Norma e desvio no ofício de enfermeiro do Hospital Real da Santa Casa da Misericórdia do Porto (1771

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Norma e desvio no ofício de enfermeiro do Hospital Real da Santa Casa da Misericórdia do Porto (1771 – 1799)

Rui Manuel Pinto Costa Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20), Portugal rcosta75@gmail.com

Resumo Este artigo foca os enfermeiros que exerciam o seu ofício no Hospital Real da Santa Casa da Misericórdia do Porto no último quartel do século XVIII. Pretende caracterizar a evolução da estrutura e contexto hospitalar em que os enfermeiros trabalhavam, descortinar a forma de recrutamento, as funções, competências, subordinação hierárquica

e estatuto remuneratório que

detinham, a par dos problemas com que se deparavam no Hospital Real. A

Luís Alexandre Sousa

metodologia de trabalho assentou na análise documental dos contratos de

Oliveira

trabalho dos serventes e enfermeiros desse hospital, disponíveis para os anos de 1771 a 1799. A partir da análise estatística é possível descortinar um

Escola Superior de Enfermagem do Porto (ESEP), Portugal

conjunto de dados que ajudam a reinterpretar a imagem da enfermagem laica setecentista, traçando não só uma imagem da atividade assistencialista mas também das condições laborais em contexto hospitalar.

alexandre@esenf.pt

Palavras chave Enfermagem, Porto, Santa Casa da Misericórdia, hospital, século XVIII.

Recepção: Mar. 2016.

Aprovado para publicação: Nov. 2016.

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Rule and deviation in nursing profession at Oporto’s Holy House of Mercy Royal Hospital (1771-1799)

Abstract This article focuses on the nurses from Oporto’s Holy House of Mercy Royal Hospital (Hospital Real da Santa Casa da Misericórdia do Porto) in the last quarter of the 18th century. It intends to characterize the evolution of the structure and hospital context where nurses worked, to unveil the form of recruitment, their functions, hierarchical subordination and salary. Historical methodology was based on the analysis of labor contracts of nurses and other staff from 1771 to 1799. Based on these documents, it is possible to uncover a set of data that helps to reinterpret the image of secular nursing of the eighteenth century, tracing not only an image of their welfare activity but also of working conditions in the hospital setting.

Keywords Nursing, Oporto, Holy House of Mercy, hospital, 18th century.

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1. A enfermagem setecentista em contexto historiográfico

A história da enfermagem em Portugal é uma área de investigação relativamente recente, tendo-se assistido nas duas últimas décadas à publicação de alguns trabalhos de grande folego na área da história contemporânea, focados nos séculos XIX e XX. Desenvolvidos essencialmente em torno dos processos históricos de formação e profissionalização, alguns foram lavrados exclusivamente por historiadores, ao passo que se assiste a um fenómeno de parceria relativamente recente, onde historiadores e enfermeiros abordam a profissão do ponto de vista historiográfico, incluindo enfermeiros que partilham do mesmo “ofício de historiador”. A maior parte deles têm-se debruçado fundamentalmente sobre os processos de formação e desenvolvimento profissional que começam a tomar forma a partir de meados do século XIX, e que progressivamente se vão sedimentando ao longo do século XX. Para esta faixa cronológica já se dispõe de um conjunto de fontes documentais capazes de dar corpo a narrativas historiográficas bem fundamentadas, onde sobressaem diversos trabalhos (Subtil, 2015; Silva, 2008; 2010; Carneiro, 2008; Graça, 2004; Nunes, 2003; Soares, 1997). No entanto, o mesmo não se tem verificado para outras épocas. O friso cronológico setecentista não parece ter despertado grande interesse, a julgar pela quase ausência de trabalho historiográfico publicado. Com efeito, caracterizar a enfermagem e sobretudo os praticantes laicos deste ofício no século XVIII em Portugal é uma tarefa problemática que se justifica em parte pela escassez de fontes documentais. E se considerarmos as poucas que disponíveis, até essas se encontram permeadas por lacunas que nos impedem de obter uma imagem totalmente coerente sobre o papel da enfermagem e traçar um perfil dos praticantes em contexto hospitalar. Se por um lado se dispõe de um leque mais alargado de trabalhos historiográficos para o caso de outras atividades profissionais ligadas à saúde e assistência, sobretudo médicos e cirurgiões, é notória a exiguidade de estudos que versem a atividade dos enfermeiros e o seu papel no âmbito das artes de curar setecentistas. Os personagens do universo hospitalar que menos atenções parecem ter despertado na análise histórica da época moderna são os enfermeiros e demais pessoal servente, apesar do reconhecido papel que desempenhavam no cuidado aos doentes e na vivência hospitalar. Mesmo no caso das numerosas e meticulosas

