Sobre o poder civil, os índios e a guerra

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Sobre o poder civil, os Ă­ndios e a guerra



Francisco de Vitória

Sobre o poder civil, os índios e a guerra Tradução:

Luiz Astorga


Sobre o poder civil, os índios e a guerra, Francisco de Vitória © Editora Concreta, 2017 Títulos originais: Relectio De Potestate Civili Relectio De Indis De Indis Relectio Posterior, sive De Iure Belli Hispanorum in Barbaros Os direitos desta edição pertencem à Editora Concreta Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330 Porto Alegre – RS – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br Editor: Renan Martins dos Santos Coordenador editorial: Marcus Boeira Tradução: Luiz Astorga Revisão: Emílio Costaguá Capa & Diagramação: Hugo de Santa Cruz Pintura de capa:

Padre Marquette e os índios (1869), de Wilhelm Lamprecht (1838-1906) Ficha Catalográfica Vitória, Francisco de, 1483-1546 V846s Sobre o poder civil, os índios e a guerra [livro eletrônico] / tradução de Luiz Astorga, edição de Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2017. 204p. :p&b ; 16 x 23cm ISBN 978-85-68962-23-7 1. Filosofia política. 2. Teologia. 3. Filosofia moderna. 4. Catolicismo 5. Contra-Reforma. 6. Pensadores jesuítas. I. Título. CDD-261.7

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

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C OL EÇ ÃO S A L A M A NC A

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omposta de intelectuais que povoaram o cenário das universidades da Península Ibérica, a Escola de Salamanca foi predominantemente um movimento teológico caracterizado pela ampla produção em vários campos do espírito humano como a filosofia, a economia, o direito e a moral. Os salmanticensis, como são chamados os membros da Escola de Salamanca, representam a continuação da escolástica nos tempos modernos. Podemos levantar quatro aporias que inquietaram os escolásticos ibéricos: os descobrimentos do Novo Mundo, a Reforma Protestante, a formação do incipiente Estado moderno e a propagação do direito internacional. Essas áreas abriram novos horizontes para a pesquisa racional e exigiram um tratamento sofisticado, que partisse dos cânones teológicos e mergulhasse na raiz mesma das transformações pelas quais o mundo da época – e a Europa em particular – passava. O resultado foi um gigantesco arcabouço teórico, notabilizado pela profundidade filosófica e forte sintonia com a produção escolástica da geração anterior. Francisco de Vitória, Domingo de Soto, Bartolomé Medina, Martim de Azpilcueta Navarro, Domingo Bañez, Melchior Cano, Luís de Molina, Francisco Suárez, para citar apenas alguns dos membros da escolástica ibérica, emergiram no cenário cultural europeu como autênticos porta-vozes do magistério eclesiástico em meio a um continente marcado por mudanças em todos os fronts. Não resumiram suas respectivas atividades intelectuais apenas ao reduto salamantino, mas atuaram como catedráticos e professores em outras universidades peninsulares, chegando até mesmo aos confins de Portugal, como é o caso das Universidade de Évora e Coimbra.


A produção assombrosa do período permite afirmar que os salmanticensis ocuparam o posto de soldados intelectuais da Contra-Reforma, não só pela erudição que demonstraram, senão pela exímia capacidade de esmiuçar os dilemas teológicos que eram suscitados pelas questões práticas então correntes. Exemplo claro disso é o tratamento conferido por muitos dos pensadores do período à justiça econômica dos preços e à complexidade teológica do livre-mercado, temática importantíssima para a era moderna. Ou ainda a questão do tiranicídio e da desobediência civil, em atenção ao contingente político das monarquias absolutistas. Enfim, são muitos os impasses que surgem nesse período. Os séculos XVI e XVII, assim, radicalizaram a metamorfose pela qual passou a sociedade ocidental, encurtando as distâncias entre o antigo e o hodierno. Disso, irrompem novos institutos nas diversas áreas do conhecimento e da existência humana, dando vazão a novas formas de vida e novos desafios no campo social. O Estado e o direito internacional, respectivamente, legaram ao homem moderno modalidades de vida talhadas dentro de um horizonte burocratizado, condicionado pelas correntes institucionais do período e com maior amplitude em seus paradigmas, já que agora o Novo Mundo passava a ser um destino possível para o europeu. A proliferação de novas formas de existência humana dentro de um cenário mais vasto reclamou a urgência de novas instituições, capazes de dar conta das dificuldades nascentes. Não somente o Estado e o Direito das Gentes, como também o aprimoramento missionário da Igreja e a crescente relevância do comércio entre os povos advieram para satisfazer tais necessidades. A análise rigorosa desses institutos pelos pensadores europeus abriu diversas concepções teóricas sobre o direito, a política e a sociedade. Na Península Ibérica, a escolástica renascia como movimento teológico, mas igualmente como escola apta a conferir a cada uma dessas aporias respostas refinadas pela profundidade e pelo método herdado da geração de outrora. Dentro disso, a Escola de Salamanca promoveu uma verdadeira conciliação entre a teologia medieval e os institutos da era moderna, ocupando o epicentro cultural do Siglo de Oro espanhol como mensageira da tradição católica em meio à revolução cultural pela qual perpassou a sociedade ocidental no período em questão. Marcus Boeira Coordenador da Coleção Salamanca


Agradecimento aos colaboradores

Através de campanha no website da Concreta para financiar a produção de Sobre o poder civil, os índios e a guerra, 450 pessoas fizeram sua parte para que este livro se tornasse realidade, um gesto pelo qual lhes seremos eternamente gratos. A seguir, listamos aquelas que colaboraram para ter seus nomes divulgados nesta seção: Adaylson W. S. Vasconcelos Adler Martins Alex Quintas de Souza Alfredo Culleton Allan Victor de Almeida Marandola Álvaro Pestana Amantino de Moura Ana Nely Castello Branco Sanches André Arthur Costa André Caniné de Oliveira Machado Andre Johansson André Ortlieb Quinto Angelo Zani

Antonio Afonso Ribeiro Neto Argemiro Ferreira Arthur de Souza Ary Alfredo Fortes Augusto Carlos Pola Jr. Bruno José Queiroz Ceretta Carlos Alexander de Souza Castro Carlos Cesar Borsatto Carlos Crusius Carlos Eduardo de Aquino de Pádua Cezar Roedel Cláudia Makia Cláudio Márcio Ferreira


Danilo Galvan David Ricardo Damasceno Davide Francesco Campos Lanfranchi Delania Gomes Vieira Diego Gonçalves de Araújo Diego Jácome Diego Paes Diogo Fontana Diogo Gugisch Edinho Lima Edio Marcos Alberti Edson Bezerra Eduardo Cardoso de Moraes Eduardo Ribeiro de Sá Elpídio Fonseca Emílio Vagnon Figueiredo da Silva Eric Cari Primon Erisvaldo Silva Melo Everaldo Uavniczak Everson Veras Fabio Dias Fabio Lauton Fábio Reis Fábio Salgado de Carvalho Felipe Corte Lima Felipe Dantas Fernando Alcantara Fernando Belmonte Archetti Fernando Henrique Pereira Menezes Flavio Montenegro Fred Klier Frederico Westin Ferreira de Brito Gabriel Henrique Knüpfer Gabriel Melati Genesio Pereira Genésio Saraiva Geovana Carvalho Geraldo André de Miranda Santos Gilberto Luna

Gio Fabiano Voltolini Jr. Giovane Goulart Fiorentino Giuliano Araújo Lucas de Carvalho Gracian Li Pereira Guilherme Batista Afonso Ferreira Guilherme da Costa Assunção Cecílio Guilherme Pöttker Guilherme Stein Gustavo Bertoche Gustavo de Araújo Haberlandt Pereira Duarte Heitor Dias Antunes Pereira Helder Madeira Helio A. Teixeira Hélio Angotti-Neto Henrique Joner Herick Morais Hermano Zanotta Hilton Silva Jr. Hugo Langone Igor Accioly Isadora Fernanda Lante Latini Ivan Jacopetti do Lago João Marcelo Silva Zigurate Jose Barboza José Mauricio de Oliveira Lima Neto José Ribeiro Junior Leonardo Ferreira Boaski Leonardo Henrique Silva Leonardo Loyola de Lima Lucas Lacerda Luiz Afonso Matos Luiz Alberto Amaral Nardi Manuel Azevedo Marcelo Massao Osava Marcelo Matos Marciano Souza Marcos Cortez Brito Leite Póvoa Marcos Roberto da Silva Costa


Maria Beatrix Azevedo Maria Cristina Hofmeister Meneghini Marinaldo Cavalari Mário Lucas Carbonera Mateus Colombo Mateus Cruz Mateus Rauber Du Bois Matheus Knispel da Costa Michael Chehade Michel Pagiossi Moisés de Melo Almeida Nilceia Bianchini Nilton José dos Santos Jr. Octavio Cicolo Neto Odinei Draeger Orlando Tosetto Oscar Frank Jr. Paulo Eduardo Frederico Pedro Chudyk Huberuk Rafael Bassoli Rafael de Mesquita Diehl Rafael Stoll Raiff Barreto Raphael Barbosa Justino Feitosa Raphael De Paola Renato Guimaraes Renato Lembe Roberto Cajaraville Roberto Smera Samuel da Silva Marcondes Samuel Santos Sérgio Eduardo Silvio Livio Simonetti Neto Suzi Matias Tarcisio Moura Thiago Blaka Thiago Junglhaus Tiago Bana Franco Tiago Dirceu Galdino Saraiva

Valéria Saldanha Vinicius Botelho Vitor Colivati Vitor Fonseca de Melo Vitor Hugo Pontes Butrago



Sumário

Apresentação   15 As causas do poder político em Vitória: breves notas sobre a Relectio de Potestate Civili 20 Relectio de Indis Prior: a análise de Vitória sobre as querelas dos espanhóis no Novo Mundo

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Relectio Prior De Indis Recenter Inventis Relectio prior: prima pars 39 Relectio prior: secunda pars 43 Relectio prior: tertia pars 46 Relectio Posterior De Indis, sive De Iure Belli Hispanorum in Barbaros 52

SOBRE O PODER CIVIL, OS ÍNDIOS E A GUERRA Parte I - Sobre o poder civil

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Fragmento sobre o Reino de Cristo  90


Parte II - Sobre os índios

99

Parte III - Sobre a guerra

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Bibliografia citada  199 Francisci de Vitoria Opera Omnia  203


Apresentação

Francisco de Vitória, fundador do direito internacional MARCUS BOEIRAi e LUIZ ASTORGAii

A

edição que ora se apresenta corresponde ao segundo lançamento da Coleção Salamanca e aparece como uma das contribuições mais significativas de Francisco de Vitória para o pensamento moderno: Relectio de potestate civili e Relectio de indis, aqui publicadas em conjunto com o título Sobre o poder civil, os índios e a guerra. Busca-se, com isso, o resgate do pensamento de Vitória e, assim, da somatória de posições predominantes na escolástica tardia a respeito dos temas atinentes à filosofia civil e ao direito internacional. Francisco de Vitória (1483-1546) nasceu e viveu na Espanha durante o siglo de oro, período marcado pelo renascimento da cultura espanhola. Considerado o fundador do direito internacional moderno, foi um dos primogênitos da Escola de Salamanca, geração de teólogos e pensadores que lecionaram na Universidade de Salamanca e retomaram a herança cultural escolástica européia. i

Coordenador editorial do selo Salamanca da Editora Concreta. Professor de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Doutor e Mestre em Direito pela USP. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq Lógica Deôntica, Linguagem e Direito. Membro do Conselho editorial da Revista Communio. ii Doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Chile, pesquisador associado da Universidade Bernardo O’Higgins em Santiago e diretor da escola online Instituto Angelicum.


