O amuleto

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N o r a R o b e r t s

O AMULETO Tradução Heitor Pitombo

A. B. Pinheiro de Lemos


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Passado

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PARTE UM

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O presente não contém nada a mais do que o passado, e o que é encontrado no efeito já está na causa. HENRI BERGSON


Prólogo

ames Lassiter tinha quarenta anos de idade, era um homem de boa estatura com uma beleza rude, estava na flor da idade e gozava da mais perfeita saúde. Em uma hora, estaria morto. Do convés do seu barco, ele não via nada, a não ser a agitação clara e sedosa do azul, os verdes luminosos e os marrons mais profundos do grande recife que cintilavam como ilhas sob a superfície do mar de Coral. Mais ao longe, para oeste, as ondas espumantes do mar se erguiam e batiam contra a falsa costa de corais. De onde estava, a bombordo, ele podia ver as formas e as sombras dos peixes se lançando como flechas vivas através do mundo no qual havia nascido para com eles partilhar. A costa da Austrália já havia se perdido a distância, e só havia a imensidão. O dia estava perfeito. O brilho da água, claro que nem o das jóias, irrompia em raios brancos de luz lançados pelo brilho dourado e repentino do sol. A sugestão provocante de uma brisa não carregava nenhum indício de chuva.

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Sob os seus pés, o convés balançava suavemente, como um berço no meio do mar calmo. Ondas pequenas marulhavam musicalmente contra o casco. Abaixo, bem mais abaixo, havia um tesouro esperando para ser descoberto. Eles estavam garimpando os destroços do Estrela do Mar, um navio mercante inglês que encontrara sua ruína na Grande Barreira de Recifes há dois séculos. Durante mais de um ano, enfrentando o mau tempo, danos no equipamento e outros inconvenientes, eles trabalharam quase sempre até a exaustão, para colher as riquezas que o Estrela havia deixado para trás. Ainda havia riquezas, e James sabia. Mas seus pensamentos viajavam para além do Estrela do Mar, rumo ao norte daquele recife espetacular e perigoso que dava nas águas cálidas das Índias Ocidentais. Para outro navio naufragado, para outro tesouro. Para a Maldição de Angelique. Ele se perguntava se era o amuleto ricamente incrustado de jóias que era amaldiçoado, ou a mulher, a bruxa Angelique, cujo poder — conforme se reputava — ainda era grande sobre os rubis, os diamantes e o ouro. A lenda conta que ela o usara, pois havia sido um presente do marido, o qual dizia-se que ela havia assassinado, no dia em que fora queimada na fogueira. A idéia o fascinava; a mulher, o colar, a lenda. A busca pelo amuleto, que em breve ele começaria, estava se tornando uma obsessão. James não queria simplesmente as riquezas, a glória. Queria a Maldição de Angelique e a lenda que ela carregava. Ele crescera ouvindo falar das buscas, das histórias de navios naufragados e das recompensas que o mar acumulou. Durante toda a sua vida, Lassiter mergulhara e sonhara. Tais sonhos lhe custaram uma esposa e lhe deram um filho. James deu as costas para a amurada a fim de pensar no garoto. Matthew estava agora com quase dezesseis anos. Havia crescido, mas ainda tinha que ganhar corpo. Havia um certo potencial ali, refletia James, pensando na compleição magra e nos músculos desenvolvidos. Os dois tinham o mesmo cabelo escuro e desgrenhado,

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d embora o garoto se recusasse a cortar o seu, de modo que, nesse instante, enquanto Matthew checava o equipamento de mergulho, ele caía sobre o seu rosto como se fosse uma cortina. Sua face era angulosa, pensou James. Ela havia se afinado nos dois últimos anos, e havia perdido o formato rechonchudo da infância. Era um rosto angelical, como havia dito certa vez uma garçonete, o que deixou o garoto desconcertado, com as bochechas coradas e fazendo caretas. Ele tinha um ar mais demoníaco agora, e aqueles olhos azuis que passara para Matthew eram, notadamente, mais quentes do que frios. Era o temperamento dos Lassiter, a sorte dos Lassiter, pensou James balançando a cabeça. Uma herança pesada para um garoto que ainda não havia acabado de crescer. Um dia, pensava ele, um dia que não tardaria a chegar, James teria como dar ao seu filho todas as coisas que um pai poderia esperar. A chave para tudo jazia calmamente nas águas tropicais das Índias Ocidentais. Um colar de rubis e diamantes sem preço, carregado de história, cuja lenda era misteriosa e manchada de sangue. A Maldição de Angelique. A boca de James se retorceu num leve sorriso. Quando ele o tivesse, a má sorte que perseguia os Lassiter iria mudar. Só precisava ser paciente. — Corra com essas garrafas, Matthew. O dia logo vai acabar. O rapaz olhou para cima, tirando o cabelo que caía sobre os olhos. O sol se erguia por trás das costas do pai, emitindo uma luz trêmula a sua volta. Para Matthew, ele parecia um rei se preparando para a batalha. Como sempre, amor e admiração brotavam e o surpreendiam com a sua intensidade. — Substituí o seu manômetro. Quero dar uma olhada no antigo. — Tenha cuidado com o seu pai. — James passou o braço em volta do pescoço de Matthew, fingindo que estava brigando. — Hoje vou lhe trazer uma fortuna lá de baixo.

