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N o r a R o b e r t s

PECADOS SAGRADOS Tradução Alda Porto

A. B. Pinheiro de Lemos


Para minha m茫e, com agradecimentos pelo incentivo a contar esta hist贸ria.


Capítulo Um

uinze de agosto. Um dia após outro de suor e céus nebulosos. Sem nuvens brancas fofas nem brisas aprazíveis, apenas uma parede de umidade quase espessa o suficiente para alguém nadar. Reportagens dos noticiários das seis e das onze prometiam melancolicamente mais. Nos últimos dias longos, morosos, de verão, a onda de calor avançando pela segunda e impiedosa semana foi a maior matéria publicada em Washington, capital. O Senado entrara em recesso até setembro, por isso a colina do Capitólio movia-se indolente. Relaxando antes de uma viagem à Europa havia muito acalentada, o presidente refrescava-se em Camp David. Sem o vaivém diário de políticos, Washington era uma cidade de turistas e vendedores ambulantes. Do outro lado do Smithsonian, um mímico apresentava-se a um público que parara mais para recuperar o fôlego coletivo do que em apreciação da arte. Bonitos vestidos de verão murchavam, e crianças choramingavam por sorvete. Os jovens e os velhos afluíam ao parque público de Rock Creek, usando a sombra e a água como uma defesa contra o calor. Con-

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sumiam-se refrigerantes e limonada aos litros, emborcavam-se cerveja e vinho na mesma quantidade, mas de forma menos conspícua. As garrafas tinham um jeito de desaparecer quando a polícia do parque o percorria. Nos piqueniques e churrascos ao ar livre, as pessoas enxugavam o suor, preparavam cachorros-quentes e vigiavam os bebês que caminhavam com passinhos incertos no gramado. Mães gritavam aos filhos para que ficassem longe da água, não corressem perto da rua, largassem paus ou pedras. A música de rádios portáteis era, como sempre, alta e desafiante; trilhas quentes, como as chamavam os discotecários, que informavam temperaturas no alto dos trinta graus. Pequenos grupos de estudantes reuniam-se, alguns sentados nas pedras acima do riacho, para discutir o destino do mundo, outros se refestelavam no gramado, mais interessados no destino dos bronzeados. Os que tinham tempo e gasolina de sobra haviam fugido para a praia ou as montanhas. Alguns universitários encontravam energia para lançar discos de plástico, os homens ficavam só de calção para exibir o torso com um bronzeado uniforme. Uma jovem artista plástica estava sentada sob uma árvore e fazia esboços na maior indolência. Após várias tentativas de atrair a atenção dela para os seus bíceps, que vinha trabalhando durante seis meses, um dos jogadores tomou um caminho mais óbvio. O disco pousou no bloco da moça com um estalo. Quando ela ergueu os olhos aborrecida, ele aproximou-se correndo. Exibia um sorriso de desculpas, e calculado, pois esperara fasciná-la. — Desculpe. Escapuliu. Após empurrar uma cascata de cabelos escuros sobre o ombro, a pintora devolveu-lhe o disco. — Não foi nada. Retornou ao esboço sem sequer dar-lhe uma olhada. Juventude é sinônimo de tenacidade. Agachando-se ao lado dela, ele examinou o desenho. O que sabia sobre arte não enchia uma xicrinha, mas não custava nada dar uma inocente opinião.


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— Escute, isso é bom mesmo. Onde você estuda? Reconhecendo o estratagema, ela ia ignorá-lo, mas ergueu o rosto apenas para retribuir o sorriso. Talvez ele fosse óbvio, mas era bonitinho. — Georgetown. — Está brincando? Eu também. Bacharelado de direito. Impaciente, o companheiro do rapaz gritou do outro lado do gramado: — Rod! Vamos tomar uma loura ou não? — Você vem com freqüência aqui? — perguntou Rod, ignorando o amigo. A pintora tinha os maiores olhos castanhos que ele já vira. — De vez em quando. — Como a gente... — Rod, anda. Vamos tomar aquela cerveja. Ele olhou para o amigo suado, meio acima do peso, e depois de volta aos frios olhos castanhos da artista. Não havia comparação. — Eu alcanço você depois, Pete — gritou, e lançou o disco num arco alto e negligente. — Terminou de jogar? — perguntou a jovem, vendo o vôo do disco. Rod riu e tocou as pontas dos cabelos dela. — Depende. Praguejando, Pete partiu em perseguição ao disco. Acabara de pagar seis dólares por ele. Após quase tropeçar num cachorro, deslizou por um barranco abaixo, torcendo para que o disco não caísse no riacho. Sentiu o coração parar, e depois o sangue disparar e martelar na cabeça. Antes que pudesse inspirar para gritar, vomitou com violência o lanche de batata frita e dois cachorros-quentes. O disco pousara a cinqüenta centímetros da margem da enseada. Novo, vermelho e alegre numa mão branca que parecia atirá-lo de volta.


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Era Carla Johnson, aluna de teatro de vinte e três anos e garçonete em meio período. De doze a quinze horas antes, fora estrangulada com um amicto de padre. Branco, debruado com fio de ouro.

