A Corporação que Mudou o Mundo - Introdução

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NICK R ­ OBINS

A Corporação que Mudou o Mundo Como a Companhia das Índias Orientais Moldou a Moderna Multinacional

Tradução Pedro Jorgensen

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Introdução

O ano de 2000 marcou o 400ọ ani­ver­sá­rio de fun­da­ção da Com­panhia Inglesa das Índias Orientais. Foi tam­bém aque­le em que pas­sei a tra­ba­lhar na City de Londres, onde a Companhia este­ve sedia­da duran­te seus 275 anos de exis­tên­cia. Desde então, a City é um cen­tro finan­cei­ro inter­na­cio­nal de pri­mei­ra ordem. No pri­mei­ro ano do milê­nio, ainda pai­ra­va no ar a eufo­ria do mer­ca­do, embo­ra hoje sai­ba­mos que a enlou­que­ci­da bolha pon­to­com alcan­çou seu ápice no últi­mo dia de 1999. Eu havia recém-ingres­sa­do no mundo do inves­ti­men­to social­men­te res­pon­sá­vel quan­do esse surto espe­cu­ la­ti­vo come­çou a implo­dir, reve­lan­do abu­sos em uma esca­la que não se via desde 1929. As ações caí­ram inin­ter­rup­ta­men­te duran­te três anos, che­gan­do à meta­de de seu valor ini­cial. Por ­alguns momen­tos, ouvi­ram-se nas bol­sas ­sinais de humil­da­de e em todo o mundo ­iniciaram-se inves­ti­ga­ções para des­co­brir se a culpa era de umas pou­cas maçãs ­podres na Enron, Worldcom e Tyco ou de todo o lote do capi­ta­lis­mo cor­po­ra­ti­vo.

Para tirar da cabe­ça as telas de cota­ção acu­san­do o con­tí­nuo

declí­nio do mer­ca­do, eu cami­nhava pelas ruas his­tó­ri­cas da Square Mile. Passava pelo Royal Exchange e pelo Banco da Inglaterra até che­gar a Exchange Alley, em cujas cafe­te­rias os anti­gos cor­re­to­res se reu­niam para tra­fi­car boa­tos e nego­ciar ações. Um dia, antes de vol­ tar para o tra­ba­lho, tomei o rumo leste até Leadenhall Street para

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conhe­cer o lugar em que era sediada a Companhia das Índias Orientais. Uma sur­pre­sa me aguar­da­va: ao che­gar à esqui­na de Leadenhall com Lime Street, onde por mais de duzentos anos exis­ ti­ra a Casa das Índias Orientais,* não havia nada — ­nenhum aviso, nenhu­ma placa, nada que indi­cas­se que ali fosse a sede da mais pode­ro­sa cor­po­ra­ção do mundo. Em um país tão cioso da pre­ser­va­ ção de seu patri­mô­nio his­tó­ri­co e cul­tu­ral, essa ausên­cia me dei­xou per­ple­xo: por que razão a pre­sen­ça da Companhia havia sido tão com­ple­ta­men­te apa­ga­da da face de Londres?

Este livro é uma ten­ta­ti­va de res­pon­der a essa per­gun­ta e, ainda

mais impor­tan­te, de rea­va­liar o sig­ni­fi­ca­do da heran­ça da Com­ panhia para a eco­no­mia glo­bal do sécu­lo XXI. À medi­da que eu, par­ tin­do do Iluminismo, me apro­fun­da­va na his­tó­ria da Companhia, fica­va claro que ela não era ape­nas “uma coisa do pas­sa­do”, mas uma ins­ti­tui­ção mar­ca­da por prá­ti­cas incri­vel­men­te fami­lia­res. Pioneira do mode­lo cor­po­ra­ti­vo de socie­da­de por ações, lan­ça­ra as bases da moder­na admi­nis­tra­ção de negó­cios. Em sua busca obs­ti­na­da por lucro pes­soal e cor­po­ra­ti­vo, a Companhia e seus exe­cu­ti­vos logra­ ram o domí­nio do mer­ca­do asiá­ti­co e o con­tro­le dire­to de vas­tos ter­ri­tó­rios na Índia. A instituição espan­tou sua época com a esca­la dos abu­sos de seus exe­cu­ti­vos, de seus exces­sos nos mer­ca­dos de ações e de sua opres­são. Não posso evi­tar ­compará-la com os levia­tãs cor­po­ra­ti­vos de hoje: supe­rou a Wal-Mart em poder de mer­ca­do, a Enron em cor­rup­ção e a Union Carbide em devas­ta­ção huma­na.