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pesquisas que foram saindo a lume sobre o papel assistencialista das diversas Misericórdias1 e dos seus hospitais desde o século XVI, estas incidem fundamentalmente sobre a sua estruturação, administração e poder económico (Basto, 1934-1964; Abreu, 1990; Sá, 1997; 2001; Sousa, 1999; Castro, 2003; Sá e Lopes, 2008) inserindo a vertente assistencialista no âmbito desses prismas, mas sem se debruçarem de forma pormenorizada sobre os atores “menores” do palco hospitalar, que incluíam o pessoal de enfermagem, os ajudantes de enfermaria, cozinheiros, porteiros e demais serventes. As informações acerca dos enfermeiros e do seu trabalho são poucas e dispersas, resumindo-se na maior parte dos casos a breves apontamentos sobre as funções que deveriam desempenhar, tal como se encontram registadas nos regimentos hospitalares, e para os quais se conhece documentação desde o século XVI (Abreu, 2009, p. 267-285). O século XVIII continua a aguardar por um labor de investigação mais profundo, capaz de aportar uma nova luz sobre os enfermeiros e os demais serventes hospitalares. Esta aparente falta de atenção é explicada apenas parcialmente pela escassez de fontes. A historiografia saída das mãos dos primeiros historiadores da medicina portuguesa em finais do século XIX era escrita por médicos que viam na sua profissão e nos seus praticantes os principais atores do universo das artes de curar. Durante quase todo o século XX, muita desta historiografia clássica e de feição médica moldou a visão histórica das profissões ligadas à saúde, dedicando-se tradicionalmente a grupos profissionais de maior estatuto e relevância social. Daí que se mantenham em aberto muitas questões relativas à enfermagem portuguesa setecentista, sobretudo da enfermagem laica. Em que contexto hospitalar trabalhavam? Qual a forma de recrutamento, funções, competências, subordinação hierárquica e estatuto remuneratório que detinham? Com que problemas se deparavam nesse contexto hospitalar? A resposta a estas e outras questões passa pela análise de documentação ainda pouco utilizada para este fim, mas que não deixa de ser útil na hora de caracterizar a enfermagem setecentista portuguesa, permitindo responder a diversas questões. Referimo-nos aos Termos

de entradas de serventes e enfermeiros, existentes entre 1771 e 1799 no vasto acervo documental do arquivo da Santa Casa da Misericórdia do Porto (Amorim, 1987). Trata-se de uma série contínua de contratos de trabalho que abrange 28 anos de atividade da vida do

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As Santas Casas da Misericórdia são irmandades leigas, de patrocínio régio e forte pendor assistencialista.

Entre outras atividades caritativas, dedicavam-se em especial ao tratamento de enfermos e inválidos. Originalmente criada em Portugal, a primeira remonta a 1498, no reinado de D. João II (Sousa, 1999).

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Hospital Real da Santa Casa da Misericórdia do Porto, que inclui, entre outros, os enfermeiros e demais funcionários hospitalares, incluindo serventes, ajudantes de enfermaria, cozinheiros, porteiros e lavadeiras.

2. Enfermagem: um ofício entre as artes de curar

O universo dos praticantes das artes de curar no decorrer do século XVIII era não só vasto, como bastante díspar nas funções que desempenhavam. O enfermeiro era um dos elementos que formavam um agrupamento mais lato de profissões ou miscelânea de ocupações ligadas à saúde e assistência, que tinham no seu topo o prestigiado médico, seguido de longe pelo cirurgião, o algebrista, o sangrador, a parteira, o enfermeiro, o clistereiro, os tiradores de dentes e demais personagens, charlatães e mezinheiros incluídos. Ao contrário de vários destes personagens, cuja atividade se podia desenrolar fora do âmbito hospitalar, o ofício de enfermeiro encontrava-se quase sempre institucionalmente enquadrado, fosse no seio de ordens religiosas ou em estabelecimentos hospitalares administrados por laicos como era o caso das Misericórdias. Ao enfermeiro cabia-lhe um duplo papel: cuidar e gerir. De acordo com a entrada do dicionário setecentista de Rafael Bluteau, o enfermeiro era aquele que tinha a seu cargo a enfermaria e os enfermos (Bluteau, 1713, p. 108). Para além da bem conhecida assistência direta aos que se encontravam doentes, a questão da gestão do espaço físico conhecido como

enfermaria denota a existência de um lugar específico para o exercício profissional. Executada de forma tutelada pela administração do hospital e semitutelada por outros praticantes das artes de curar, nomeadamente médicos e cirurgiões, a parte autónoma da atividade dos enfermeiros cingia-se apenas à gestão direta do espaço físico ocupado pela sua enfermaria. De acordo com os diversos regimentos hospitalares das Misericórdias que se conhecem, a enfermagem estava ligada à prática de um trabalho que incluía cuidar da higiene e alimentação dos doentes, ministrando-lhes os remédios e cuidando da manutenção da limpeza das enfermarias. Os tratamentos, fossem eles medicamentosos ou outros, realizavam-se sob a tutela do médico e/ou do cirurgião-mor. No caso dos enfermeiros do Hospital Real da Misericórdia do Porto, não se fugia destas convenções. Detendo a autonomia na gestão interna da sua enfermaria, tutelavam por sua vez o trabalho dos seus ajudantes, que habitualmente se