FRANCISCO DE VITÓRIA · SOBRE O PODER CIVIL, OS ÍNDIOS E A GUERRA

por ele feitas, no sentido de que o príncipe deve tender sempre à generosidade mais que à dureza, e deve em tudo esforçar-se para analisar prudentemente se uma decisão, embora prevista pelo direito de guerra, não criaria mais mal do que bem, quer de imediato, quer posteriormente. O bom príncipe, ademais, deve sempre considerar que a crueza da guerra é algo a que se deve recorrer a contragosto, “pois é uma grave enormidade procurar causas – e alegrar-se de que existam – para matar e arruinar homens que Deus criou e pelos quais Cristo morreu.” lxv A contenda não deve ter como finalidade a ruína alheia, nem glórias pessoais do príncipe, nem expansões do império, senão a defesa contra o agressor, a obtenção da justa reparação e – sem desviar-se destes critérios de licitude – a paz e a segurança. Por fim, Vitória nos recorda um ponto freqüentemente esquecido ao longo do registro das contendas humanas, e que por isto mesmo pontilhou nossa história com ainda mais contendas. O príncipe vencedor, por encontrar-se na posição de juiz legítimo entre sua parte e a parte alheia, deve ser capaz de resistir à sua própria cupidez e à de seus conselheiros, assim como ao afã vindicativo de seu próprio povo, para julgar eqüitativamente o quanto é realmente justo tomar do vencido e dar a si mesmo e aos seus. Deve fazê-lo com justiça e prudência, para que, na medida do possível, não falhe em prover a reparação que o seu lado merece, nem lese o inimigo de maneira desproporcional à sua agressão – erro que tende justamente a perpetuar as guerras entre duas repúblicas, visto que um príncipe derrotado que tenha sido espoliado desproporcionalmente pelo vencedor é ele mesmo alvo de injustiça; uma injustiça que poderia justificar uma nova guerra em vetor contrário.

lxv

“Est enim ultimae immanitatis causas quaerere et gaudere quod sint ad interficiendum et perdendum homines, quos Deus creavit et pro quibus Christus mortuus est.” V. p. 198.

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Parte I

Sobre o poder civil

(Relectio De Potestate Civili)



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ofício e a missão do teólogo mostram-se tão vastos que nenhum argumento, nenhuma disputa, nenhum tópico parece alheio à sua instituição e profissão. E talvez aqui se tenha o que diz Cícero1 do orador: que pouquíssimos são aqueles homens ilustrados e excelentes em todo gênero de disciplinas e artes. Sem exigir mais que Cícero, [digo que] tamanha seria também a escassez de teólogos bons e sólidos. Ora, a Teologia é a primeira de todas as disciplinas e o primeiro dos estudos do mundo,2 razão pela qual não nos devemos admirar que sejam poucos os absolutamente competentes em assunto tão difícil. Portanto, do tão amplo campo dos escritos de todos os doutores, que seriam de número infinito à nossa disposição, escolhi um dos principais. Certamente, se por sua dignidade cabe que eu dele trate, será ele igualmente digno de vossa consideração, ó ilustríssimos e doutíssimos varões. Tal tópico é o da república, do qual, embora muito tenham dissertado os mais sérios e eruditos homens, muito resta por dizer. E, visto que o argumento é extenso demais para que se possa esgotá-lo numa só disputa, hoje limito-me ao tema do poder público e privado pelo qual se governa uma república. O ponto que estudaremos e trataremos encontra-se nas Sentenças de Pedro Lombardo,3 e se toma de Paulo (Romanos 13:1): não há poder que não venha de Deus.4 Quanto a esta passagem, embora sejam muitíssimas as coisas que poderíamos aduzir, toda a nossa presente disputa se restringirá ao poder secular ou leigo,5 para que não nos estendamos mais que o necessário, nem erremos, nem divaguemos. Assim, toda esta leitura se encerra em três conclusões. 1. Primeira conclusão: Todo poder, quer público, quer privado, pelo qual se administra uma república secular, não só é justo e legítimo, mas também tem a Deus como autor, de modo que nem o consentimento de toda a terra pode tolhê-lo ou revogá-lo. 1 Cf. De Oratore, I, 2, 6. 2 “Primeira” no sentido de dignidade. A formação tradicional dos mestres escolásticos, herdada por Vitória, iniciava-se nas artes liberais e completava-se nos estudos de Teologia. Esta formação fundava-se na visão da Teologia como a rainha das ciências, o que se explicava pela dignidade de seu assunto (Deus) e pelo fato de receber seus princípios não de uma ciência superior, mas do próprio Deus (Teologia Natural) e de Sua Revelação (Teologia Revelada). 3 Sententiarum libri quattuor, lib. II, dist. 44, 2 (PL 192, 756). 4 A Bíblia Vulgata citada no original por Vitória diz: “Non est potestas nisi a Deo”. 5 Traduzimos por “leigo” não só para evitar confusões com a atual noção de “estado laico”, mas porque é assim a melhor expressão. [Nota do tradutor; doravante, N. T.]


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Antes de acercar-me à demonstração desta conclusão, cabe que aduza algumas coisas necessárias à sua explicação e entendimento. Não quis enveredar-me por tudo que se pode coligir desse tema amplíssimo; ao contrário, apenas direi o necessário, e na linguagem precisa e sintética da escolástica. 2. Sendo duplo o poder, público e privado, tratemos primeiro do público, depois do privado. E, visto que (como adverte Aristóteles6) julgamos saber de uma coisa quando conhecemos suas causas,7 creio que procederei bem se investigar as causas do poder civil e leigo, que é do que se tratará em toda esta exposição. Estas, uma vez percebidas, farão transparecer facilmente tanto a força quanto o efeito do próprio poder. Primeiro, é preciso notar o que o próprio Aristóteles nos ensina na Física: que, não apenas nas coisas naturais, mas também em todas as coisas humanas, a necessidade se considera a partir do fim, enquanto este é a primeira e principal de todas as causas.8 Este dogma, quer descoberto por Aristóteles, quer recebido de Platão, foi grandioso argumento da filosofia e lançou luz abundante sobre todas as suas questões. Os homens anteriores, não apenas os carentes de erudição, mas também os primeiros que ostentaram o nome de filósofos, atribuíam a necessidade das coisas à matéria – como se (para valer-me do exemplo de Aristóteles) considerassem que uma casa havia sido construída tendo como causa necessária9 não o fato de que fosse conveniente ao uso humano, mas o de que pela sua própria natureza as partes pesadas fossem para baixo e as leves para cima. Por isso as pedras e fundamentos jazeriam sob a terra, e sobre ela estariam as madeiras, devido à sua leveza. Do mesmo modo os homens não teriam os pés abaixo de si para caminhar, mas porque esta parte seria a mais pesada de seu corpo; e os ossos não estariam no interior dos animais porque isto foi necessário para que a carne e os membros do corpo tivessem estabilidade, mas porque tal matéria seria mais dura e sólida. Entretanto, imbuídos aqueles homens de tão crassas opiniões, erravam em toda a linha, de tal modo que, segundo sua posição, não podiam dar razão de coisa nenhuma. Com seu modo de filosofar, muito menos podiam dar conta da estrutura das coisas mais nobres e elevadas. 6 Física, 194b19. 7 Metafísica, A, 994a3. 8 Física, 198b1-199b32. 9 Este é o sentido do termo original latino necessario; vertê-lo por “necessariamente” seria trair o sentido da frase. [N. T.]

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PARTE I · SOBRE O PODER CIVIL

Como fariam para que não se indague por qual variedade10 de matéria é adornada a terra, colocada no centro do universo, revestida de flores, ervas, árvores? Para que não se pergunte pela origem das perenidades das fontes geladas, dos líquidos cristalinos, das margens verdíssimas dos riachos, da composição de cada uma das partes e membros do homem, atribuída a uma só matéria? Que força é esta da matéria que, entre os animais, deu ao homem olhos sublimes e mandou que elevasse seu semblante às estrelas?11 Responderiam que não poderia ter sido de outra maneira que o homem é ereto e os brutos são pronos e inclinados; e isto não se daria por nenhum fim ou utilidade, mas porque são distintas a matéria e as condições dos animais. É destas cabeças que emanou a estultíssima doutrina de Epicuro12 e de seu discípulo Lucrécio.13 Este dizia que nem os olhos nasceram para ver, nem os ouvidos para ouvir, mas que tudo aconteceu fortuitamente, naquele multiforme encontro de átomos num vôo infinito e inane.14 Nada se pode dizer nem inventar que seja mais estúpido e inepto do que isso. Tampouco há coisa mais sensata do que argumentar contra tão escancarada estupidez; foi o que fizeram abundantemente Cícero, em Sobre a Natureza dos Deuses,15 e Lactâncio, em Sobre a Obra de Deus.16 Mas para nosso intuito e presente propósito bastará que mantenhamos uma suprema verdade, a qual, uma vez omitida, é sempre inevitável que erremos:17 creiamos que nem só o céu, nem a terra, nem as demais partes do mundo, mas também o homem – príncipe deste mesmo mundo – e tudo que se contém sob o céu foi feito e estabelecido em razão de certo uso e fim. Que tudo foi necessariamente feito por um fim, do qual deve depreender-se a razão e a necessidade das coisas. 10 O lat. veritate é um erro de digitação, comprovado pelo contexto e pela uniformidade de edições anteriores. [N. T.] 11 Cf. Ovídio, Metamorfoses, I, 85-86: “pronaque cum spectent animalia cetera terram, os homini sublime dedit caelumque videre, iusit et ad sidera tollere vultus” [tradução de Bocage: “Aos entes imortais, que regem tudo/As outras criaturas debruçadas/Olhando a terra estão; porém ao homem/O Factor conferiu sublime rosto,/Erguido, para o céu lhe deu que olhasse”. Cf. Metamorfoses, trad. Bocage e coment. Rafael Falcón, 2ª ed., lançado pela Concreta em 2016]. 12 Inspirado na teoria atomista de Demócrito, Epicuro sustentava que o acaso seria o pavimento causal do movimento dos átomos, a razão axiomática do cosmos. [Nota do coordenador; doravante, N. C.] 13 No De rerum natura, Lucrécio versificou em latim as idéias filosóficas de Epicuro. Cf. De rerum natura, VI, 818-1247. [N. C.] 14 Cf. Lactâncio em De Opificio Dei, VI, 8, citando a Lucrécio (De Rerum Natura, VI, 825-41). 15 De natura deorum, I, 18-56 e II, 82-92. 16 V. nota 14 supra. 17 Cf. Metafísica, 984a17-b15.

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3. Resta-nos portanto procurar e investigar qual seja o fim em razão do qual se constituiu este poder de que trataremos. Para isso é necessário considerar que, se o homem supera os outros animais pela razão, sabedoria e palavra, por outro lado a providência governadora negou18 a este eterno, imortal e sábio animal muitas coisas que aos demais foram atribuídas e concedidas. Primeiro, para garantir a segurança e tutela dos animais, a mãe natureza dotou a todos eles desde o princípio com coberturas para suportar mais facilmente o frio e a força do gelo. A cada um dos gêneros deixou munido para que debelasse os ataques alheios: seja para que os mais selvagens combatam com armas naturais, seja para que os mais fracos livrem-se do perigo pela fuga, seja para que se protejam usando seu focinho como lança, seja para que se escondam em tocas. Assim, alguns se suspendem no ar com leves plumas, outros se apóiam em cascos ou armam-se de chifres, e a nenhum falta recurso para sua defesa. 4. Já o homem, concedidas apenas a razão e a virtude, foi deixado frágil, fraco, indefeso e vulnerável, destituído de todo o auxílio, carente de todos os lados, nu, sem pelagem. Por naufrágio jogado contra si mesmo, em cuja vida espalhou misérias, pois desde o momento de sua nascença nada mais pôde senão lamentar com lágrimas a deplorável condição de sua fragilidade.19 É como vemos em Jó (14:1): Repleto de muitas misérias. E apenas lhe resta suportá-las, como narra o poeta. Portanto, para atender a tais necessidades, julgo haver sido necessário que os homens não vagassem a esmo nem vivessem solitários como as feras, mas que vivessem em sociedade, auxiliando-se uns aos outros. Ai do solitário, diz o sábio, pois, se cair, não terá quem o levante; se fossem muitos, ajudar-se-iam mutuamente.20 Por isso nos adverte Aristóteles, no livro II da Ética,21 que não sem doutrina e experiência pode o homem aperfeiçoar-se22 no que tange ao 18 O lat. denegata, do texto revisado que possuímos, cabe melhor no contexto que gubernata, presente em outras versões da obra. [N. T.] 19 Lactâncio, De Opificio Dei, III, 1-2. 20 Eclesiastes 4:10. 21 Ética a Nicômaco, II, 1-1103a. 22 O lat. perficere é termo filosófico que denota a passagem plena de uma potência ao seu ato, ou seja, a compleição deste ato. Já o verbo “aperfeiçoar” conota normalmente em nossa língua o sentido de “melhorar”, “progredir”, o que, não obstante não se distancie do significado correto, às vezes dá oportunidade a um entendimento errôneo do conceito. Embora não seja necessário no presente ponto, “aperfeiçoar-se” pode futuramente ser preterido em favor de "perfazer-se", se houver risco de má compreensão. [N. T.]