Entre as numerosas his­t ó­r ias da Companhia das Índias

Orientais, nenhu­ma fala de seu his­tó­ri­co ­social como cor­po­ra­ção, lacu­na que este livro bus­ca­rá preen­cher recu­pe­ran­do, na medi­da do pos­sí­vel, os áspe­ros con­fli­tos em torno da res­pon­sa­bi­li­da­de cor­po­ ra­ti­va gera­dos por ela no sécu­lo XVIII. Cabe regis­trar que não se trata, aqui, de um exer­cí­cio de apli­ca­ção dos valo­res do sécu­lo XXI a uma época pas­sa­da. Cabeças ilus­tres de seu pró­prio tempo exa­mi­na­ram

* No ori­gi­nal: East India House. (N. T.)

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suas prá­ti­cas e ­consideraram-nas impró­prias. Ainda que por mo­ ti­vos total­men­te diver­sos, Adam Smith, Edmund Burke, Karl Marx esti­ve­ram no coro das crí­ti­cas a essa cor­po­ra­ção domi­na­do­ra e des­ pó­ti­ca. Da direi­ta para a esquer­da do espec­tro polí­ti­co, aque­les que con­vi­ve­ram com a Companhia a con­si­de­ra­vam uma ins­ti­tui­ção fun­da­men­tal­men­te pro­ble­má­ti­ca. Se, para Smith, a corporação era um dos gran­des ini­mi­gos do livre mer­ca­do, para Burke cons­ti­tuía uma amea­ça revo­lu­cio­ná­ria à ordem esta­be­le­ci­da na Grã-Bretanha e na Índia. Isso para não falar de seus defei­tos éti­cos de natu­re­za estru­tu­ral. “Cada rúpia lucra­da por um ­inglês”, disse Burke ao Parlamento, “para a Índia está per­di­da para sem­pre.”1 Marx, que escre­veu setenta anos ­depois, já no ocaso da Companhia, cha­mou-a de ­porta-estandarte da “dinhei­ro­cra­cia” bri­tâ­ni­ca, uma cria­tu­ra mais ter­rí­vel que “qual­quer um dos mons­tros divi­nos do Templo de Salsette”, perto de Mumbai.2 Contudo, o que torna tão fas­ci­nan­te a his­tó­ria da Companhia é o fato de sua busca por poder eco­nô­mi­co sem limi­tes ter sido rei­te­ra­da­men­te con­tes­ta­da por indi­ví­duos que luta­vam para ­obrigá-la a pres­tar con­tas de suas ati­vi­da­des. Dessa forma, a his­tó­ria da instituição con­tém ­lições atem­po­rais sobre como enfren­tar (e como não enfren­tar) os exces­sos cor­po­ra­ti­vos por meio de refor­mas, pro­tes­tos, ações judi­ciais, regu­la­ções e, em último caso, da pró­pria rees­tru­tu­ra­ção cor­po­ra­ti­va.