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confundia com o seu, mas com o encargo acrescido da administração de todo o espólio, incluindo mobiliário, louças e demais utensílios sob a sua responsabilidade. O exercício da enfermagem não exigia qualquer autorização ou aprovação do físico-mor ou do cirurgião-mor, como sucedia no caso da cirurgia, da medicina ou da farmácia. Sem mecanismos de titulação e regularização profissional, o ofício era desempenhado de forma algo heterogénea, tanto por religiosos como por laicos. Constituindo um grupo profissional de estatuto social irrelevante quando comparado com os médicos diplomados pela Universidade de Coimbra, ou mesmo do cirurgião, poucos eram os enfermeiros alfabetizados ao ponto de saberem assinar o seu nome, muito menos ainda os que saberiam ler e escrever com fluência. Desses, o caso dos Irmãos Hospitaleiros constitui uma exceção, uma vez que é nesta ordem religiosa que surge o primeiro manual de enfermagem escrito e impresso em Portugal. A

Postilla Religiosa e Arte de Enfermeiros (Santiago, 1741) é um documento valioso na hora de descortinar o trabalho dos enfermeiros em contexto hospitalar (Graça, 2005; Borges, 2009). Escrita para os noviços da Ordem Hospitaleira de São João de Deus2 que tinham a seu cargo toda uma série de hospitais militares de fronteira, esta obra descreve o trabalho e a forma de atuação do enfermeiro, mas também a dimensão humana e espiritual exigida aos praticantes, esboçando, inclusive, uma área de competências próprias que os distinguia dos médicos e cirurgiões. Para os membros das ordens religiosas a prática da enfermagem constituía mais uma ocupação do que uma profissão, o que não seria tão linear no caso dos laicos; para estes últimos tratava-se de uma atividade remunerada, que não enjeitando a matriz caritativa, era paga em conformidade. No entanto, o baixo grau de alfabetização entre os enfermeiros laicos aponta para um processo de aprendizagem e desenvolvimento de competências baseado na observação e na prática, o que os afastava ligeiramente do processo formativo dos religiosos. Ao contrário dos religiosos que exerciam a ocupação de enfermeiros, o ambiente dos hospitais da Misericórdias era totalmente preenchido por laicos. O Hospital Real da Misericórdia do Porto no século XVIII é um claro exemplo da total laicidade dos enfermeiros, o que nos faz repensar no exercício de um ofício que encontra nas estruturas hospitalares citadinas como lugares privilegiados de análise histórica sobre o desenvolvimento e sedimentação profissional.

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É uma congregação religiosa laical masculina, de cariz assistencialista, fundada em Espanha pelo português

João Cidade e aprovada canonicamente em 1572 (Gameiro, 1997).

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3. O contexto institucional: o Hospital Real da Santa Casa da Misericórdia do Porto

