Joana, Relapsa e Santa

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J oana, R elapsa e S anta


Impresso no Brasil, maio de 2013 Título original: Jeanne Relapse et Sainte Copyright © Le Castor Astral, 2011 Todos os direitos reservados. Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SP Telefax: (5511) 5572 5363 e@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Sonnini Ruiz Produção editorial Liliana Cruz Preparação de texto Isabel Junqueira Revisão Danielle Mendes Sales Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É Diagramação e editoração André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Pré-impressão e impressão Edições Loyola Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.


J oana, R elapsa e S anta GEORGES BERN A N OS

Apresentação de Jean Bastaire

Tradução de Pedro Sette-Câmara



Sumário

Apresentação Por Jean Bastaire.......................................................................... 7

JOANA, RELAPSA E SANTA........................................................21



Apresentação

Pode-se dizer que Bernanos age de maneira estranha ao celebrar em 1929 – por encomenda da Revue Hebdomadaire – o aniversário de cinco séculos da libertação de Orleans. Em vez de evocar a Joana das batalhas, a guerreira vitoriosa que expulsa os ingleses da França, ele decide contemplar a Joana do processo, a mártir vencida cujas cinzas são dispersadas ao vento. Nem sequer uma vez nasce de sua pluma a expressão consagrada de “santa da pátria”. No entanto, não há dúvidas de que é assim que ele a considera, sem no entanto explicitá-lo. Não é essa sua proposta com o texto. Naquele punhado de folhas que em 1934 se tornaria um opúsculo publicado pela Plon, sua editora, há um outro propósito, alimentado por dois acontecimentos então recentes. Beatificada em 1909, Joana d’Arc foi canonizada em 1920, pouco após a Primeira Guerra Mundial. Uma feliz decisão da Igreja que, em meio milênio, como que realizou uma inversão completa de sua posição. Mas os juízes eclesiásticos não mudam nem de espírito, nem de método, quando, seis anos depois, em 1926, condenam a Action Française. Com o pretexto de sancionar uma atitude religiosa incompatível com o cristianismo, eles de fato correm para ajudar as democracias pacifistas reunidas um ano antes na Conferência de Locarno.


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Maurras certamente não é a Donzela, e Bernanos não compartilha a “política primeiro” do grande mestre da Action Française. Porém, como Maurras, ele defende uma linha “dura” em relação à Alemanha e não dispensa senão sarcasmos aos “padres democratas que sonham com uma espécie de república universal” e aos “altos prelados pacifistas deslumbrados com o valor do dólar”. Tanto na Igreja do século XX quanto na do século XV, ele fareja uma idêntica preocupação de conciliar os poderosos do momento. A exaltação de Joana d’Arc assume então para ele a figura de uma dupla meditação sobre a Igreja: Igreja de clérigos e Igreja de santos. Segundo o exemplo de Joana e contra tantos revoltados, “fraticelli”, protestantes e outros cristãos livres, ele não recusa a instituição ecle­ siástica. Mas ele a relativiza e restabelece a relação exata de subordinação que deve submeter o clero aos santos, e não o inverso. * * * Espontaneamente, ele se coloca desde as primeiras linhas sob a proteção de Péguy. A invocação tem um quê apimentado e deve ter irritado o paladar do diretor da Revue Hebdomadaire, François Le Grix, contra quem Péguy havia publicado em 1911 um panfleto furibundo exatamente a respeito de Joana d’Arc, e justamente por ocasião de um artigo publicado na Revue Hebdomadaire, então dirigida por Fernand Laudet. O que Péguy censurava em Le Grix senão o fato de ter abstraído a infância da moça, fixando-se em sua vida pública? Como se essa vida pública não tirasse sua seiva da vida privada e particularmente da caridade da Donzela! Péguy indignava-se também porque, por complacência em relação ao século, Le Grix referiu a obra ateia Jeanne d’Arc de Anatole France como “piedosa e laica exegese”, desprezando a “Joana d’Arc de quando éramos crianças”.


