he  had  done  the  others.  There  also  went  a  brother-in-law  of   guaguyona’s,  named Anacacuya, who entered the sea with him;  and  when  they  were  in  the  canoe,  guaguyona  said to his brother-in-law, “See the beautiful cobo  in the water.” This cobo is the periwinkle. When  Anacacuya looked into the water, his brother-inlaw guaguyona grabbed his feet and threw him in  the water; thus guaguyona had all the women to  himself  and left those of  Matininó; it is said that  today there are only women on that island. And  he  departed  for  another  island,  called  guanin  because of  what he took away from there.  VI. How Guaguyona Returned to the Island of Canta, Whence He Had Brought the Women They  say  that  when  guaguyona  was  in  the  land to which he had gone, he saw that he had left  a woman in the sea. He had great pleasure with  her, but soon had to look for many bath-houses  in which to wash himself  because he was full of   those sores that we call the French Sickness. She  placed  him  in  a  guanara,  which  means  a  place  apart; there he was cured of  his sores. Afterwards  she  asked  permission  to  continue  on  her  way,  which  he  granted.  This  woman  was  named  guabonito.  And  guaguyona  changed  his  name,  henceforth calling himself  Biberoci guahayona.  And  guabonito  gave  to  Biberoci  guahayona  many  guanines  and  many  cibas  to  wear  tied  on  their  arms;  these  cibas  are  stones  which  much  resemble marble and which they wear about their  necks and arms; they wear the guanines in their  ears,  which  they  perforate  when  they  are  small;  these  guanines  are  made  of   a  metal  like  that  of   which  florins  are  made.  They  say  that  these  guanines  began  with  guabonito,  Albeborael,  guahayona,  and  the  father  of   Alberborael.  guahayona stayed in that country with his father,

se llaman tona, por la petición que hacían de la teta, y de esta  manera quedaron todos los hombres sin mujeres.

Capitulo V: Que Después Hubo Mujeres Otra Vez en la Dicha Isla Española, que Antes se Llamaba Haití, y Así la Llaman los Habitantes de Ella; y Aquella y las Otras Islas las Llamaban Bohío y  puesto  que  ellos  no  tienen  escritura  ni  letras,  no  pueden  dar  buena  cuenta  de  cómo  han  oído  esto  de  sus  antepasados, y por eso no concuerdan en lo que dicen, ni aún  se  puede  escribir  ordenadamente  lo  que  refieren.  Cuando  se  marchó guahayona, el que se llevo todas las mujeres, asimismo  se llevo las mujeres de su cacique, que se llamaba Anacacuya,  engañándolo como engañó a los otros. y además un cuñado  de guahayona, Anacacuya, que se iba con el, entró en el mar;  y  dijo  dicho  guahayona  a  su  cuñado,  estando  en  la  canoa:  “Mira que hermosos cobo hay en el agua”, el cual cobo es el  caracol de mar. y cuando éste miraba al agua para ver el cobo,  su cuñado guahayona lo tomo por los pies y lo tiró al mar; y así  tomó todas las mujeres para sí, y las dejó en Matininó, donde  se dice que hoy día no hay más que mujeres. y el se fue a otra  isla, que se llama guanín, y se llamó así por lo que se llevó de  ella, cuando fue a allá.

Capitulo VI: Que Guahayona Volvió a la Dicha Cauta, de donde Había Sacado las Mujeres dicen que estando guahayona en la tierra adonde había  ido, vió que había dejado en el mar una mujer, de lo cual tuvo  gran placer, y al instante buscó muchos lavatorios para lavarse,  por  estar lleno de aquellas llagas que nosotros llamamos  mal  francés. Ella le puso entonces en una guanara, que quiere decir  lugar apartado, y así, estando allí, sanó de sus llagas. después  le pidió licencia para seguir su camino y el se la dió. Llamábase  esta  mujer  guabonito.  y  guahayona  se  cambió  el  nombre,  llamándose de ahí en adelante Albeborael guahayona. y la mujer  guabonito le dió a Albeborael guahayona muchos guanines y  muchas cibas, para que las llevase atadas a los brazos, pues en  aquellas tierras aquellas cibas son de piedras que se asemejan  mucho al mármol, y las llevan atadas a los brazos y al cuellos, y  los guanines los llevan en las orejas, haciéndose agujeros cuando  son pequeños, y son de metal casi como de florín. El origen  de  estos  guanines  dicen  que  fueron  guabonito,  Albeborael  RHAA 14

139


Lourdes domínguez, Luiz Estevam de oliveira Fernandes guahayona y el padre de Albeborael. guahayona se quedó en  la tierra con su padre, que se llamaba Hiauna. Su hijo por parte  de padre se llamaba Hiaguali guanín, que quiere decir hijo de  Hiauna, y desde entonces se llamo guanín, y así se llama hoy  día. y como no tienen letras ni escrituras, no saben contar bien  tales fábulas, ni yo puedo escribirlas bien. Por lo cual creo que  pongo primero lo que debiera ser último y lo último primero.  Pero todo lo que escribo así lo narran ellos, como lo escribo, y  así lo pongo como lo he entendido de los del país.

Capitulo VII: Como Hubo De Nuevo Mujeres En La Dicha Isla De Haití, Que Ahora Se Llama La Española dicen que un día fueron a lavarse los hombres, y estando  en el agua, llovía mucho, y que estaban muy deseosos de tener  mujeres; y que muchas veces, cuando llovía, habían ido a buscar  las huellas de sus mujeres; más no pudieron encontrar alguna  nueva de ellas. Pero aquel día, lavándose, dicen que vieron caer  de algunos  árboles, bajándose por  entre las ramas, una  cierta  forma de personas, que no eran hombres ni mujeres, ni tenían  sexo de varón ni de hembra, las cuales fueron a cogerlas; pero  huyeron como si fueran anguilas. Por lo cual llamaron a dos o  tres hombres por mandato de su cacique, puesto que ellos no  podían cogerlas, para que viesen cuantas eran, y buscasen para  cada una un hombre que fuera caracaracol, porque tenían las  manos ásperas y que así estrechamente las sujetasen. dijeron  al cacique que eran cuatro; y así llevaron cuatro hombres, que  eran  caracaracoles.  El  cual  caracaracol  es  una  enfermedad  como sarna, que hace al cuerpo muy áspero. después que las  hubieron  cogido,  tuvieron  consejo  sobre  como  podían  hacer  que fuesen mujeres, puesto que no tenían sexo de varón ni de  hembra.

Capitulo VIII: Como Hallaron Remedio para que Fuesen Mujeres Buscaron  un  pájaro  que  se  llama  inriri,  antiguamente  llamado  inriri  cahubabayael,  el  cual  agujerea  los  árboles,  y  en  nuestra lengua llámase pico. E igualmente tomaron a aquellas  mujeres sin sexo de varón ni de hembra, y les ataron los pies  y las manos, y trajeron el pájaro mencionado, y se lo ataron al  cuerpo. y este, creyendo que eran maderos, comenzó la obra  que  acostumbra,  picando  y  agujereando  en  el  lugar  donde  ordinariamente suele estar el sexo de las mujeres. y de ese modo  140

RHAA 14

named yauna. His son took from his father the  name  Hía  guaili  guanín,  which  means  the  son  of  yauna; later he called himself  guanin, and is  called that today. As the Indians have no alphabet  or writing, they do not tell their myths well, nor  can I write them down accurately, and I fear that  I  am  telling  last  things  first  and  first  last;  but  I  put it down just as I had it from the natives of   the country.  VII. How the Women Returned from the Island of Haiti, Which is Now Called Española They say that one day the men went to wash  themselves; and while they were in the water, it  rained hard, and they felt great desire for women;  frequently  when  it  rained  they  sought  traces  of   their  wives,  but  could  not  find  them.  However,  that  day,  as  they  were  washing  themselves  they  saw  falling  from  the  trees,  sliding  down  the  branches, some creatures that were neither men  nor  women,  and  had  neither  male  nor  female  genitals. They tried to catch them, but they slipped  away like eels. So by orders of  their cacique they  summoned  two  or  three  men  who  should  see  how  many  of   these  creatures  there  were,  and  who should bring as many men of  the kind called  caracaracol, because they had rough hands, who  would be able to catch them and tie them down.  They  told  the  cacique  there  were  four  of   these  creatures;  so  they  brought  four  men  who  were  caracaracoles.  This  caracaracol  is  a  sickness  like  the scab that makes the body very rough. When  they had caught them, they considered how they  could make women out of  them, since they had  neither male nor female genitals.  VIII. How They Devised a Way of Making Women of Them They  found  a  bird  now  called  inrim,  and  in  ancient  times  inrire  cahuvayal,  that  is,  a  woodpecker,  which  bores  holes  in  trees.  Then,  seizing  those  women  without  male  or  female  genitals,  they  bound  their  hands  and  feet,  and  tied  that  bird  to  the  body  of   each.  The  bird,  thinking  they  were  trees,  began  his  accustomed  work, pecking and hollowing out the place where  women’s  genitals  are  wont  to  be.  The  Indians  say  that  is  the  manner  in  which  they  acquired  women, as told by their oldest men. As I wrote in  haste and had not enough paper, I could not put  everything where it belonged, yet I have made no


La primera crónica religiosa del Caribe mistake, for they believe everything that is written  here. Turning now to what I should have related  first, I shall tell their beliefs concerning the origin  of  the sea.  IX. How the Sea Was Made There  was  a  man  called  yaya,  whose  name  they  do  not  know;  his  son  was  called  yayael,  which  means  son  of   yaya.  This  yayael  wishing  to  kill  his  father,  the  latter  banished  him,  and  he was banished for four months; after that his  father killed him and put his bones in a calabash  which he hung from the ceiling of  his hut, where  it  hung  for  some  time.  one  day,  wishing  to  see  his son, yaya said to his wife, “I want to see our  son  yayael.”  She  was  content  and,  taking  the  calabash, turned it over to see the bones of  their  son.  out  of   it  came  many  large  and  small  fish.  Perceiving that the bones had been changed into  fish,  they  decided  to  eat  them.  one  day,  when  yaya had gone to his maize fields, that were his  inheritance,  there  came  four  sons  of   a  woman  named Itiba Tahuvava, all born at a single birth;  for this woman having died in childbirth, they cut  her open and took out these four sons. And the  first  one  they  took  out  was  caracaracol,  which  means scabby, and his name was...; the others had  no name.  X. The four twin sons of  Itiba Tahuvava, who died  in childbirth, went together to get the calabash in  which yaya kept the bones of  his son yayael who  had been changed into a fish; but none of  them  dared to get it except dimivan Caracaracol, who  took  it  down;  and  they all  had  their  fill  of   fish.  While they were eating, they heard yaya coming  back  from  his  fields;  and  in  their  haste  to  hang  the calabash up again they did not do it right, so  that it fell to earth and broke. They say so much  water came out of  the calabash that it filled the  whole  earth,  and  with  it  came  many  fish.  They  say  this  was  how  the  sea  began.  After  they  had  left this place they met a man named Conel, who  was dumb.  XI. What Happened to the Four Brothers When They Were Fleeing from Yaya The  brothers,  coming  to  the  door  of   Basamanaco’s  house,  noticed  that  he  had  cassava,  and  said,  “Ayacavo  guarocoel,”  which

dicen los indios que tuvieron mujeres, según cuentan los más  viejos. Puesto que escribí de prisa, y no tenía papel bastante, no  pude poner en su lugar lo que por error trasladé a otro; pero  con  todo  y  eso,  no  he  errado,  porque  ellos  lo  creen  todo  tal  como como lo he escrito. volvamos ahora a lo que debíamos  haber puesto primero, esto es, a la opinión que tienen sobre el  origen y principio del mar.

Capitulo IX: Cómo Dicen que Fue Hecho el Mar Hubo  un  hombre  llamado  yaya,  del  que  no  saben  el  nombre, y su hijo se llamaba yayael, que quiere decir hijo de  yaya. El cual yayael, queriendo matar a su padre, éste lo desterró,  y  así  estuvo  desterrado  cuatro  meses;  y  después  su  padre  lo  mató, y puso los huesos en una calabaza, y la colgó del techo  de su casa, donde estuvo colgada algún tiempo. Sucedió que un  día, con deseo de ver a su hijo, yaya dijo a su mujer:”Quiero ver  a nuestro hijo yayael”. y ella se alegró, y bajando la calabaza, la  volcó para ver los huesos de su hijo, de la cual salieron muchos  peces grandes y chicos. de donde, viendo que aquellos huesos  se habían transformado en peces, resolvieron comerlos. dicen, pues, que un día, habiendo ido yaya a sus conucos,  que quiere decir posesiones, que eran de su herencia, llegaron  cuatro  hijos  de  una  mujer,  que  se  llamaba  Itiba  Cahubaba,  todos de un vientre y gemelos; la cual mujer, habiendo muerto  de parto, la abrieron y sacaron fuera los cuatro dichos hijos, y el  primero que sacaron era caracaracol, que quiere decir sarnoso,  el cual caracaracol tuvo por nombre (deminán); los otros no  tenían nombre.

Capitulo X: Como los Cuatro Hijos Gemelos de Itiba Cahubaba, que Murió de Parto, Fueron Juntos a Coger La Calabaza de Yaya, Donde Estaba su Hijo Yayael, que se Había Transformado en Peces, y Ninguno se Atrevió a Cogerla, Excepto Deminán Caracaracol, que la Descolgó, y Todos se Hartaron de Peces y  mientras  comían,  sintieron  que  venía  yaya  de  sus  posesiones, y queriendo en aquel apuro colgar la calabaza, no la  colgaron bien, de modo que cayó en tierra y se rompió. dicen  que fue tanta el agua que salió de aquella calabaza, que lleno  toda la tierra, y con ella salieron muchos peces; y de aquí dicen  que haya tenido origen el mar. Partieron después estos de allí, y  encontraron un hombre, llamado Conel, el cual era mudo. RHAA 14

141


Lourdes domínguez, Luiz Estevam de oliveira Fernandes Capitulo XI: De las Cosas que Pasaron los Cuatro Hermanos Cuando Iban Huyendo de Yaya Estos,  tan  pronto  como  llegaron  a  la  puerta  de  Bayamaco,  y  notaron  que  llevaba  cazabe,  dijeron:  “Ahiacabo  guárocoel”, que quiere decir: “Conozcamos a nuestro abuelo”.  del mismo modo deminán Caracaracol, viendo delante de si a  sus hermanos, entró para ver si podía conseguir algún cazabe,  el  cual  cazabe  es  el  pan  que  se  come  en  el  país.  Caracaracol,  entrando  en  casa  de  Bayamaco,  le  pidió  cazabe,  que  es  el  pan  susodicho.  y  este  se  puso  la  mano  en  la  nariz,  y  le  tiro  un guanguayo a la espalda; el cual guanyuayo estaba lleno de  cohoba, que había hecho hacer aquel día; la cual cohoba es un  cierto polvo, que ellos toman a veces para purgarse y para otros  efectos que después se dirán. Esta la toman con una caña de  medio brazo de largo, y ponen un extremo en la nariz y el otro  en el polvo; así lo aspiran por la nariz y esto les hace purgar  grandemente. y así les dio por pan aquel guanguayo, en vez del  pan que hacía; y se fue muy indignado por que se lo pedían.  Caracaracol, después de esto, volvió junto a sus hermanos, y les  contó lo que le había sucedido con Bayamanacoel, y del golpe  que le había dado con el guanguayo en la espalda, y que le dolía  fuertemente.  Entonces  sus  hermanos  le  miraron  la  espalda,  y  vieron  que  la  tenía  muy  hinchada;  y  creció  tanto  aquella  hinchazón, que estuvo a punto de morir. Entonces procuraron  cortarla,  y  no  pudieron;  y  tomando  un  hacha  de  piedra  se  la  abrieron, y salió una tortuga viva, hembra; y así se fabricaron  su casa y criaron la tortuga. de esto no he sabido más; y poco  ayuda lo que llevo escrito. y  también  dicen  que  el  Sol  y  la  Luna  salieron  de  una  cueva, que está en el país de un cacique llamado Mautiatihuel,  la cual cueva se llama Iguanaboina; y ellos la tienen en mucha  estimación, y la tienen toda pintada a su modo, sin figura alguna  con muchos follajes y otras cosas semejantes. y en dicha cueva  había dos cemíes, hechos de piedra, pequeños del tamaño de  medio brazo. Con las manos atadas, y parecían que sudaban.  Los cuales cemíes estimaban mucho; y cuando no llovía, dicen  que  entraban  alli  a  visitarlos  y  enseguida  llovía.  y  de  dichos  cemíes, al uno llamaban Boinayel y al otro Márohu.