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PARTE I · SOBRE O PODER CIVIL

intelecto, o que não pode ocorrer na solidão. Nesse sentido parecemos até inferiores aos animais brutos, pois podem conhecer por si o que lhes é necessário, enquanto os homens nunca o podem.23 Também diz Aristóteles que a palavra é a mensageira do intelecto, e concedida apenas para este uso; neste sentido o homem excede a todos os animais. Ora, a palavra seria nula fora da sociedade dos homens. E ainda assim, se pudesse não sê-lo, se pudesse haver sabedoria sem palavra, esta sabedoria seria ingrata e insociável. De fato, lê-se no Eclesiástico:24 A sabedoria escondida é como um tesouro que não se vê; qual a utilidade de ambos? E por isso afirma Aristóteles, no livro I da Política, que o homem é civil e sociável por natureza.25 Por sua vez a vontade, cujos ornamentos são a justiça e a amizade, necessariamente seria de todo manca e disforme fora do consórcio dos homens. Tampouco pode a justiça ser exercida senão em meio a uma multidão. E ainda a amizade, sem a qual não usamos nem a água, nem o fogo, nem o sol (como diz Cícero em vários pontos), e sem a qual não existe nenhuma virtude, segundo ensina Aristóteles: tudo perece sem a comunicação da vida. E ainda que a vida humana subsistisse sozinha e bastasse a si mesma, na solidão ela não pode ser senão triste e detestável. Pois a natureza não ama nada solitário,26 e todos somos levados por natureza à comunicação, como ensina Aristóteles.27 Diz Cícero28 que, se alguém subisse aos céus e contemplasse a natureza do mundo e a beleza dos astros, esta visão lhe seria triste sem um amigo. Por isso Timão de Atenas, que de propósito se afastava do convívio humano, era censurado por Aristóteles29 como tendo natureza inumana e bruta; tais homens contam-se entre as feras. Assim, pois, como diz Agostinho em Sobre a Amizade (capítulo 8):30 Eu os teria não por homens, mas por bestas os que dizem que se deve viver sem que a ninguém se sirva de consolo, nem de fardo, nem de dor; que não se deve conceber nenhuma alegria oriunda do bem do outro, nem sofrer dissabor pela perversidade alheia; que se deve procurar não amar a ninguém e por ninguém ser amado. 23 S. Tomás de Aquino, De regimine principum, I, 1. 24 Eclesiástico 20:30. 25 Política, I, 2-1253a. 26 Cícero, De amicitia, 23, 88. 27 Loc. cit. 28 Loc. cit. 29 Loc. cit.. 30 Na verdade, a citação encontra-se em De spirituali amicitia, obra do monge cisterciense inglês Elredo de Rievaulx (1110-1167) (PL 40, 836).

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Portanto, como as sociedades humanas foram constituídas em vista desse fim, a saber, que um portasse o fardo do outro, e entre todas as sociedades seja a civil aquela em que mais comodamente os homens atendam às necessidades, segue-se que a comunidade é uma naturalíssima comunicação convenientíssima à natureza. Por mais que numa família os homens prestem serviços uns aos outros, esta não basta a si mesma, especialmente para repelir a violência e as severidades. Esta parece haver sido a maior razão pela qual Caim e Ninrode fizeram com que os primeiros homens vivessem em cidades, como se lê no Gênesis.31 5. Torna-se claro, portanto, que a fonte e origem das cidades e coisas públicas não foi um invento do homem, nem se conta entre as coisas artificiais, mas originou-se da natureza,32 que à tutela e preservação dos mortais propiciou-lhes este recurso. E deste mesmo princípio logo deduz-se que são uma só a finalidade e a necessidade dos poderes públicos. Pois, se à proteção dos mortais são necessárias assembléias e reuniões de homens, nenhuma sociedade pode subsistir sem alguma força e algum poder governante e providente. O uso e utilidade do poder público, da comunidade e da sociedade são um só, pois, se todos fossem iguais e ninguém estivesse sujeito a poder algum, cada pessoa inclinando-se à diversidade por seu próprio juízo e arbítrio, necessariamente desintegrar-se-ia a república; dissolver-se-ia a cidade se não houvesse alguma providência que cuidasse da coisa comum e atendesse ao bem comum. Pois todo reino dividido contra si mesmo será devastado.33 E, como diz o sábio, onde não há governante, o povo se dissipará.34 Assim como o corpo do homem não poderia conservar-se íntegro se não houvesse certa força ordenadora que compusesse cada membro para uso dos outros membros, principalmente para a comodidade do homem todo, o mesmo ocorreria necessariamente com a cidade se cada cidadão fosse solícito para com a utilidade de suas próprias coisas e negligenciasse o bem público. Temos, por conseguinte, a final e principalíssima causa do poder civil e secular; uma utilidade – mais ainda, uma ingente necessidade – que somente os deuses recusariam.35

31 Gênesis 10:6-9. 32 Aristóteles, Política, I, 3, 1252b-1253a. 33 Mateus 12:25. 34 Provérbios 11:14. 35 Aristóteles, Política, I, 2, 1253a.

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6. Quanto à causa eficiente deste poder, é fácil deduzi-la do que foi dito. Pois, se demonstramos que o poder público é constituído pelo direito natural, e o direito natural reconhece a Deus como seu único autor, é evidente que o poder público procede de Deus, e não está contido na condição dos homens ou em algum direito positivo. Pois Deus, que fez todas as coisas sabiamente, rege-as todas do início ao fim fortemente, e tudo dispõe suavemente – e cujas obras, como diz o Apóstolo,36 são todas ordenadas –, constituiu os homens com tal natureza e condição, que apenas podem prosperar em sociedade. Ainda mais: como disse Cipião na obra de Cícero,37 nada é mais aceitável àquele príncipe Deus – que rege o mundo e fez tudo que há na terra – do que as assembléias e agrupamentos de homens reunidos sob o direito de sociedade a que chamamos cidades. E, se as repúblicas e sociedades foram constituídas por direito divino ou natural, também o foram os poderes sem os quais tais repúblicas não podem subsistir. Que estes também o são por direito divino, confirmaremos com argumentos e testemunhos, para que nenhuma dúvida nos possa restar. Primeiro, diz-nos Aristóteles, no livro VIII da Física,38 que corpos leves e pesados são movidos pelo generante, não por outra causa senão aquela natural inclinação que receberam do generante, a saber, certa necessidade para o movimento. Logo, se Deus deu aos homens certa necessidade e inclinação a que apenas possam viver em sociedade e sob algum poder regente, é necessário que isto mesmo se diga recebido de Deus autor. Porque aquilo que é natural a todos procede sem dúvida de Deus, que é autor da natureza: quem dá a espécie ou forma, como diz o próprio Aristóteles, dá à espécie ou forma o que dela se segue. Por isso adverte também Paulo: Quem resiste à potestade, resiste à ordenação de Deus.39 7. Logo, a república possui este poder por constituição divina. Quanto à causa material na qual reside este poder por direito natural e divino, esta é a própria república à qual cabe por si governar-se e administrar-se, e conduzir todas as suas potestades ao bem comum. Isto assim se prova: visto que do direito natural e divino procede certo poder para governar a república, e, removido o direito positivo e humano, não há maior razão pela qual tal poder resida mais neste homem que naquele, é forçoso que a própria comunidade seja auto-suficiente e tenha o poder de governar a si. Pois, se nenhum homem era superior aos outros antes que se reunissem 36 Romanos 13:1. 37 De Republica, IV, 13: passagem conhecida como “O Sonho de Cipião”. 38 Física, VIII, 4, 255b. 39 Romanos 13:2.

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em sociedade, não há razão pela qual no próprio agrupamento ou congregação civil alguém reivindicasse para si o poder sobre os outros. Principalmente porque qualquer um, por direito natural, tem o poder e o direito de se defender; nada é mais natural que repelir a força com a força. E certamente não há razão para que a república não exerça este poder junto a seus cidadãos, enquanto membros para a integridade do todo e a conservação do bem público. Ademais, matar um homem é proibido pelo direito divino, como se vê nos preceitos do Decálogo.40 Logo, é necessário que a autoridade de matar proceda do direito divino. Ora, a república, como consta do uso e do costume, tem autoridade para matar um homem. Portanto, tem-na por direito divino. E não basta replicar que o direito divino não proíbe matar um homem em sentido irrestrito, mas um homem inocente, pois a conclusão seria [igualmente] que ao homem privado não cabe matar a outro, por mais criminoso que este seja.41 Conseqüentemente a república tem, para matar um homem, certa autoridade da qual carece o homem privado – e ela não pode ser de direito positivo. Portanto, é de direito divino. E porque este poder se encontra principalmente nos reis, aos quais a república delegou que fizessem suas vezes, devemos tratar do principado e do poder régios. Sobre tal tema não faltaram alguns – contados até entre os cristãos – que não só negam que o poder régio procede de Deus, mas que dizem ser tiranos e ladrões da liberdade todos os reis, comandantes e príncipes. Opõem-se de tal modo a todas as dominações e potestades, que só abrem exceção aos poderes da república. Tal posição procuram provar pela autoridade e pela razão. Primeiro, argumentam que o homem foi criado em liberdade, e naquele feliz estado de inocência ninguém era senhor, nem ninguém servia.42 40 Êxodo 20:13 e Deuteronômio 5:17. 41 O argumento claramente não se refere à legítima defesa, mas à aplicação de uma pena. [N. T.] 42 Contra a posição de que não há justificativa para a autoridade política no estado de perfeição original, tese defendida por correntes variadas do protestantismo, Santo Tomás de Aquino expõe que “se é natural ao homem o viver em sociedade de muitos, cumpre haja, entre os homens, alguém por quem seja governada a multidão. Que, se houvera muitos homens e tratasse cada um do que lhe conviesse, dispersar-se-ia a multidão em diversidade, caso também não houvesse alguém cuidando do que pertence a ela, assim como se corromperia o corpo do homem e de qualquer animal, se não existira alguma potência regedora comum, visando ao bem comum de todos os membros. Isso ponderando, diz Salomão (Prov. XI, 14): Onde não há governante, dissipar-se-á o povo. E, por certo, é racionável isso, pois não são idênticos o próprio e o comum. O que é próprio divide, e o comum une. Aos diversos correspondem causas diversas. Assim, importa existir, além do que move ao bem particular de cada um, o que mova ao bem comum de muitos. Pelo que, em todas as coisas ordenadas a um todo, se acha algo diretivo a ele. E, no mundo dos corpos, um só corpo, isto é, o celeste, dirige os mais, por certa ordem da Divina Providência, e a todos os rege a criatura racional. Igualmente, no