O DETETIVE BEN PARIS DESABOU DIANTE DA MESA DE TRAbalho após terminar o relatório escrito sobre o homicídio Johnson. Datilografara os fatos, usando dois dedos no estilo metralhadora. Mas agora eles retaliavam. Nenhum ataque sexual, nenhum roubo visível. A bolsa continuava embaixo do corpo, com vinte e três dólares e setenta e cinco centavos e um MasterCard. Um anel de opala que teria sido empenhado por cerca de cinqüenta ainda se encontrava no dedo da morta. Sem motivo, nem suspeitos. Nada. Ben e o parceiro haviam passado a tarde entrevistando a família da vítima. Uma coisa terrível, pensou. Necessária, mas terrível. Haviam desencavado as mesmas respostas a cada vez. Carla queria ser atriz. A vida dela eram os estudos. Namorava, mas não a sério — dedicava-se demais à ambição que jamais viria a realizar. Ben passou mais uma vez os olhos pelo relatório e demorou-se sobre a arma do crime: o pano branco que cobre o pescoço e os ombros do padre sob a batina. Havia um bilhete alfinetado ao lado. Ele próprio se ajoelhara ao lado da morta antes de lê-lo: Seus pecados lhe são perdoados. — Amém — murmurou Ben, e soltou um longo suspiro.

PASSAVA DA UMA DA MANHÃ DA SEGUNDA SEMANA DE SETEMbro quando Barbara Clayton cortou caminho pelo gramado da Catedral de Washington. Embora o ar fosse quente e as estrelas brilhassem, ela não tinha ânimo para apreciá-los. Enquanto caminhava resmungava mal-humorada. Dera uma bronca no mecânico com


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cara de furão pela manhã. Ele disse que fixou a transmissão de forma tão boa quanto nova. Que traste! O bom era que só faltavam mais duas quadras para percorrer. Agora teria de tomar o ônibus para o trabalho. O filho-da-mãe abominável e sujo de graxa ia pagar. Uma estrela cadente explodiu e deslizou pelo céu num arco brilhante. Barbara sequer notou. Nem o homem que a espreitava. Sabia que ela viria. Não o haviam mandado vigiá-la? Não sentia a cabeça, mesmo agora, quase explodindo da pressão da Voz? Fora escolhido, recebera o fardo e a glória. — Dominus vobiscum — murmurou e segurou com força nas mãos o macio amicto branco do padre. Quando concluiu sua missão, sentiu a intensa euforia do poder. Os hormônios ferviam. O sangue uivava. Ele estava limpo. E assim, agora, ela. Lenta, delicadamente, levou o polegar à testa, aos lábios e ao coração da morta, no sinal-da-cruz. Deu-lhe a absolvição, mas rápido. A Voz advertira-o de que muitos não entenderiam a pureza do trabalho que ele fazia. Deixando o cadáver nas sombras, saiu andando, olhos brilhantes de lágrimas de alegria e loucura. —

A MÍDIA NÃO LARGA NOSSO PÉ COM ISSO. — O CAPITÃO

Harris bateu com força o punho no jornal aberto sobre a mesa. — Toda a maldita cidade está em pânico. Quando eu descobrir quem vazou esse negócio de padre para a imprensa... Interrompeu-se, recompondo-se. Não era com freqüência que chegava tão próximo de perder o controle. Podia sentar-se atrás de uma mesa, mas era um policial, um policial danado de bom. Um bom tira não perde o controle. Para dar tempo a si mesmo, dobrou o jornal e deixou o olhar deslizar pelos outros policiais na sala. Excelentes, admitiu Harris. Não toleraria menos. Ben Paris, sentado a um canto da mesa, brincava com um peso de papel de acrílico. Harris conhecia-o bem demais para entender que ele gostava de ter uma coisa nas mãos quando pensava. Jovem,


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refletiu, mas tarimbado com dez anos na tropa. Policial incorruptível, embora meio informal no procedimento. Quando as coisas estavam menos tensas, até divertia o capitão o fato de Ben parecer a versão adaptada por um roteirista de Hollywood de um agente secreto — rosto fino, ossos fortes, moreno, magro e musculoso. Cabelos cheios e compridos demais para serem convencionais, porém cortados num daqueles elegantes salões pequenos de Georgetown. Tinha olhos verde-claros aos quais não escapava o que era importante. Numa cadeira, a um metro de pernas estendidas diante dele, sentava-se Ed Jackson, seu parceiro. Com um metro e noventa e cinco de altura e pouco menos de cento e quinze quilos, podia em geral intimidar de imediato um suspeito. Por capricho ou intenção, usava uma barba cheia tão ruiva quanto a juba encaracolada na cabeça. Tinha olhos azuis e afetuosos. A cinqüenta metros, conseguia abrir um buraco na águia de uma moeda americana de vinte e cinco centavos com a arma especial da polícia. Harris largou o jornal, mas não se sentou. — Que você conseguiu? Ben jogou o peso de papel de uma mão para outra e largou-o. — Além da constituição física e da cor, não há ligação alguma entre as vítimas, nada de amigos comuns, nem saídas mútuas. Você recebeu o resumo sobre Carla Johnson. Barbara Clayton trabalhava numa loja de roupas em Maryland, divorciada, sem filhos. Vinha saindo com alguém com muita assiduidade até três meses atrás. As coisas malograram, ele se mudou para Los Angeles. Estamos investigando o cara, mas parece limpo. Enfiou a mão no bolso para pegar um cigarro e percebeu o olhar do parceiro. — É o sexto — disse Ed, como quem não quer nada. — Ben está tentando limitar a menos de um maço por dia — explicou, e continuou ele próprio o relatório: — Barbara passou a noite num bar em Wisconsin. Tipo saída noturna só de meninas, com uma amiga que trabalha com ela.