Fazendo jus ao pendor fortemente caritativo que caracterizava a assistência das diversas confrarias, irmandades e ordens religiosas que se encontravam na cidade na segunda metade de setecentos, o Porto albergava uma rede de estabelecimentos hospitalares algo heterogénea, tanto nas dimensões como na especificidade dos propósitos que as norteavam. A assistência hospitalar circunscrevia-se a um conjunto bem conhecido de instituições laicas ou religiosas. De maior ou menor dimensão, incluíam a Santa Casa da Misericórdia, Ordens Terceiras e hospitais de confrarias. Pela variedade e heterogeneidade tipológica de doentes e doenças, assumia um papel de hospital generalista, em certa medida afastando-se do conceito asilar que também caracterizava os demais hospitais que a própria Santa Casa também administrava. Apesar da matriz caritativa regular todos estes estabelecimentos, fossem eles pertencentes a ordens religiosas ou a instituições sob alçada laica, a Santa Casa não só não se enquadrava sob a jurisdição de nenhuma ordenação regular, como desempenhava um papel de clara relevância no âmbito da assistência hospitalar da cidade, encontrando-se profundamente ligada ao tecido social da comunidade. Enquadrava sob a sua tutela um conjunto maioritário de estabelecimentos de natureza assistencialista, sobretudo se tivermos em atenção o restrito universo portuense. Seguindo a clássica descrição que o padre Agostinho Rebelo da Costa deu à estampa em 1789, o Porto dispunha de 14 hospitais a funcionar e um em fase de planeamento, estabelecidos para “abrigo dos pobres e remédio dos enfermos” (Costa, 1789, p. 124). Muitos deles não passavam de meros albergues para enfermos pobres, inválidos ou leprosos, ao passo que outros acumulavam serviços de internamento para pobres a quem também se distribuía esmola, conceitos que se afastam da conceção que hoje se tem de serviço hospitalar. Desses 14 estabelecimentos, nada menos que 8 pertenciam à Santa Casa: o Hospital Real (Hospital de D. Lopo de Almeida), os hospitais de Expostos, Entrevados, Entrevadas, Lázaros, Lázaras, e o das Velhas. A Misericórdia administrava ainda o Real Recolhimento das Órfãs, apoiava financeiramente todos os presos pobres que entravam na Cadeia da Relação e custeava os enterros de mais de 400 pobres. No cômputo exclusivo da assistência hospitalar, quer pelas dimensões, quer pelo número de enfermos que tratava, na opinião dos coevos o Hospital Real era a instituição de maior relevância (Costa, 1789, p. 125). Com exceção deste, os demais eram de pequena dimensão e

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muito especializados no seu propósito, com características asilares que os distinguem dos propósitos curativos que geralmente se associam aos hospitais contemporâneos. Ainda segundo Agostinho Rebelo da Costa, a Misericórdia “Cura e sustenta cada ano em todos os hospitais da sua administração, mais de dois mil enfermos.” (Costa, 1789, p. 98).

Figura 1. Planta da cidade do Porto de Perry Vidal (1865). O Hospital Real encontra-se assinalado a vermelho.

Fonte: Vidal (1865).

Edificado no início do século XVII na sequência do legado testamentário de D. Lopo de Almeida à Misericórdia do Porto em 1584, o hospital de D. Lopo (Hospital Real) começou a ser construído em 1605 após a aquisição de dois edifícios na rua das Flores, e a partir da ampliação do preexistente Hospital de Rocamador, que estivera ocupado por tropas espanholas entre 1581 e 1587 (Sá, 2012, p. 25-49). As dimensões exíguas de que se partiu mostraram rapidamente a necessidade da ampliação, e a evolução do tráfego ao longo do tempo demonstra que não era de nenhum modo comparável ao grande hospital de Todos os Santos

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em Lisboa: Francisco Ribeiro da Silva aponta que em 1598 não excedia o internamento simultâneo de 50 doentes, com uma média de 16 a 17 admissões por mês entre 5 de julho de 1580 e fins de junho de 1590 (Silva, 2002, p. 39). As obras só terminariam em finais do século XVII, mas mesmo durante a ampliação encontrou-se sempre em funcionamento. Situava-se na confluência da rua das Flores com a rua dos Caldeireiros, com entrada por esta última, ocupando um lugar central na urbe portuense, dentro do espaço muralhado.

Figura 2. Pormenor da planta da cidade do Porto de Perry Vidal (1865). A localização do Hospital Real encontra-se assinalada a vermelho, na confluência da rua das Flores com a rua dos Caldeireiros. Os demais hospitais sob administração da Misericórdia do Porto encontram-se assinalados a azul.

Fonte: Vidal (1865).

O número de camas cresceu, mas desconhece-se o ritmo de evolução do volume de leitos que o hospital foi albergando. Sabemos que dispunha de 2 enfermarias principais de acordo com o género dos doentes, uma de homens e outra de mulheres, acrescida de outras divisões: 3 casas de gálico para homens, uma sala de doentes particulares, e ainda uma “caseta” para doentes mentais ou doentes de suspeita. A enfermaria dos homens dispunha de

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38 leitos e a das mulheres 42, mas o número podia variar de acordo com as necessidades do momento, a que não eram alheios os surtos epidémicos. Magalhães Basto (1931) descreveu da seguinte forma a estrutura interna do hospital de finais do século XVII:

“No primeiro andar, sobre o átrio, fica a enfermaria geral das mulheres, de planta em forma de cruz, com 42 leitos metidos nas paredes, em arcos de abóbada; no centro do cruzeiro ergue-se um altar em que se celebra missa. Paralela a esta e em tudo semelhante, mas só com 28 camas, fica a enfermaria geral dos homens. Há ainda uma sala para doentes particulares, várias enfermarias para doenças venéreas, casas de convalescentes, etc. (…) A um dos lados do claustro vê-se também uma caseta pequena ou cela em que se metem os doidos ou doentes de suspeita”. (Basto, 1931, p. 20)