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— Deixe-me descer com você. Deixe eu ficar no turno da manhã no lugar dele. James conteve um suspiro. Matthew ainda não havia desenvolvido a sabedoria para controlar as emoções. Especialmente em relação àquilo de que não gostava. — Você sabe como as equipes trabalham. Você e Buck irão mergulhar hoje à tarde. Eu e VanDyke faremos o mesmo trabalho agora de manhã. — Não quero que você mergulhe com ele. — Matthew sacudiu o braço afável do seu pai. — Ouvi vocês dois discutindo na noite passada. Ele o detesta. Dá para sentir isso em sua voz. Era um sentimento mútuo, pensou James, mas tolerado. — Parceiros normalmente discordam um do outro. No fim das contas, VanDyke está investindo a maior parte do dinheiro. Deixe o sujeito se divertir, Matthew. Para ele, esse negócio de caça ao tesouro é apenas um hobby para um homem de negócios rico e entediado. — Ele não sabe mergulhar direito. — Isso, na opinião de Matthew, dava a medida de quanto valia um homem. — Ele é bom o suficiente. Só não tem muito estilo a doze metros de profundidade. — Cansado da discussão, James começou a colocar seu traje de mergulho. — Buck deu uma olhada no compressor? — Sim, ele desfez os nós. Pai... — Desista, Matthew. — Só hoje — teimou o rapaz. — Não confio naquele filho-damãe afeminado. — Seu linguajar está cada vez pior. — Silas VanDyke, elegante e pálido apesar do sol forte, sorria enquanto saía da cabine atrás de Matthew. Ele se sentiu quase tão entretido quanto incomodado ao perceber o sorriso de desprezo do garoto. — Seu tio precisa da sua ajuda lá embaixo, jovem Matthew. — Quero mergulhar com o meu pai hoje.

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d — Creio que isso vai criar um inconveniente para mim. Como você pode ver, já estou vestindo o meu equipamento de mergulho. — Matthew. — Havia um tom impaciente e de comando na voz de James. — Vá ver do que Buck precisa. — Sim, senhor. — Com o olhar desafiador, ele desceu as escadas que davam no convés inferior. — O garoto teve uma atitude infeliz e modos piores ainda, Lassiter. — Ele não vai com a sua cara — disse James, satisfeito. — Diria que ele tem uma boa intuição. — Essa expedição está chegando ao fim — devolveu VanDyke. — Assim como a minha paciência e generosidade. Se não fosse por mim, vocês ficariam sem dinheiro em uma semana. — Talvez. — James fechou o zíper do seu traje. — Talvez não. — Quero o amuleto, Lassiter. Você sabe que ele está lá embaixo, e acredito que saiba onde. Eu o quero. Eu o comprei. Eu comprei você. — Você comprou o meu tempo e a minha perícia. Você não me comprou. Regras de salvamento, VanDyke. O homem que encontrar a Maldição de Angelique será o dono da Maldição de Angelique. — E ela não seria encontrada, disso ele tinha certeza, no Estrela do Mar. James levantou um dedo na direção do peito de VanDyke. — Agora saia da minha frente. O controle que tinha, e que exercia em salas de reunião de diretorias, impedia VanDyke de atacá-lo. Ele sempre vencia seus assaltos com paciência, dinheiro e poder. O sucesso nos negócios, como ele bem sabia, era uma simples questão de quem detinha o controle. — Você irá se arrepender por tentar me trair. — Ele agora falava num tom suave, com uma leve sugestão de sorriso nos lábios. — Eu prometo. — Diabos, Silas, estou gostando disso. — Calmo, porém rolando de rir, James adentrou a cabine. — Vocês estão vendo revistas de mulher pelada ou o quê? Venham para cá.

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Movendo-se rapidamente, VanDyke foi mexer nas garrafas de mergulho. Tudo aquilo não passava de negócios. Quando os Lassiter voltaram para o convés, ele estava amarrando o seu próprio equipamento. Todos os três, pensou VanDyke, eram pateticamente inferiores. Com certeza eles haviam esquecido quem e o que ele era. Ele era um VanDyke, um homem que havia recebido ou conseguido tudo o que sempre desejou. Uma pessoa que pretendia continuar fazendo a mesma coisa ao longo da vida, enquanto pudesse ter lucro. Será que os três achavam que ele estava ligando para o fato de terem estreitado seu pequeno triângulo e o excluído? Já havia passado da hora de demiti-los e contratar uma nova equipe. Buck, refletia ele, era atarracado, já estava ficando careca, e por isso era o oposto perfeito do seu belo irmão. Leal como um cachorro vira-lata e tão inteligente quanto. Matthew, jovem e ganancioso, era impetuoso e provocador. Um pequeno e detestável verme que VanDyke teria o prazer de esmagar. E James, é claro, pensou enquanto os três Lassiter estavam um ao lado do outro, jogando conversa fora. Era duro e mais sagaz do que VanDyke havia suposto. Mais do que a simples ferramenta que havia esperado que ele fosse. James julgava que havia levado a melhor sobre Silas VanDyke. James Lassiter achava que iria encontrar e tomar posse da Maldição de Angelique, o legendário amuleto de poder. Usado por uma bruxa, cobiçado por muitos. E isso fazia dele um idiota. VanDyke havia investido tempo, dinheiro e esforço para adquirir a peça, e Silas VanDyke nunca fazia investimentos que não dessem lucro. — Vamos ter uma boa caça hoje. — James prendeu as suas garrafas às costas. — Posso sentir isso. Silas? — Estou com você. James apertou bem o seu cinto, ajustou a máscara e mergulhou. — Papai, espere...