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Segundo, citam que no princípio foi dito aos homens: dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus.43 Também: Deus fez o homem para que domine sobre os peixes do mar, etc. Não disse Ele: sobre os homens. Terceiro, que sob a lei da natureza nunca lemos que alguém tenha sido príncipe dentre os que faziam culto ao verdadeiro Deus.44 Quarto, que o principado teve origem numa tirania; pois primeiramente assumiu uma tirania Ninrode, que foi da posteridade reprovada de Noé, por ser filho de Cam.45 Quinto, que tampouco os santos doutores calaram acerca deste tema. Pois Gregório46 diz ser contrário à natureza querer dominar o homem, visto que por direito natural todos os homens são iguais. Também Isidoro,47 para quem a posse comum de tudo é de direito natural, assim como o uso da própria liberdade. E, se antes da lei evangélica o poder régio não era proibido, ao menos se diz que os cristãos foram dotados de liberdade por Cristo. Isto estaria claro pelo que nos diz o Senhor:48 De quem cobram os reis da terra os tributos? Dos seus filhos, ou dos alheios? Responde Pedro: Dos alheios. Destas palavras concluem ser certo que os cristãos não devem tributo senão por razão de escândalo. E o confirma o Apóstolo: Não devais nada a ninguém, senão que ameis uns aos outros.49 Novamente: Não vos façais servos dos homens, pois fostes comprados por grande preço.50 E também aos efésios: Um só é o Senhor, uma só fé, um só batismo.51 Logo, não nos é lícito, se somos cristãos, pôr príncipes sobre nós. Considerado isto, não é de admirar se homens facciosos, corrompidos pela soberba e ambição, movem sedições contra seus príncipes. 8. Já nós dizemos melhor, em conjunto com todos os sábios, que a monarquia ou a potestade régia não só é justa e legítima, mas digo também que os reis derivam homem a alma rege o corpo e, entre as partes da alma, a irascível e a concupiscível são dirigidas pela razão. Também, entre os membros do corpo, um é o principal, que todos move, como o coração, ou a cabeça. Cumpre, por conseguinte, que, em toda a multidão haja um regitivo”, in Do Governo dos Príncipes, 1ª ed., São Paulo, Editora Anchieta, 1946, p. 19 e seguintes. [N. C.] 43 Gênesis 1:26. 44 Ou seja, na vigência das leis que antecederam a mosaica. [N. T.] 45 Gênesis 10:8. 46 Papa Gregório I, Regula Pastoralis, c. 6 (PL 77, 34B-38C). 47 Isidoro de Sevilha, Etymologiae, V, 4, 1 (PL 82, 199B). 48 Mateus 17:26. 49 Romanos 13:8. 50 I Coríntios 7:23. 51 Efésios 4:5.

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seu poder tanto do direito divino quanto do natural, e não da própria república ou dos homens.52 Provemo-lo. Visto que a república tem poder sobre suas partes, e este poder não pode ser exercido pela própria multidão (pois não se poderia comodamente criar leis ou propor editos, nem dirimir litígios, nem punir transgressores), foi por isso necessário que a administração do poder fosse delegada a alguém ou alguns que pudessem dela cuidar – e pouco importa se se o confia a um só ou a vários. Portanto, pôde ser delegado este poder que é o mesmo do da república.53 E também se o demonstra por autoridades. Pois consta que o reinado não é contrário ao direito natural, como crêem nossos oponentes. Ora, o direito natural é imutável, como expõe Aristóteles no quinto livro da Ética,54 e como vemos igualmente no Decreto de Graciano.55 Logo, se o reinado fosse contrário ao direito natural, não poderia ter sido justo em nenhum século ou época. Mas é o oposto o que nos mostra o Antigo Testamento, onde se louva a Melquisedeque, rei de Salém,56 e a José, procurador do reino do Faraó e coletor de seus tributos,57 e ainda a Jacó, homem justo que aceitou do Faraó uma região para cultivo,58 e a Daniel, que com seus companheiros foi nomeado prefeito da província por Nabucodonosor.59 Nenhum destes cargos teria sido aceito por esses homens santos, se reputassem o reinado uma tirania. Em Deuteronômio,60 aos reis se estabelecem leis e condições sob as quais haveriam de reinar entre os 52 Não há na posição de Vitória qualquer apologia à teoria do direito divino dos reis, entendida aqui como a exposição de um tipo de filosofia civil que reconhece como válido qualquer ato de decisão do príncipe, independentemente do fim a que se destina. De acordo com esta tese, o único suporte da legitimidade do rei estaria na convicção de sua origem divina, isto é, de uma delegação direta e sem intermédio do poder de Deus para a pessoa do governante. Contra isso, Vitória sustenta que o governo civil deve orientar-se pela utilidade geral da comunidade política. Assim, sua origem em Deus não é “direta” e sem exigências, mas pressupõe a autenticação teleológica da comunidade, que consente na autoridade do monarca ou da assembléia porquanto tributária do bem comum. Percebe-se aqui já um aperfeiçoamento da teoria da translatio imperii preconizada pelos autores medievais. Em certa medida, o dominicano prepara o terreno para o desenvolvimento posterior do instituto, sobretudo patente na Defesa da Fé Católica de Francisco Suarez, outra obra traduzida pelo Selo Salamanca da Editora Concreta, em 2015. [N. C.] 53 O delegatário não exerce o poder soberanamente e sem limites, mas no âmbito legítimo do bem comum, dentro do qual mantém a legitimidade segundo o exercício. [N. C.] 54 Ética a Nicômaco, V, 7, 1134b. 55 Decretum Gratiani, Veneza, 1595, I, d. 1, c. 7, p. 4. 56 Gênesis 14:18-20. 57 Gênesis 41:37-49. 58 Gênesis 47:6-12. 59 Daniel 2:48-49. 60 Deuteronômio 17:15-20.

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filhos de Israel, e não se lhes proíbe constituir-se um rei, mas apenas que não fosse nomeado um estrangeiro. Também ali se determina o respeito ao decreto e ao preceito do sacerdote, sob pena capital. E pouco importa que se trate de um sacerdote ou de um rei, desde que tenham o mesmo poder. Também os levitas são constituídos juízes, que deteriam poder de vida e morte.61 E nos livros dos Reis,62 vemos que alguns deles são constituídos pelo próprio Deus, ao passo que outros o são por preceito Seu, algo que o Senhor jamais faria se fosse contrário ao direito natural. Também em Macabeus,63 considerados por todos como os mais fortes e santos homens, ou receberam o principado de seus antepassados, ou o reivindicaram para si com justa causa. Ora, é certamente absurdo julgar contrário ao direito natural ou divino algo que é expediente à administração das coisas humanas. Não é o caso, como sabiamente nos diz Jó:64 Deus não despreza a potestade, pois ele próprio é poderoso.65 Tampouco a liberdade evangélica (como sugeriram homens sediciosos aos ouvidos da plebe inculta) constitui impedimento. Pois, como mostramos noutro ponto, nada que seja lícito à lei natural é proibido pelo Evangelho – e é neste caso que maximamente tem vigor a liberdade evangélica: se antes do Evangelho era lícito às cidades constituir reis para si, não há por que estimar que depois do Evangelho isto não o seria. E decerto, se reis não fossem príncipes legítimos, nunca os apóstolos de Cristo nos teriam encarregado de obedecê-los. Não parece ter feito outra coisa Paulo, em Romanos 13:1-2: Não há poder que não venha de Deus. E: Quem resiste à potestade, resiste à ordenação de Deus. E o mesmo encontramos em outras passagens, como na Epístola a Tito 3:1: Adverte que sejam sujeitos aos principados e poderes. Também I Timóteo 2:1: Rogo-te, pois, antes de tudo, que se façam deprecações em prol dos reis e de todos os que estão constituídos em eminência, para que possamos viver uma vida calma e tranqüila. Ainda I Pedro 2:11-17: Sede sujeitos a toda criatura por amor ao Senhor, seja ao rei, etc. 61 Deuteronômio 16:18-20. 62 I Reis 14:7-8. 63 I Macabeus 3:1 e 9:28-31. 64 Jó 36:5. 65 Vitória assim o cita: “Deus tanquam timidus abicit potestatem, cum ipse sit potens.” O texto da Vulgata é, por sua vez, menos específico, e carece tanto de “timidus” quanto de “invidus”, principais variantes nas fontes deste tratado. Em Jó 36:5 lê-se apenas “non abicit”, que pode verter-se com sentido intransitivo – “Deus não despreza, embora seja poderoso” –, sentido mais adotado pelas atuais traduções da Bíblia, mas também pode verter-se, pelo contexto da frase, com referência a Seu poder: “Deus não despreza [o poder], pois Ele mesmo é poderoso.” A presença de um ou outro termo – “invidus” ou “timidus” – no texto de Vitória se faz no ensejo desta segunda leitura da Vulgata. [N. T.]

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Parece portanto que o poder régio não provém da república, mas do próprio Deus, como sentem os doutores católicos. Pois, embora ele seja constituído pela república – de fato, a república faz de alguém rei – não é o poder o que ela transfere ao rei, mas sua própria autoridade. Não há dois poderes, um do rei, outro da comunidade.66 Assim, do mesmo modo que dissemos que o poder da república é constituído por Deus e pelo direito natural, também devemos necessariamente dizer o mesmo acerca do poder régio – o que nos parece bastante conforme com a Escritura e o costume, que aos príncipes chama “ministros de Deus”, não da república. Di-lo Salomão:67 Por mim reinam os reis. E responde o Senhor a Pilatos: Não terias nenhum poder sobre mim, se de cima não te fosse dado,68 isto é, do céu. Portanto, parecem errar os autores que concedem que o poder da república é de direito divino, mas não o poder régio. Pois, se os homens ou a república não obtivessem poder de Deus, mas se reunissem em comum acordo e para o bem público desejassem constituir um poder sobre si, aí sim tal poder procederia dos homens, como o poder que os religiosos de uma ordem concedem ao abade. Mas isto não é verdade, pois, ainda que se opusessem todos os cidadãos, foi constituído na república o próprio poder de administrar, ofício para o qual, por sua vez, foram constituídos os reis. 9. Mas poder-se-ia duvidar se o mesmo vale para os poderes pelos quais se governam as repúblicas dos infiéis, ou seja: se entre os pagãos há legítimos príncipes e demais magistrados. E pareceria que não. Pois, se alguém deixa de ser cristão para tornar-se infiel, é destituído de todo poder público, como diz o direito, devido à sua infidelidade. Ora, visto que a razão de infidelidade permanece a mesma para ele, ela impedirá um principado ou poder legítimo. Ricardo,69 homem que em outros temas mostra enorme agudeza, no livro Sobre a Pobreza de Cristo, julga que não apenas a infidelidade, mas qualquer pecado mortal impede todo poder, domínio e jurisdição, tanto públicos quanto privados, e crê ser a graça o título e fundamento de qualquer poder. Omito as razões que dá para tal posição, pois sua debilidade é maior do que a necessidade de expô-las. 66 Nesta passagem resta latente que a origem do poder e a constituição da autoridade são fenômenos distintos, embora correlatos. [N. C.] 67 Provérbios 8:15. 68 João 19:11. 69 Ricardo de Armacanus (FitzRalph), De Paupertate Salvatoris, 1357, lib. 2, 20, Cambridge MS 180.