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No mesmo espírito, Bernanos afirma logo no início: “A maravilha é que a infância tenha comparecido diante de um tribunal regular, mas a maravilha das maravilhas é que esse tribunal tenha sido um tribunal de membros da Igreja. E não foi um tribunal de brincadeira!”. O panfletário nega absolutamente a lenda deveras cômoda que pretende desculpar a Igreja fazendo do tribunal de Rouen um bando de fantoches, vendidos aos ingleses, que julgavam dentro do âmbito de uma jurisdição de exceção. A verdade é exatamente o inverso. O tribunal reunido por Cauchon é tudo aquilo que há de mais conforme ao direito canônico da época. Entre seus membros estão algumas das maiores autoridades teológicas do reino. Os debates acontecem na presença e sob a responsabilidade do vice-inquisidor da França, que é o delegado do papa neste país. Enfim, se porventura aqui ou ali se pode encontrar algumas irregularidades formais, faz-se necessário reconhecer a obstinação de Cauchon e seus acólitos em respeitar escrupulosamente os meandros de um processo interminável. Apoiando-se no dossiê estabelecido por Pierre Champion em 1920, no momento da canonização de Joana, Bernanos exprime esta conclusão irrefutável: o que a acusada tinha diante de si não era uma trupe de vigaristas, mas o magistério eclesiástico no exercício normal de suas funções. Se certamente houve uma tragédia, não se poderia falar de “palhaçada trágica”. No caso de Joana d’Arc, a Igreja pura e simplesmente condenou uma santa. Que Igreja? Bernanos não perde o sono com sutilezas e aponta o dedo para a Igreja institucional, de que faz um retrato nada lisonjeiro. Na dramatização, ele opõe uma “mocinha irônica e dócil” a uma “pequena França tão nova, tão maliciosa”, “toda rubra de cólera, com os olhos cheios de lágrimas”, uma enfiada de “gordos satisfeitos e sonolentos”, “de bochechas inchadas”, “ronronando como gatos”, “adormecendo e soltando um arrotinho”. A caricatura não é um golpe baixo.


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Mais grave é o desprezo que ele parece sentir pelo direito canônico, pela teologia, pela escolástica: em suma, por toda reflexão sobre a Revelação tal como esta nos é transmitida pelas Escrituras e pelos Padres da Igreja. Há aí um modo de afastar a razão em nome do ardor íntimo que não é razoável e, menos ainda, evangélico. Mas pode-se estimar que, descontando o temperamento de Bernanos, ele se refere sobretudo a um certo poder intelectual, a um arrogante orgulho do saber que desavergonhadamente transforma a ciência sagrada num meio de coagir as consciências. Por fim, a acusação mais séria é a de submissão ao poder estabelecido, de concubinato com as autoridades do século. Isso pode acontecer por motivos vis de remunerações e de benefícios. Mas a censura não chega ao cerne dos velhos hábitos da instituição, porque no mais das vezes ela só se dirige a indivíduos. O verdadeiro mal está no espírito de acomodamento, que logo se torna espírito de desistência. Como diz um velho ditado, quando se come com o diabo, é preciso usar uma colher bem comprida. As concessões diplomáticas e os ardis infelizes desenvolvem, no fim das contas, uma mediocridade eminentemente estéril, porque tudo o que se busca é “uma sólida garantia contra os riscos do divino”. E essa timorata garantia de que precisamos é imposta aos fiéis com uma caridade intempestiva sob a forma de “uma espécie de quartel espiritual”, guarnecida por “portas fechadas”, “barreiras” e “guichês”. Bernanos defende uma santa imprudência que faça explodir as trancas. “Respeitamos os serviços de intendência, o prebostado, os majores e os cartógrafos, mas nosso coração está com as gentes de antanho, nosso coração está com aqueles que se entregaram até a morte.” Ele tem horror daqueles a quem chama os “velhotes”, categoria metafísica (“muitos dos quais não passaram dos trinta”) na qual ele coloca as pessoas que não ousam, que não se lançam adiante, “os


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bem-pensantes, de ventre grande e corrente de ouro, que acham que os santos correm rápido demais e prefeririam entrar no paraíso dando passinhos, como que no lugar de honra, junto com o sacerdote, seu compadre”. Bernanos chuta furiosamente as boas consciências sensíveis e avaras, que economizam o Espírito Santo como seu próprio dinheiro e sentir-se-iam infiéis a Deus se renunciassem a seu conformismo para lançar-se na aventura da santidade e “pagar o preço”, como diria Péguy. Não basta observar os ritos. Como Joana, é preciso arder neles. “O menor dos garotinhos de nossas catequeses sabe que a bênção de todos os homens do clero juntos somente levará a paz às almas já dispostas a recebê-la. Rito nenhum dispensa de amar.” Somente os santos amam, não os funcionários. Rugindo de vida espiritual, Bernanos, no entanto, não coloca a instituição de lado. Ela, apesar de sofrível, é necessária. A tarefa dos santos é conquistar, e a do clero, administrar. Os santos tomam e retomam a todo instante aquilo que sem eles se perderia, o clero transmite sua memória. Numa imagem impressionante tirada das cerimônias de canonização de Joana, o panfletário mostra, pouco menos de cinco séculos depois do processo de Rouen, “a efígie da adivinha exposta na Basílica de São Pedro em Roma e, trinta metros abaixo dela, um minúsculo homem branco, prostrado, que é o papa”. Tudo isso acontece no interior da Igreja, entre pessoas da Igreja e santos da Igreja. As disputas ali são conflitos de família, e bem sabemos que não são os menos violentos. Mas Bernanos em nenhum momento pede a ruptura ou o cisma. Aquilo que ele exige, apaixonadamente, com fortes murros, é mais do que a liberdade de consciência, é algo como que além dela e melhor do que ela: a liberdade de comunhão com Cristo, aquela independência interior que não é uma reivindicação do indivíduo, mas uma identificação de amor com Aquele de onde todo amor procede e onde todo amor se consome.