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A amiga disse que Barbara foi embora por volta de uma da manhã. Seu carro foi encontrado enguiçado a duas quadras do ataque. Parece que teve problemas na transmissão e decidiu ir a pé. O apartamento dela fica a menos de um quilômetro dali. — As únicas coisas que as vítimas tinham em comum eram ser louras, brancas e mulheres. — Ben tragou fundo a fumaça, deixou-a encher os pulmões e soltou-a. — Agora estão mortas. Em sua jurisdição, pensou Harris, e tomou a coisa pessoalmente. — A arma do crime, a estola do padre. — Amicto — informou Ben. — Não pareceu difícil demais investigar. Nosso cara usa o melhor... seda. — Não comprou na cidade — continuou Ed. — Não no ano passado, pelo menos. Checamos cada loja de artigos religiosos, cada igreja. Liguei para três revendedores em New England que têm esse tipo. — As notas eram escritas em papel existente em qualquer loja comum — acrescentou Ben. — Não temos como reconstituir a origem delas ao dono. — Em outras palavras, vocês não conseguiram nada. — Em outras palavras — Ben sorveu outra tragada —, não temos nada. Harris examinou cada homem em silêncio. Talvez desejasse que Ben usasse uma gravata e Ed aparasse a barba, mas tratava-se de uma questão pessoal. Eram os melhores. Paris, com o encanto indolente e a despreocupação superficial, tinha o instinto de uma raposa e a mente afiada como um estilete. Jackson era meticuloso e eficiente como uma tia solteirona. Um caso para ele não passava de um quebracabeça, do qual nunca se cansava de mexer nas peças. Harris inalou a fumaça do cigarro de Ben, depois se lembrou que deixara de fumar para seu próprio bem. — Voltem e falem com todos de novo. Obtenham o relatório do ex-namorado de Barbara e as listas dos representantes de artigos religiosos. — Olhou mais uma vez o jornal. — Quero acabar com esse cara.


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— O Padre — murmurou Ben, passando os olhos pela manchete. — A imprensa sempre gosta de dar um título a esses psicóticos. — E grande cobertura — acrescentou Harris. — Vamos tirá-lo das manchetes e enfiá-lo atrás das grades.

CONFUSA APÓS UMA LONGA NOITE DE TRABALHO ADMINIStrativo, a Dra. Teresa Court tomava café e passava os olhos pelo Post. Uma semana inteira após o segundo assassinato e o Padre, como o batizara a imprensa, continuava foragido. Não considerava a leitura sobre ele a melhor maneira de começar o dia, mas profissionalmente o homem a interessava. Não era indiferente à morte de duas jovens, mas fora formada para examinar fatos e diagnosticar. Dedicara a vida a isso. Em termos profissionais, sua vida era atormentada por problemas, dor e frustrações. Para compensar, ela mantinha o mundo privado organizado e simples. Como crescera protegida pela riqueza e com boa educação, considerava a gravura de Matisse na parede e o cristal Baccarat na mesa algo natural. Preferia linhas simples e tons pastéis, mas, de vez em quando, se via atraída por alguma coisa gritante, como o óleo abstrato em vívidas pinceladas e cores arrogantes acima da mesa. Entendia a necessidade do berrante além do suave e sentia-se contente. Tinha como uma de suas principais prioridades permanecer alegre. Como o café já esfriara, ela afastou-o. Após um instante, afastou também o jornal. Gostaria de saber mais sobre o assassino e as vítimas, conhecer todos os detalhes. Então se lembrou do velho ditado sobre tomar cuidado com o que se desejava porque se poderia obter. Com uma rápida conferida no relógio, levantou-se da mesa. Não tinha tempo para remoer uma matéria de jornal. Precisava ver os seus pacientes.