Mau grado as pontuais obras de alargamento e beneficiação a que foi sendo sujeito, em meados do século XVIII já era considerado exíguo para as crescentes necessidades assistenciais da população. Estas necessidades advinham do crescimento da própria cidade. Na segunda metade de setecentos a malha demográfica alargava-se ao exterior das muralhas medievais e adensava-se no espaço intramuros. A prosperidade vivida em torno do comércio feito através do seu porto fluvial e marítimo, na altura o maior entreposto de exportação vinícola português. Reforçando o seu já forte pendor mercantil pelo impulso proporcionado pelos proventos do comércio dos vinhos do Alto Douro, o Porto assistiu a um crescimento urbanístico e demográfico significativo, mais do que duplicando a sua população nos 50 anos seguintes. Seguindo os números que Ricardo Jorge aponta para 1732 e 1787, e contando apenas o número de habitantes nas 7 freguesias que enumera, os habitantes passaram de 24.883 para 52.010 (Jorge, 1897, p. 99101). De acordo com os dados que Marino Miguel Franzini utilizou (ca. 1804), em 1786 o número de habitantes seria muito superior, contabilizando-se em 1786 quase 85.000 habitantes em pouco mais de 15.000 fogos (Ribeiro, Lautensach e Daveau, 1987-1991, p. 901-905). O dinamismo económico e demográfico implicou a abertura de várias artérias, incluindo a construção de dezenas de novas ruas e a regularização de outras, a par da execução de vários edifícios públicos e religiosos. A rua das Flores, onde o Hospital Real se integrava, era o eixo comercial mais importante da cidade. Enquadrada por lojas comerciais de todo o tipo, encontrava-se numa artéria central, mas ao mesmo tempo demasiadamente compacta para permitir o alargamento de um estabelecimento hospitalar que foi denotando a pressão do

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número crescente de enfermos ao seu cuidado. O problema foi-se agudizando ao longo da segunda metade do século, sobretudo no decorrer de surtos epidémicos.

Figura 3. O Hospital Real (D. Lopo) em 1740 de acordo com a impressão artística de Luís de Pina.

Fonte: Pina (1962-1965, p. 439).

A difícil ampliação local do hospital impunha a necessidade de demolir vários prédios adjacentes, decorrente do enquadramento central do hospital nesta densa malha urbana, o que levou a administração da Misericórdia a considerar a edificação de uma estrutura hospitalar completamente nova. Erigido de raiz numa zona exterior à cintura muralhada, o novo hospital seria edificado na periferia da cidade. Outra das razões que impediu o alargamento local do hospital foi o facto de se encontrar junto a um cemitério, o que não seria recomendável de acordo com a coeva teoria dos miasmas, pelo receio de exposição a ares propícios à propagação de epidemias. O objetivo da Mesa da Misericórdia seria o de conseguir reunir num só lugar todas as valências assistencialistas dispersas pelos seus diferentes hospitais, pelo que o plano do novo hospital previa 3 pisos com funcionalidades e objetivos distintos. No primeiro procedia-se à receção dos doentes e enjeitados, estando previstas salas de tratamento de doentes em regime de ambulatório e uma sala de consultas. Era também nesse piso que se situariam as cozinhas, lavandarias e aposentos do pessoal e 3 enfermarias dedicadas aos doentes mentais. O segundo piso encontrava-se dividido em enfermarias de acordo com as respetivas doenças. A norte, as