They  also  say  that  the  sun  and  moon  came  out of  a cave in the country of  a cacique named  Maucia Tivuel; this cave is called yovovava, and  they feel great reverence for it. It is all painted in  their fashion, without any figure, but with many  leaves  and  the  like.  In  this  cave  there  were  two  stone cemies, about half  a man’s arm in size, their  hands tied; they seemed to be sweating. They held  these cemies in much regard; they say that when  they  needed  rain  they  would  visit  these  cemies,  and  the  rain  would  immediately  come.  one  of   these cemies was called Boinayol, and the other  Maroya.  XII. Their Beliefs Concerning the Wanderings of the Dead, of Their Appearance, and What They Do

Capitulo XII: De lo que Piensan Acerca de Andar Vagando los Muertos, y de que Manera Son, y qué Cosa Hacen Creen que hay un lugar al que van los muertos, que se  llama Coaybay, y se encuentra a un lado de la isla, que se llama  142

means  “Let  us  make  the  acquaintance  of   our  grandfather”. Then demivan Caracaracol, going  ahead of  his brothers, entered the house to see  if  he could find some cassava, which is the bread  of  that country. Caracaracol, entering the house  of  Ayamanaco, asked him for some cassava. At  this  Ayamanaco  put  his  hand  to  his  nose,  took  out  a  guanguayo,  and  threw  it  at  Caracaracol’s  shoulder;  this  guanguayo  was  full  of   cohoba  which he had had made that day and is a powder  that they sometimes take as purge and for other  purposes which will be told hereafter. They take  it by means of  the cane half  an ell long, putting  one end of  this cane in the nose and the other in  the powder; they snuff  this powder into the nose,  and it purges them greatly. So he gave them that  guanguayo  instead  of   bread,  and  he  went  away  very  angry  because  they  had  asked  him  for  it.  Caracaracol then returned to his brothers and told  them what had happened with Bayamanicoel, of   the blow that he had given him on the shoulder  with the guanguayo, and that it hurt him sorely.  His brothers looked at his shoulder and saw that  it  was  much  swollen,  and  that  swelling  grew  so  that  he  was  about  to  die.  They  tried  to  cut  it,  without success, but taking a stone hatchet, they  managed to open it, and out came a live female  turtle; so they built their hut and fed the turtle. I  could not learn any more about this, and what I  have written is of  little worth.

RHAA 14

They  believe  the  dead  go  to  a  place  called  Coaybay, on one side of  an island called Soraya.  They  say  that  the  first  to  live  there  was  one  Maquetaurie guayava, who was lord of  Coaybay,  home and dwelling place of  the dead.


La primera crónica religiosa del Caribe XIII. Of the Forms Which They Assign to the Dead They say that during the day the dead live in  seclusion, but at night walk about for recreation  and  eat  of   fruit  called  guabaxa,  which  has  the  flavor  of   [the  quince  B.K.]  and  during  the  day  is...  but  at  night  is  changed  into  fruit;  and  they  have festivities and keep company with the living.  The Indians have this method of  identifying dead  people: They touch the belly of  a person with the  hand, and if  they do not find a navel, they say that  person is operito, which means dead; for they say  that dead persons have no navels. Sometimes one  who does not take this precaution and lies with a  woman of  Coaybay is mocked; for when he holds  her in his arms, she suddenly disappears and his  arms  are  empty.  They  still  believe  this.  When  a  person is alive, they call his spirit goeiz; when he  is dead, opia. They say that this goeiz appears to  them often, now in the shape of  a man, now of  a  woman. They say there was a man who wished to  fight with a spirit; but when he closed with it, it  disappeared, and the man flung his arms about a  tree from whose branches he hung. All of  them,  young and old, believe this; they also believe that  the spirits appear to them in the shape of  their  father,  mother,  brothers,  relatives,  or  in  some  other shape. The fruit that they believe the dead  eat is the size of  a peach. The dead do not appear  to them by day, but only by night, and therefore  one who walks about at night feels great fear.  XIV. Whence Come these Beliefs and Why They Persist in Them There  are  certain  men  among  them,  called  bohutís,  who  practice  great  frauds  upon  the  Indians, as shall be explained hereafter, to make  them  believe  that  they,  the  bohutis,  speak  with  the dead and that they know all their deeds and  secrets,  and  that  when  the  Indians  are  ill  they  cure them. These deceptions I have seen with my  own eyes, whereas the other things I told about I  heard of  only from others, especially from their  principal  men--because  these  men  believe  these  fables more firmly than the others. Like the Moors,  they have their religion set forth in ancient chants  by which they are governed, as the Moors are by  their Scripture. When they sing their chants, they  play an instrument called mayohavau that is made  of  wood and is hollow, strong, yet very thin, an ell  long and half  as wide; the part which is played has  the shape of  a blacksmith’s tongs, and the other  end  is  like  a  club,  so  that  it  looks  like  a  gourd

Soraya. El primero que estuvo en Coaybay dicen que fue uno  que se llamaba Maquetaurie guayaba, que era señor del dicho  Coaybay, casa y habitación de los muertos.

Capitulo XIII: De la Forma que Dicen Tener los Muertos dicen que durante el día están recluidos, y por la noche  salen a pasearse, y que comen de un cierto fruto, que se llama  guayaba, que tiene sabor de (membrillo), y que de día son… y  por la noche se convertían en fruta y que hacían fiesta, y van  juntos  con  los  vivos.  y  para  conocerlos  observan  esta  regla:  que con la mano le tocan el vientre, y si no les encuentran el  ombligo,  dicen  que  es  operito,  que  quiere  decir  muerto:  por  eso  dicen  que  los  muertos  no  tienen  ombligo.  y  así  quedan  engañados algunas veces, que no reparan en esto, y yacen con  alguna mujer de las de Coaybay, y cuando piensan tenerlas en  los brazos, no tienen nada, porque desaparecen en un instante.  Esto  lo  creen  hasta  hoy.  Estando  viva  la  persona,  llaman  al  espíritu  goeíza,  y  después  de  muerta,  le  llaman  opía,  la  cual  goeíza dicen que les aparece muchas veces tanto en forma de  hombre  como  de  mujer,  y  dicen  que  ha  habido  hombre  que  ha  querido  combatir  con  ella,  y  que,  viniendo  a  las  manos,  desaparecía,  y  que  el  hombre  metía  los  brazos  en  otra  parte  sobre algunos árboles, de los cuales quedaba colgado. y esto lo  creen todos en general, tanto chicos como grandes; y que se les  aparece en forma de padre, madre, hermanos o parientes, y en  otras formas. El fruto del cual dicen que comen los muertos es  del tamaño de un membrillo. y los sobredichos muertos no se  le aparecen de día, sino siempre de noche; y por eso con gran  miedo se atreve alguno a andar solo de noche.

Capitulo XIV: De Donde Sacan esto y Quienes les Hacen Estar en tal Creencia Hay algunos hombres, que practican entre ellos, y se les  dice  behiques,  los  cuales  hacen  muchos  engaños,  como  mas  adelante  diremos,  para  hacerles  creer  que  hablan  con  esos  (los muertos), y que saben todos sus hechos y secretos; y que,  cuando  están  enfermos,  les  quitan  el  mal,  y  así  los  engañan.  Porque yo lo he visto en parte con mis ojos, bien que de las  otras  cosas  conté  solamente  lo  que  había  oído  a  muchos,  en  especial a los principales, con quienes he tratado mas que con  otros; pues estos creen en estas fábulas con mayor certidumbre  que  los  otros.  Pues,  lo  mismo  que  los  moros,  tiene  su  ley  RHAA 14

143


Lourdes domínguez, Luiz Estevam de oliveira Fernandes compendiada  en  canciones  antiguas,  por  las  cuales  se  rigen,  como los moros por la escritura. y, cuando quieren cantar sus  canciones, tocan cierto instrumento, que se llama mayohabao,  que es de madera, hueco, fuerte y muy delgado, de un brazo de  largo y medio de ancho. La parte donde se toca está hecha en  forma de tenazas de herrador y la otra parte semeja una maza,  de manera que parece una calabaza con el cuello largo. y este  instrumento tocan, el cual tiene tanta voz que se oye a legua y  media de distancia. Así son cantan las canciones, que aprenden  de memoria; y lo tocan los hombres principales, que aprenden  a  tañerlo  desde niños y a cantar con él, según su costumbre.  Pasemos ahora a tratar de otras muchas cosas acerca de otras  ceremonias y costumbres de estos gentiles.

Capitulo XV: De las Observaciones de Estos Indios Behiques, y Cómo Profesan la Medicina, y Enseñan a las Gentes, y en sus Curas Medicinales Muchas Veces se Engañan Todos, o la mayor parte de los de la isla Española, tienen  muchos cemíes de diversas suertes. unos contienen los huesos  de su padre, y de su madre, y parientes, y de sus antepasados;  los  cuales  están  hechos  de  piedra  o  de  madera.  y  de  ambas  clases tienen muchos; algunos que hablan, y otros que hacen  nacer  las  cosas  que  comen,  y  otros  que  hacen  llover,  y  otros  que hacen soplar los vientos. Las cuales cosas creen aquellos  simples ignorantes que hacen aquellos ídolos, o por hablar más  apropiadamente, aquellos demonios, no teniendo conocimiento  de nuestra santa fe. Cuando alguno esta enfermo, le llevan el  behique, que es el médico sobredicho. El médico está obligado  a  guardar  dieta,  lo  mismo  que  el  paciente,  y  a  poner  cara  de  enfermo.  Lo  cual  se  hace  de  este  modo  que  ahora  sabréis.  Es  preciso  que  también  se  purgue  como  el  enfermo;  y  para  purgarse toman cierto polvo, llamado cohoba, aspirándolo por  la nariz, el cual les embriaga de tal modo que no saben lo que  se hacen; y así dicen muchas cosas fuera de juicio, en las cuales  afirman que hablan con los cemíes, y que estos les dicen que de  ellos les ha venido la enfermedad.

Capitulo XVI: De lo que Hacen Dichos Behiques Cuando van a visitar a algún enfermo, antes de salir de  casa toman hollín de las ollas o carbón molido, y se ponen la  cara toda negra, para hacer creer al enfermo lo que les parece  144

RHAA 14

with a long neck; this instrument is so sonorous  that it can be heard a league and a half  away. To  its accompaniment they sing their chants, which  they know by heart; and their principal men learn  from infancy to play it and sing to it, according to  their custom. Now I shall tell many other things  concerning the ceremonies and customs of  these  heathen.  XV. Of How the Buhuitihus Practice Medicine, and What They Teach the People, and of the Deceintions They Practice in Their Cures All the Indians of  the island of  Española have  many  different  kinds  of   cemíes.  In  some  they  keep the bones of  their father, mother, relations,  and forebears; these cemíes are made of  stone or  wood. They have many of  both kinds. There are  some that speak, others that cause food plants to  grow, others that bring rain, and others that make  the  winds  blow.  These  simple,  ignorant  people,  who know not our holy faith, believe that these  idols or rather demons do all these things. When  an  Indian  falls  ill,  they  bring  the  buhuitihu  to  him. This doctor must observe a diet just like his  patient and must assume the suffering expression  of  a sick man. He must also purge himself  just  as  the  sick  man  does,  by  snuffing  a  powder  called  cohoba  up  his  nose.  This  produces  such  intoxication  that  they  do  not  know  what  they  are  doing;  and  they  say  many  senseless  things,  declaring that they are speaking with the cemíes  and  that  the  latter  are  telling  him  the  cause  of   the illness.  XVI. What these Buhuitihus Do When a buhuitihu goes to call upon a patient,  before leaving his hut he takes some soot from  a  cooking  pot,  or  some  charcoal,  and  blackens  his  face  in  order  to  make  the  sick  man  believe  whatever he may say about his sickness; then he  takes some small bones and a little meat, wraps  the  whole  in  something  so  it  will  not  fall  out,  and puts it in his mouth. Meanwhile the patient  has been purged in the manner described above.  Entering the sick man’s hut, the doctor sits down,  and all fall silent; if  there are any children in the  hut,  they  are  put  out  so  they  will  not  interfere  with  the  buhuitihu’s  work;  only  one  or  two  of   the  principal  men  remain.  Then  the  buhuitihu  takes some giieyo herb,...wide, and another herb,  wrapped in an onion leaf  four inches long (but


La primera crónica religiosa del Caribe the  giieyo  herb  is  what  they  all  generally  use),  and  taking  it  between  his  hands,  he  mashes  it  into  a  pulp;  and  then  he  puts  it  into  his  mouth  at night so as to vomit anything harmful that he  may have eaten. Then he begins to sing his chant  and,  taking  up  a  torch,  drinks  the  juice  of   that  herb. This  done, he is quiet for  a  time; then he  rises, goes toward the sick man, who lies alone in  the middle of  the hut, and walks about him twice  or  as  many  times  as  he  thinks  proper.  Then  he  stands in front of  him and takes him by the legs,  feeling of  his body from the thighs to the feet,  after  which  he  draws  his  hands  away  forcefully,  as if  pulling something out. Then he goes to the  door, shuts it, and speaks to it, saying: “Begone  to the mountain, or the sea, or where you will”  then  after  he  has  blown  like  one  who  blows  chaff  from his hand, he turns around, joins his  hands together as if  he were very cold, blows on  his hands,  and  sucks in his breath as if  sucking  marrow from a bone, then sucks at the sick man’s  neck, or stomach, or shoulder, or cheeks, or the  belly  or  some  other  part  of   the  body.  Having  done  this,  he  begins  to  cough  and  make  a  face  as if  he had eaten something bitter; then he spits  into his hand the stone or bone or piece of  meat  that he put in his mouth at home or on the road.  And if  it is a piece of  food, he tells the sick man,  “you must know that you have eaten something  that caused the sickness from which you suffer.  See how I have taken it out of  your body, where  your cemi lodged it because you did not pray to  him or build him a shrine or give him some land.”  If  it is a stone, he says, “Take good care of  it.”  Sometimes  they  believe  these  stones  are  good  and help women in childbirth, and they take good  care of  them, wrapping them in cotton, placing  them  in  small  baskets,  and  putting  food  before  them; they do the same with the cemies they have  in  their  houses.  on  a  holiday,  when  they  have  much food--fish, meat, or bread--they put some  of  each food in the house of  the cemi, and next  day they carry this food back to their huts after  the cemi has eaten. But it would truly be a miracle  if  the cemí ate of  that or anything else, for the  cemi is a dead thing of  stone or wood.  XVII. How these Physicians Are Sometimes Paid Back for their Deceptions If  the sick man should die in spite of  having  done all these things, and if  he has many relations  or one who is lord over a village and so can stand  up to the buhuitihu or doctor (for men of  small  influence  dare  not  contend  with  them),  then