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AS CIDADES ADQUIREM O MÁXIMO DE ESPLENDOR NO OUTOno. O verão as assa, o inverno deixa-as paralisadas e sombrias, mas o outono dá-lhes uma explosão de cor e dignidade. Às duas da manhã, numa fria madrugada de outubro, Ben Paris viu-se de repente bem acordado. De nada adiantava perguntar-se o que lhe perturbara o sono e o interessante sonho com três louras. Levantando-se nu, dirigiu-se à cômoda e tateou à procura dos cigarros. Vinte e dois, contou em silêncio. Acendeu um e deixou o conhecido gosto amargo encher-lhe a boca antes de ir à cozinha fazer café. Ligou a luz fluorescente no fogão e manteve o olhar atento ao surgimento de baratas. Nada escorregou nas fendas. Ben acendeu a chama sob a chaleira e achou que a última dedetização continuava eficaz. Ao estender a mão para uma xícara, afastou o volume de dois dias de correspondência que ainda tinha de abrir. Na intensa luz da cozinha, seu rosto parecia duro, até perigoso. Mas também… pensava em assassinato. O corpo nu era flexível, alto, magro e de pernas longas, com uma estreiteza que seria esquelética sem as sutis saliências dos músculos. O café não o manteria acordado. Quando tivesse a mente lúcida, o corpo logo faria o mesmo. Treinara-se por meio de infindáveis vigilâncias policiais. Uma gata mirrada cor-de-pó saltou na mesa e encarou-o, enquanto ele tomava o café e fumava. Notando-o distraído, a gata preparou-se mais uma vez para a idéia do pires de leite tarde da noite e sentou-se para observar. Não se achavam mais próximos de encontrar o assassino do que na tarde em que se descobrira o primeiro cadáver. Se houvessem encontrado algo mesmo de longe semelhante a uma pista, havia desaparecido após os primeiros quilômetros de trabalho de campo. Beco sem saída, refletiu Ben. Zero. Nada. Claro, houve cinco confissões em apenas um mês. Todas de mentes perturbadas que ansiavam por atenção. Vinte e seis dias após


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o segundo assassinato e não haviam chegado a conclusão alguma. E, a cada dia que passava, ele sabia, a pista se tornava mais fria. Com a diminuição gradual da pressão da imprensa, as pessoas começavam a relaxar. Ele não gostava disso. Acendendo um cigarro na guimba de outro, Ben pensava na calmaria após as tempestades. Olhou a fria noite iluminada por uma meia-lua e ficou pensando.

O DOUG’S FICAVA A CERCA DE OITO QUILÔMETROS DO APARtamento de Ben. A pequena boate estava às escuras agora. Os músicos tinham ido embora e a bebida fora derramada, esfregada e lavada. Francie Bowers saiu pela entrada dos fundos e vestiu o suéter. Doíam-lhe os pés. Após seis horas em saltos de dez centímetros, os dedos dos pés latejavam dentro dos tênis. Mesmo assim, as gorjetas haviam valido a pena. O trabalho como garçonete que servia coquetéis talvez a mantivesse em pé, mas, quando se tinha boas pernas — como ela —, as gorjetas entravam aos borbotões. Mais algumas noites como aquela, pensou, e teria condições de dar a entrada naquele pequeno fusca. Não mais a luta incômoda com ônibus. Essa era a sua idéia de paraíso. O arco do seu pé emitiu uma cortante pontada de dor. Estremecendo, Francie olhou o beco, que lhe pouparia quase quinhentos metros. Mas estava escuro. Ela avançou mais dois passos em direção ao poste de luz e desistiu. Escuro ou não, não iria andar um passo a mais do que precisava. Ele a vinha esperando fazia longo tempo. Mas soubera. A Voz dissera que uma das perdidas estava sendo enviada. Ela se aproximava rápido, como se estivesse ansiosa por alcançar a salvação. Durante dias, ele rezara por ela, pela purificação de sua alma. Agora a hora do perdão achava-se bem perto. Ele era apenas um instrumento. O tumulto, iniciado na sua cabeça, desceu em espiral. O poder inundou-o. Nas sombras, ele orou até ela falecer. Agia rápido, pois era misericordioso. Assim que passou o amicto no pescoço, ela teve apenas um instante para arquejar antes de ele


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apertá-lo. Emitiu um leve som líquido tão logo o ar foi cortado. Quando o terror a tomou, ela deixou a bolsa de lona cair e agarrou o laço com as mãos. Às vezes, quando sentia grande poder, ele as libertava rápido. Mas o mal naquela era forte e desafiava-o. Puxou a seda com os dedos e depois os enterrou com força nas luvas que usava. Assim que o corpo cedeu, ele levantou-a, mas ela continuava a espernear. Um dos pés bateu numa lata e derrubou-a. O barulho ecoou na cabeça dele até quase fazê-lo gritar junto. Então ela ficou mole, e as lágrimas no rosto dele secaram-se no ar outonal. Deitou-a com delicadeza no concreto e absolveu-a na língua antiga. Após prender o bilhete no suéter, abençoou-a. Ela descansava em paz. E, por enquanto, ele também.

NÃO HÁ MOTIVO ALGUM PRA VOCÊ NOS MATAR DESSE JEITO,

correndo pra lá. — O tom da voz de Ed era sereno quando Ben contornou uma curva com o Mustang a cem quilômetros. — Ela já está morta. Ben reduziu a marcha e tomou a direita seguinte. — Foi você quem fez o último carro sofrer perda total. Meu último carro — acrescentou sem muita maldade. — Só tinha cento e cinqüenta quilômetros rodados. — Perseguição em alta velocidade — resmungou Ed. O Mustang trepidou sobre um calombo e lembrou a Ben que ele pretendia verificar os pára-choques. — E eu não o matei. — Contusões e fissuras. — Ben engrenou a terceira e atravessou uma luz amarela. — Contusões e fissuras múltiplas. Com uma expressão de quem se lembrava, Ed sorriu. — Nós os pegamos, não foi? — Estavam inconscientes. — Ben parou cantando os pneus junto ao meio-fio e enfiou as chaves no bolso. — E eu precisei de cinco pontos no braço.