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enfermarias das “febres (enfermarias de medicina); a poente ficariam os leprosos, feridos e doentes particulares; a sul os entrevados e portadores de doenças venéreas. O terceiro piso serviria para recolhimento de enjeitados e suas amas” (Alves, 1988, p. 143-146). As obras iniciaram-se em 1769, mas a primeira pedra do futuro Hospital de Santo António foi lançada em 15 de julho de 1770 (Basto, 1931, p. 23). A construção alongou-se até ao primeiro quartel do século XIX, fruto de várias vicissitudes, entre as quais o descontrolo dos custos, as várias modificações ao projeto inicial e as invasões francesas em 1807 e 1811. Em 1789 apenas se havia construído “a vigésima parte” (Costa, 1789, p. 128.). Entretanto, e ainda com obras em curso, a 19 de agosto de 1799 a ala sul já se encontrava terminada, tendo recebido em cortejo solene 150 mulheres transferidas do sobrelotado Hospital Real. Os demais doentes foram transferidos de acordo com o ritmo de progressão das obras (Basto, 1931, p. 27). No entanto, desde que se tomou a decisão de construir um novo estabelecimento hospitalar até à abertura das primeiras dependências, continuava-se a trabalhar no velho Hospital Real com os olhos postos no novo. A lenta e demorada construção foi-se arrastando, o que implicou a manutenção da atividade do Hospital Real durante vários anos após o dealbar do século XIX. Pela sua dimensão e sumptuosidade, o novo hospital foi alvo de críticas daqueles que não se coibiam de afirmar que o dinheiro investido na obra deveria ser atribuída aos tratamentos e alimentação dos pobres, sem esquecer a melhoria dos vencimentos de médicos e enfermeiros, tal como se pode ler no Compêndio histórico e topográfico da cidade do Porto, obra inspirada no trabalho de Agostinho Rebelo da Costa e que lhe dá continuidade (Silva, 2001, p. 155-156). Se no século XVII o Hospital Real dispunha de apenas duas enfermarias centrais, em 1794 temos a certeza de dispor de pelo menos cinco, divididas por género: duas de medicina, duas de cirurgia e uma de convalescentes para homens. São precisamente deste último quartel de setecentos que datam as fontes do Arquivo da Santa Casa da Misericórdia do Porto; tratamse dos contratos de trabalho dos enfermeiros e demais serventes deste hospital, coincidindo com uma altura em que se preparava um edifício de dimensões palacianas, totalmente diferente em dimensões e monumentalidade do já vetusto e sobrelotado hospital de D. Lopo.

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4. Conteúdo funcional do “Ofício de Enfermeira”: regulamentação e responsabilidades

Os registos constantes nos Termos de entradas de serventes e enfermeiros no Hospital Real, são fontes particularmente adequadas à análise do processo de recrutamento dos enfermeiros, permitindo compará-los com os demais serventes. Inseridos em livros onde se assentava um conjunto de informações relativas às condições contratuais que regulavam o exercício laboral, estes documentos revelam, entre outras, diversas informações acerca de vencimentos, funções, subordinação hierárquica, estratificação laboral, tempo de serviço e motivos de saída. A própria designação da fonte documental (Termos de entradas de serventes e enfermeiros…) faz uma distinção entre os enfermeiros e o demais pessoal servente, o que só de forma aparente os discrimina positivamente em termos hierárquicos. Na realidade, todos faziam parte do rol de pessoal menor que preenchia a orgânica hospitalar. Para além de dispor de um corpo administrativo, o hospital era sobretudo um espaço onde coabitam doentes e diversos ofícios das artes de curar. Os enfermeiros faziam parte de um universo profissional multifacetado, inserido num conjunto heterogéneo de funcionários que asseguravam as diferentes tarefas necessárias ao seu regular funcionamento. Do corpo clínico faziam parte os médicos, cirurgiões, enfermeiros, o boticário, ajudantes de enfermaria e sangradores. Outros serviços complementares da orgânica hospitalar eram assegurados por um conjunto de gente, entre capelães, cozinheiros e seus ajudantes, porteiros, lavadeiras, “mulheres do sangue” e outros serventes sem funções específicas. De todos os contratos de funcionários “menores” lavrados pelo Hospital Real entre 1771 e 1779, os enfermeiros representam 13%; ou seja: 32 enfermeiros contratados em 28 anos para apenas 5 enfermarias. Existia apenas um único enfermeiro por enfermaria, adjuvado por um ou mais ajudantes, dependendo geralmente do volume de doentes internados. A atividade exigia particular responsabilidade, dedicação e sentido caritativo, aspetos tidos por fundamentais para o exercício profissional. Obrigavam-se a um conjunto de obrigações bem conhecidas, sob a alçada hierárquica da administração do hospital. Genericamente, era-lhes exigido que cumprissem as suas obrigações de forma zelosa, cumprindo preceitos de boa higiene e gestão da enfermaria.

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Figura 4. Número de contratos realizados por tipologia profissional (enfermeiros e serventes) no Hospital Real da Santa Casa da Misericórdia do Porto (1771-1799).

Dispenseiro Costureiras Lavadeiras Mulheres do sangue Escriturários Serventes Porteiros Ajudantes de cozinha Cozinheiros Ajudantes de enfermaria Enfermeiros 0

20

40

60

80

100

120

140

Fonte: Elaborado a partir dos dados contidos nos Termos de entradas de serventes e enfermeiros no

Hospital Geral (1771 – 1800). Livros nº 14 – 16.