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Pois não há a menor dúvida de que entre os pagãos há legítimos príncipes e senhores; o próprio Apóstolo, em lugares já antes citados,70 comanda-nos a obedecer aos poderes e príncipes e a servi-los em todo o tempo – e então eram todos eles certamente pagãos. Também José e Daniel eram príncipes, ministros e procuradores de [reis] pagãos. Tampouco poderiam príncipes cristãos – tanto seculares quanto eclesiásticos – privar infiéis de poder e principado apenas a título de serem infiéis, sem que estes tenham cometido alguma injustiça. 10. [Quanto à proposição de que um poder legitimamente constituído não pode ser abolido por mero consenso:] As três causas do poder público secular71 explicam-se corretamente pela definição dada pelos autores: o poder público é a faculdade, autoridade ou direito de governar uma república civil. No que se refere aos poderes públicos, já demonstramos que eles vêm de Deus, e que por isso são justos e legítimos. Disto se segue a demonstração da última parte da conclusão acima posta, na qual dizíamos que nenhum poder deste tipo pode ser revogado pelo consenso dos homens. Pois, se o homem não pode renunciar ao direito e à faculdade de se defender e de usar seus próprios membros para sua comodidade, tampouco pode fazê-lo no tocante ao poder que lhe compete por direito natural e divino. Da mesma maneira, tampouco pode a república privar-se deste poder de tutelar-se e administrar-se contra a injustiça dos seus e de estranhos – e isto ela não pode realizar sem poderes públicos. Ora, igualmente, se todos os cidadãos conviessem em eliminar todos estes poderes e em abandonar todas as leis, de modo que ninguém imperasse, tal pacto seria nulo e inválido, por ferir o direito natural.72 Do dito acima inferimos um corolário nada desprezível, especialmente para os que vivem sob um só principado e reinado; pois as cidades que não têm reis e se regem por administração popular costumam jactar-se de sua liberdade. 11. O corolário é que não há menor liberdade num principado régio do que num aristocrático ou timocrático.73 Pois Aristóteles, no livro III da Política, assim 70 Romanos 13:2 e Tito 3:1. 71 Final, eficiente e material. [N. T.] 72 É importante fazer o leitor entender de que não se trata aqui de ser injusto depor “um governante”. Trata-se de ser intrinsecamente injusto depor “o poder de mando”, não seu usuário; “o respeito às leis”, não seu guardião. [N. T.] Portanto, a observação de Vitória dirige-se à necessidade de conservação das instituições como exigência de justiça política. A garantia da ordem civil depende da atuação institucional em manter e promover o conjunto das condições materiais e formais para a consecução do bem comum. [N. C.] 73 No texto original do De Potestate Civili, publicado pela primeira vez em Lyon, no ano de 1557, o texto da Relectio indica a palavra “timocratia” na passagem acima. O código manuscrito de Valencia,

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distingue o principado: monarquia (ou o principado de um só), aristocracia (o principado dos melhores) e timocracia (o principado popular ou da multidão).74 Portanto, digo que não há menor liberdade no principado régio do que em outros. Provemo-lo: visto que, como demonstramos acima, há um só e mesmo poder, quer resida num só, quer resida em muitos, e considerando que é melhor estar sujeito a um só do que a muitos (pois tantos são os senhores quanto são os superiores), não há portanto menos liberdade onde todos estão sujeitos a um só do que a muitos. Especialmente porque, onde são vários os dominantes, vários são os que ambicionam o poder, e necessariamente a república sofrerá com freqüentes dissensões e sedições, devido às sentenças divergentes que se proferem.75 Pois nenhuma confiança há entre companheiros de poder, diz o poeta.76 E diz o Seuma das anotações mais antigas da Relectio pertencente ao monge beneditino Fray Pedro de Castillo e hoje de propriedade do Arquivo Catedralício do Cabildo da Catedral de Palencia, aponta a expressão supracitada e é, ao que tudo indica, do ano de 1538, ou seja, aproximadamente uma década depois de sua exposição em Salamanca. A própria edição de Salamanca, considerada oficialmente a segunda edição mais antiga, também designa timocracia na passagem citada. Posteriormente, algumas reimpressões substituíram o termo timocracia por democracia, invertendo o sentido original empregado por Vitória, amplamente embasado em Aristóteles e Santo Tomás. No texto do código manuscrito de Valencia, consta a seguinte passagem: “quorum stultitiae et ignorantiae hoc corollarium opponimus: quod non est minor libertas in regali principatu quam in aristocratico aut timocratico. Ita Aristoteles, 3 Politicorum, principatus distinguit in principatum unis seu manarchiam, et in aristocraticum vel optimatum principatum, et timocraticum, id est, popularis seu multitudinis principatum”. Vitória estava inteiramente consciente das diferenças entre timocracia, um bom regime de governo e um tipo de organização política fundada no bem comum, e sua degeneração, a saber, a democracia. Diversas traduções modernas da passagem acima subscrevem a expressão democracia. Ao assim proceder, não só modificam o emprego original, senão que o negam veementemente. Na Ética a Nicômaco, VIII, 10, 1160a, Aristóteles afirma: “Há três formas de governo, e igual número de desviações, que são como corrupções daquelas. As formas são a realeza e a aristocracia, e uma terceira baseada na propriedade, que parece conveniente chamá-la de timocracia, mas que a maioria designa como república”. E após, logo na linha 16 do ponto 1160b, aduz a corrupção da timocracia, dizendo que “da timocracia se passa à democracia”. No mesmo sentido, Santo Tomás em seus Comentários à Ética a Nicômaco, quando trata da timocracia, diz que “se corrompe na democracia (...). Pelo que é mínima a perversão da democracia, pois se diferencia pouco da timocracia, que é uma espécie reta de política”. Seguindo de perto ambos os autores, portanto, Vitória não afastou-se do sentido original da classificação dos regimes políticos, conforme indicam os primeiros manuscritos e edições da Relectio. [N. C.] 74 Política, III, 7, 1279b. 75 Noutras edições deste texto o presente parágrafo é mais extenso; embora mantenhamos como regra a deferência à edição latina da B.A.C. (“De potestate civili” in Obras de Francisco de Vitoria. Relecciones Teológicas, ed. Teófilo Urdanoz, Madrid, B.A.C., 1960), deixamos em nota o adendo que consta das demais, em razão da elegância com que resume o argumento: “Claramente não há maior liberdade em estar sujeito a trezentos senadores que a um só rei. De fato, aqueles que estão sujeitos ao mando e governo da multidão têm, por isso mesmo, ainda mais senhores – a não ser que alguém seja louco a ponto de crer-se escravo quando obedece a um rei sábio, e livre quando sujeito a uma bárbara multidão.” [N. T.] 76 Lucano, Pharsalia, I, 89-93.

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nhor pelo profeta: Muitos pastores destruíram minha vinha.77 É melhor portanto o reinado de um só, assim como toda a terra é governada por um só príncipe e senhor sapientíssimo (É porém verdadeiro que parece haver um prudentíssimo principado e administração que é uma mistura das três formas, e que parece ser o que há na Espanha).78 12. O segundo corolário que se pode inferir do dito acima é que toda a república pode ser licitamente punida pelo pecado do rei. Donde, se um rei injusto gerar guerra injusta contra algum príncipe, este alvo de injustiça pode pilhar e procurar seus demais direitos de guerra, e pode matar os súditos do rei, ainda que todos sejam inocentes. Porque, depois que o rei é constituído pela república, se este comete alguma insolência, à república se a imputa. A república está obrigada a não entregar seu poder senão a quem o exerça e empregue justamente; de outro modo, expõe-se a perigos. 13. Terceiro corolário: Nenhuma guerra é justa se consta que ela gera à república maior mal do que bem e utilidade, ainda que por outra parte se forneçam títulos e razões para uma guerra justa. Assim o demonstramos: se a república não tem poder para mover guerra senão para defender a si e às suas coisas e para se proteger, então, onde quer que por esta mesma guerra ela se debilite e eroda mais do que se fortaleça, tal guerra será injusta, quer movida por um rei, quer por uma república. Ademais, visto que uma república é parte de todo o mundo e, principalmente, que uma província cristã é parte de toda a república, se uma guerra é útil a uma província ou república, mas com dano ao mundo ou à cristandade, julgo que é injusta por esta mesma razão. Se, por exemplo, houvesse uma guerra dos espanhóis contra os franceses, exceto se movida por causas justas e com utilidade a algum dos reinos da Espanha, mas que gerasse maior mal e perda à cristandade – como uma ocupação turca de províncias cristãs – tal guerra deveria cessar. 77 Jeremias 12:10. 78 A referência de Vitória ao ideal do regime político misto é clássica lição presente na tradição. Aristóteles posicionou-se em diversas passagens de suas obras de modo favorável a este tipo de organização política. No mesmo sentido, Santo Tomás e diversos outros filósofos e pensadores do Ocidente. A menção ao caso espanhol deve-se à tradição política ibérica, sustentada no ideal de um equilíbrio político entre instituições e corpo civil de forma a articular relações de cooperação e concórdia no bem comum. A liberdade política é um traço marcante da história da Espanha desde o período visigótico. A importância das Cortes se fazia sentir durante o período dos reinados locais, em que a soberania era fragmentada e dissolvida nas várias classes dos reinos de Espanha. A tradição política ibérica é um exemplo característico na história da civilização ocidental de uma narrativa centrada na liberdade política, em oposição ao absolutismo régio, tentado durante os reinados de Carlos V e Felipe II. [N. C.]

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E assim concluímos a explicação da primeira conclusão. 14. Segunda conclusão: Assim como a maior parte da república pode constituir rei sobre ela inteira, ainda que a contragosto dos demais, assim também a maior parte dos cristãos, ainda que contrariando os demais, pode por direito criar um só monarca ao qual todos os príncipes e províncias estejam atados a obedecer. A primeira parte desta conclusão é suficientemente evidente pelo que se disse antes. Pois, se uma república pode conceder a uma pessoa seu poder – e isto para a utilidade da república –, é correto que não seja obstáculo a discordância de um ou de poucos para que os demais possam prover ao bem da república. Pois nunca haveria suficiente deliberação na república se fosse exigido o consentimento de todos, visto que raramente ou nunca se consegue obtê-lo numa multidão. Portanto, é suficiente que a maior parte convenha em uma decisão, para que algo se faça segundo o direito. Isto se prova também eficazmente: estando duas partes em dissensão, é necessário que prevaleça a sentença de alguma das partes. Visto que se querem coisas contraditórias, e não deve prevalecer a sentença da menor parte, deve-se portanto seguir a sentença da maior parte. Assim, se para constituir um rei requer-se o consentimento de todos, por que isto não seria requerido para não constituí-lo? Por que razão se requer mais o consentimento de todos para uma afirmativa do que para uma negativa? A segunda parte é que o rei é assim constituído sobre toda a república. Quero dizer que, num principado régio, o monarca não é rei apenas sobre cada um, mas sobre a república inteira, ou seja, sobre todos simultaneamente. Sobre o dito acerca da república, ainda que haja várias opiniões entre os filósofos e muitos pontos se disputem, assim demonstro tal parte de nossa conclusão: se a república estivesse acima do rei, seria este um principado democrático, ou seja, popular, e não se trataria de uma monarquia (isto é, do principado de um só). E esta parece ser a posição de Aristóteles no livro III da Política.79 Ademais, a república pode dar poder a alguém, não só sobre cada um, mas sobre todos simultaneamente, e tal pessoa teria o poder régio; e este poder não seria outro senão o principado de um só. Não seria timocrático nem aristocrático. Logo, o rei está acima de todos. Ademais, do rei não se apela à república. Logo, esta não é maior nem superior. A terceira parte é que uma maioria de cristãos pode constituir um monarca. Assim o demonstramos. A Igreja inteira é de certo modo uma só república e 79 Política, III, 14, 1284b-1285b; III, 7-8, 1279b-1280a.

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um só corpo, conforme diz o Apóstolo: Somos todos um só corpo.80 Logo, ela tem o poder de se conservar e proteger, e de constituir a melhor das organizações pela qual possa defender-se de seus inimigos. Ademais, visto que o fim temporal encontra-se sob o espiritual e a ele se ordena, como trataremos em outro lugar mais detalhadamente,81 se o [fato de] existir um só monarca fosse expediente para a defesa e propagação da religião de fé cristã, não vejo por que não poderiam aqueles encarregados das coisas espirituais obrigar os cristãos a constituir um só monarca, da mesma maneira que em favor da fé os eclesiásticos privam os príncipes heréticos de um principado por outra parte legítimo. Ademais, o gênero humano teve outrora este poder de escolher um monarca, como ocorreu no princípio, antes de fazer-se a divisão dos povos. Portanto, também o tem agora: visto que este poder é de direito natural, ele não cessa. Desta conclusão infere-se o corolário: nas cidades livres, tais como Veneza e Florença, poderia a maior parte do povo eleger um rei, ainda que a contragosto dos demais. E isto parece verdadeiro não só na medida em que é manifestamente favorável à república, mas ainda que lhe fosse mais favorável um regime aristocrático ou timocrático. Pois, uma vez que a república tem o direito de se administrar, e que, aquilo que faz a maior parte, fá-lo a república inteira, pode escolher-se o regime que se quiser, ainda que não seja o melhor – assim como Roma o teve aristocrático, que não é o melhor. 15. Terceira conclusão: As leis e constituições dos príncipes obrigam de tal modo, que fazem de seus transgressores réus de culpa em foro de consciência, com a mesma força que têm os preceitos dos pais sobre os filhos e dos maridos sobre suas esposas. Neste argumento e como matéria desta conclusão, muitas coisas dignas e úteis se poderiam aduzir, se o tempo no-lo permitisse. Mas, em razão das circunstâncias, moverei o tema adiante com o mínimo possível de elementos. Em primeiro lugar, há os que julgam que as leis não possuem qualquer força para fazer de seus transgressores culpados em foro de consciência, mas apenas introduz a obrigação para que os príncipes e magistrados possam justamente punir os violadores da lei. Negam também que os súditos estejam atados a outra coisa ante Deus – assim como muitos religiosos dizem, acerca de suas constituições próprias, que obrigam apenas à pena, não à culpa. E não deliram sem juízo, mas o defendem com razões e argumentos nada inválidos. 80 Romanos 12:5. 81 Como vimos, o texto referido é a Relectio De Potestate Ecclesiae.