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— Ranzinza, ranzinza, ranzinza. Com um bocejo, Ed dobrou-se para sair do carro e endireitouse na calçada. Embora mal amanhecesse, e fizesse frio o bastante para se ver a respiração no ar, uma multidão já se formava. Curvado dentro da jaqueta e desejando um café, Ben abriu caminho por entre os espectadores curiosos até o beco isolado por corda. — Astucioso. Com um aceno da cabeça ao fotógrafo da polícia, baixou os olhos para a vítima número três. Calculou-lhe a idade entre vinte e seis e vinte e oito anos. Suéter de poliéster barato, as solas dos tênis quase lisas de gastas. Ela usava brincos pendentes folheados a ouro. O rosto, uma máscara de pesada maquiagem que não caía bem com o suéter e a calça de veludo cotelê de lojas de departamentos. Protegendo com as mãos em concha o segundo cigarro do dia, ele ouviu o relatório do policial uniformizado ao lado. — Um vagabundo a encontrou. Nós o pegamos num carro do esquadrão curando a bebedeira. Parece que remexia no lixo quando topou com ela, o que desencadeou o medo enorme no cara, e por isso ele saiu correndo do beco e quase bateu na minha radiopatrulha. Ben assentiu com a cabeça e baixou os olhos para o bilhete preso no suéter da vítima. Frustração e fúria despertaram tão rápido dentro dele que, quando se instalou a aceitação, mal foram notadas. Curvando-se, Ed pegou a enorme bolsa de lona que a vítima deixara cair. Um punhado de fichas de ônibus derramou-se. Seria um longo dia.

S EIS HORAS DEPOIS, ENTRARAM NO DISTRITO POLICIAL. A Divisão de Homicídios não tinha a agradável magia do seriado Miami Vice, mas era quase tão arrumada e limpa quanto as delegacias dos bairros residenciais afastados nos subúrbios da cidade. Dois anos


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antes, haviam-se pintado as paredes com o que Ben se referia como bege de prédio de apartamentos. A cerâmica do piso suava no verão e conservava o frio no inverno. Por mais ativo que fosse o serviço de manutenção com desinfetante de pinho e flanelas, as salas cheiravam o tempo todo a fumaça saturada, grãos de café úmido e suor fresco. Era verdade que haviam feito uma vaquinha na primavera e delegado a um dos detetives a compra de algumas plantas para o parapeito das janelas, que não estavam morrendo, mas também não floresciam. Ben passou por uma mesa e acenou para Lou Roderick, que datilografava um relatório. Era o policial da equipe que registrava constantemente a quantidade de casos tratados durante determinado período, como um contador registra as finanças da empresa. — Harris quer ver você — disse Lou e, sem erguer os olhos, conseguiu transmitir um toque de solidariedade. — Acabou de chegar de uma reunião com o prefeito. E acho que Maggie Lowenstein tem um recado pra você. — Obrigado. — Ben deu uma olhada comprida para a barra de chocolate na mesa de Roderick. — Escute, Lou... — Nem pensar. Roderick continuou a datilografar o relatório sem interromper o ritmo. — A fraternidade é isso aí — resmungou Ben, e encaminhou-se devagar para Maggie Lowenstein. Ela era um tipo inteiramente diferente de Roderick, pensou. Trabalhava em surtos, parava e retomava, e sentia-se mais à vontade na rua que diante de uma máquina de escrever. Ben respeitava a precisão de Lou, mas como apoio na retaguarda a escolheria, pois os adequados duas-peças e vestidos elegantes não escondiam o fato de que ela tinha as melhores pernas do departamento. Deu-lhes uma rápida olhada antes de sentar-se a um canto da mesa dela. Era uma pena que fosse casada, pensou. Remexendo como quem não quer nada em seus papéis, ele esperou-a terminar a ligação telefônica.


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— Como andam as coisas, Maggie? — Meu triturador de lixo na pia está expelindo tudo pra cima e o bombeiro quer trezentos paus, mas tudo bem, porque meu marido vai consertar. — Ela girou um formulário no rolo da máquina de escrever. — Só que nos custará duas vezes dessa forma. E você? — Deu-lhe um tapa na mão para afastá-la da Pepsi na mesa. — Tem alguma coisa nova sobre nosso padre? — Apenas um cadáver. — Se havia ressentimento na voz dele, era difícil detectar. — Já esteve no Doug’s, mais adiante do Canal? — Eu não tenho a sua vida social, Paris. Ele bufou rapidamente e pegou a caneca gorda onde ela guardava os lápis. — A moça era uma garçonete que servia coquetéis. Vinte e sete anos. — De nada adianta deixar isso nos abater — ela murmurou, e então, vendo a expressão dele, passou-lhe a Pepsi. — Mas sempre nos abate. Harris quer ver você e Ed. — É, eu sei. — Ele tomou um longo gole e deixou o açúcar e a cafeína se derramarem no organismo. — Você tem um recado pra mim? — Ah, sim. — Com um sorriso afetado, ela remexeu nos papéis até encontrá-lo. — Bunny ligou. — Como a voz alteada, estridente, não despertou ânimo algum nele, ela lançou-lhe um olhar brejeiro e entregou-lhe o papel. — Ela quer saber a que horas vai buscá-la. Parecia engraçadinha mesmo, Paris. Ele enfiou o papel no bolso e riu. — É engraçadinha mesmo, Maggie, mas eu a largaria num minuto se você quisesse trair seu marido. Quando ele saiu andando sem devolver-lhe o refrigerante, ela riu e retomou a datilografia do formulário. — Vão transformar meu apartamento em condomínio. — Ed desligou o telefone e foi com Ben ao escritório de Harris. — Cinqüenta mil. Deus do céu!