As incumbências eram múltiplas, passando pela admissão dos doentes, acompanhamento das visitas dos médicos e cirurgiões, e cumprir as prescrições relativas aos remédios e dietas. Asseguravam ainda a higiene dos doentes e das enfermarias, incluindo as camas, roupas, louças e demais “trastes”. A prática dos cuidados passava ainda pela manutenção de um ambiente seguro, devendo zelar pelo resguardo dos doentes, impedindo a sua saída (os doentes não podiam apanhar sol e sair do espaço da enfermaria) e a entrada de quaisquer visitas nas enfermarias sem o expresso consentimento dos Mordomos. Na sua essência, as funções do enfermeiro do último quartel de setecentos eram praticamente as mesmas que se encontravam em vigor desde finais do século XVI, com poucas adendas desde então. Desde a entrada em vigor do Regimento de 1593 que as funções se encontravam regulamentadas, sendo supervisionadas pelos Mordomos, que tinham a obrigação de se deslocar ao hospital pelo menos 2 vezes por mês, para além das visitas do Provedor:

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“Os Mordomos terão muito cuidado de saberem se à hospitaleira, e enfermeiras e serventes, fazem e servem seus ofícios e se se fecham a abrem as portas a seus tempos devidos e se entram nele pessoas de suspeita ou que tragam algumas coisas aos enfermos, (…)”, cabendo-lhes ainda verificar “(…) se as enfermeiras servem com o peso [sic], caridade e diligência que convém (…)”. (Regimento e providências para a administração do Hospital

Geral, Livro nº 10, p. 3-4).

A descrição do Ofício de Enfermeira, que ocupa uma parte significativa do regimento, apontava as seguintes obrigações iniciais: receção dos doentes na enfermaria, higiene inicial dos enfermos e a triagem dos incuráveis e/ou padecentes de doenças contagiosas. Se bem que o registo de entradas fosse incumbência dos mordomos, na ausência destes deveriam zelar para que o registo se fizesse tão cedo quanto possível, para o que deveriam lembrar-lhes o registo dos nomes e bens de todos os enfermos entretanto admitidos. O mesmo regimento dispunha que deveriam acompanhar as vistas do médico e cirurgião, registando as indicações terapêuticas, fossem medicamentosas, alimentares ou inclusive das sangrias:

“Assim se achará as sangrias que se fizerem para dar ordem delas e dizer onde hão de ser e a quantidade de sangue que lhe hão de tirara conforme ao que o médico e cirurgião deixarem dito”. (Regimento… Livro nº 10, p. 9).

A responsabilidade pela alimentação era um aspeto particularmente importante, vigiando “Para se dar a cada um o que lhes está ordenado” (Regimento… Livro Nº 10, p. 9V). O resto do regimento apontava ainda outras obrigações que se resumiam à higiene de doentes, troca de roupa das respetivas camas, limpeza e gestão do inventário dos bens da sua enfermaria. Deveria assumir o cargo de Hospitaleira sempre que esta não estivesse presente. Em 1764 surge um regimento específico destinado aos responsáveis pela enfermaria dos convalescentes masculinos. Este documento reforça o já conhecido conteúdo funcional, acrescentando que tinha “por obrigação assistir continuamente de noite e de dia (…) fazendo todos os dias as camas (…) Varrerá casa todos os dias duas vezes pela manhã e depois de jantar espanando-lhe também as paredes.” (Regimento… Livro nº 11, p. 14V). Acrescia a higiene dos doentes, o despejo e limpeza dos vasos “das suas necessidades”, bem como apoiar os colegas das outras enfermarias de medicina. Apesar da laicidade dos enfermeiros contratados, às obrigações de ordem laboral acresciam outras de teor moralizante. Nesse sentido, esperava-se que cumprissem algumas determinações regimentais de ordem espiritual,

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que no caso do Hospital Real eram brevemente discriminadas, exaradas com o propósito de melhorar o comportamento moral e religioso dos enfermos. Neste caso, esta componente traduzia-se na obrigação de rezar um Padre-nosso e uma Ave-maria após o jantar e a ceia, pela alma de D. Lopo de Almeida (Regimento… Livro nº 11, p. 13-13V). Nos dados obtidos para o século XVIII, ficamos a saber que o ofício obrigava a uma disponibilidade quase total, se tivermos em atenção que só podia folgar aos domingos de manhã. O incumprimento das funções podia redundar em despedimento ou expulsão, de tal forma que “No mesmo instante que faltar aos pontos da sua obrigação, seja lançado fora” (Termos… Livro nº 14, p. 7). A partir daí, o Mordomo podia lançar um edital constando que o lugar de enfermeiro estava vago. A descrição de um dos termos de assento relativo às incumbências do enfermeiro da cirurgia dos homens em 1771 exemplifica a hierarquização de funções, obrigando-se e sujeitando-se:

(…) “a ser obediente aos mordomos, tratar dos doentes da sua enfermaria dando-lhes o seu sustento, remédios a tempo e horas, fazendo o que o cirurgião mor lhe mandar para verificação dos enfermos, acompanhando-o ante [sic] nas horas das visitas e ordens, e dando conta”. (Termos… Livro nº 14, p. 2V).