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Por mais que a fidelidade de Bernanos à Igreja fosse áspera e até épica, ela permaneceu indefectível. Sua obediência era de fé, de ­criação, não de automatismo cego. Ele jamais pregou a dissidência, mas sim o discernimento. Sua livre docilidade não deixou de manter os olhos abertos, de ser lúcida, porque ele sabia de quem era vassalo: não de uma autoridade falível, mas de um rosto adorável que nada pode manchar, o “Jesus” que foi o último grito da mártir em Rouen, no meio das chamas. * * * A essa meditação sobre a Igreja acrescenta-se uma contemplação da figura de Joana, em que Bernanos reúne três características que lhe são caras: a infância, o heroísmo e a agonia. Poder-se-ia dizer, é verdade, que esses são objetivamente os três painéis do tríptico constituído pela breve existência da Donzela. Mas o escritor lança sobre eles seu próprio olhar, interpretando-os segundo sua própria vida interior.1 No momento em que enfrenta seus juízes em Rouen, Joana tem dezenove anos. Ela tinha dezessete quando libertou Orleans. A idade adulta começava mais cedo nos tempos antigos. A adolescência era reduzida, o que deixava a infância muito próxima. Bernanos gosta de ressaltar a jovialidade, a vivacidade, o frescor, a despreocupação da Donzela, alimentando uma altiva audácia e um sentido de desafio incomparável. Joana é destemida, mas sua ousadia é pura inocência. Ela vive num sonho infantil. Mas, como todos os sonhos das crianças sadias, transbordantes de energia, esse sonho é de ação, não de fuga. Nela fulgura maravilhosamente a centelha entre os dois polos da primeira idade: a visão interior (as Vozes que ordenam) e a Bernanos tem o privilégio de estar ligado indiretamente a Joana d’Arc, por ter se casado, em 1917, com Jeanne Talbert d’Arc, descendente de um irmão da moça. 1


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vontade de mudar o mundo (libertar o reino da França). Joana é um exemplo prodigioso daquilo que os sonhos pueris podem realizar quando encontram uma alma fiel e decidida a não se deixar abalar pelo derrotismo absoluto. É essa capacidade de realização que fascina Bernanos e que alimenta sua admiração pela guerreira apaixonada por cavalgadas e por auriflamas. Não se trata, no caso dela, de liberar uma violência juvenil e no fundo gratuita. A gratuidade é de outra ordem. É de uma honra que inspira a mostrar-se fiel a seu desígnio, mesmo que seja preciso chegar ao sacrifício supremo. A violência em questão aqui desabrocha na exuberância do dom. Ela é o preço que o sonho tem de pagar para encarnar-se. “O reino de Deus pertence aos violentos”, àqueles que, pela violência que exercem contra si antes de exercê-la contra os outros, abrem frestas para o céu. Em seu próprio sonho, com cujas roupagens ele veste o sonho da Donzela, Bernanos faz da moça uma “fina flor da cavalaria”. Escarnecendo dos devotos que gostariam de transformá-la numa “virgenzinha inofensiva, num mingau açucarado”, ele a relaciona ferozmente a um “daqueles gigantes de bigodes louros, perpetuamente de armadura, a maça de bronze na mão direita, e com a esquerda levando o broquel à sua boca de ferro”. Isso é levar a comparação um pouco longe, não tanto pela rudeza dos traços, mas pela legitimidade da identidade de “raça”. Péguy, por sua vez, não se enganou tanto em sua resposta a Fernand Laudet, que fazia exatamente de Joana uma figura “cavaleiresca”. A moça certamente é uma heroína, “santa entre todos os heróis, heroica entre todos os santos”. Mas, segundo Péguy, ela é demasiado santa e cristã para ser um cavaleiro. A isso se opõe não apenas sua origem popular, que a distancia de toda nobreza feudal, mas também, mais espiritual e centralmente, sua conformidade com os Evangelhos. Péguy observa que, na base do