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— Tem encanamento ruim. Ben esvaziou o restante da Pepsi e jogou-a numa lata. — É. Tem alguma vaga no seu? — Ninguém sai de lá, a não ser morto. Através da larga vidraça do escritório de Harris, viram o capitão parado em pé junto à mesa, falando ao telefone. Mantinha-se em boa forma para um homem de cinqüenta e sete anos, que passara os últimos dez atrás de uma mesa. Tinha muita força de vontade para deixar-se engordar. O primeiro casamento fora por água abaixo por causa do trabalho, o segundo por causa da bebida. Abandonara a bebida e a esposa, e agora o trabalho ocupava o lugar de ambos. Os policiais do departamento não necessariamente gostavam dele, mas o respeitavam. Harris preferia as coisas assim. Erguendo os olhos, fez sinal para que os dois entrassem. — Quero os relatórios do laboratório antes das cinco. Se havia um pedaço de fio no suéter dela, quero saber de onde veio. Façam seu serviço. Dêem-me alguma coisa em que trabalhar pra eu poder fazer o meu. — Quando desligou, foi até a chapa de aquecimento elétrico e serviu café. Após cinco anos de abstinência, ainda desejava uísque, se fosse escocês. — Me falem de Francie Bowers. — Ela servia as mesas no Doug’s havia quase um ano. Mudouse de Virgínia para a capital no último novembro. Morava sozinha num apartamento em North West. — Ed deslocou o peso do corpo de um pé para outro e conferiu o caderno de anotações. — Casada duas vezes, nenhuma das duas durou mais de um ano. Estamos investigando os ex. Trabalhava às noites e dormia de dia, por isso os vizinhos não sabem muita coisa sobre ela. Saiu do trabalho à uma da manhã. Parece que cortou caminho pelo beco pra chegar ao ponto do ônibus. Não tinha carro. — Ninguém ouviu nada — acrescentou Ed. — Nem viu coisa alguma. — Perguntem de novo — disse Harris apenas. — E encontrem alguém que tenha ouvido ou visto algo. Mais alguma coisa sobre a número um?


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Ben não gostava de citar as vítimas por números e enfiou as mãos nos bolsos. — O namorado de Carla Johnson em L.A. conseguiu um pequeno papel numa novela. Está limpo. Parece que ela teve uma briga com outro estudante na véspera do assassinato. Testemunhas disseram que foi muito acalorada. — O rapaz admitiu — continuou Ed. — Pelo que consta, saíram duas vezes e ela não estava mais interessada. — Álibi? — Ele afirma que se embriagou e pegou uma caloura. — Com uma encolhida de ombros, Ben sentou-se no braço de uma cadeira. — Estão noivos. Podemos investigá-lo de novo, mas nenhum de nós acredita que ele tenha qualquer coisa a ver com isso. Não tem ligação alguma com Barbara Clayton nem com Francie Bowers. Quando investigamos, descobrimos que o rapaz é um típico estudante americano de família de classe média-alta, com um bom currículo. Tem mais chance de Ed ser um psicótico do que o universitário. — Obrigado, parceiro. — Bem, investigue-o de novo, mesmo assim. Qual o nome dele? — Robert Lawrence Dors. Dirige um Honda Civic e usa camisas pólo. — Ben pegou um cigarro. — Mocassins brancos sem meias. — Roderick vai interrogá-lo. — Espere um minuto... — Estou designando uma força-tarefa pra esse negócio — disse Harris, interrompendo Ben. Serviu-se uma segunda xícara de café. — Roderick, Lowenstein e Bigsby vão trabalhar com vocês. Quero esse cara antes que ele mate a próxima mulher que por acaso esteja caminhando sozinha. — Manteve a voz branda, moderada e definitiva. — Vocês têm algum problema com isso? Ben encaminhou-se até a janela e olhou para fora. Era pessoal e ele sabia bem das coisas.


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— Não, todos queremos o cara. — Inclusive o prefeito — acrescentou Harris, com apenas um levíssimo traço de ressentimento. — Quer ter condições de dar à imprensa alguma coisa positiva até o final da semana. Chamamos um psiquiatra pra nos dar um perfil. — Psiquiatra? — Com um arremedo de risada, Ben deu meiavolta. — Por favor, capitão. Como ele também não gostava da idéia, a voz de Harris gelou: — O Dr. Court concordou em cooperar conosco, a pedido do prefeito. Não sabemos como ele é, talvez seja hora de descobrirmos o que pensa. A essa altura — acrescentou com um olhar nivelado aos dois policiais —, estou disposto a consultar até uma bola de cristal se pudermos conseguir uma pista. Estejam aqui às quatro. Ben ia abrir a boca, mas captou o olhar de advertência de Ed. Sem uma palavra sequer, os dois saíram. — Talvez a gente devesse chamar um paranormal. — Mente tacanha. — Realista. — A psique humana é um mistério fascinante. — Você anda lendo de novo. — E os que têm formação para entendê-la podem abrir portas às quais os leigos apenas batem. Ben suspirou e acendeu o cigarro quando saíram no estacionamento. — Merda!