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d Mas James apenas o saudou e desapareceu sob a superfície. O mundo era silencioso e atordoante. O azul das águas era quebrado por raios de luz do sol que trespassavam a superfície do mar e emitiam uma luz clara e sutil. Cavernas e castelos de coral se espalhavam formando mundos secretos. Um tubarão de recife, com os olhos negros e cansados, virou o corpo e deslizou pela água, indo para longe. Sentindo-se mais em casa aqui do que a céu aberto, James mergulhava fundo com VanDyke nos seus calcanhares. Os destroços já estavam bem expostos, com trincheiras abertas a sua volta e escavadas em busca de tesouros. Os corais tomaram a proa destruída e transformaram a madeira numa fantasia de cores e formas, que parecia estar enfeitada com ametistas, esmeraldas e rubis. Este era o tesouro vivo, o milagre da arte criada pela água marinha e pelo sol. Era, como sempre, um prazer contemplá-lo. Quando eles começaram a trabalhar, a sensação de bem-estar de James aumentou. A sorte dos Lassiter o perseguia, pensou, sonhador. Logo ele ficaria rico e famoso. E por isso sorria sozinho. Afinal de contas, dera de cara com a pista, e passara dias e horas pesquisando e montando o quebra-cabeça da trilha percorrida pelo amuleto. Sentia até um pouco de pena daquele idiota do VanDyke, já que seriam os Lassiter que o tirariam do fundo do mar, de outras águas, em sua própria expedição. Ele se viu estendendo a mão para afagar uma crista de coral como se fosse um gato. Balançou a cabeça, mas não conseguia entender o que havia acontecido. O alarme soou em alguma parte do seu cérebro, distante e de um jeito vago. Mas ele era um mergulhador experiente e reconheceu os sinais. Já havia tido um ou dois episódios de narcose provocada por nitrogênio. Nunca numa profundidade tão baixa, pensou vagamente. Os dois deviam estar mais ou menos a uns trinta metros da superfície.

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A despeito disso, ele bateu nas garrafas. VanDyke já o estava observando, com os olhos frios, avaliando a situação por trás da máscara. James fez um sinal indicando que os dois deveriam subir para a superfície. Quando VanDyke o puxou de volta, apontando na direção dos destroços, ele só estava levemente confuso. Mais uma vez sinalizou para que ambos subissem, e de novo VanDyke o conteve. Ele não entrou em pânico. James não era o tipo de homem que se desesperava facilmente. Sabia que havia sido sabotado, embora sua mente estivesse muito confusa para fazer conjecturas. VanDyke era um amador neste mundo, lembrou-se James, e não percebia a extensão do perigo. Por isso, ele teria que mostrá-lo. Seus olhos se apertaram, determinados. O experiente mergulhador girou o corpo, por pouco deixando de alcançar o respirador de VanDyke. A luta debaixo d’água era lenta, determinada e sinistramente silenciosa. Os peixes debandavam como se fossem tecidos de seda colorida, e depois se reuniam novamente para ver o drama do predador e de sua presa. James sentia que estava perdendo as forças, enquanto a tontura e a desorientação aumentavam à medida que o nitrogênio era bombeado para dentro do seu corpo. Ele lutava, e conseguiu ganhar mais três metros no esforço que fazia para voltar à tona. Então, ele se perguntou por que queria subir. Começou a rir, e as bolhas brotavam e subiam rapidamente enquanto o êxtase o puxava para baixo. James abraçou VanDyke numa espécie de dança lenta e giratória, para partilhar o seu deleite. Era tão lindo o cenário criado pela luz azul e dourada, com jóias e pedras preciosas de mil cores impossíveis, simplesmente esperando para serem apanhadas. Ele havia nascido para mergulhar nas profundezas. Logo a alegria de James Lassiter iria se transformar em inconsciência. E numa morte tranqüila e confortante. VanDyke tentava abrir espaço enquanto James começava a se debater. A falta de coordenação era apenas mais um sintoma. Um dos últimos. Num ímpeto, VanDyke conseguiu soltar o tubo do respirador. Perplexo, James piscava os olhos enquanto se afogava.

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