acerca de su enfermedad; y luego cogen algunos huesecillos y  un poco de carne. y envolviendo todo eso en alguna cosa para  que no se caigan, se lo meten en la boca, estando ya el enfermo  purgado  con  el  polvo  que  hemos  dicho.  Entrado  el  médico  en  casa  del  enfermo,  se  sienta,  y  callan  todos;  y  si  hay  niños  los  mandan  fuera,  para  que  ni  impidan  su  oficio  de  behique,  ni queda en la casa sino uno o dos de los más principales. y  estando así solos, toman algunas hierbas de güeyo… anchas, y  otra hierba, envuelta en una hoja de cebolla, media cuarta larga;  y una de los dichos güeyos es la que toman todos comúnmente,  y trituradas con las manos las amasan; y luego se la ponen en  la boca para  vomitar lo que han comido, a  fin de que no  les  haga daño. Entonces comienzan a entonar el canto susodicho;  y  encendiendo  una  antorcha  toman  aquel  jugo.  Hecho  esto  primero,  después  de  estar  algún  tiempo  quieto,  se  levanta  el  behique, y va hacia el enfermo que esta sentado solo en medio  de la casa, como se ha dicho, y da dos vueltas alrededor de el,  como le parece; y luego se le pone delante, y lo toma por las  piernas, palpándolo por los muslos y siguiendo hasta los pies;  después tira de el fuertemente, como si quisiera arrancar alguna  cosa. de ahí va a la salida de la casa y cierra la puerta, y le habla  diciendo: “vete a la montaña, o al mar, o adonde quieras”. y  con  un  soplo,  como  quien  sopla  una  paja,  se  vuelve  una  vez  mas, junta las manos y cierra la boca; y le tiemblan las manos,  como cuando se tiene mucho frío, y se sopla las manos, y aspira  el  aliento,  como  cuando  se  sorbe  el  tuétano  de  un  hueso,  y  chupa  al  enfermo  por  el  cuello,  o  por  el  estomago,  o  por  la  espalda, o por las mejillas, o por el pecho, o por el vientre o  por muchas partes del cuerpo. Hecho esto, comienza a toser y  a hacer feos visajes, como si hubiera comido una cosa amarga,  y escupe en la mano y saca lo que ya hemos dicho que en su  casa, o por el camino, se había metido en la boca, sea piedra, o  hueso, o carne, como ya se ha dicho. y si es cosa de comer, le  dice al enfermo: “Has de saber que has comido una cosa que  te ha producido el mal que padeces; mira como te lo he sacado  del cuerpo, que tu cemí te lo había puesto en el cuerpo porque  no le hiciste oración, o no le fabricaste algún templo, o no le  diste alguna heredad”. y si es piedra, le dicen “guárdala muy  bien”. y algunas veces tienen por cierto que aquellas piedras  son buenas, y ayudan a hacer parir a las mujeres, y las guardan  con  mucho  cuidado,  envueltas  en  algodón,  metiéndolas  en  pequeñas cestas, y le dan de comer de lo que ellos comen; y  lo mismo hacen con los cemíes que tienen en casa. Algún día  solemne, en que llevan mucho de comer, pescado, carne, o pan,  o cualquier otra cosa, ponen de todo en la casa del cemi, para  que coma de aquello el dicho ídolo. Al día siguiente llevan todas  RHAA 14

145


Lourdes domínguez, Luiz Estevam de oliveira Fernandes estas  viandas  a  sus  casas,  después  que  ha  comido  el  cemí.  y  así les ayuda dios  como el cemí come de aquello, ni de otra  cosa, siendo el cemí cosa muerta, formada de piedra o hecha  de madera.

Capitulo XVII: Cómo Algunas Veces los Sobredichos Médicos se Han Engañado Cuando, después de haber hecho las cosas mencionadas,  de  todos  modos  el  enfermo  se  muere,  si  el  muerto  tiene  muchos parientes, o es señor de un pueblo, y puede enfrentarse  con dicho behique, que quiere decir medico – pues los que  poco pueden no se atreven a contender con estos médicos--;  el que le quiere hacer daño hace lo siguiente: queriendo saber  si el enfermo ha muerto por culpa del médico, o porque no  guardó la dieta como este lo ordenó, toman una hierba que  se llama güeyo, que tiene las hojas semejantes a la albahaca,  gruesa y larga, y por nombre llamase zacón. Sacan, pues, el  jugo de la hoja, y le cortan al muerto las uñas y los cabellos  que tiene encima de la frente, y lo reducen a polvo entre dos  piedras, lo cual mezclan con el jugo de dicha hierba y lo dan  a beber al muerto por la boca o por la nariz y, haciendo esto,  preguntan al muerto si el medico fue ocasión de su muerte y  si guardó la dieta. y esto se lo preguntan muchas veces, hasta  que  al  fin  habla  tan  claramente  como  si  estuviese  vivo;  de  modo que viene a responder a todo aquello que le preguntan,  diciendo que el behique no guardó la dieta, o fue causante de  su muerte aquella vez. y dicen que le pregunta el médico si  esta vivo, y como habla tan claramente; y el responde que esta  muerto. y, después que han sabido lo que querían, lo vuelven  a  la  sepultura  de  donde  lo  sacaron  para  saber  de  el  lo  que  hemos dicho. Hacen también de otro modo los mencionados  hechizos para saber lo que quieren: toman al muerto, y hacen  un gran fuego, semejante a aquel con que el carbonero hace  carbón,  y  cuando  los  leños  se  han  convertido  en  brasas,  echan al muerto en aquella gran hoguera, y después lo cubren  de tierra, como el carbonero cubre el carbón, y allí lo dejan  estar cuanto les parece. y estando así, lo interrogan como ya  se ha dicho antes: el cual responde que no sabe nada. y esto  se lo preguntan diez veces y de allí en adelante ya no habla  más. Le preguntan si esta muerto; pero él no habla más que  estas diez veces. 146

RHAA 14

those who wish to do the buhuitihu mischief  do  the following: First, in order to learn if  the sick  man died through the doctor’s fault, or because  he  did  not  observe  the  diet  that  the  doctor  prescribed for him, these relations take an herb  which  is  called  gueyo,  whose  leaves  resemble  those  of   the  sweet  basil,  being  thick  and  long;  this herb is also called zacón. They squeeze the  juice from the leaf, then cut the dead man’s nails  and the hair above his forehead, pound the nails  and  hair  to  a  powder  between  two  stones,  mix  this powder with the juice of  the herb, and pour  the mixture between the dead man’s lips to find  out from him if  the doctor was the cause of  his  death and whether he observed his diet. They ask  this of  him many times, until at least he speaks  as  distinctly  as  if   he  were  alive  and  answers  all  their questions, saying that the buhuitihu did not  observe the diet, or was the cause of  his death.  They say that the doctor asks him if  he is alive,  and that he can speak very clearly; he replies that  he  is  dead.  After  they  have  learned  from  him  what they want to know, they return him to the  grave from which they took him. They perform  this  sorcery  in  still  another  way.  They  take  the  dead  man  and  make  a  great  fire  like  that  used  for  making  charcoal,  and  when  the  wood  has  turned to live coals, they throw the body into that  fierce blaze; then they cover it with earth, as the  charcoal-burner  does  the  charcoal,  and  leave  it  there as long as they think advisable. Then they  ask  him  the  same  question  as  above.  The  dead  man replies that he knows nothing. This they ask  of  him ten times, and ten times he replies in the  same way. Again they ask him if  he is dead, but  he will speak only those ten times.  XVIII. How the Dead Man’s Relatives Avenge themselves When They Have Had a Reply Through the Sorcery of the Potions The dead man’s relations assemble on a certain  day and lie in wait for the said buhuitihu, give him  such  a  thrashing  that  they  break  his  legs,  arms,  and head, and leave him for dead. At night, they  say, there come many different kinds of  snakes-white, black, green, and many other colors--that  lick  the  face  and  whole  body  of   the  physician  whom the Indians have left for dead. This they do  two or three nights in succession; and presently,  they  say,  the  bones  of   his  body  knit  together  again  and  mend.  And  he  rises  and  walks  rather  slowly to his home. Those who meet him on the  road  say,  “Were  you  not  dead?”  He  replies  that  the cemies came to his aid in the shape of  snakes.


La primera crónica religiosa del Caribe And  the  dead  man’s  relations,  very  angry  and  desperate because they thought they had avenged  the death of  their kinsman, again try to lay hands  on  him;  and  if   they  catch  him  a  second  time,  they  pluck  out  his  eyes  and  smash  his  testicles,  for  they  say  no  amount  of   beating  will  kill  one  of  these physicians if  they do not first tear out  his testicles. How the dead man whom they have  burned reveals what they wish to know, and how  they take their vengeance. When they uncover the  fire, the smoke rises until it is lost from sight, and  when  it  leaves  the  furnace,  it  makes  a  chirping  noise. Then it descends and enters the hut of  the  buhuitihu  or  doctor.  If   he  did  not  observe  the  diet,  he  falls  sick  that  very  moment,  is  covered  with sores, and his whole body peels. This they  take for a sign that he did not observe his diet,  and so they try to kill him in the manner described  above. These are the sorceries they perform.  XIX. How They Make and Keep their Wooden or Stone Cemies They make the wooden cemies in this fashion.  If  a man walking along the way sees a tree moving  its roots, he stops, filled with fear, and asks who  it is. The tree replies, “Summon a buhuitihu, and  he will tell you who I am.” Then that man goes  in search of  a physician and tells him what he has  seen. The sorcerer or warlock immediately runs  toward  that  tree,  sits  down  by  it,  and  prepares  a cohoba for it, as described in the story of  the  four brothers. And having made the cohoba, he  rises,  and  pronounces  all  its  titles  as  ifit  were  a  great lord, and says to it: “Tell me who you are  and what you are doing here, and what you want  of   me  and  why  you  summoned  me.  Tell  me  if   you want me to cut you down, and if  you wish  to come with me, and how you want me to carry  you; for I shall build a house for you and endow  it with land.” Then that cemi or tree, become an  idol or devil, tells him the shape in which it wants  to  be  made.  And  the  sorcerer  cuts  it  down  and  carves it into the shape that it has ordered, builds  a house for it and endows it with land; and many  times a year he makes cohoba for it.  This cohoba is their means of  praying to the  idol and also of  asking it for riches. When they  wish  to  know  if   they  will  gain  a  victory  over  their enemies, they enter a hut to which only the  principal men are admitted. And the lord is the  first to make the cohoba and plays an instrument;  and while he makes the cohoba none may speak.  After  he  has  finished  his  prayer  he  remains  for  some  time  with  bowed  head  and  arms  resting

Capitulo XVIII: Cómo se Vengan los Parientes del Muerto Cuando Han Tenido Respuesta por El Hechizo de las Bebidas Se  reúnen  un  día  los  parientes  del  muerto,  y  esperan  al  susodicho  behique,  y  le  dan  tantos  palos  que  le  rompen  las  piernas  y  los  brazos  y  la  cabeza,  moliéndolo  todo,  y  lo  dejan  así creyendo haberlo matado. y por la noche dicen que vienen  muchas culebras de diversas clases, blancas, negras y verdes, y de  otros muchos colores, las cuales lamen la cara y todo el cuerpo  del dicho medico que dejaron por muerto como hemos dicho.  El cual se esta así dos o tres días, y mientras esta así, dicen que  los huesos de las piernas y de los brazos vuelven a unirse y se  sueldan, y que se levanta, y camina poco y se vuelve a su casa. y  los que lo ven le preguntan diciendo “¿Tu no estabas muerto?  Pero él responde que los cemíes fueron en su ayuda en forma  de  culebras.  y  los  parientes  del  muerto,  muy  irritados  porque  creían haber vengado la muerte de su pariente, viéndolo vivo, se  desesperan y procuran echarle mano para darle muerte; y si lo  pueden coger otra vez, le sacan los ojos y le rompen los testículos;  porque  dicen  que  ninguno  de  estos  médicos  puede  morir  por  muchos palos y golpes que se le den si no le sacan los testículos. Capitulo XVIII BIS: Como Saben lo que Quieren de Aquel que Han Quemado, y Cómo se Vengan Cuando descubren el fuego, el humo que se levanta sube  hacia arriba hasta que lo pierden de vista, y da un chirrido al  salir del horno. vuelve luego abajo y entra en casa del behique  medico, y este se enferma en ese mismo instante si no guardó  la dieta, y se llena de llagas y se le pela todo el cuerpo. y esto  tienen por señal de que no la ha guardado, y que por eso murió  el enfermo. Por lo cual procuran matarlo, como ya se ha dicho.  Estas son pues las hechicerías que suelen hacer. Capitulo XIX: Cómo Hacen y Guardan los Cemíes de Madera o de Piedra Los  de  madera  se  hacen  de  este  modo:  cuando  alguno  va de camino dice que ve un árbol, el cual mueve la raíz; y el  hombre con gran miedo se detiene y le pregunta quien es. y el  le responde: “Llámame a un behique y el te dirá quien soy”. y  aquel hombre, ido al susodicho médico, le dice lo que ha visto. y  el hechicero o brujo corre en seguida a ver el árbol de que el otro  le ha hablado, se sientan junto a él, y le hace la cohoba, como  RHAA 14

147


Lourdes domínguez, Luiz Estevam de oliveira Fernandes antes hemos dicho en la historia de los cuatro hermanos. Hecha  la cohoba, se pone de pie, y le dice todos sus títulos, como si  fueran de un gran señor, y le pregunta: “dime quien eres, y que  haces aquí, y que quieres de mi y por que me has hecho llamar.  dime si quieres que te corte, o si quieres venir conmigo, y como  quieres que te lleve, que yo te construiré una casa con heredad”.  Entonces aquel árbol o cemí, hecho ídolo o diablo, le responde  diciéndole la forma en que quiere que lo haga. y el lo corta y  lo  hace  del  modo  que  le  ha  ordenado;  le  fabrica  su  casa  con  heredad, y muchas veces al año le hace la cohoba. La cual cohoba es para hacerle oración, y para complacerlo  y para preguntar y saber del dicho cemí las cosas malas y buenas  también  para  pedirle  riquezas.  y,  cuando  quieren  saber  si  alcanzaran victoria contra sus enemigos, entran en una casa en  la  que  no  entra  nadie  más  que  los  hombres  principales.  y  el  señor de ellos es el primero que comienza a hacer la cohoba y  toca un instrumento; y mientras hace la cohoba, ninguno de los  que están en su compañía habla hasta que el señor ha concluido.  después que ha terminado su oración, esta un rato con la cabeza  baja y los brazos sobre las rodillas; luego alza la cabeza, mirando  al cielo, y habla. Entonces todos le responden a un tiempo en alta  voz; y habiendo hablado todos, dan gracias, y el narra la visión  que ha tenido, ebrio con la cohoba que ha sorbido por la nariz y  se le subió a la cabeza. y dice haber hablado con el cemí, y que  conseguirán la victoria, o que sus enemigos huirán, o que habrá  gran mortandad, o guerras, o hambre u otra cosa tal, según que  el, que esta borracho, dice lo que recuerda. Juzguen como estará  el cerebro, pues dicen que les parece ver que las casas se voltean  con los cimientos para arriba, y que los hombres caminan con  los pies hacia el cielo. y esta cohoba se la hacen no solo a los  cemíes de piedra y de madera, sino también a los cuerpos de los  muertos, según arriba hemos dicho. Los  cemíes  de  piedra  son  de  diversas  hechuras.  Hay  algunos  que  dicen  que  los  médicos  sacan  del  cuerpo,  y  los  enfermos tienen que aquellos son los mejores para hacer parir  a las mujeres preñadas. Hay otros que hablan, los cuales tienen  forma de un nabo grueso, con las hojas extendidas por tierra y  largas como las de las alcaparras; las cuales hojas, por lo general,  se parecen a las del olmo; otros tienen tres puntas, y creen que  hacen nacer la yuca. Tienen la raíz semejante al rábano. La hoja  de  la  yuca  tiene  cuando  más  seis  o  siete  puntas;  no  se  a  que  cosa pueda compararla, porque no he visto ninguna que se le  parezca en España ni en otro país. El tallo de la yuca es de la  altura de un hombre. digamos ahora de la creencia que tienen  en lo que toca a sus ídolos y cemíes, y de los grandes engaños  que de estos reciben. 148