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ERDA — RESMUNGOU TESS, QUANDO OLHOU PELA JA— nela do consultório. Não tinha o menor desejo de fazer duas coisas nesse momento. A primeira era batalhar com o tráfego na chuva fria e detestável que começara a cair. A segunda, envolver-se com os homicídios que assolavam a cidade. Teria de fazer a primeira, porque o prefeito pedira, e seu avô a pressionara a fazer a segunda.


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Já tratava de um número de casos pesado demais. Poderia ter recusado o pedido do prefeito com educação, e até justificativa. O avô era outra história. Nunca se sentia Dra. Teresa Court quando lidava com ele. Após cinco minutos, não tinha mais um metro e sessenta e cinco de altura, com corpo de mulher e diploma emoldurado em preto atrás. Tornava a ser uma menina magricela de doze anos, dominada pela personalidade do homem a quem mais amava no mundo. Ele garantira a obtenção daquele diploma emoldurado em preto, não garantira? Com sua confiança, pensou, e fé irrestrita nela. Como podia dizer não quando ele lhe pedia para usar seu talento? Porque tratar do número de casos atuais exigia-lhe dez horas diárias. Talvez fosse o momento de mostrar-se obstinada e contratar uma auxiliar. Tess olhou o consultório em tons pastéis ao redor, com as seletas antiguidades e aquarelas. Seu, pensou. Cada pedacinho. E o arquivo de carvalho alto, de cerca de 1920, cheio de pastas dos pacientes. Também seus. Não, não iria contratar uma auxiliar. Dentro de um ano, faria trinta. Tinha sua clientela, o consultório e os próprios problemas. Era assim mesmo que desejava manter tudo. Tirando a capa de chuva forrada de vison do armário, enfiou-se nela. E talvez, apenas talvez, pudesse ajudar a polícia a encontrar o homem alardeado nas manchetes dia após dia. Poderia ajudá-los a encontrá-lo e detê-lo, para ele, por sua vez, obter a ajuda de que precisava. Pegou a bolsa e a pasta, gorda de arquivos a serem selecionados e analisados naquela noite. — Kate. — Saindo na ante-sala do consultório, ela levantou a gola. — Vou ao escritório do capitão Harris. Não passe nenhuma ligação, a não ser que seja urgente. — Devia pôr um chapéu — respondeu a recepcionista. — Tenho um no carro. Até amanhã. — Dirija com cuidado. Já pensando adiante, ela cruzou a porta remexendo na bolsa à procura das chaves do carro. Talvez pudesse comprar comida


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chinesa para levar a caminho de casa e desfrutar de um jantar tranqüilo antes de... — Tess! Mais um passo e teria entrado no elevador. Praguejando baixinho, ela virou-se e conseguiu dar um sorriso. — Frank. Tivera tanto sucesso ao evitá-lo por quase dez dias. — Você é uma moça difícil de encontrar. Ele dirigiu-se a ela. Impecável. Era essa a palavra que sempre lhe escapava da mente quando via o Dr. F. R. Fuller. Antes de chato. O chato vestia um terno cinza-perolado da Brooks Brothers e a gravata listrada tinha o matiz e o rosa-bebê da camisa Arrow. Cabelos penteados à perfeição no estilo conservador. Ela tentou com esforço não deixar o sorriso desfazer-se. Não era culpa de Frank a perfeição dele não entusiasmá-la. — Tenho andado ocupada. — Você sabe o que dizem sobre só trabalho, Tess. Ela rangeu os dentes para impedir-se de responder não; o que era mesmo que diziam? Ele apenas riria e lhe daria o resto do clichê. — Terei simplesmente de correr o risco. Apertou o botão para descer e torceu para que o elevador chegasse logo. — Mas está saindo cedo hoje. — Trabalho externo. Ela olhou de propósito para o relógio de pulso. Tinha tempo de sobra. — E já um pouco atrasada — mentiu, sem escrúpulo. — Venho tentando entrar em contato com você. — Apertando a palma da mão na parede, Frank curvou-se sobre ela. Mais um dos hábitos dele que Tess se viu detestando. — Seria de imaginar que isso não fosse um problema, pois nossos consultórios ficam ao lado um do outro. Onde diabo estava um elevador quando se precisava?