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Primeiro: se obriga em foro de consciência, de outro modo se seguiria que o poder secular seria espiritual. Segundo: porque o fim da república e do poder secular é algo apenas temporal, como um estado pacífico e o convívio dos cidadãos. Ora, isso nada diz à consciência. Terceiro: se assim fosse, todo poder secular seria parcialmente defeituoso, pois obrigaria e não poderia absolver. Quarto: pois então alguém seria punido duas vezes pelo mesmo pecado, pois neste mundo o puniriam os príncipes, e, no outro, Deus. Quinto: [o poder civil] não pode impor pena espiritual. Logo, tampouco pode obrigar à culpa, visto que não parece maior a razão para um do que para outro. Sexto: ou está no poder do príncipe o obrigar à culpa, ou não está. Se está, temos em contrário que os prelados espirituais podem não obrigar, como é patente entre os religiosos.82 Se não está, de que modo constará quando querem obrigar [em consciência], já que não o explicam? Mas, apesar desses argumentos, movidos por doutores sérios, não me parece haver-se de duvidar que as leis civis obrigam em foro de consciência, pois é disso que Paulo abertamente parece dar testemunho em Romanos 13:5: Portanto, é necessário que lhe estejais sujeitos, não somente pelo castigo, mas também pela consciência. E diz Pedro [I Pedro 2:13]: Sujeitai-vos, pois, a toda criatura humana por amor do Senhor; quer ao rei, como superior, etc., o que não se poderia entender de modo algum se as leis obrigassem apenas em foro contencioso, não em foro de consciência. Alguém poderia responder que não é o mesmo obrigar em foro de consciência e fazê-lo à culpa, principalmente porque os religiosos confessam estar obrigados por suas leis em foro de consciência, mas que elas não os induzem à culpa. Quanto a isso, agrego que as leis civis obrigam sob pena de pecado de culpa, assim como as leis eclesiásticas. Isto se prova abertamente pelo que diz Paulo em Romanos 13:2: Os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação. Ora, não se incorre em condenação senão por culpa. Portanto, os transgressores da lei incorrem em verdadeira culpa ante Deus. 16. Mas, para melhor declaração e confirmação desses fatos, há de se advertir que a lei humana e a divina em algo diferem e em algo convêm. Diferem porque a lei divina provém como que unicamente de Deus, de modo que por ninguém mais pode ser tolhida ou revogada. Já a lei humana é constituída pelos homens, e assim pode por eles ser tolhida ou anulada. Diferem também porque, para que a lei divina seja justa – e por isso obrigatória – basta a 82 Literalmente, “entre as religiões”. [N. T.]

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vontade do legislador, visto que a vontade supre a razão.83 Mas, para que a lei humana seja justa e possa obrigar não basta a vontade do legislador, senão que é necessário que seja útil à república e moderada com as demais. E diferem novamente porque a divina obriga mais firme e intensamente, pois em muitos casos a lei divina obriga onde a lei humana não o faz. Para além disso, eu não poderia discernir claramente outra diferença entre elas. Elas convêm em que a lei divina constitui algo no ser e no gênero da virtude ou do vício, de modo que, pelo mesmo fato de ser preceituado pela lei divina, é bom e devido aquilo que de outro modo não o seria; e, pelo mesmo fato de ser proibido, tem que seja mau e vicioso aquilo que de outro modo não o seria. Como exemplo tem-se o batismo, a confissão e os demais sacramentos, nos quais não há outra bondade que a de haver sido preceituados por Cristo.84 Também o uso das carnes e outros itens legais no Antigo Testamento não continham nenhum outro vício que o de estar proibidas pela lei. Donde consta que não há nenhum vício senão porque está proibido pela lei, nem virtude senão porque está preceituada e louvada na lei. Pois toda bondade na vontade humana, como o provam firmemente os doutores, deriva 83 A vontade do Legislador Divino é suficiente para a validade da lei divina, pois é sua razão de origem e fim. Não se pode entender a passagem aqui indicada no sentido antropológico, como se a vontade anulasse a razão, senão que ela mesma é inteiramente justificada racionalmente porquanto a vontade divina é atual e perfeita em si própria, diferentemente da vontade do legislador humano ao conceber a lei como fruto de sua atividade política. [N. C.] 84 Os preceitos e mandamentos de Cristo são determinações divinas, o que por si justifica formalmente a ordem do Salvador como perfeita e absoluta de sentido. Obviamente, a bondade dos sacramentos está, em geral, no fato de representarem uma prolongação dos mistérios de Cristo na vida da Igreja. São signos e, como tais, sinais da realidade sagrada que santificam o ser humano enquanto participante do corpo místico de Cristo. O sacramento é uma realidade sensível e sua matéria é necessariamente boa. A sentença: “não há outra bondade que a de haver sido preceituados por Cristo”, como afirma Vitória, aduz que no ministério dos sacramentos são indispensáveis certas palavras, que expressam o próprio Cristo e a lei da Nova Aliança. As palavras lhes são indispensáveis porque canalizam de modo adequado o real significado das coisas sensíveis envolvidas no sinal, por cuja fórmula verbal as coisas corpóreas se revestem de determinação formal. Ora, já que a forma do sacramento designa sua própria substância, pode ser tomado como um sinal visível da Graça Sobrenatural. Diz Santo Tomás que “se chama Sacramento o que se ordena a significar nossa santificação. Deve-se ter presente que na santificação se podem distinguir três aspectos: sua causa própria, que é a paixão de Cristo; sua forma, que consiste na graça e virtudes; e seu último fim, que é a vida eterna. Os sacramentos significam todas essas realidades. Portanto, o sacramento é, ao seu modo, signo rememorativo da paixão de Cristo, que já passou; signo manifestativo da graça, que se produz em nós mediante essa paixão; e, ao fim, anúncio e prognóstico da glória futura” (S. Th., IIIa, q. 60, a. 3). Portanto, dado que os preceitos de Cristo são sempre e necessariamente bons para o ser humano, a bondade dos Sacramentos está preceituada pelo próprio Verbo de Deus enquanto Autor da Salvação e da Redenção. [N. C.]

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de sua conformidade à vontade e à lei divina, e toda malícia deriva de seu afastamento da lei divina, que é regra de todos os atos humanos. Assim também a lei humana tem a força de constituir algo no ser de virtude, e seu contrário no ser de vício. Pois, visto que a embriaguez é proibida na lei divina, ela é intemperança; do mesmo modo, o jejum é obra de virtude, visto que é ordenado nesta mesma lei. E é virtude a abstinência de certos alimentos, por ser comandada pela lei humana. E não produzamos apenas exemplos de leis eclesiásticas: obter uma magistratura com dinheiro é ambicioso porque é proibido pela lei humana. Do mesmo modo, vestir seda é imoderado apenas porque proibido. Pagar por um banquete mais do que determina a lei será intemperança; o que antes da lei pôde ser temperança e magnificência. Não diferem quanto a isto a lei humana e a divina; assim como há mérito na obra da virtude, há também culpa na obra do vício. 17. Portanto, assim como a lei divina tem a capacidade de obrigar à culpa, também o tem a lei humana. Para que isto não pareça dito por mera vontade, demonstremo-lo. A lei humana provém de Deus.85 Logo, obriga do mesmo modo que a divina. Provemos o antecedente: não se diz obra de Deus apenas aquilo que Ele produz sozinho, mas também o que se realiza por causas segundas. Portanto, não se diz lei divina apenas o que Ele sanciona sozinho, mas também o que os homens produziram mediante o poder de Deus, assim como não se denominam leis pontifícias apenas as que o próprio Papa sanciona, mas também as que seus inferiores sancionam mediante autoridade papal. Pois se chamam Constituições Papais as das universidade e colégios, e consta que o Papa não as fez ele mesmo, mas sim outros, munidos de sua autoridade. 85 Ou seja, provém de Deus enquanto conclusão ou determinação da lei natural. Sobre isso, diz S. Tomás na Suma Teológica (Ia-IIae, q. 95, a. 2) que “a primeira regra da razão é a lei natural. Logo, a lei positiva humana tem força de lei quando deriva da lei natural. E, se estiver em desacordo com a lei natural, não é lei, senão corrupção da lei. Mas é necessário advertir que uma norma pode derivar da lei natural de duas maneiras: bem como uma conclusão de seus princípios, bem como uma determinação de algo indeterminado ou comum. O primeiro procedimento é semelhante ao das conclusões demonstrativas que nas ciências se inferem dos princípios; o segundo se assemelha ao que ocorre nas artes, onde as formas comuns recebem uma determinação ao serem aplicadas a realizações especiais, e assim vemos que o construtor tem que determinar alguns planos comuns reduzindo-os à figura desta ou daquela casa. Pois bem. Há normas que se derivam dos princípios comuns da lei natural por via de conclusão; e assim, o preceito ‘não matarás’ pode ser derivado à maneira de conclusão daquele outro que manda ‘não fazer mal a ninguém’. E há outras normas que se derivam por via de determinação; e assim, a lei natural estabelece que o que peca seja castigado, mas que se lhe castigue com tal ou qual pena já é uma determinação incorporada à lei natural. Por ambos os caminhos se originam as leis humanas positivas. Mas as do primeiro procedimento não pertencem à lei humana unicamente como leis positivas, senão que em parte mantêm força de lei natural. As do segundo, por outro lado, não possuem mais força que a da lei humana”. [N. C.]

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Ou, para que esteja ainda mais claro, argumentemos do seguinte modo: suposto que o Papa tem autoridade para criar leis que obrigam em foro de consciência, se ele encarregasse alguém de dar leis a alguma comunidade, ordenando-lhes que obedecessem, acaso os preceitos de seu legado não teriam força de obrigar em foro de consciência? Logo, pela mesma razão, como Deus diz: Por mim reinam os reis e os legisladores decretam a justiça,86 por que seus decretos não obrigarão da mesma maneira em foro de consciência? Para que isto fique mais claro: parece totalmente absurdo conceder que, se um Papa ordenasse que nesta cidade todos obedeçam ao cardeal legado, os preceitos do legado obrigariam à culpa – como todos o admitem –, mas negar que, quando o Cristo ordena obedecer aos príncipes, as leis destes príncipes obriguem à culpa. Pois assim o Senhor constituiu os príncipes seculares para governar uma república secular: como os pontífices a uma república espiritual. Tampouco refere-se apenas aos eclesiásticos isto que diz o Senhor, a saber, quem rejeita a vós, a mim me rejeita,87 mas também aos magistrados civis. E não com menos diligência se comanda na Escritura a obediência aos príncipes seculares que aos eclesiásticos. Portanto, no tocante às obrigações, não importa se as leis são humanas ou divinas, assim como seria tão verdadeiro um sacramento instituído pelos apóstolos ou pela Igreja, se para isso houvessem tido poder, quanto um que houvesse sido instituído pelo Cristo. A Lei Antiga, dada pelos anjos, não por Deus diretamente, tampouco obrigava menos que a lei evangélica dada pelo próprio Cristo. E isto se deve ter como certo. 18. Pode-se duvidar sobre a que culpa obrigam, se mortal ou apenas venial. Que às vezes obriguem à mortal, isto consta das palavras já citadas de Paulo: Os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação.88 Também Datã e Abirão foram devorados porque resistiram a Moisés e Aarão; e não haveriam sido punidos com a morte por uma culpa venial. Em sentido contrário, parece que nunca obrigariam a uma culpa mortal. Pois, se um preceito divino que só obrigue a culpa venial – como não mentir – concorresse com alguma lei humana, mais seria necessário transgredir a lei humana. Ora, se alguma lei humana obriga mortalmente, mais se haveria de obedecer a ela que ao preceito da culpa venial, visto que mais se deve fugir daquilo que é mortal. 86 Provérbios 8:15. 87 Lucas 10:16. 88 Romanos 13:2.