RHAA 14

on his knees; then he lifts his head, looks up to  the sky, and speaks. All respond to him in a loud  voice,  and  having  spoken,  they  all  give  thanks;  and he relates the vision he had while stupefied  with the cohoba that he snuffed up his nose and  that went to his head. He tells that he has spoken  with the cemi and that they will gain the victory,  or that their enemies will flee, or that there will  be many deaths, or wars, or famines, or the like.  or whatever comes to his addled head to say. one  can  imagine  the  state  he  is  in,  for  they  say  the  house appears to him to be turned upside-down  and  the  people  to  be  walking  with  their  feet  in  the air. This cohoba they make not only for the  cemíes of  stone and wood but also for the bodies  of   the  dead,  as  told  above.  There  are  different  kinds of  stone cemíes. Some the doctors extract  from  bodies  of   sick  people,  and  it  is  believed  these are the best to induce childbirth in pregnant  women. There are other cemíes that speak; these  have the shape of  a large turnip with leaves that  trail over the ground and are as long as the leaves  of  the caper bush; these leaves generally resemble  those of  the elm, others have three points: The  natives  believe  they  help  the  yucca  grow.  The  root  resembles  that  of   the  radish,  and  the  leaf   generally has six or seven points. I know not with  what to compare it, because I have seen no plant  like it in Spain or in any other country. The stalk  of  the yucca is a high as a man.  Now  I  shall  tell  of   their  beliefs  concerning  their idols and cemíes, and how they are greatly  deluded by them.  XX. Concerning the Cemí Buyabá, Which Was Burned in Time of War, and Aftemoards, Being Washed With the Juice of the Yucca, Its Arms, Eyes, and Body Grew Back Because  the  yucca  plant  was  stunted,  they  washed  [this  cemi  B.K.]  With  wilter  and  the  aforesaid juice in order to make it large; they say  this cemi made ill those who had made it because  they had not brought it cassava to eat. The name  of  this cemi was vaibrama. And if  someone fell  ill,  they  called  the  buhuitihu  and  asked  him  the  cause  of   that  sick  ness.  The  buhuitihu  replied  that vaibrama had caused it because food had not  been sent to the caretakers of  that cemi’s house.  XXI. Concerning the Cemí of Guamorete They  say  that  when  they  built  the  house  of   guamorete,  who  was  a  principal  man,  they  put  in it a cemí, which he kept on top of  his house;


La primera crónica religiosa del Caribe the  name  of   this  cemi  was  Corocote.  once  in  time of  war the enemies of  guamorete set fire  to his house. Then, they say, Corocote got up and  walked a crossbow shot from that place, next to  the water. They further say that while he lived on  the  top  of   that  house  he  would  come  down  at  night and lie with the women. After guamorete  died  this  cemi  fell  into  the  hands  of   another  cacique, and continued to lie with women. They  also say that two crowns grew on his head, and  that is why they used to say [of  someone B.K.],  “since he has two crowns he is certainly the son  of   Corocote.”  All  this  they  believed  without  question.  This  cemí  later  fell  into  the  hands  of   another  cacique  named  guatabanex,  and  the  place where he lived was named yacabá.  XXII. Concerning Another Cemí Named Opiyelguovircán, Who Belonged to a Principal Man Named Cavavaniovavcá, Who Had Many Vassals They say this cemí opiyelguovircán had four  legs,  like  a  dog,  and  was  made  of   wood,  and  frequently left his house by night and went into  the woods. They would go in search of  him, and  bring  him  back  to  the  house  tied  with  cords,  but  he  always  returned  to  the  woods.  They  say  that when the Spaniards arrived on the island of   Española,  this  cemi  fled  and  went  to  a  lagoon;  they followed him there by his tracks, but never  saw him again, and know nothing more of  him.  That is the story they tell, and faithfully do I tell  it again.  XXIII. Concerning Another Cemí Named Guabancex This  cemi  lived  in  the  land  of   a  principal  cacique, named Aumatex. It is a woman, and they  say  she  has  two  other  cemíes  for  companions;  one  is  a  herald  and  the  other  is  the  collector  and governor of  the waters. They say that when  guabancex  is  angry,  she  raises  the  winds  and  water,  throws  down  houses,  and  tears  up  the  trees. They say this cemi is a woman and is made  of   stones  of   that  country.  Her  herald,  named  guatauba, carries out her orders by making the  other  cemies  of   the  province  help  in  raising  wind  and  rain.  Her  other  companion  is  named  Coatrisquié of  him they say that he collects the  waters in the valleys between the mountains and  then lets them loose to destroy the countryside.  The people hold this to be gospel truth.

Capitulo XX: Del Cemí Buya y Aiba, del que Dicen que, Cuando Hubo Guerra, lo Quemaron, y Después, Lavándolo con el Jugo de la Yuca, le Crecieron los Brazos, y le Nacieron de Nuevo los Ojos y le Creció el Cuerpo La yuca era pequeña, y con el agua y el jugo mencionado  le  lavaban  para  que  fuese  grande;  y  afirman  que  causaba  enfermedades  a  los  que  habían  hecho  dicho  cemí,  por  no  haberle llevado yuca que comer. Este cemi se llamaba Baibrama.  y  cuando  alguno  se  enfermaba,  llamaban  al  behique,  y  le  preguntaban de que procedería su enfermedad, y el respondía  que Baibrama se la había enviado, porque no le había mandado  de comer por conducto de los que tenían cuidado de su casa.  y esto decía el behique que le había dicho el cemí Baibrama. Capitulo XXI: Del Cemí de Guamorete dicen que cuando hicieron la casa de guamorete, el cual  era un hombre principal, pusieron allí un cemí, que el tenia en  lo alto de su casa, el cual cemi se llamaba Corocote, y una vez  que  tuvieron  guerra  entre  ellos,  los  enemigos  de  guamorete  quemaron la casa en que estaba dicho cemi Corocote. dicen que  entonces este se levanto y se marcho de aquel lugar a distancia  de un tiro de ballesta, junto a unas aguas. y dicen que estando  encima de la casa, de noche bajaba y yacía con las mujeres; y  que después guamorete murió, y que dicho cemí vino a parar a  manos de otro cacique, y que seguía yaciendo con las mujeres.  y dicen además que en la cabeza le nacieron dos coronas, por  lo que solían decir: “ Puesto que tiene dos coronas, ciertamente  es hijo de Corocote.” y esto lo tenían certísimo. Este cemí lo  tuvo  luego  otro  cacique,  llamado  guatabanex,  y  su  lugar  se  llamaba Jacagua. Capitulo XXII: Del otro Cemi, que se Llamaba Opiyelguobirán, y lo Tenía un Hombre Principal, que se Llamaba Sabananiobabo, que Tenia Muchos Vasallos Bajo su Mando El cual cemí opiyelguobirán dicen que tiene cuatro pies,  como de perro, y es de madera, y que muchas veces por la noche  salía de casa y se iba a las selvas. Allí iban a buscarlo, y vuelto  a  casa  lo  ataban  con  cuerdas;  pero  él  se  volvía  a  las  selvas.  y  cuando los cristianos llegaron a la dicha isla Española, cuentan  que este escapó y se fue a una laguna; y que aquellos lo siguieron  hasta allí por sus huellas, pero que nunca mas lo vieron, ni saben  nada de él. Como lo compré, así también lo vendo. RHAA 14

149


Lourdes domínguez, Luiz Estevam de oliveira Fernandes Capitulo XXIII: Del otro Cemí que se Llamaba Guabancex

XXIV. Their Beliefs Conceming the Cemi Named Faraguvaol

Este  cemí  guabancex  estaba  en  un  país  de  un  gran  cacique  de  los  principales,  llamado  Aumatex.  El  cual  cemí  es  mujer,  y  dicen  que  hay  otros  dos  en  su  compañía;  el  uno  es  pregonero  y  el  otro  recogedor  y  gobernador  de  las  aguas.  y  dicen  que  cuando  guabancex  se  encoleriza  hace  mover  el  viento y el agua y echa por tierra las casas y arranca los árboles.  Este cemí dicen que es mujer, y esta hecho de piedras de aquel  país; y los otros dos cemíes que están en su compañía se llaman  el uno guataúba, y es pregonero o heraldo, que por mandato  de  guabancex  ordena  que  todos  los  otros  cemíes  de  aquella  provincia  ayuden  a  hacer  mucho  viento  y  lluvia.  El  otro  se  llama  Coatrisquie,  el  cual  dicen  que  recoge  las  aguas  de  los  valles  entre  las  montañas,  y  después  las  deja  correr  para  que  destruyan el país. y esto lo tienen ellos por cierto.

Capitulo XXIV: De lo que Creen de otro Cemí, que se Llama Baraguabael Este cemí es de un cacique principal de la isla Española,  y  es  un  ídolo,  y  le  atribuyen  diversos  nombres,  y  fue  hallado  del modo que ahora oiréis. dicen que un día, antes de que la  isla  fuese  descubierta,  en  el  tiempo  pasado,  no  saben  cuanto  tiempo hace, andando de caza, hallaron un cierto animal, tras  del cual corrieron, y él huyó a un hoyo; y mirando por él, vieron  un leño que parecía cosa viva. de donde el cazador, al ver esto,  corrió a su señor, que era cacique y padre de guaraionel, y le  dijo lo que había visto. Luego fueron allá y encontraron la cosa  como el cazador decía; y cogido aquel tronco, le edificaron una  casa.  dicen  que  de  aquella  casa  salio  varias  veces,  y  se  iba  al  lugar de donde lo habían traído, pero no ya al mismo lugar, sino  cerca. Por lo cual el señor sobredicho, o su hijo guaraionel, lo  mandó a buscar y lo hallaron escondido; y lo ataron de nuevo y  lo metieron en un saco. y con todo esto, así atado, se iba como  antes. y esto tiene por cosa ciertísima aquella gente ignorante.

Capitulo XXV: De las Cosas que Afirman Haber Dicho dos Caciques Principales de la Isla Española, Uno Llamado Cacibaquel, Padre del Mencionado Guarionex, y el Otro Guamanacoel y a aquel gran señor, que dicen está en el cielo, según esta  escrito en el principio de este libro, hizo Cáicihu un ayuno, el cual  150

RHAA 14

This cemi is an idol who belongs to a principal  cacique  of   the  island  of   Española  and  goes  by  various  names.  He  was  found  in  a  manner  that  I  shall  now  relate.  They say that  one  day in  the  past,  before  the  island  was  discovered  [by  the  Spaniards  B.K.],  but  they  do  not  know  how  long ago, some Indians while hunting found an  animal  which  they  pursued;  it  threw  itself   into  a ditch, and when they looked for it, they saw a  log that seemed alive. At sight of  this the hunter  immediately  ran  to  his  lord,  who  was  a  cacique  and the father of  guarayonel, and told him what  he had seen. They went there and found it to be  as the hunter had said, so they took that log and  built  a  house  for  it.  They  say  the  cemi  left  that  house several times and returned to a place near  that  place  whence  they  had  brought  him.  The  aforesaid lord or his son guarayonel sent men to  search for the cemi, and they found him hiding;  they  tied  him  up  again  and  put  him  in  a  sack;  yet, tied as he was, he got away as before. These  ignorant people hold this to be most certain truth.  XXV. Concerning What Is Alleged to Have Been Said by Two Principal Caciques of the Island of Española, One of them Cacivaquel, Father of the Aforesaid Guarayonel, and the Other, Gamanacoel The great lord who they believe is in heaven  (as I wrote at the beginning of  this book) ordered  Cacivaquel  to  fast,  which  they  all  generally  do,  staying  in  seclusion  six  or  seven  days  at  a  time  without  eating  or  drinking  anything  except  the  juice  of   the  herbs  with  which  they  also  wash  themselves. When the fasting period is finished,  they begin to take nourishment. during the time  of   their  fast  their  bodily  and  mental  weakness  causes  them  to  see  things  that  they  perhaps  wanted  to  see.  They  all  fast  in  honor  of   their  cemíes, in order to learn from them if  they will  gain  a  victory  over  their  enemies,  to  acquire  riches, or to satisfy some other desire. And they  say  this  cacique  claimed  to  have  spoken  with  yiocavugama, who had announced to the cacique  that  those  who  succeeded  to  his  power  would  enjoy  it  only  a  short  time  because  there  would  come  to  his  country  a  people  wearing  clothes  who would conquer and kill the Indians, and that  they would die from hunger. At first they thought  he referred to the cannibals; later, reflecting that  the  cannibals  only  robbed  and  then  went  away,


La primera crónica religiosa del Caribe they  decided  he  must  have  meant  some  other  people.  That  is  why  they  now  believe  that  the  idol prophesied the coming of  the Admiral and  the people who came with him. Now I shall tell  what  I  have  seen  and  experienced.  When  I  and  other brothers were about to depart for Castile,  I,  Fray  Ram6n,  a  poor  anchorite  [was  ordered  B.K.] to remain, and I went to the fortress of  La  Magdalena, which was built by don Christopher  Columbus, Admiral, viceroy, and governor of  the  islands and mainland of  the Indies, by order of   King Ferdinand and Queen Isabella our masters.  While  I  was  in  that  fort,  in  the  company  of   its  captain,  Arteaga,  god  was  pleased  to  enlighten  with the light of  the Holy Catholic Faith the entire  household of  the principal chief  of  the province  in  which  stands  the  fortress  of   Magdalena.  This  province  was  called  Macorix,  and  its  lord  is  named  guavaoconel,  which  means  “son  of   guavaenequín.” In that house were his servants  and favorites, who are called yahu naboriu; there  were  sixteen  persons  in  all,  all  relations  of   his,  including  five  grown  brothers.  one  of   them  died,  and  the  other  four  received  the  water  of   holy baptism, and I believe they died martyrs, as  is shown by their constancy and the manner of   their  death.  The  first  to  be  killed  after  baptism  was  an  Indian  named  guaticavá,  who  received  the  baptismal  name  of   Juan.  He  was  the  first  Christian to suffer a cruel death, and certain am I  that he died a martyr’s death. I learned from some  who were present when he died that he repeatedly  said, dios naboria daca, dios naboria daca, which  means, “I am the servant of  god.” His brother  Antonio and another who was with him died in  the same manner, uttering the same words. The  people of  this household always were attentive to  my wishes. All those who have survived are still  Christians,  thanks  to  the  work  of   the  aforesaid  Christopher Columbus, viceroy and governor of   the Indies; and now, through god’s favor, there  are many more Christians.  Now I shall tell what happened in the fortress  of   La  Magdalena.  While  I  was  there,  the  Lord  Admiral came to relieve Arteaga and some other  Christians  who  were  besieged  by  their  enemies,  the  subjects  of   a  principal  cacique  named  Caonabó. At that time the Lord Admiral told me  that  the  province  of   Magdalena  had  a  language  that  was  different  from  any  other  and  was  not  understood  elsewhere  on  the  island,  and  that  I  should go to live with another principal cacique  named  guarionex,  a  lord  over  many  vassals,  as  his  language  was  understood  throughout  the  country.  By  his  order,  then,  I  went  to  live  with