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— Sabe como são os horários, Frank. — Na verdade, sei. — O colega vizinho disparou-lhe um sorriso de anúncio de pasta de dentes e ela se perguntou se ele achava que sua colônia a enlouquecia. — Mas todos precisamos relaxar de vez em quando, certo, doutora? — À nossa própria maneira. — Tenho ingressos para a peça de Noel Coward no Centro Kennedy amanhã à noite. Que tal relaxarmos juntos? Na última vez, a única, que ela concordara em relaxar com ele, mal escapara com as roupas no corpo. Pior, antes do cabo-de-guerra, quase morrera de tédio durante três horas. — É gentileza sua pensar em mim, Frank. — Mais uma vez, ela mentiu sem hesitação: — Lamento já ter compromisso amanhã. — Por que a gente não... As portas abriram-se. — Opa, estou atrasada. — Lançando-lhe um sorriso radiante, ela entrou. — Não trabalhe demais, Frank. Sabe o que dizem. Devido à chuva e ao tráfego intensos, ela consumiu quase todo o tempo de sobra dirigindo até o distrito policial. O estranho era que a batalha de meia hora a deixou animada. Talvez, pensou, por ter escapado tão primorosamente de Frank. Se tivesse coragem, e não tinha, teria apenas lhe dito que ele era um imbecil e seria o fim da história. Até ele encurralá-la além da conta, ela usaria tato e desculpas. Estendendo a mão ao lado, pegou um chapéu de feltro e amontoou os cabelos por baixo. Olhou no retrovisor e franziu o nariz. De nada adiantava fazer reparos agora. A chuva os tornaria perda de tempo. Mesmo assim, devia ter um banheiro feminino lá dentro, onde pudesse pegar a bolsa de truques mágicos e sair parecendo digna e profissional. Por enquanto, iria apenas parecer molhada. Com um empurrão, Tess abriu a porta do carro, segurou o chapéu com a mão e deu uma corrida até o prédio. — Veja só isso. Ben parou o parceiro nos degraus que levavam à matriz. Olharam, alheios à chuva, Tess a saltar sobre poças.


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— Belas pernas — comentou Ed. — Se são. Melhores que as de Maggie. — Talvez. — Ed pensou um instante. — Difícil dizer na chuva. Ainda correndo, cabisbaixa, Tess precipitou-se degraus acima e chocou-se com Ben. Ele ouviu-a praguejar antes de segurar-lhe os ombros e afastá-la apenas o suficiente para dar uma boa olhada no rosto. Valia a pena ficar molhado. Elegante. Mesmo com a chuva correndo sobre o rosto, Ben pensou em elegância. O recorte acentuado das maçãs do rosto era forte, alto o bastante para fazê-lo lembrar-se de donzelas viquingues. Boca suave e molhada, lembrando-lhe outras coisas. A pele clara tinha apenas um toque rosado. Mas foram os olhos que o fizeram esquecer a observação superficial que lhe ocorrera. Grandes, frios e apenas um pouco irritados. Violeta. Ele achava que a cor fora reservada a Elizabeth Taylor e flores silvestres. — Desculpe — conseguiu dizer Tess quando recuperou o fôlego. — Eu não vi você. — Não. — Ben queria continuar encarando-a, mas deu um jeito de afastar o olhar. Tinha uma reputação mítica com mulheres. Exagerada, mas baseada em fatos. — À velocidade que você corria, não me surpreende. — Era agradável segurá-la, ver a chuva grudarse nos cílios. — Eu podia detê-la por atacar um policial. — A senhora está ficando molhada — murmurou Ed. Até então, Tess tivera consciência apenas do homem que a segurava, encarando-a como se houvesse surgido numa baforada de fumaça. Agora se forçou a desviar o olhar e examinar e avaliar o outro homem de cima a baixo. Viu um gigante molhado, de olhos sorridentes e uma massa de cabelos ruivos gotejantes. Era uma delegacia de polícia, pensou, ou um conto de fadas? Ben manteve uma das mãos no braço dela ao abrir a porta. Deixou-a entrar, mas não iria deixá-la escapulir. Ainda não. Tão logo entrou, Tess lançou outro olhar a Ed, decidiu que era real e desviou-o para Ben. Também. E ele continuava segurando seu braço. Sorrindo, ela ergueu uma sobrancelha.


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— Policial, informo que, se me prender por ataque, eu vou dar queixa de brutalidade policial. — Quando ele sorriu, ela sentiu alguma coisa dar um clique. Então não era tão inofensivo quanto achara. — Agora, se me der licença... — Esqueça as acusações. Se precisar resolver uma multa por estacionamento... — Sargento... — Detetive — ele corrigiu. — Ben. — Detetive, talvez eu aceite sua oferta outra hora, mas no momento estou meio atrasada. Se quiser ser útil... — Sou um funcionário público. — Então pode soltar meu braço e me dizer onde encontro o capitão Harris? — Capitão Harris? Homicídios? Ela viu a surpresa, a desconfiança, e sentiu o braço livre. Intrigada, inclinou a cabeça e retirou o chapéu. Os cabelos louroclaros caíram-lhe sobre os ombros. — Isso mesmo. Ben deslizou o olhar pela queda dos cabelos e tornou a olhar o rosto dela. Não se encaixava, pensou. Ele desconfiava de coisas que não se encaixavam. — Dra. Court? Sempre era necessário um esforço para enfrentar descortesia e cinismo com graça. Tess não se incomodou em fazê-lo. — Isso mesmo mais uma vez... Detetive. — Você é psiquiatra? Ela devolveu-lhe um olhar idêntico. — Você é policial? Cada um poderia ter acrescentado uma coisa não muito lisonjeira se Ed não desatasse a rir. — Soou a campainha pro primeiro round — disse, apaziguando. — O escritório de Harris é uma área neutra. Tomou o braço de Tess e mostrou-lhe o caminho.


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