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Respondemos a esta grave dúvida com o que antes nos disse Paulo. Que, quanto à força de obrigar, é idêntico o juízo sobre as leis divinas e as humanas. Ora, para considerar como ou quanto obrigam as leis humanas, devemos considerá-las como se fossem divinas. E uma lei humana que, se fosse divina, obrigasse à culpa venial, obriga à culpa venial. Uma lei humana que, se fosse divina, obrigasse à culpa mortal, obriga à culpa mortal. Pois foi dito que, quanto a isso, nada importa, pois obrigam do mesmo modo que se tivessem sido dadas por Deus, ainda que não tão firmemente. Portanto, assim como entre as leis divinas algumas obrigam à culpa mortal e outras à venial, também entre as leis humanas algumas obrigam à culpa venial e algumas à mortal. 19. Mas como se poderia distinguir quando as leis humanas obrigam à culpa venial e quando à mortal, visto que a própria lei civil não o indica, e muito menos cogitou sobre isso o legislador quando a sancionou? Responde-se que, nem na lei divina, muito menos na lei natural, sinaliza-se sempre qual preceito seja de culpa mortal, qual de culpa venial. E entre os próprios preceitos mortais não se indica a gravidade de um com respeito à de outro, isto é, qual dentre eles seria mais grave. Pois, assim como se diz: Não matarás, assim também se diz: Não furtarás e não mentirás, e Hão de prestar contas de toda palavra ociosa, etc.89 Portanto, há uma só e mesma regra e medida para distinguir a gravidade de um pecado: todo preceito se deve avaliar a partir de sua matéria. Tanto na lei natural quanto na divina, algo se julga mortal se vai contra a honra de Deus ou a caridade ao próximo, como a blasfêmia e o homicídio; julga-se como preceito venial, porém, o que afronta a razão e a lei, mas não a honra de Deus ou a caridade ao próximo, como a palavra ociosa e coisas do gênero. O mesmo se dá com as leis humanas. Se com elas se estabelece algo que muito contribua com a paz dos cidadãos, o bem público e a honradez dos costumes, sua transgressão parecerá um pecado mortal. Mas, se o que ela institui não é algo tão necessário, mas assunto mais leve, será de culpa venial. Os exemplos das leis humanas não nos vêm tão prontamente quanto no caso das leis divinas; mas pode aceitar-se o de um tributo que pareça absolutamente necessário para a defesa da república e para outros serviços e obras públicas. Assim, se alguém não o paga, teria culpa mortal. Ainda que nenhuma destas leis houvesse sido dada por Deus, mas que Ele houvesse encarregado aos homens todo o cuidado de sancionar leis, e esta fosse uma lei civil: não matarás, não mentirás, a primeira obrigaria à culpa mortal, a segunda à venial, assim como 89 Mateus 12:36.

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é agora, quando são leis divinas. Da mesma maneira que, se alguém caçar ou se vestir com linho,90 isto não parece implicar culpa mortal. Outros exemplos mais cômodos se poderiam apresentar, pois isto não depende da vontade do legislador, mas da natureza e qualidade de uma coisa, assim como da matéria. Donde se depreende quão grande é o erro de certos jovens teólogos91 que afirmam que a gravidade dos pecados deve ser tomada e considerada segundo a dimensão da obrigação, quando é precisamente o contrário. Ora, é a dimensão da obrigação que se deve tomar da dimensão da matéria, não o contrário. Tampouco sabemos naturalmente que é maior a obrigação de não matar que a de não roubar senão a partir da própria matéria. É isto, não o contrário. Tampouco nos cabe ater-nos a se aquilo que se comanda ou proíbe faria grande bem ou mal à república se praticado agora, ou uma só vez, mas sim ater-nos a como seria se se agisse de modo contrário ao preceito comumente, ou da parte de todos, ou de muitos. Pois, se se proíbe levar dinheiro para fora do reino, quaisquer pessoas que o exportem pecam mortalmente, ainda que uma só exportação prejudique muito pouco a república. Mas, visto que o reino se exauriria se isto fosse feito de maneira comum, isto basta para que esta lei comum obrigue mortalmente. Da mesma maneira, uma só fornicação faz pouco dano; porém, se a prática fosse disseminada, o dano seria grande. Contra o que foi dito, argumenta-se com veemência: Ora, se é da parte da matéria que se deve deduzir a gravidade do pecado, então a lei não produz culpa. Pois, se aquela transgressão resulta em dano à república depois da lei, também o faria antes da lei. E portanto já era pecado, e tão grave quanto o é depois da lei. Respondo, em primeiro lugar, que a lei não obriga apenas proibindo, mas mandando. E assim a lei pode mandar algo que, antes dela, era de fato um bem para a república, mas não era necessário; desse modo, depois da lei a referida transgressão será pecado, ainda que antes não o fosse. Em segundo lugar, digo que, como se vê nos exemplos já apresentados, pode haver algo que, antes da lei, era mau em certo aspecto mas não em outro. Depois da lei, porém, será mau por completo: por exemplo, como houve razão suficiente para proibir a todos de vestir seda ou ouro, o que antes era mau apenas no caso do nobre pobre tornou-se mau em todos os casos. Pois houve razão suficiente para proibi-lo a todos, ainda que antes não houvesse nenhum inconveniente em que os magnatas vestissem traje dourado ou de seda.

90 O autor refere-se a um luxo ou conforto excessivos para a época e o lugar. [N. T.] 91 Refere-se aos teólogos de inspiração nominalista. [N. C.]

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20. Mas resta ainda uma dúvida: Se o rei quisesse não obrigar à culpa, acaso poderia fazê-lo? Respondo que sem dúvida o poderia, assim como o pode um legislador eclesiástico que às vezes estabelece alguns estatutos sem qualquer obrigação, como um prelado de religiosos entre seus irmãos. Pois seria contrário à razão dizer que as constituições dos prelados eclesiásticos nem sempre obrigam à culpa, e que a dos seculares não podem não obrigar. Pois às vezes um legislador, seja eclesiástico, seja secular, não quer em suas leis exigir a obediência devida dos súditos, mas apenas ordena o que se deve fazer, dizendo e orientando mais do que preceituando. Deste tipo parecem ser muitas das leis e pragmáticas civis e eclesiásticas, assim como um credor, quando pede o dinheiro, nem sempre o requer como quem deseja obrigar. 21. Pergunta-se, por fim, se as leis civis obrigam os legisladores e principalmente os reis. Pois a alguns parece que não, visto que estes se encontram por sobre toda a república e ninguém os poderia obrigar senão um superior. Não obstante, é mais correto e provável que lhe estejam obrigados. Demonstramo-lo, primeiro, porque, se o legislador é parte da república e não partilha do ônus desta república na medida de sua pessoa, qualidade e dignidade, faz dano a ela e aos demais cidadãos. Mas esta obrigação é indireta, o que demonstraremos de outra maneira. Ora, como explicitamos acima, as leis têm a mesma força, quer feitas pela república inteira, quer pelo rei. E as leis feitas pela república obrigam a todos. Portanto, ainda que feitas pelo rei, obrigam também o próprio rei. E o confirmamos. Pois no principado aristocrático os decretos do senado92 obrigam os próprios senadores, seus autores, e num regime popular os plebiscitos obrigam o próprio povo. Portanto, de modo semelhante as leis régias obrigam o próprio rei. E, embora seja voluntário ao rei fazer uma lei, não cabe em sua vontade o estar-lhe obrigado ou não. Aqui ocorre como nos pactos: pactua-se livremente, mas, feito o pacto, a ele se está obrigado. De tudo que foi dito infere-se o seguinte corolário: o direito de gentes não tem vigor apenas pelo pacto e compromisso entre os homens, mas tem também a força de uma lei.93 Pois o mundo inteiro, que de certo modo é uma só república, tem o 92 “Senatus consulta”. 93 Ao tempo de Vitória, o direito de gentes se referia sobretudo ao direito partilhado por todas as pessoas em razão de sua mera natureza humana e por convenção entre os povos. É tomada como conclusão de lei natural, como o próprio S. Tomás aponta na Suma Teológica: “(...) normas que se derivam do direito natural como as conclusões de seus princípios; por exemplo, a justiça nos contra-

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poder de produzir leis justas e convenientes a todos, como as que constam do direito de gentes. Disso se depreende que pecam mortalmente os violadores dos direitos de gentes, quer na paz, quer na guerra. Já em coisas mais graves, como a inviolabilidade dos legados,94 não é lícito a nenhum reino escusar-se do direito de gentes, pois este é dado com a autoridade do mundo inteiro. 22. Sobre a terceira conclusão, põe-se em dúvida se, cessando-se a razão da lei, cessaria a obrigação. Por exemplo: é proibido por lei que de noite se portem armas, e a razão disto são os perigos noturnos. Mas eu sei que para mim não há perigo nenhum. Acaso incorro em culpa se portar uma arma? Responde-se: De duas maneiras uma lei pode cessar. De um primeiro modo, porque universalmente cessa a razão pela qual a lei se promulgou; como se em tempo de guerra se proibisse levar armas aos franceses, mas tal lei não obrigaria em tempo de paz. Pois a razão pela qual se requer que uma lei obrigue e perdure é a mesma pela qual se a promulga, no caso de que ela não exista. Logo, a razão para promulgá-la é também a razão para preservá-la. E confirmamo-lo observando que é pelas mesmas causas que uma coisa se corrompe e se gera. Além disso, se a lei não é útil à república, já não é lei. Em segundo lugar, a razão da lei pode cessar em particular, quanto a alguém, mas não quanto a todos absolutamente ou quanto a vários, como no caso anterior. Neste caso, também aquela pessoa em particular está obrigada pela lei. Pois, visto que perigos freqüentemente resultam do porte noturno de armas, há razão suficiente para que se o proíba a todos. De outro modo a lei não teria nenhuma eficácia, porque cada um julgaria que a lei não foi feita para ele, mas para os outros. Assim, também nos demais preceitos há que atender à razão universal, não à particular. 23. Levanta-se a dúvida sobre se as leis dos tiranos obrigam ou não. Pois pareceria que não têm poder nenhum. Em contrário: se a república encontra-se oprimida pelo tirano e não se encontra de direito próprio,95 se ela tampouco tos de compra e venda, e outras coisas assim, sem as quais não seria possível a convivência humana: e este direito é de lei natural, porque o homem é por natureza um animal social”. Quer dizer: em distinção ao direito do particular, direito civil, que deriva da lei natural ao modo de determinação, o direito das gentes deduz-se como conclusões dos primeiros princípios práticos. Assim opina S. Tomás na resposta às objeções da questão apresentada: “é verdade que o direito das gentes é de certo modo natural ao homem como animal racional, porque se deriva da lei natural à maneira de uma conclusão não muito afastada dos princípios, de modo que facilmente os homens concordam sobre ela” (S. Th., Ia-IIae, q. 95, a. 4). [N. C.] 94 Que hoje teria semelhante tratamento na instituição da imunidade diplomática. [N. T.] 95 Parece-nos que a frase refere-se aqui ao tirano usurpador (tyrannus a titulo), mais do que ao