hacen comúnmente todos ellos. Para lo que están recluidos seis  o siete días sin comer cosa alguna, excepto jugo de las hierbas  con que también se lavan. Acabado este tiempo. Comienzan a  comer alguna cosa que les da sustento. y en el tiempo que han  estado sin comer, por la debilidad que sienten en el cuerpo y en  la cabeza, dicen haber visto alguna cosa quizá deseada por ellos.  Por lo cual todos hacen aquel ayuno en honor de los cemíes  que tienen, para saber si alcanzaran victoria de sus enemigos,  para adquirir riquezas o por cualquier otra cosa que desean. y  dicen  que  este  cacique  afirmó  haber  hablado  con  yucahuguamá, quien le había dicho que cuantos después de su  muerte quedasen vivos, gozarían poco tiempo de su dominio,  porque vendría a su país una gente vestida, que los habría de  dominar  y  matar,  y  que  se  morirían  de  hambre.  Pero  ellos  pensaron primero que estos habrían de ser los caníbales, mas  luego,  considerando  que  estos  no  hacían  sino  robar  y  huir,  creyeron que otra gente habría de ser aquella que decía el cemí.  de donde ahora creen que se trata del Almirante y de la gente  que lleva consigo. Ahora quiero contar lo que he visto y pasado, cuando yo y  otros hermanos íbamos a ir a Castilla. y yo, fray Ramón, pobre  ermitaño, me quede, y fui a la Magdalena, a una fortaleza que hizo  construir don Cristóbal Colón, almirante, virrey y gobernador  de las Islas y de la Tierra Firme de las Indias, por mandato del  rey don Fernando y de la reina doña Isabel, nuestros señores.  Estando yo, pues, en aquella fortaleza en compañía de Arteaga,  capitán  de  ella,  por  mandato  del  susodicho  gobernador  don  Cristóbal Colón, plugo a dios iluminar con la luz de la santa  fe católica toda una casa de la gente principal de la sobredicha  provincia de Magdalena, cuya provincia se llamaba ya Macorís,  y el señor de ella se llama guanaoboconel, que quiere decir hijo  de guanaoboconel, que quiere decir hijo de guanaobocón. En  dicha casa estaban sus servidores y favoritos, que son llamados  naborías; y eran en total dieciséis personas, todos parientes, entre  los cuales había cinco hermanos varones. de estos murió uno,  y los otros cuatro recibieron el agua del santo bautismo; y creo  que murieron mártires, por lo que en su muerte y constancia  se  vio.  El  primero  que  recibió  la  muerte,  y  el  agua  del  santo  bautismo, fue un indio llamado guaticaba, que después tuvo  el  nombre  de  Juan.  Este  fue  el  primer  cristiano  que  padeció  muerte cruel, y tengo cierto que tuvo muerte de mártir. Por que  he sabido por algunos que estuvieron presentes a su muerte,  que decía: “dios naboría daca, dios naboría daca, que quiere  decir “yo soy siervo de dios”. y así murió su hermano Antón,  y  con  el  otro,  diciendo  lo  mismo  que  el.  Los  de  esta  casa  y  RHAA 14

151


Lourdes domínguez, Luiz Estevam de oliveira Fernandes gente todos estuvieron en mi compañía para hacer cuanto me  agradaba.  Los  que  quedaron  vivos  y  todavía  viven  hoy,  son  cristianos por obra del susodicho don Cristóbal Colón, virrey  y gobernador de las Indias; y ahora hay muchos mas cristianos  por la gracia de dios. digamos  ahora  lo  que  nos  sucedió  en  la  Provincia  de  Magdalena.  Hallándome  en  la  mencionada  Magdalena,  vino  el dicho señor Almirante en socorro de Arteaga y de algunos  cristianos asediados por los enemigos, súbditos de un cacique  principal  llamado  Canoabo.  El  señor  Almirante  me  dijo  entonces  que  la  provincia  de  Magdalena  (o)  Macorís  tenía  lengua distinta de la otra, y que no se entendía su habla por todo  el país. Pero que yo me fuese a vivir con otro cacique principal,  llamado guarionex, señor de mucha gente, pues la lengua de  este  se  entendía  por  toda  la  tierra.  Así,  por  su  mandato,  me  fui  a  vivir  con  el  dicho  guarionex.  y  bien  es  verdad  que  le  dije al señor gobernador don Cristóbal Colon: “Señor.? Como  quiere vuestra Señoría que yo vaya a vivir con guarionex, no  sabiendo mas lengua que la de Macorís? déme licencia vuestra  Señoría  para  que  venga  conmigo  alguno  de  los  de  Nuhuirey,  que  después  fueron  cristianos,  y  sabían  ambas  lenguas”.  Lo  cual me concedió, y me dijo que llevase conmigo a quien mas  me agradase. y dios por su bondad me dio por compañía al  mejor de los indios, y el más entendido en la santa fe católica; y  después me lo quito. Alabado sea dios que me lo dio y luego me  lo quito. verdaderamente yo lo tenia por buen hijo y hermano;  era guatícanabu, que después fue cristiano y se llamo Juan. de  las  cosas  que  allí  nos  pasaron,  yo,  pobre  ermitaño,  diré alguna, y de cómo salimos yo y guatícabanu y fuimos a la  Isabela, y allí esperamos al señor Almirante hasta que volvió del  socorro que dio a la magdalena. y tan pronto como llego, nos  fuimos  adonde  el  señor  gobernador  nos  había  mandado,  en  compañía de uno que se llamaba Juan de Ayala, que tuvo a su  cargo una fortaleza que dicho gobernador don Cristóbal Colón  hizo fabricar a media legua del lugar donde nosotros habíamos  de residir. y el señor Almirante mando a dicho Juan de Ayala  que nos diese de comer de todo lo que había en la fortaleza,  la cual fortaleza se llamaba Concepción. Nosotros estuvimos  por consiguiente con aquel cacique guarionex casi dos años,  enseñándole siempre nuestra santa fe y las costumbres de los  cristianos. Al principio mostró buena voluntad y dio esperanza  de hacer cuanto nosotros quisiéramos y de querer ser cristiano,  diciendo  que  le  enseñásemos  el  Padre  Nuestro,  el  Ave  Maria  y el Credo y e todas las otras oraciones y cosas propias de un  cristiano. y así aprendió el Padre Nuestro y el Ave Maria y el  152

RHAA 14

guarionex.  However,  I  said  to  the  governor,  don Christopher Columbus, “Sir, how can your  Lordship  ask  me  to  stay  with  guarionex,  when  the  only  language  I  know  is  that  of   Macorix?  Let your Lordship permit to come with me one  of   the  Nuhuirci”  (these  people  later  became  Christians)  “who  know  both  languages.”  He  granted  my  wish,  and  said  I  might  take  along  anyone  I  wished.  And  god  was  pleased  to  give  me  for  companion  the  best  of   all  the  Indians,  and  the  best  instructed  in  the  Holy  Catholic  Faith; afterwards He took him from me: Praised  be  god  who  gave  him  to  me  and  then  took  him  away.  Truly  I  looked  upon  him  as  my  own  good son and brother. He was guaicavanú, who  afterwards became a Christian under the name of   Juan.  I,  a  poor  anchorite,  shall  tell  some  of   the  things that befell us there, beginning with how I  and  guaicavanú  departed  for  Isabela  and  there  waited for the Lord Admiral until his return from  the relief  of  Magdalena. As soon as he returned,  we set out for the place where the Lord governor  had sent us, accompanied by Juan de Ayala, who  had command of  the fortress of  La Concepci6n  that  the  governor  Christopher  Columbus  had  built  half   a  league  from  the  place  where  we  were going to reside. The Lord Admiral ordered  Juan de Ayala to provide us with food from the  stores of  the fortress. We stayed with the cacique  guarionex  almost  two  years,  during  which  time  we  instructed  him  in  our  holy  faith  and  the  customs  of   the  Christians.  At  first  he  appeared  well  disposed  toward  us,  causing  us  to  believe  that  he  would  do  all  we  wished  and  wanted  to  become a Christian, for he asked us to teach him  the Pater Noster, the Ave Maria, the Credo, and  all  the  other  prayers  and  things  that  are  proper  for  a  Christian  to  know.  He  learned  the  Pater  Noster,  the  Ave  Maria,  and  the  Credo,  as  did  many  other  persons  of   his  household;  he  said  his prayers every morning and made the people  of   his  household  say  them  twice  a  day.  But  he  later  grew  angry  with  us  and  backslid  from  his  good purposes on account of  the principal men  of  that country, who scolded him for obeying the  Christian law. They said the Christians were cruel  and had taken their lands away by force; therefore  they advised him to pay no heed to the Christians;  instead  they  should  take  counsel  together  how  they  might  best  kill  the  Christians,  since  these  were insatiable and there was no way of  placating  them.  So  he  gave  up  his  good  ways  and  we,  seeing  that  he  was  drawing  away  from  us  and  abandoning  our  teachings,  decided  to  go  where  we  might  have  more  success  in  indoctrinating


La primera crónica religiosa del Caribe the Indians in our holy faith. So we left for the  country of  another principal chief  who seemed  well  disposed  toward  us  and  said  he  wanted  to  be a Christian. This cacique was named Maviatué.  How we departed for the country of  Maviatué,  being I, Fray Ramón Pane, a poor anchorite, Fray  Juan  de  Borgoña,  of   the  order  of   St.  Francis,  and  Juan  Matthew,  who  was  the  first  to  receive  baptism on the island of  Española. The day after  we left the village and dwelling of  guarionex for  the land of  the cacique Maviatué, the people of   guarionex built a hut next to the chapel, where we  had left some images before which the neophytes  could  kneel  and  pray  and  I  find  comfort;  these  neophytes were the mother, brothers, and relatives  of   Juan  Matthew;  afterwards  seven  others  joined  them.  Eventually  all  the  members  of   his  household became Christians and remained loyal  to our holy faith, keeping watch over that chapel  and some fields that I had caused to be tilled. on  the second day after our departure for Maviatué’s  village, by orders of  guarionex six men came to  the chapel and told the seven neophytes who had  it in charge to take the sacred images that I had  left in their care and destroy them, because Fray  Ramón and his companions had gone away and  would  not  know  who  I  had  done  it.  The  seven  boys  who  guarded  the  chapel  tried  to  prevent  them from entering; but they forced their way in,  took the sacred images, and carried them away.  XXVI. What Happened to the Images, and of the Miracle That God Caused to Pass in Order to Show His Power After leaving the chapel those men threw the  images  to  the  ground,  heaped  earth  on  them,  and  pissed  on  top,  saying,  “Now  will  you  yield  good and abundant fruit”; they offered this insult  because  they  had  buried  the  images  in  a  tilled  field.  Seeing  this,  the  lads  who  watched  over  the  chapel  ran  to  their  elders,  who  were  in  the  fields, and told them that guarionex’s people had  desecrated  the  images  and  had  jeered  at  them.  The  Indians  immediately  left  what  they  were  doing and ran crying to tell what had happened  to don Bartholomew Columbus, then governing  for his brother the Admiral, who had sailed for  Castile. As the viceroy’s lieutenant and governor  of  the islands, he brought those wicked men to  trial, and their crime having been established, he  caused them to be publicly burned at the stake.  However, guarionex and his people persisted in  their evil design of  killing all the Christians on the

Credo,  y  lo  mismo  aprendieron  muchos  de  su  casa;  y  todas  las  mañanas  decía  sus  oraciones  y  hacia  que  las  dijesen  dos  veces al día los de su casa. Pero después se enojo y abandono  su  buen  propósito,  por  culpa  de  otros  principales  de  aquella  tierra, los cuales le reprendían porque deseaba obedecer la ley  de  los  cristianos,  siendo  así  que  los  cristianos  eran  malvados  y  se  habían  apoderado  de  sus  tierras  por  la  fuerza.  Por  eso  le  aconsejaban  que  no  se  ocupara  más  de  las  cosas  de  los  cristianos, sino que se concertasen y conjurasen para matarlos,  puesto que no podían satisfacerlos y habían resuelto no hacer  en modo alguno lo que ellos quieren. debido a que se aparto de  su buen propósito, nosotros, viendo que se apartaba y dejaba lo  que le habíamos enseñado, resolvimos marcharnos e ir donde  mejor  fruto  pudiéramos  obtener,  enseñando  a  los  indios  y  adoctrinándolos en las cosas de la fe. y así nos fuimos a otro  cacique principal, que nos mostraba buena voluntad diciendo  que quería ser cristiano. El cual cacique se llamaba Mabiatué.

Capitulo XXV {BIS}: Como Partimos para Ir al País de Dicho Mabiatué, Esto Es, Yo, Fray Ramón Pané, Pobre Ermitaño, Fray Juan de Borgoña, de la Orden de San Francisco, y Juan Mateo, el Primero que Recibió El Agua del Santo Bautismo en la Isla Española Al segundo día que partimos del pueblo y residencia de  guarionex para ir a otro cacique llamado Mabiatué, la gente de  guarionex edificaba una casa junto al adoratorio, el cual dejamos  algunas imágenes ante las cuales se arrodillasen y orasen y se  consolasen los catecúmenos, que eran la madre, los hermanos  y los parientes del mencionado Juan Mateo, el primer cristiano,  a  los  que  se  juntaron  otros  siete;  y  después  todos  los  de  su  casa se hicieron cristianos, y preservaron en su buen propósito  según nuestra fe. de modo que toda la referida familia quedaba  para  guardar  dicho  adoratorio  y  algunas  heredades  que  yo  había  labrado  o  hecho  labrar.  y,  habiendo  quedado  aquellos  en custodia de dicho adoratorio, al segundo día después de que  hubimos  partido  para  ir  al  sobredicho  Mabiatué,  fueron  seis  hombres  al  adoratorio,  que  dichos  catecúmenos,  en  numero  de  siete,  tenían  bajo  custodia,  y  por  mandato  de  guarionex  les  dijeron  que  tomasen  aquellas  imágenes  que  fray  Ramón  había  dejado  al  cuidado  de  los  sobredichos  catecúmenos,  las  destrozasen y rompiesen, pues fray Ramón y sus compañeros  se habían marchado, y no sabrían quien lo había hecho. Por que  los seis criados de guarionex que fueron allí, encontraron a los  seis muchachos que custodiaban el oratorio, temiendo lo que  RHAA 14

153


Lourdes domínguez, Luiz Estevam de oliveira Fernandes después  sucedió.  y  los  muchachos,  así  adoctrinados,  dijeron  que no querían que entrasen; mas ellos entraron a la fuerza, y  tomaron las imágenes y se las llevaron.