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r­eino do feudalismo, “havia uma certa concorrência profunda entre a religião da honra e a religião de Deus. Aquilo que existe de honra humana e, poder-se-ia dizer, de estoico, na religião da honra, que era a cavalaria, nem sempre estava de acordo com uma religião que colocou o Orgulho encabeçando os Pecados Capitais, que fez da humildade, mais do que uma virtude, seu próprio modo e seu ritmo”. Bernanos ulteriormente sentirá essa oposição que atravessa o mais íntimo de sua alma, e fará dela o tema de sua última obra, o Diálogo das Carmelitas, em que a honra humana é crucificada e redimida pelo viés da comunhão dos santos. Observemos, de todo modo, que sua Joana nada tem de orgulhosa, nem de estoica, e que, portanto, ela escapa totalmente a esses aspectos da crítica de Péguy à cavalaria. “Ela amava”, diz Bernanos, “aquilo que amam os soldados, à maneira dos soldados, que não se apegam a nada, todo dia prontos para deixar tudo.” Disponibilidade perfeitamente evangélica, essa, segundo a qual os soldados “vivem e morrem como aquelas criancinhas que com eles se parecem”. Mas é preciso, sem dúvida, ir mais fundo no retrato de Joana traçado pelo escritor. Nos últimos dias do processo, aqueles dias que precederam e que acompanharam a abjuração, não se testemunham na heroína o colapso e a desintegração da honra, enfim chegada à sua negação? “Ó, doce rosto do meu país, olhar sem medo, te recusaste subitamente a olhar, deste tua palavra e teu juramento.” Em dezembro de 1940, em sua Carta aos Ingleses, Bernanos retomará literalmente esses termos para descrever a capitulação da França, comparando-a ao enfraquecimento de Joana. O grande crime dos juízes de Rouen teria sido assassinar a alma da Donzela junto com seu corpo, forçando sua vítima a ir contra a honra. Durante aqueles dias, seu interrogatório “tirou-a de si mesma, desenraizou-a”. Eles perturbaram sua resolução. Ela começou a duvidar de tudo: de seus antigos companheiros, de sua mãe, de seu rei. Mesmo


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que ela tivesse sido tirada das mãos de seus carrascos à força, acreditaríamos que ela é verdadeiramente inocente? A suspeita de bruxaria não continuaria a pesar sobre ela, porque foi esse o julgamento da Igreja? E se fosse verdade que ela foi enganada, que suas Vozes lhe mentiram? Atroz, a vertigem aniquila-a. Com seus juízes, que imploram para que ela ceda, ela troca “um olhar de desesperada impotência”. Após o fim da última admoestação, a “martirzinha” cai no chão e fica “estendida, com os dentes cerrados, os olhos fechados, já morta”. No dia seguinte, ela vai abjurar no cemitério de São Audoeno. Alguns dias depois, ela vai abjurar a abjuração e será condenada à morte como relapsa. Pouco importa! Tudo foi consumado no momento da rendição. “Quem souber o segredo desse estranho instante terá a chave de todo o resto, mas o segredo está bem guardado.” Tendo “sacudido em vão o cadáver, cansados daquela luta ridícula, os juízes lançarão ao fogo o brinquedo quebrado”. Misteriosa agonia de Joana, que se lança numa noite cuja saída não se enxerga. Essa noite, porém, não desperta em Bernanos dúvida nenhuma: a mártir é uma santa, mas uma santa da Sexta-Feira Santa, cujo Gólgota se situa antes de abjuração, quando a pressão intolerável dos juízes destruiu-a, tornando-a incapaz de dizer “uma palavra pura, intacta”. A sequência de rejeição da abjuração, processo de relapsia e condenação à fogueira é apenas uma série de peripécias que mantêm um ridículo suspense em torno de uma pessoa já morta. Por mais “sinótica” que seja, fundamentada numa rigorosa imitação da aniquilação do Cristo na cruz que tudo venceu, até a perda da esperança (“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”), essa interpretação ainda assim pode surpreender, na medida em que não dá a menor importância ao fato de Joana ter-se assenhoreado de si mesma novamente e ter retomado a fidelidade. Contudo, não se trata de um heroísmo humano que renasce, mas de uma emergência ressurrecional que o cineasta Robert Bresson exprimiu maravilhosamente em