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pode criar leis, e se tampouco podem cumprir-se as promulgadas antes dele, a república logo perecerá caso não obedeça ao tirano. Certamente parece que obrigariam aquelas leis convenientes à república, ainda que promulgadas pelo tirano – não por haver sido ele seu promulgador, mas pelo consentimento da república, visto que é mais correto observar as leis dadas pelo tirano do que não observar-se nenhuma. E com certeza haveria grande ruína à república, caso ocupassem o reino príncipes que carecem de justo título, se não houvesse nenhum julgamento nem se pudessem punir ou prender de algum modo os malfeitores, pela razão de que o tirano não é juiz legítimo. E é isto o que se daria se suas leis não obrigassem. 24. Última parte da conclusão: que os preceitos dos pais obrigam do mesmo modo que as leis civis, assim como os preceitos dos maridos às suas esposas. Prova-se a parte referente aos filhos: assim como se manda obedecer aos superiores, assim também se manda obedecer aos pais, como se vê em Efésios 6:1: Filhos, obedecei a vossos pais e em Colossenses 3:20. Logo, se há culpa em não obedecer aos superiores, haverá também pecado em não obedecer aos pais. Também em governante legítimo que governa tiranicamente (tyrannus in regimine), embora isto possa parecer contra-intuitivo numa primeira leitura, visto que o autor menciona que a cidade não se encontra “de direito próprio” (sui iuris) – o que sugeriria que o tirano seria ao menos legítimo e apenas pecaria pelo mau uso de sua legitimidade. No entanto, vemos que o autor logo se refere ao fato de a república não poder cumprir as leis “promulgadas antes dele”, o que indica que a tirania em questão é simultânea com a chegada do tirano ao poder – o que, por sua vez, sugere a tomada súbita de poder, acompanhada de novas leis e da proibição das antigas. Esta situação parece-nos mais afim à usurpação por conquista. Se a entendemos dessa maneira, a frase indica que a república até tem direito próprio, mas está efetivamente impedida pelo tirano de exercê-lo. Neste caso, sua carência de poder para criar leis é fruto da falta de capacidade, não da de justo título, assim como o é o impedimento de cumprir-se as leis promulgadas antes do tirano. Se, por outro lado, entendemos que o autor se refere a um tirano em exercício, então a república efetivamente carece de justo título, e o exemplo prossegue entendendo-se que a razão para a república não poder criar novas leis é a efetiva falta deste título, ao passo que se deve a um impedimento de facto apenas a impossibilidade de cumprir-se as leis promulgadas antes da tirania. Este caso não nos parece o mais provável, pois propõe uma injustiça mitigada contra a república em questão, e o melhor exemplo de impasse na república corresponde ao caso limite, ou seja, aquele no qual a nova lei do tirano aparece em condições de máxima injustiça (a saber, a república é sui iuris, mas não pode exercer seu direito), e no qual se vence a maior razão possível para a desobediência da república ao tirano, ante a escolha entre seguir as leis dele ou perecer abraçada ao justo título. OBS: sustentamos a leitura do termo latino “ipse” como “ipsa”, subentendendo erro tipográfico (em concordância com o tradutor da B.A.C. e em discordância do tradutor da Librería Hernández, que seguiu “ipse” fielmente). Isto porque, se lemos “ipse” e traduzimos a passagem como “se ele [o tirano] tampouco pode criar leis”, o final do argumento parece carecer de sentido quanto a ambos os tipos de tirania: se entendemos o tirano como usurpador, e dele dizemos que não pode criar leis, então parece pouco coerente ter somo solução que se sigam as leis que ele crie como alternativa a assistir à ruína da república. Se o entendemos como tirano em exercício, então não há razão para dizer que ele não pode criar leis, porque o pode de direito e (como indica contexto do parágrafo) o pode de fato. [N. T.]

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Romanos 1:30, entre os crimes e pecados em que se diz haver Deus permitido que incorressem os gentios, enumera-se também este: Não eram obedientes a seus pais. Ademais, as próprias leis comandam a obediência aos pais. Ora, se as leis obrigam à culpa, também haverá culpa em não obedecer aos pais. Também, isto certamente parece estar incluso naquele preceito de honrar pai e mãe – e, com respeito ao que se disse acima, isto é, que as leis às vezes obrigam à culpa mortal e às vezes à venial, o mesmo parece valer para os preceitos dos pais. Donde certamente, se o pai preceituar algo muito relevante à administração da família, a transgressão parece ser mortal, sobretudo naquilo que diz respeito à disposição do próprio filho. Mas, assim como foi dito que nem toda a lei obriga à culpa – como aquela em que o rei mais orienta do que ordena – isto vale muito mais no caso dos pais, que nem sempre querem exigir o débito de obediência, mas comandam algo apenas no intuito de manifestar sua vontade. Deve-se advertir, porém, que, como a família é parte da república,96 as leis podem determinar em quais coisas os filhos estão obrigados a obedecer aos pais e em quais isto não seria necessário, da mesma maneira em que as leis determinaram até qual idade se lhes deve esta obediência. Igualmente cabe às leis determinar com qual pena o pai poderia castigar seu filho desobediente, de modo que não lhe seja lícito ultrapassar tal limite. E pode-se também demonstrar acerca dos preceitos dos maridos a suas esposas. Pois uma família não poderia subsistir se não houvesse uma só cabeça à qual as demais devessem obedecer. E esta é a do marido, que é cabeça da casa e da esposa, conforme se vê em Efésios 5:22-23. E no mesmo lugar diz-se ainda: Mulheres, sede sujeitas a seus maridos como ao Senhor. E depois: Tema a esposa a seu marido. Ademais, as próprias leis o mandam; logo, devem ser obedecidas. E cabe também às leis indicar de que maneira e até que ponto deve a esposa obedecer ao marido, e se pode ou não um marido castigá-la fisicamente como dissemos acerca dos filhos.

96 Alusão feita a Aristóteles, Política, I, 2, 1252b.

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Sobre o Reino de Cristo

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ntretanto, como tanto já dissemos sobre os reis e seu poder, para que esta disputa não pareça mais filosófica que teológica, pareceu-me atinente discorrer um pouco sobre o reino de Cristo. Pois é ele o Rei dos reis e senhor, etc. 98 Não perseguirei no presente momento todas as questões 97 A inserção do capítulo “Sobre o Reino de Cristo” no texto da Relectio de Potestate Civili foi causa de numerosos debates entre os comentaristas e tradutores de Vitória, sobretudo pela desconfiança existente quanto à real pertença do fragmento ao texto original da preleção. Embora não contenha nenhum autógrafo de Francisco de Vitória, diferentemente do que sucede com os demais escritos e preleções do mestre de Salamanca, o fragmento em questão foi citado expressamente pelo próprio autor na Relectio de Indis, quando indicou que “o Reino de Cristo não é temporal (...) e que sobre isto tratei na preleção sobre o poder civil”. Apesar disso, a historiografia das edições da Relectio de Potestate Civili aponta que a edição chamada P, depositada no Cabildo da Catedral de Palencia, originalmente datada de 1538, pertencente ao monge beneditino Frei Pedro de Castillo e transcrita do original pelo copista Frei Andrés de Burgos (amanuense), é considerada a cópia impressa mais antiga chegada à posteridade. Nessa edição, consta claramente que o fragmento foi adicionado ao texto original após sua leitura pública. Diz o copista na parte final da redação do fragmento na edição P: “haec, quae de Regno Christi scripta sunt, non erant in Relectione scripta; ipse enim Magister aliter et melius memoriter retulit; sed ego ex scripturis eius haec accepi, quae forsan non sapiunt similem phrasim cum praecedentibus” (V. parágrafo ao final deste fragmento, p. 98). Como se vê, a matéria do fragmento foi inserida depois, embora fosse de autoria do próprio Vitória. Da passagem citada, resta claro que o copista de Burgos tomou o fragmento da obra do próprio mestre salmantino, embora não o fizesse do texto da Relectio de Potestae Civili, senão de outros escritos do autor – “eius accepi”. Assim, o texto sobre o reino de Cristo não constava na preleção original, tendo sido acrescido depois, embora muito provavelmente tenha sido mencionado pelo autor na própria preleção oral – “memoriter retulit”. A menção oral de Vitória, ademais, tinha como pretexto remeter o ouvinte a uma preleção posterior, que pudesse tratar do tema ali cotejado. É o caso da Relectio de Potestate Ecclesiae Prior, cujo âmbito temático orbita em torno do problema da jurisdição do poder de Cristo. Outra edição bastante conhecida é a denominada H, hispalense, pertencente à Biblioteca da Universidade de Sevilha e que forma parte dos vários documentos reunidos por Miguel de Arcos. De acordo com Vicente Betrán de Heredia, esta edição foi copiada do original no início de 1539. Pertenceu a Miguel de Arcos, provençal de Andaluzia e amigo pessoal de Vitória, tendo mantido com o mestre de Salamanca intensa correspondência. Esta edição é muito próxima em gênero do texto da edição P e também contém o fragmento De Regno Christi, ainda que com a primeira guarde algumas diferenças gramaticais e de estilo. Nos comentários elaborados por Jesus Cordero Pando, dá-se a entender que “se deve tomar em consideração a possibilidade de que esta cópia possa ter sido facilitada diretamente por Vitória a seu amigo Miguel de Arcos, a quem consta ter enviado os parágrafos arrancados de sua Preleção sobre a Temperança e a quem dirigiu sua conhecida carta sobre ‘los peruleros’, cujo texto se conserva entre os papéis do mesmo código” (Relectio de Potestate Civili e estudios sobre su filosofia política, Madrid, CSIC, 2008). Ainda assim, a falta de comprovação não permite afirmar com segurança que o fragmento De Regno Christi pertença originalmente ao texto da Relectio de Potestate Civili, mesmo que com ele guarde certa pertinência temática.

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PARTE I · SOBRE O PODER CIVIL

que poderia, mas apenas por qual direito Ele foi rei, e se Seu reino é de mesma razão que o dos príncipes temporais. Dentre os autores que trataram do reino de Cristo, alguns afirmam que nosso Redentor e Senhor foi rei dos judeus, não apenas pela união hipostática, ou pelo fato de que era o Messias (e por essa razão era rei de todo o mundo), mas por direito hereditário e origem natural. Sobre isto, veja-se Ricardo de Armacanus, que, nas Questões Sobre os Armênios 99 defende que Cristo foi rei dos judeus por origem e segundo sua humanidade, não apenas pela união hipostática. Por isso, afirma que a dignidade régia haveria descendido por sucessão à Virgem Maria, segundo a lei dada em Números 27[:8-11], no caso das filhas de Zelofeade, em que elas puderam receber sua herança: Quando alguém morrer e não tiver filho, então fareis passar a sua herança à sua filha. E, se não tiver filha, então a sua herança dareis a seus irmãos. Porém, se não tiver irmãos, então dareis a sua herança aos irmãos de seu pai. Se também seu pai não tiver irmãos, então dareis a sua herança a seu parente, àquele que lhe for o mais chegado da sua família. E assim Cristo, por parte de sua mãe e da lei dos primogênitos, pôde verdadeiramente ser chamado rei dos judeus. Ricardo de Armacanus o prova com numerosos argumentos. Primeiro, porque o Messias é chamado rei pelos profetas, assim como em Salmos 21:1: O rei se alegra em tua força, Senhor; e 44:2: Ao rei dedico meu canto; e ainda 72:1-8: Ó Deus, dá ao rei os teus juízos; Ele [...] dominará de mar a mar. Também Isaías 9:6-7: Ele será príncipe da paz, seu império será grande; e o mesmo em 33:22: o Senhor é nosso juiz [...], nosso legislador [...], nosso rei. Em Daniel 7[:14] e Zacarias 9[:9], diz-se que ele possui um reino, e confirma-o o próprio anjo Gabriel quando diz a Maria: e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai. E reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim.100 Não basta dizer que o chamaram rei porque deveria reinar apenas espiritualmente e legislar apenas espiritualmente. Pois assim também Moisés Ambas as edições P e H são consideradas as edições latinas mais próximas ao texto original e (especialmente a primeira, traduzida para o castelhano por Beltrán de Heredia) incorporam o texto fragmentário no corpo original. Do ponto de vista do estilo, embora o fragmento apresente alguma distância em comparação com outros textos do próprio Vitória, expõe uma fundamentação teológica para a questão da jurisdição do reino de Cristo na história e sua atinência relativamente ao poder temporal dos reis e príncipes. Nas edições posteriores, datadas dos séculos XVI em diante, o fragmento em questão foi suprimido ou alocado para outros lugares do texto traduzido, como no início ou na parte final da Preleção. 98 Apocalipse 19:16. 99 Ricardo de Armacanus (FitzRalph), Summa Domini Armacani in Questionibus Armenorum, Paris, 1512, lib. V, caps. 15-16, ff. xxxiv-xxxv. 100 Lucas 1:32-33.

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