Capitulo XXVI: De lo que Sucedió con las Imágenes, y del Milagro que Hizo Dios para Mostrar Su Poder Salidos  aquéllos  del  adoratorio,  tiraron  las  imágenes  al  suelo  y  las  cubrieron  de  tierra  y  después  orinaron  encima,  diciendo:  “Ahora  serán  buenos  y  grandes  tus  frutos”.  y  esto  porque las enterraron en un campo de labranza, diciendo que  seria bueno el fruto que allí se había plantado; y todo esto por  vituperio.  Lo  cual  visto  por  los  muchachos  que  guardaban  el  adoratorio,  por  orden  de  los  susodichos  catecúmenos,  corrieron  a  sus  mayores,  que  estaban  en  sus  heredades,  y  les  dijeron  que  la  gente  de  guarionex  había  destrozado  y  escarnecido  las  imágenes.  Lo  cual  sabido  de  ellos,  dejaron  lo  que  hacían  y  corrieron  gritando  a  darle  conocimiento  a  don  Bartolomé Colon, que tenia aquel gobierno por el Almirante su  hermano, que se había ido a Castilla. Este, como lugarteniente  del virrey y gobernador de las islas, formo proceso contra los  malhechores y, sabida la verdad, los hizo quemar públicamente.  Pero  con  esto  guarionex  y  sus  vasallos  no  se  apartaron  del  mal  propósito  que  tenían  de  matar  a  los  cristianos  en  el  día  designado para llevarles el tributo de oro que pagaban. Pero su  conjuración fue descubierta, y así fueron presos aquel mismo  día  que  querían  llevarla  a  efecto.  y  no  obstante  todo  esto,  perseveraron en su perverso propósito, y poniéndolo por obra  mataron a cuatro hombres, y a Juan Mateo, principal cristiano,  y a su hermano Antón, que había recibido el santo bautismo. y  corrieron adonde habían escondido las imágenes y las hicieron  pedazos. Pasados algunos días, el señor de aquel campo fue a  sacar los ajes, los cuales ajes son ciertas raíces semejantes a los  nabos, y otras parecidas a rábanos; y en el lugar donde habían  estado enterradas las imágenes, habían nacido dos o tres ajes,  como si hubiesen puesto el uno por medio del otro, en forma  de  cruz.  No  era  posible  que  nadie  encontrase  tal  cruz,  y  sin  embargo la hallo la madre de guarionex, que es la peor mujer  que he conocido en aquellas partes, la cual tuvo esto por gran  milagro, y dijo al alcalde de la fortaleza de la Concepción: “Este  milagro ha sido mostrado por dios dónde fueron halladas las  imágenes. dios sabe por que”. digamos ahora como se hicieron cristianos los primeros  que  recibieron  el  santo  bautismo  y  lo  que  es  necesario  hacer  para  que se hagan  todos cristianos. y verdaderamente que la  154

RHAA 14

day assigned for them to pay their tribute of  gold.  The conspiracy being discovered, they were made  prisoners on the very day set for their revolt. yet  some persevered in their design, killing four men  and Juan Matthew, the chief  clerk, and his brother  Antonio,  who  had  been  baptized.  Then  those  rebels  ran  to  the  place  where  they  had  hidden  the  images  and  broke  them  to  pieces.  Several  days later the owner of  the field went to dig up  some yams (which are roots that look like turnips  or  radishes),  and  in  the  place  where  the  images  had  been  buried  two  or  three  yams  had  grown  together in the shape of  a cross. This cross was  found by the mother of  guarionex -- the worst  woman I ever knew in those parts. She regarded  it as a great miracle, saying to the governor of  the  fort of  Concepción, “god caused this wonder to  appear in the place where the images were found,  for reasons known only to Himself.”  Let  me  now  tell  how  the  first  Indians  to  receive baptism were made Christians, and what  is required to make them all Christians. Truly, this  a island has great need of  men who will punish  those Indian lords who will not let their people  receive  instruction  in  the  Holy  Catholic  Faith;  for those people cannot stand up to their lords. I  speak with authority, for I have worn myself  out  in seeking to learn the truth about this matter. But  all this is clear from what I have already said: A  word to the wise is sufficient. The first Christians  on Española, then, were those I have mentioned,  namely, yavauvariú and seventeen persons of  his  household, all of  whom became Christians merely  by being taught that there was a god who made  all  things  and  created  Heaven  and  earth.  There  was no need for further discussion or instruction,  so well disposed were they to the faith. But with  others  force  and  craft  are  necessary,  for  we  are  not all of  the same nature. Whereas those I spoke  of  made a good beginning and a better end, there  are others who begin well and afterwards mock  what  was  taught  them:  Such  require  the  use  of   force and punishment.  The  first  Indian  to  receive  baptism  on  Española  was  Juan  Matthew,  baptized  on  the  feast  day  of   St.  Matthew  the  Evangelist  in  the  year  of   1496,  and  followed  in  baptism  by  all  the  members  of   his  household.  More  progress  would  be  made  if   there  were  clergy  to  instruct  them  in  the  Holy  Catholic  Faith,  and  people  to  hold  them  in  check.  And  if   I  am  asked  why  I  think  this  business  so  easy,  I  shall  say  that  I  know  it  by  experience,  especially  in  the  person  of   the  principal  cacique,  named  Mahuviativiré,  who  for  three  years  now  has  continued  to  be  a


La primera crónica religiosa del Caribe good Christian, keeping only one wife, although  the Indians are accustomed to have two or three  wives,  and  the  principal  men  up  to  ten,  fifteen,  and twenty.  This is what I have been able to learn through  diligent inquiry of  the customs and rites of  the  Indians of  Española, and I seek neither spiritual  nor  temporal  benefit  from  it.  If   it  redound  to  the praise and service of  our Lord, may He be  pleased to give me strength to persevere; if  not,  may He deprive me of  my understanding.  End of  the work of  the poor anchorite Ramón  Pane. Translation: Peter Bakewell

isla  tiene  gran  necesidad  de  gente  para  castigar  a  los  señores  cuando son merecedores de ello (y) dar a conocer a aquellos  pueblos  cosas  de  la  santa  fe  católica  y  adoctrinarlos  en  ella;  porque no pueden y no saben oponerse. y yo  puedo decirlo  con verdad, pues me he fatigado para saber todo esto, y estoy  cierto  de  que  se  habrá  comprendido  por  lo  que  hasta  ahora  hemos dicho; y a buen entendedor, bastan pocas palabras. Los  primeros  cristianos  en  la  isla  Española  fueron,  pues,  los  que  arriba  hemos  dicho,  a  saber,  Naboría,  en  cuya  casa había diecisiete personas, que todas se hicieron cristianas,  con  darles  solo  a  conocer  que  hay  un  dios,  que  ha  hecho  todas las cosas, y creo el cielo y la tierra, sin que otra cosa se  discutiese ni se les diese a entender, porque eran propensos a  creer fácilmente. Pedro con los otros hay necesidad de fuerza y  de ingenio, porque no todos somos de una misma naturaleza.  Como aquellos tuvieron buen principio y mejor fin, habrá otros  que comenzaran bien y se reirán después de los que se les ha  enseñado; con los cuales hay necesidad de fuerza y castigo. El  primero  que  recibió  el  santo  bautismo  en  la  isla  Española fue Juan Mateo, el cual se bautizo el día de evangelista  San Mateo el año 1496, y después toda su casa, en la que hubo  muchos  cristianos.  y  más  adelante  se  iría,  si  hubiese  quien  los adoctrinase y les enseñase la santa fe católica, y gente que  los  refrenase.  y  si  alguien  me  preguntase  por  que  yo  creo  tan  fácil  este negocio,  diré  que lo  he  visto  por  experiencia,  y  especialmente en un cacique principal llamado Mahubiatíbire,  el  cual  hace  ya  tres  años  que  continua  con  buena  voluntad,  diciendo  que  quiere  ser  cristiano,  y  que  no  quiere  tener  más  que una mujer, aunque suelen tener dos o tres, y los principales  diez, quince y veinte. Esto es lo que yo he podido saber y entender acerca de  las  costumbres  y  los  ritos  de  los  indios  de  la  Española,  por  la  diligencia  que  en  ellos  he  puesto.  En  lo  cual  no  pretendo  ninguna utilidad espiritual ni temporal. Plegue a Nuestro Señor,  si esto redunda en beneficio y servicio suyo, darme gracia para  poder perseverar; y si ha de ser de otra manera, que me quite el  entendimiento. Fin de la obra del pobre ermitaño Ramón Pané.

RHAA 14

155



Resenhas

Kenneth Bendiner Food in paiting: from the Renaissance to the present Londres: Reaktion Books, 2004, 238 p. ISBN 86189-213-6

[…] [este livro] examina a comida e sua história apenas como aparecem em pinturas desde o século 15; e é tanto sobre arte como é sobre cozinha.1

Kenneth Bendiner, professor de História da Arte da Universidade de Milwaukee, finaliza o primeiro parágrafo de seu livro com esta frase. Nesta, ele explicita seu objetivo, ou seja, escrever sobre a relação entre arte e comida e, de modo quase inevitável, pensar como aqueles contextos sociais que produziram tais obras valoravam o ato da alimentação. O autor se utiliza de uma via de mão dupla, comentando as relações que são dadas pelo viés da história da arte, mas não deixando de lado aquelas que podem ser estabelecidas pela história da alimentação. Como seu título aponta, sua pesquisa está voltada apenas para o campo da pintura. Referências à escultura, à gravura e ao desenho, por exemplo, não são estabelecidas. Se esta opção é interessante pelo fato de termos um estudo com um alvo preciso, por outro lado algumas problematizações como, por exemplo, a do desenho científico e a da relação entre comida e imagem pelo viés da ciência e da história natural, que poderiam ser de grande interesse, são deixadas de lado. Esta empreitada acadêmica também tenta dar conta de um longo período, “do Renascimento ao presente”, como consta também em seu título. Para tal, ele cria quatro eixos conceituais e 1 BENDINER, Kenneth. Food in paiting: from the Renaissance to the present. Londres: Reaktion Books, 2004, p. 7.

RHAA 14

157


Resenhas a partir deles pensa as relações cabíveis entre pinturas de diversos recortes histórico-artísticos. Esta opção é louvável por não ler as imagens de modo estanque, como se estivessem trancadas em seus contextos, contribuindo com a “abertura” delas e sem deixar de lado suas particularidades históricas e sociais. Bendiner tende a construir seu texto de modo cronológico, ou seja, ele inicia suas análises pelas obras mais antigas, do século 15, e pensa na permanência daquelas formas e questões em outros períodos até chegar ao “presente” e nas modificações dadas naqueles modos de representar a comida. O primeiro eixo do livro é sobre a representação do mercado na História da Arte. Partindo de uma imagem da colheita do Maná (Figura 1), Bendiner analisa como as pinturas representam o ato de se dar, trocar, vender e expor alimentos. Dos troféus de caça à serialização da sopa industrializada, feita por Andy Warhol; dos restaurantes aos mercados medievais, ele analisa a questão da abundância alimentar nas representações de seus espaços de venda: comida é igual a fartura e esta última conota uma situação econômica favorável daquele que é representado – seja este o padeiro, o caçador ou o consumidor contemporâneo. Gula e luxúria, comida e sexo são itens que caminham lado a lado. Seria aleatório o fato de em algumas representações de mercados fartos observarmos ali ao lado a presença de uma figura feminina que desafia o espectador (Figura 2)? Haveria certo sexismo neste modo de representar? E os duplos sentidos que envolvem as palavras do campo semântico da comida e do comer? Como o autor esclarece, não só em português eles se fazem presentes, mas em diversas línguas ocidentais. Seu segundo capítulo, “Preparando a refeição”, analisa as representações de cozinhas. Em qual momento da história da arte aquele que cozinha deixou de ser visto como um mero serviçal e ganhou o estatuto de chef? Seria possível distinguir a classe social daquele que encomendou uma pintura a partir da comida que naquela tela foi pintada? Qual a dimensão desse “cozinhar artesanal” nas representações, por exemplo, da pop art (Figura 3)? Que significados poderíamos atribuir ao aparente apagamento daquele que tocava nos alimentos, substituído pela constante monumentalização dos ditos aparelhos eletrodomésticos? Estas questões que surgem no decorrer da leitura do livro de Bendiner são interpretadas, aos poucos, no decorrer de seu maior capítulo, o terceiro, simplesmente intitulado “Refeições”. Dividido em diversos subcapítulos, o autor reflete sobre os significados possíveis do poder de reunir pessoas em torno de um fim, o comer. Seria a refeição nobre, ou seja, dada 158

RHAA 14


Resenhas entre pessoas de alta classe social e, talvez por consequência, mediada por regras de etiqueta, ou a informalidade a dominaria? Que tipos de refeição permitem esta informalidade visual (Figura 4)? Os restaurantes, os piqueniques, o café, o chocolate, o chá; poderíamos ler as imagens de espaços, modos e objetos alimentares como um reflexo dos recortes históricos em que foram produzidos? Imagem, comer e cultura são coisas inseparáveis. Dependendo do lugar de onde advém a imagem analisada, as comidas representadas na pintura recebem significados diferentes. Podem ser interpretadas como uma manifestação nacionalista, ou podem ser resultado também de um intercâmbio cultural, como quando há a inclusão de especiarias mexicanas em pinturas espanholas do século 17, por exemplo. E, em um caso como este, o campo da dominação também se faz presente. Como o autor analisa muito bem, “[...] pinturas de refeições afirmam nossa maestria sobre o mundo e sobre nossos destinos”.2 O último momento do livro, o menor, porém mais crítico, chama-se “Comida decorativa e simbólica”. Bendiner aqui lança luz para a representação da comida em que não há a intenção de que esta seja vista enquanto alimento. Aqui, portanto, a dimensão social do ato da refeição é apagada, e o que salta aos olhos é ou o seu caráter meramente decorativo, ou o seu simbolismo objetivo. Exemplos do primeiro são as grotescas, pinturas com cunho decorativo e domiciliar, muito em voga durante o Renascimento, em que as frutas pintadas ali estão para ser organizadas visualmente, sem um significado transcendente a isso. No campo do simbolismo, o autor cita a associação iconográfica entre Jesus Cristo e a maçã, que remete ao pecado original cometido por Eva ao ingeri-la (Figura 5). Neste caso o que interessa é esta associação direta e não uma reflexão por parte do espectador sobre os costumes alimentares que perpassam aquele ato. Três me parecem, porém, os pontos negativos desta publicação. O primeiro é a utilização ligeiramente desenfreada dos termos referentes aos estilos históricos, como “maneirista”, “barroco”, “renascentista” e, acima de tudo, “pós-moderno”. Mesmo que toda a sua argumentação seja baseada na análise de imagens específicas e geralmente incluídas no texto, não é raro perceber uma tendência a ler o Renascimento como um período artístico permeado pela “calma” e “confiança”, ao passo que a Pós-Modernidade é “cáustica”.3 Se a estrutura do livro tende BENDINER, Kenneth. Op. cit., p. 204. Tradução nossa. “Esse livro inclui arte da era confiante do Renascimento ao período cáustico do Pós-modernismo”. In BENDINER, Kenneth. Op. cit., p. 7. Tradução nossa. 2 3

RHAA 14

159


Resenhas a uma interessante heterogeneização dos problemas temáticos que o autor propõe, ao se utilizar dos estilos artísticos e, ainda mais, usar destes para atribuir características homogeneizantes às pinturas, uma contradição fica aparente. Desta questão nasce outra: a relação que o autor vê entre diversas obras e a “natureza-morta holandesa”. É sabida a influência que pintores como Frans Hals e Rembrandt exerceram nas gerações posteriores, como as relações que podem ser estabelecidas, por exemplo, com Delacroix ou mesmo com Manet. O problema da abordagem do autor, porém, diz respeito ao fato de ele reconhecer esta relação, mas não destrinchá-la. Ele indica esta “influência holandesa”, mas não esclarece quais as diferenças que podemos encontrar nas obras em confronto. Em vez da ideia de influência, talvez ele devesse utilizar o termo “recepção” ou mesmo “intercâmbio” entre as pinturas. A via aqui acaba por ser, infelizmente, a de mão única. Esta abordagem também pode ser interpretada como consequência do excesso de imagens analisadas. Na tentativa de dar conta de um largo período histórico-artístico e pelo viés dos eixos conceituais, Bendiner acaba dando muitos exemplos e, vez ou outra, minimiza a sua leitura. Se ele optasse por enfocar suas análises em menor número de imagens, mas mantivesse seu interesse pelos confrontos anacrônicos, seu texto seria mais rico e o leitor se veria na posição prazerosa de realizar a sua própria pesquisa, expandindo os exemplos do livro. Há certa ansiedade de informação na sua escrita e esta prejudica o aspecto crítico do texto. De qualquer modo, porém, esta publicação parece essencial para o ainda incipiente campo da pesquisa das relações entre arte e alimentação. Devido ao seu próprio excesso de informação imagética e textual, o livro de Kenneth Bendiner se torna essencial como obra introdutória para o interessado nestes tópicos. Além do mais, este livro é um dos poucos encontrados no mercado editorial que explicitam que seu objeto de estudo é a representação imagética da comida e, ainda mais, pelos instrumentos oferecidos pela disciplina da História da Arte. Trata-se de um monumento ao “comer, beber, viver” e pintar, e apenas podemos seguir a esperar que este trabalho auxilie pesquisas futuras.