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seu ­filme O Processo de Joana d’Arc, em que mostra em close os pés da Donzela correndo para a fogueira. O lugar místico da Joana de Bernanos é o mesmo do pároco de Ambricourt: o Jardim das Oliveiras. Esse é o lugar de todos os heróis cristãos de Bernanos, desde Donissan até Blanche de La Force, passando por Chantal de Clergerie. Evidentemente, não haveria surpresa se esse lugar traduzisse apenas uma disposição interior própria do escritor, o ângulo pessoal segundo o qual ele aborda da maneira mais intensa o mistério de Cristo. Mas como não sentir também nessa predileção pela agonia uma majoração imprudente da noite que não equilibra o suficiente, que não elucida o bastante (elucidar, lux, luz) o esplendor da Páscoa? Bernanos certamente não hesita em confessar a ressurreição de Cristo. Uma de suas últimas palavras, em Joana, Relapsa e Santa, saúda “a hora única em que Deus condescendentemente soprará sua criatura extenuada, ó, Morte, tão nova, ó, manhã solitária”. Mas ele se aferra com todas as forças a um catolicismo de angústia e de mortificação, em que se contempla na cruz mais o Homem experimentado nas dores do que o Senhor de glória. Catolicismo herdado do século XVII, berulliano e sobretudo jansenista. No fim de Porche du Mystère de la Deuxième Vertu [Pórtico do Mistério da Segunda Virtude], Péguy não menciona, nem no meio de uma frase, a hora pascal, e o longo monólogo que a senhora Gervaise dirige a Joana se encerra, como em Bernanos, na noite da Sexta-Feira Santa. Mas que noite pacífica, maternal, consoladora, prenhe da luz a chegar! Dois anos depois, o imenso poema teológico Ève [Eva] é concluído numa visão em que Péguy contempla Joana no paraíso, “com o olhar mais aberto do que o da alma de uma criança”. É bem essa a Joana de Bernanos. Mas a criança não está mais “extenuada”. Ela está ressuscitada... Jean Bastaire


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Pode-se ler a preciosa apresentação de Jacques Chabot a Joana, Relapsa e Santa, na edição dos Essais et Écrits de Combat [Ensaios e Escritos de Combate], reunidos no volume da Bibliothèque de la Pléiade (Gallimard, vol. 1, 1971). Permitam-me também chamar a atenção para meu próprio ensaio, Pour Jeanne d’Arc [Para Joana d’Arc] (Cerf, 1979). Por fim, os textos de Péguy em resposta a Le Gris e Laudet foram tirados de Un Nouveau Théologien M. Fernand Laudet [O Senhor Fernand Laudet, um Novo Teólogo], da edição das Oeuvres en Prose Complètes [Obras Completas em Prosa] da Bibliothèque de la Pléiade (Gallimard, vol. III, 1992).



JOANA, REL APSA E SANTA



Desde que o caro Péguy partiu ao encontro de seu fim – um, dois – batendo forte no caminho com seus imensos sapatos – um, dois –, o lenço xadrez na nuca – um, dois, um, dois –, na imensa poeira do verão... existia o desejo de que Joana d’Arc pertencesse exclusivamente às crianças. Aliás, se elas quiserem, tudo agora é delas: os velhos vão largar o mundo. Ai! Ninguém sabe de nada. A divina oportunidade se perderá como tantas outras, a garra aberta por um momento amanhã se fechará sobre nós. O velho de patas débeis, com sua mandíbula infatigável, recomeçará a moer entre as gengivas uma mentira tão insípida quanto seu hálito. Um dia, um único dia – um dia que já vimos –, o dia 11 de novembro de um outro ano, ele no entanto parou de mastigar e ergueu o ouvido. As campanas acabavam de lançar-se para fora dos campanários, atravessando o novembro horrendo, as campanas saltavam como carneiros, batendo um contra o outro sua testa colossal, e depois fugindo para os quatro cantos do céu, todos escoiceando ao mesmo tempo com seus cascos de bronze. O horrendo céu de novembro ressoava com seus movimentos terríveis. Os próprios canhões tinham-se calado. Acocorados aos milhares e milhares sobre seus enormes quadris, a alma ainda quente do último disparo, eles mantinham erguidas suas finas cabeças negras, fixando a imensa nuvem com seu único olho... Foi então que o Velhote se sentiu sozinho,



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