Para recu­pe­rar de algu­ma forma a pre­sen­ça físi­ca da Com­

panhia, deci­di levar a pes­qui­sa para fora da aca­de­mia e enfren­tar seu ter­ri­tó­rio na Grã-Bretanha e na Índia. Revisitando suas sedes e arma­zéns, suas mansões e docas, espe­ra­va obter um enten­di­men­to muito mais com­ple­to de sua natu­re­za. Este livro tem uma estru­tu­ra nar­ra­ti­va que se move entre o pas­sa­do e o pre­sen­te. Para aju­dar o lei­tor, eu apre­sen­to uma cro­no­lo­gia dos prin­ci­pais mar­cos da his­ tó­ria da Com­pa­nhia. O Capí­tu­lo 1 se apro­fun­da em seu polê­mi­co lega­do e ana­li­sa as dife­ren­tes con­fi­gu­ra­ções de sua memó­ria na Europa e na Ásia. Segue-se o Capí­tu­lo 2 com uma aná­li­se do meta­ bo­lis­mo da Companhia e um exame de seus meca­nis­mos finan­cei­ros e de gover­nan­ça, bem como das ten­sões intrín­se­cas que leva­ram à

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sua ruína. O Capí­tu­lo 3 trata dos pri­mei­ros tem­pos da Companhia como “comer­cian­te de espe­cia­rias” no sécu­lo XVII e das catas­tró­fi­cas con­se­quên­cias de sua pri­mei­ra ten­ta­ti­va de obter a supre­ma­cia do mer­ca­do na déca­da de 1690. O epi­só­dio crí­ti­co da toma­da de Bengala em mea­dos do sécu­lo XVIII, suas cau­sas e con­se­quên­cias são assunto do Capí­tu­lo 4.

Como tan­tas cor­po­ra­ções da déca­da de 1990, a Com­pa­nhia das

Índias Orientais quis abra­çar o mundo com as per­nas. O Capí­tu­lo 5 trata de como a com­bi­na­ção de incom­pe­tên­cia com negli­gên­cia levou à que­bra do mer­ca­do de ações e a uma das pio­res fomes da his­ tó­ria da Índia. Na Grã-Bretanha, mui­tos teme­ram que a Companhia usas­se sua nova rique­za para aca­bar com as liber­da­des no país, dura­men­te con­quis­ta­das. O Capí­tu­lo 6 ana­li­sa a seve­ra crí­ti­ca à cor­ po­ra­ção por Adam Smith, ­situando-a no con­tex­to de um amplo movi­men­to de pro­tes­tos públi­cos, ati­vis­mo par­la­men­tar e rebe­lião dire­ta que ten­tou dar um fim aos abu­sos da Companhia na déca­da de 1770. Mas nem assim se fez jus­ti­ça: o Capí­tu­lo 7 trata do esfor­ço de Edmund Burke para colo­car a noção de res­pon­sa­bi­li­da­de no cerne da Carta da Companhia. Contudo, foram os mandamentos do impé­rio, e não a ética, que pre­va­le­ce­ram. O Capí­tu­lo 8 exa­mi­na como o Estado bri­tâ­ni­co ­logrou o pro­gres­si­vo aban­do­no das fun­ ções comer­ciais da Companhia e sua trans­for­ma­ção em agen­te dos ­lucros da Coroa bri­tâ­ni­ca na Índia. A rebe­lião de 1857 assi­na­lou o fim de sua ana­crô­ni­ca situa­ção, colocando-a em uma zona cre­pus­ cu­lar até sua liqui­da­ção em junho de 1874. Finalmente, o Capí­tu­lo 9 versa sobre como se pode ter uma rela­ção mais fran­ca com o lega­do da Companhia e que ­lições se podem ­extrair daí para os emba­tes ­atuais com as cor­po­ra­ções glo­bais.

Uma amné­sia pecu­liar con­ti­nua a pai­rar sobre o papel de insti-

tuições como a Companhia das Índias Orientais na cria­ção do mundo moder­no. Minha espe­ran­ça é que este livro possa aju­dar a escla­re­cer até que ponto o pas­sa­do glo­bal foi plas­ma­do por uma única com­pa­nhia e como pode­mos usar esse conhe­ci­men­to para tor­ nar o setor cor­po­ra­ti­vo mais ple­na­men­te res­pon­sá­vel no pre­sen­te.

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