RAPHAEL FONSECA

Bacharel e Licenciado em História da Arte pela UERJ Mestre em História da Arte pela UNICAMP Professor de Artes Visuais do Colégio Pedro II 160

RHAA 14


Resenhas 1

1 Mestre do Maná – “A colheita do Maná” – 1470.

Vincenzo Campi – “A vendedora de frutas” – 1580. 2

2

RHAA 14

161


Resenhas

4 3

3

5

Roy Lichtenstein – “Fogão de cozinha” – 1962.

4 Frans Hals – “Banquete dos oficiais da Guarda Cívica de São Jorge” – 1616. 5

Hans Baldung Grien – “Adão e Eva” – 1531.

162

RHAA 14


Resenhas

Richard Hingley The Recovery of Roman Britain 1586‑1906, a colony so fertile Oxford: Oxford University Press, 2008, 390 p. ISBN 9780199237029

Richard Hingley, livre-docente da Universidade de Durham, Inglaterra, destaca-se no cenário dos estudos sobre a Antiguidade e sobre a Arqueologia, por sua preocupação com a inserção da pesquisa no seu ambiente histórico e social. Neste volume, recém-lançado na prestigiosa coleção Oxford Studies in the History of Archaeology (Coleção de Oxford de Estudos sobre a História da Arqueologia), Hingley volta-se para os estudos sobre a Bretanha romana por cerca de dois séculos. Procura mostrar como os vestígios materiais contribuíram para informar, desenvolver e contradizer o conhecimento advindo dos textos clássicos. Demonstra como a colonização inglesa da Escócia, da Irlanda e de outros territórios, como a Nova Inglaterra e a Índia, moldou as interpretações sobre a atuação dos romanos na Bretanha. O livro inicia-se com uma introdução, na qual se enfatiza que os objetos possuem um poder de agenciamento, na medida em que influenciam os modos de pensar e agir dos seres humanos. Quatro temas aparecem como recorrentes: • A ideia de que a civilização foi introduzida aos bretões nativos por meio de sua incorporação ao império romano; • Os modos pelos quais a separação de civilizados e incivilizados, por meio de muros romanos na fronteira norte, foram interpretados; • O tratamento das construções identitárias de romanos e bretões, em relação com as identidades modernas; • O papel das ruínas romanas nas propostas relativas à atuação imperial britânica. O primeiro capítulo volta-se para os reinados de Isabel I e Jaime I e a publicação do livro Britannia, de Camden, com sua RHAA 14

163


Resenhas coleção de inscrições latinas encontradas na Ilha. John Speed (1551-1629) publicou uma História da Grã-Bretanha, na qual aparecem pintados os nativos bretões e pictos. O período romano foi considerado particularmente relevante por Camden e Speed, entre outros autores da época, por ter introduzido a civilização, assim como o Cristianismo e a ideia de unidade da Grã-Bretanha. Perscruta a literatura do período, que ressalta como os romanos levaram a ordem para complementar a coragem dos bárbaros. Como colonizadores da Irlanda e do Novo Mundo, os ingleses percebiam analogias entre seu próprio poder civil e militar e o dos romanos. O segundo capítulo volta-se para o muro de separação de bárbaros e romanos, título retirado de passagem de uma fonte romana, Scriptores Historiae Augustae, De Vita Hadriani, 11, 2 (“Adriano foi o primeiro a construir um muro, com oitenta milhas de comprimento, para separar bárbaros e romanos”). Diversos autores tentaram mostrar a importância da ocupação romana na Escócia, embora outros enfatizassem a independência dos antigos pictos. As narrativas dos autores clássicos sobre a Bretanha foram usadas, no século 18, para conceituar a colonização interna e externa àquela época. O terceiro capítulo mostra como uma visão militar da ocupação romana contrastava com interpretações civis, disputa que, de alguma forma, continua até os dias de hoje. A ordem Georgiana (Georgian order), tão bem conhecida na Arqueologia Histórica do mundo americano, aparece em toda sua utilização dos motivos romanos. O controle imperial britânico ronda sempre a maneira de encarar as evidências materiais romanas encontradas na Grã-Bretanha. Em seguida, Hingley intitula o quarto capítulo com uma citação: “A ocupação romana da Bretanha e a nossa ocupação da Índia” (B. Windle, 1897). Em meados do século 19, muitos antiquários continuavam a lutar com a ideia de que a cultura romana pudesse ter se espalhado para os bretões, por analogia com o que ocorria com os britânicos na Índia. A escavação de fazendas romanas (uillae) foi incentivada pela aristocracia rural. O conceito de raça, tão presente na vida social da época, foi também transposto para o entendimento do mundo antigo, assim como pulularam as buscas por origens cristãs. São Paulo teria convertido a bretã Cláudia Rufina, filha do rei nativo Cogidubnus, e assim teria começado a evangelização da Ilha, já no século 1. Como descrevia Grover, em 1870: “a civilização, com suas bênçãos e pragas, atraía o morador comum da Ilha britânica. Um longo ciclo de imperialismo magnífico, por quatrocentos 164

RHAA 14


Resenhas anos, tinha que ocorrer”. O General Pitt Rivers, um dos fundadores da Arqueologia moderna, fundou seus primeiros estudos e métodos na busca dos bretões romanizados. A romanização, tradução do alemão Romanisierung, termo criado por Mommsen, inseria-se na perspectiva da aculturação, com a passagem implícita de uma cultura inferior para outra superior. Francis Haverfield foi responsável por tentar reconciliar as vertentes civis e militares na explicação do domínio romano da província, por meio do conceito de romanização. Na conclusão, Hingley ressalta que artefatos, depósitos e monumentos foram importantes para a forja de narrativas históricas, que davam sustentação ao domínio britânico das áreas colonizadas na Irlanda, na América, Índia e África. Há diversos aspectos que devem ser ressaltados nos argumentos de Hingley. Em primeiro lugar, demonstra como o estudo de um tema tem muito a ganhar com uma reflexão sobre sua inserção nas circunstâncias históricas. A Arqueologia do século 21 apresenta rupturas, mas também continuidades insuspeitadas com as pesquisas antiquárias dos últimos quatro séculos. Em seguida, fica também claro que os modelos interpretativos usados pela Arqueologia faziam sentido como respostas aos problemas políticos de suas épocas, aos desígnios de dominação moderna. Não é possível, portanto, desvencilhar a maneira de encarar os romanos, das situações e interesses das épocas posteriores. Em termos arqueológicos, o uso da cultura material romana, em época moderna, serviu a diversos propósitos, tanto na Grã-Bretanha, como em áreas muito distantes. Não se pode considerar a moderna ordem georgiana, levada para a América do Norte, sem entender como fazia parte de uma narrativa da materialidade romana, ainda que para usos modernos e burgueses. A leitura desta obra será, portanto, de grande interesse não apenas para os que se interessam pelo mundo antigo, como pela modernidade e pela epistemologia da disciplina arqueológica.

PEDRO PAUlO ABREU FUNARI Professor Titular do Departamento de História e Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos, Universidade Estadual de Campinas. RHAA 14

165



Resenhas

Charles Batteux As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio Tradução do francês: Natalia Maruyama Tradução de trechos em latim: Adriano Ribeiro Revisão Técnica: Victor Knoll Apresentação e Notas: Marco Aurélio Werle São Paulo: Humanitas & Imprensa Oficial, 2009, 168 p. As doutrinas artísticas antigas, refundadas em algum neoaristotelismo, assim como em obras poéticas também pertencentes à Antiguidade – a aristotélica e a horaciana, principalmente – serviram à composição do ensaio intitulado “as belas artes reduzidas a um mesmo princípio”, de Charles Batteux, professor de retórica, filosofia e poesia grega e latina no Collège Royal de Paris, em fins do século 18. Sucedem o Les beaux-arts outras obras fundamentais escritas por Batteux ao longo do tempo em que desempenhou as referidas funções de professor e reitor, como Cours de Belles-Lettres ou Principes de la Littérature, de 1753, ou o Les Quatre Poétiques, d’Aristote, d’Horace, de Vida, de Despreáux, avec les traductions & des remarques, de 1771, além de outros. Não se trata aquele, no entanto, de um tratado de execução para as artes nem tampouco pode ser proposto como obra precursora quanto à emergência de estéticas que fundamentam o fazer artístico segundo a noção de vida subjetiva do artista, principal critério, conforme aquelas, para o desenvolvimento das artes na chave do progresso e do devir. Convertido ao conceito de “princípio unificador” das artes, o princípio a que se refere o título da obra não é redutor quanto à implicação das técnicas e dos modelos de imitação ao mesmo tempo em que se amplifica a atuação da subjetividade RHAA 14

167


Resenhas e da individualidade como principais móveis da criação poética e artística. Não pertence, caso se queira dizer de outro modo, à Estética ou à Filosofia da Arte, mas às doutrinas poético‑retóricas que pensam as artes, em termos de comparação, paragone, na chave da imitação e do decoro, conforme, preceito aristotélico. Confirma‑o a própria exposição feita por Batteux no prólogo do “as belas‑artes”: Após tantas buscas inúteis e não ousando entrar sozinho em uma matéria que, vista de perto, parecia tão obscura, atrevia‑me a abrir Aristóteles, do qual eu havia escutado exaltarem a Poética. [...] A máxima de Horácio se achou verificada pelo exame: ut pictura poesis. Constatou‑se que a poesia era em tudo uma imitação, assim como a pintura. Eu ia mais longe: tentava aplicar o mesmo princípio à música e à arte do gesto, e espantou‑me a justeza com a qual lhes convinha. Foi isso que produziu esta pequena obra, onde se pressente que a poesia deve ocupar a posição principal, tanto por causa de sua dignidade, quanto por ter sido sua ocasião.

Ao invocar o kairos, a ocasião, ou “o momento oportuno”, para a poesia, Batteux subordina a imitação operante em todas as artes àquela produzida pela poesia, construindo o seu discurso, mediante outros princípios, embora não declarados no ensaio, advindos da retórica aristotélica. Apta menos a persuadir do que a desenvolver os meios exigidos para cada caso, com vistas à persuasão, esta retórica provê para Batteux as provas inartísticas, fornecidas pela leitura de Aristóteles, Horácio e outros, assim como as artísticas, com as quais o autor informa o leitor sobre a motivação do ensaio para o esclarecimento de suas ideias sobre as belas‑artes e a poesia, ou para prestação de contas a si mesmo, conforme o que ele relata, encontrada por método ou inventada por cogitação própria. De acordo com Batteux, a natureza fornece o melhor modelo a ser imitado para quem saiba imitá‑la bem, quer dizer, convenientemente, sendo, por outro lado, um despropósito imitá‑la “servilmente”, tal como ela é. O conveniente é o bom que, por sua vez, é “digno de ser escolhido em si e por si”, segundo Aristóteles, ou aquilo que, “pela sua presença, outorga bem‑estar e autossuficiência, [...] ou o que produz e conserva esses bens” (Retórica, I,7). O bom é belo, e é útil, sendo conveniente, por exemplo, que o mais fácil seja maior que o mais difícil porquanto sendo em geral o mais difícil maior que o mais fácil, todavia, é a este último que sempre desejamos. Reduzir as artes a um mesmo princípio implica simplificar as regras, tendendo‑se à conveniência do mais fácil ou do mais simples, uma vez que o modelo a ser imitado por todas as artes é sempre o mesmo, ou seja, a natureza, em si, bela, boa e útil. 168

RHAA 14


Resenhas Para Batteux, o “juiz nato de todas as belas‑artes é o gosto”, uma vez que o bom gosto nas artes, a par da imitação da bela natureza é regrado pelo sentimento, ou pelo gênio, sendo este o sentimento em conformidade com as coisas naturais. Agradar, levar ao prazer, sempre foi o seu objeto, constituindo‑ se as artes os seus “novos objetos”, embora o gosto sempre permaneça constantemente o mesmo, uma vez que procede da imitação do modelo da natureza. Os objetos apresentados pelas artes, segundo Batteux, devem ter “uma relação íntima conosco”, despertando o nosso interesse à medida que nosso espírito prova da variedade, assim, multiplicando em nós os sentimentos e as ideias. À arte cabe a função de dotar as diferentes partes desses objetos de um “grau requintado de força e de elegância”, fazendo‑os parecer como novos, porquanto apresentados de maneira singularíssima, para a audiência ou espectadores, que, por sua vez, compartilham das mesmas doutrinas do legislador, e julgam o êxito da ficção. As definições de Batteux sobre o gosto coincidem também com as de Montesquieu, que foi incumbido de escrever um verbete sobre este conceito para a Enciclopédia de D’Alembert e Diderot, iniciada em 1753. Para Montesquieu, o “gosto é aquilo que nos liga a uma coisa por meio do sentimento”. O gosto, adquirido, cultivado, dá a conhecer, para o sentimento, as regras particulares que o gênio do artista utilizará na invenção e disposição de seu discurso, comportando‑se todas as artes particulares como formas discursivas consoantes à poesia, que é exemplo para Batteux de imitação do belo natural, estendido ao gosto, e, assim, a todas as artes. Sendo o gênio uma aptidão e uma disposição do ethos do artista na contrafação do modelo natural, por meio da imitação, o gosto, para Batteux, consequentemente está subordinado ao mesmo princípio, sendo em relação a este princípio não uma aptidão produtiva, como o gênio, mas somente apreciativa e legislativa. O gênio, por sua vez, é uma tópica que também corresponde às doutrinas, não investido ainda da subjetividade psicologizada que o projetará no romantismo como principal expoente de arte que se apresente como expressão autônoma e intimista. Para Batteux, a sua função consiste “não em imaginar o que pode ser, mas encontrar o que é”, inventando, isto é, achando um objeto já existente com o propósito de imitá‑lo. Trata‑se de uma aptidão apropriada ao exercício, principal, de reconhecimento, feito também pelo gosto, uma vez que na natureza, onde tudo existe, pode ser encontrado o modelo prototípico para as artes que nunca sobrevêm do nada. Ao servir como meios de transporte dos “traços que estão na natureza e apresentá‑los em objetos que não são naturais”, as artes assumem a direção da produção do verossímil, e não RHAA 14

169


Resenhas da busca pelo verdadeiro, servindo‑se da matéria que a natureza efetivamente lhe oferece. Tal tópica se apresenta em muitos outros lugares, por exemplo, em Kant, na terceira crítica, obra do final do século 18, quando ele analisa a relação entre “bela‑arte, gênio e gosto”. Divergem os dois autores, Kant e Batteux, quanto à direção determinada para o conceito de gênio, aptidão natural para ambos, porém, voltada mais à invenção de “ideias estéticas” ou daquelas “ricas em imaginação”, segundo Kant, do que algo que se apresenta como uma acurada capacidade investigativa, segundo o autor francês. Propõe‑se aqui a captura do conceito de gênio pela filosofia do final do século 18, pelo que Kant determina como a “disposição natural inata” ativa no sujeito, de onde provém toda regra necessária à produção da bela‑arte. Contingentes, as leituras que se fizeram, sobretudo no século 19 e início do século 20, destas e de outras proposições kantianas, serviram às definições mais recentes de arte para as quais a expressão e a criação, principais chaves de entendimento destas, rondam subterraneamente o autor subjetivo. Batteux deve ser lido, porém, ainda em concordância com as doutrinas neoaristotélicas circulantes à época. Para estas doutrinas, é o gênio uma aptidão que imita, emula e aperfeiçoa, pelo composto imitado, o modelo da natureza, sem deixar o referido composto de ser natural. Em outras palavras, o gênio escolhe e organiza entre os inúmeros objetos naturais, aqueles que são convenientes à invenção e à imitação, na composição das partes da arte à qual o artista se dedica. Servindo‑lhe de apoio e alimento, a natureza dispõe a ele as suas riquezas, encarecendo a imitação como operação de reconhecimento destas, “naquilo que é propriamente arte”, ou como construção de um “fundo de verdade” misturado habilmente à ilusão. Lendo Aristóteles, possivelmente a partir da edição comentada da Poética, publicada por André Dacier, em 1692, Batteux reedita a comparação entre poesia e história, esta ligada ao verdadeiro, aquela, ao verossímil: “O historiador dá os exemplos tais como são, frequentemente imperfeitos. O poeta os dá tais como deveriam ser”. A imitação prevê a seleção das partes da natureza e também dos fatos assim ditos verdadeiros na efetuação de uma ficção baseada no verdadeiro, vera fictio, associada à composição do pleno artifício, falsa fictio, operação também retórica que, para o autor, é exemplificada pela tópica inscrição de similitudes. Operante em Plínio, o Velho, que é referência para Batteux e todos os outros autores do período, esta tópica é reapresentada pelo nosso autor no exemplo da seleção de belezas, feita por 170

RHAA 14


Resenhas Zêuxis para a pintura de uma deusa, ou pela pintura das batalhas de Alexandre, por Le Brun. A imitação, contudo, somente se completa como perfeição de arte se o estado do gênio, excitando‑se, no momento em que se completa a composição, preenche‑o como se fosse uma “ideia viva”, que o faz esquecer‑se de si mesmo. Extasiado, o gênio tem, na chave do entusiasmo platônico, condições de se unir ao seu objeto, vivendo pelo sentimento os artistas os personagens de suas invenções, “colocando‑se no meio das coisas que queiram representar”. Divididas em três espécies, as “artes mecânicas”, as “belas‑artes”, e as da “eloquência e arquitetura”, são as de segunda espécie a receber tratamento que as articula em torno do princípio de imitação poética. Assim, logo após tratar da natureza do gênio e do gosto, Batteux lança‑se a analisar a operação do “mesmo princípio” à poesia, suas divisões e gêneros, “à pintura, à música e à dança”. Homólogas à poesia, estas artes estão destinadas a se mostrarem juntas ou reunidas, principalmente a primeira, seguida das duas últimas, porquanto a elas cabe a tarefa de “apresentar a imagem das ações e paixões humanas”, aristotelicamente. Uma vez que a natureza criou os seus princípios, com o fim de mantê‑los unidos, este é o princípio fundamental ou o primeiro princípio. À arquitetura, escultura e pintura, por outro lado, caberia a missão de armar a cena para o espetáculo ou para a exposição do composto imitado. Para tanto, Batteux propõe para esta última, a pintura, também uma homologia com a poesia, extensível às demais artes. Basta, segundo ele, que se substituam os nomes “poesia, fábula, versificação” pelos nomes “pintura, desenho, colorido”. Vistos hierarquicamente como partes da pintura, “desenho e colorido”, neste último incluso o claro‑escuro, são remissivos à divisão da pintura que circula pelos tratados a ela dirigidos desde pelo menos meados do século 15. Pense‑se, por exemplo, na articulação “desenho/ claro‑escuro/cor”, operante em Alberti, depois vigente nas academias de Bologna, Roma e França, e alhures. Articulação que também se instalaria, mais tarde, na instituição acadêmica brasileira, do século 19, à luz de reflexão quase sempre estatutária, legível em decretos de nossa burocracia oficial.

LuIz ARMANDO BAgOLIN

Professor do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB/USP RHAA 14

171



Referências das imagens

A presença de Chassériau em Moreau 1

Gustave Moreau. Les cantique des cantiques, 1853. Dijon, musée des Beaux-Arts.

2

Théodore Chassériau? Invasions Barbares. Por volta de 1850. Musée du Louvre.

3

Théodore Chassériau. François Xavier baptise les Indiens, 1850-1853. Igreja de Saint Roch, Paris.

4

Théodore Chassériau. Saint Philippe baptise l’eunuque de la reine d’Éthiopie, 1850-1853. Igreja de Saint Roch, Paris.

5

Detalhe do soldado em Cântico dos Cânticos, 1853, de Gustave Moreau.

6

Detalhe de figura masculina em Saint François Xavier (invertida), 1850-53, de Théodore Chassériau.

7

Detalhe de Cântico dos Cânticos, 1853, de Gustave Moreau.

8

Detalhe de Saint François Xavier baptise les Indiens, 1850-53, de Théodore Chassériau.

9

Detalhe de Invasions Barbares, de Théodore Chassériau por volta de 1850.

10

Detalhes da figura feminina. Les cantiques de cantiques, 1853, de Moreau.

11

Detalhes da figura feminina. Étude de femme assise dans un intérieur, por volta de 1852, de Moreau.

12

Detalhes da figura feminina. Trois études dont La Sulamita, por volta de 1852, de Moreau.

13

Detalhes da figura feminina. Vénus marine, 1838, de Chassériau.

14

Detalhes da figura feminina. Suzanne au bain, 1839, de Chassériau.

15

Detalhes da figura feminina. Esther se parant pour être présentée au roi Assuérus, 1841, de Chassériau.

16

Detalhes da figura feminina. Alice Ozy, 1848, de Chassériau.

17

Detalhes da figura feminina. Portrait de Rachel, 1853, de Chassériau.

18

Gustave Moreau. Le Jeune Homme et la mort, 1856-1865.

Semiótica aplicada à Arqueologia – um estudo de caso na Área Andina 1

Representação de “guerreiro mochica”. Peça pertencente ao acervo do Museu Arqueológico Rafael Larco Herrera. Fotografia da autora.

2

Ilustração da autora a partir do artefato apresentado na Figura 1.

3

Detalhe de sememas sobre o corpo do guerreiro apresentado nas Figuras 1 e 2. Ilustração da autora.

4

Representação gráfica de sememas referentes a padrões de pelagem vistos nos jaguares, encontrados em peças mochicas. (1- padrões representados conforme encontrados na peça ML003778; 2- padrão representado conforme encontrado na peça ML001175, pertencente ao acervo do Museu Larco. 3- padrão representado conforme encontrado na peça MAE 3562, pertencente ao acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP). Ilustração da autora.

A cultura guarani em debate: o Sítio Arqueológico Córrego da Lagoa 2 1

Mapa Político do Estado do Paraná, retirado do site oficial do Município de Altônia, com um ponto em vermelho localizando a região do Sítio arqueológico Córrego da Lagoa 2.

2

Representações gráficas de Cambuchí e Cambuchí Caguabã respectivamente. (LA SALVIA & BROCHADO, 1989).

3

Números totais de fragmentos analisados.

A Virgem amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração, do Museu de Arte de São Paulo 1

Virgem amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração / Giampietrino / Museu de Arte de São Paulo (MASP - SP). Óleo sobre tela: 86 × 88 cm.

RHAA 14

2

Madona com Menino, São Jerônimo e São João Batista / Giampietrino / San Marino (Pavia).

3

Madona com Menino, São Jerônimo e São João Batista / Giampietrino / Ospedaletto Lodigiano.

4

Leda / Giampietrino / Staatliche Museen (Kassel). Óleo sobre tela: 128 × 106 cm.

5

Ninfa Hegéria / Giampietrino / Brivo Sforza (Milão).

Apresentação da indústria lítica do sítio arqueológico Caconde 6 Figuras 1

Minirraspador circular de sílex.

2

Exemplos de Caconde 6.

3

Exemplo de Plaina da coleção Caconde 6.

4

Pontas-projéteis da coleção Caconde 6.

5

Exemplo de Biface “Bumerangue”.

6

Exemplo de Lesma da coleção Caconde 6.

Furadores

da

coleção

Gráficos 1

Distribuição dos vestígios quanto à classe em Caconde 6.

2

Distribuição das lascas quanto ao tipo em Caconde 6.

3

Distribuição das lascas quanto ao talão em Caconde 6.

4

Distribuição das lascas quanto à matériaprima em Caconde 6.

5

Distribuição dos artefatos quanto ao tipo em Caconde 6.

6

Distribuição dos instrumentos quanto ao tipo em Caconde 6.

7

Distribuição dos detritos quanto à matériaprima em Caconde 6.

8

Distribuição dos fragmentos de lasca quanto à matéria-prima em Caconde 6.

173


Dez lesenas renascimentais na Villa Zeri: origem e contexto

13

Detalhe da lesena n. 1, Villa Zeri, Mentana.

14

a) Lareira, Salão Turco, b) Palazzo Colonna, Roma (retirado de Safarik, 1999).

1

Lesena n. 1, Villa Zeri, Mentana.

2

Lesena n. 2, Villa Zeri, Mentana.

3

Lesena n. 3, Villa Zeri, Mentana.

4

Lesena n. 4, Villa Zeri, Mentana.

5

Lesena n. 5, Villa Zeri, Mentana.

6

Lesena n. 6, Villa Zeri, Mentana.

Caracterização de crostas de origem biológica em sítios arqueológicos no Vale do Rio Peruaçu – MG

7

Lesena n. 7, Villa Zeri, Mentana.

1

8

Lesena n. 8, Villa Zeri, Mentana.

Crosta branca num paredão rochoso no Abrigo do Malhador.

9

Lesena n. 9, Villa Zeri, Mentana.

2

10

Lesena n. 10, Villa Zeri, Mentana.

Detalhe da crosta: o pigmento vermelho é visível.

11

Esquema da parte superior da biblioteca Zeri, com distribuição das obras. Reconstituição gráfica: Daniele Giardina.

3

Forma de crescimento do micro-organismo.

4

Amostra 1915T: detalhe da crosta branca associada à ação do micro-organismo sobre a rocha.

5

Espectro FTIR para a amostra 1915T. Bandas características da gipsita (g) e wedelita (o).

12

Detalhe de banco marmóreo, segunda sala do andar nobre, Convento de SS. Apostoli, Roma.

174

RHAA 14

6

Espectro FTIR para a amostra 1919T. Bandas características da calcita (c) e gipsita (g).

BENDINER, Kenneth. Food in paiting: from the Renaissance to the present 1

Mestre do Maná – “A colheita do Maná” – 1470.

2

Vincenzo Campi – “A vendedora de frutas” – 1580.

3

Roy Lichtenstein – “Fogão de cozinha” – 1962.

4

Frans Hals – “Banquete dos oficiais da Guarda Cívica de São Jorge” – 1616.

5

Hans Baldung Grien – “Adão e Eva” 1531.


Normas para Publicação Os interessados em publicar na RHAA, em qualquer uma das seções temáticas, deverão enviar os seus textos de acordo com as Normas para publicação e os Parâmetros de formatação disponíveis em www.unicamp.br/chaa/rhaa. O mérito dos textos propostos será julgado pelos editores da RHAA e por dois ou mais pareceristas da área, tendo como critérios mais relevantes a originalidade do conteúdo e a sua compatibilidade com os estudos de História da Arte e de Arqueologia. Para contatos por e-mail: rhaaunicamp@gmail.com.

Permuta, Intercâmbios O Centro de História da Arte e Arqueologia aceita fazer permuta e intercâmbios com universidades, escolas, centros de pesquisa, bibliotecas, fundações, editoras e demais periódicos, se comprometendo a enviar os volumes da RHAA regularmente. As propostas de permuta deverão ser encaminhadas à Secretaria do Departamento de História do nosso Instituto pelo email rhaaunicamp@gmail. com, ou no seguinte endereço:

Estatuto dos Conselheiros Os conselheiros devem acompanhar a política editorial da RHAA, sugerindo colaboradores, referências e avaliando a qualidade dos trabalhos publicados. Todos os conselheiros devem possuir no mínimo a titulação de “doutor” e ser pesquisadores reconhecidos nas devidas áreas e especialidades da História da Arte e da Arqueologia. Não há prazo determinado para o período de participação dos membros no Conselho, e os novos membros serão escolhidos e convidados sob os critérios e necessidades estabelecidos pelos editores da RHAA.

Revista de História da Arte e Arqueologia IFCH - Secretaria do Departamento de História UNICAMP - Cidade Universitária “Zeferino Vaz” Caixa Postal 6110 CEP 13.081-970

Publication Norms

Exchange, Interchange

Chairmen Status

Those interested in publishing at RHAA, on any of the thematic sections, should submit texts in accordance to the Publication Norms and to the Formatting Parameters available at www.unicamp.br/chaa/rhaa.

The Art History and Archaeology Center accepts exchanging and interchanging with universities, schools, research centers, libraries, foundations, publishing houses and periodicals committing itself to sending the RHAA volumes regularly.

Chairmen should follow the RHAA editorial policy by suggesting collaborators, references, and evaluating the quality of the published works. All chairmen should be at least “doctors” and also be renowned researchers on the respective areas and specialties of Art History and Archaeology.

The merit of the proposed texts will be judged by the RHAA editors as well as by two or more specialists in the area, considering being most relevant criteria the originality of content and its compatibility to the studies in Art History and Archaeology. For e-mail contacts: rhaaunicamp@ gmail.com.

The exchange proposals should be forwarded to our “Secretaria do Departamento de História”, through the following e-mail address rhaaunicamp@ gmail.com, or to the address above.

There is no defining limit for the participation period of the members of the Council, and the new ones will be chosen and invited under the established criteria and necessities of the RHAA editors.


Proibida a reprodução total ou parcial de qualquer artigo sem a prévia autorização dos editores.

Todos os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não cabendo qualquer responsabilidade legal sobre seu conteúdo à revista ou à gráfica do IFCH.

Revista de História da Arte e Arqueologia / Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. n. 1 (1994) Campinas : UNICAMP/IFCH/CHAA, 1994. 176p. 2010 (14) ISSN 1413-0874 (impresso) ISSN 2179-2305 (online) 1. Arte - História. 2. Arqueologia. I. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Centro de História da Arte e Arqueologia. II. Título. CDD – 709.01

Catalogação na Fonte – Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UNICAMP CRB nº 08/ 3387 / Cecília Maria Jorge Nicolau Consul

Partial or full reproduction of any article is expressly forbidden without the editor’s previous authorization.

All signed articles are of the entire responsibility of its authors, not having any legal responsibility over its contents the Journal or the IFCH press.



A REVISTA DE HISTÓRIA DA ARTE E ARQUEOLOGIA (1994-)

www.unicamp.br/chaa/rhaa

REVISTA DE HISTÓRIA DA ARTE E ARQUEOLOGIA

é uma publicação do Centro de História da Arte e Arqueologia com o apoio do Programa de Pós-graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas.

N. 14 / JUL / DEZ DE 2010 ISSN 1413-0874 BRASIL

A presença de Chassériau em Moreau Semiótica aplicada à Arqueologia Arqueologia e cultura Guarani

Sítio arqueológico Caconde 6 Dez Lesenas na Villa Zeri Sítios arqueológicos do Peruaçu La primera crónica religiosa del Caribe

N. 14 JUL/DEZ DE 2010

A Virgem de Giampietrino no MASP


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.