Noutro desses termos de 1772, discrimina-se de forma mais clara que a responsabilidade do enfermeiro passava por:

“Tudo que diga respeito ao seu regimento: tratando os doentes com muito zelo, amor, caridade, alimpando-os, fazendo-lhes as camas, ademais pondo-lhes os remédios e alimentos a horas convenientes. Trazendo as enfermarias muito limpas e asseadas, ser muito obediente e atenciosa aos mordomos que servirem neste hospital e não sair fora sem a sua licença. E a mesma obediência promete ter ao dr. Médico e cirurgião mor acertando com eles as visitas dos enfermos para receber as ordens dos remédios que lhes mandarem dar aso enfermos nas horas que lhes determinar no que promete ter a maior [ilegível] e vigilância por esta ser a maior circunstância de sua obrigação”. (Termos… Livro nº 14, p. 4).

Como já foi apontado, incumbia-lhe acompanhar o médico e o cirurgião durante as horas de visita. De acordo com a descrição contemporânea de Rebelo da Costa, estas visitas

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abrangiam todos os enfermos internados e tinham lugar duas vezes por dia. Não nos podemos alhear do facto deste hospital também um servir um propósito formativo, em particular para os cirurgiões, “onde há exercício prático para os principiantes, subministrado pelo Cirurgião do partido, ao que os rapazes, e vulgo ignorante dá o título de Cirurgião Mor (…)” (Costa, 1789, p. 126). O próprio ofício de enfermeiro parece ter funcionado como ponto de passagem na carreira de alguns desses futuros cirurgiões. Entre 1772 e 1779, encontram-se registados pelo menos 5 praticantes de cirurgia e 1 cirurgião aprovado que exerceram o ofício de enfermeiro no Hospital Real. Estes praticantes de cirurgia passaram períodos mais ou menos longos de trabalho como enfermeiros de cirurgia, o que poderia ter funcionado não só como um tirocínio, mas também como forma de enriquecimento profissional. Como se pode concluir, em finais do século XVIII o conteúdo funcional do ofício não se alterara substancialmente relativamente ao Regimento primitivo, permanecendo praticamente inalterado desde finais do século XVI. O novo regimento de 16 de dezembro de 1799 relativo ao novo Hospital de Santo António também não aportou novas funções, exceto o acrescento de algumas medidas de isolamento no caso de doentes sifilíticos e a proibição de receberem qualquer tipo de gratificação, sob pena de expulsão.

5. Recrutamento, remuneração, caracterização

O recrutamento obedecia às indicações dos mesários ou do provedor, que emitiam declarações de arrolamento, indicando o nome de determinada pessoa para a função. Munido dessa declaração, o proponente dirigia-se ao hospital onde o mordomo o arrolava ao serviço. Exarava para isso um termo, que definia as funções e a respetiva retribuição salarial, de acordo com o regulamento em vigor. Apesar das informações constantes nos Termos de entradas denotarem uma grande rotatividade de serventes, o caso dos enfermeiros do Hospital Real mostra, genericamente, alguma atenção no processo de recrutamento. Sobressai o cuidado posto pela administração em prover o lugar com alguém que possuísse algum tipo de experiência prévia. No entanto, em momentos de maior urgência no provimento de lugares acabados de vagar, não era incomum assistir à nomeação imediata de ajudantes de enfermaria, promovendo-os a enfermeiros de pleno exercício. Estes expedientes mostram bem o caráter prático e mimético de um ofício que se aprendia com base na experiência adquirida.

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Geralmente, eram contratados por despacho da Mesa da Santa Casa, sendo de seguida arrolados ao serviço através de contractos celebrados na Casa do Despacho. Estes termos, ou contratos, eram lavrados e assinados pelo mordomo do hospital, sendo ainda necessária a presença de fiadores e de eventuais testemunhas no caso do contratado não ser alfabetizado ou não saber assinar. Os fiadores também assinavam o documento, personagens cuja relevância mostra a responsabilidade que o enfermeiro assumia, não pelo tradicional labor assistencial mas pela gestão de todos os bens do serviço que lhe estava adstrito, e pelos quais devia responder perante os mordomos e mesários. Tornavam-se assim nos responsáveis “… por todo o prejuízo que por sua culpa em falta houver…” (Termos… Livro nº 14, p. 8), e daí a presença obrigatória de um ou mais fiadores, avalizando não só a idoneidade do contratado, mas garantindo ao mesmo tempo a cobertura de eventuais desvios e/ou prejuízos decorrentes do exercício profissional. Ao cessar funções, o dito inventário era conferido e entregue ao seu sucessor, incluindo todas as roupas, louças e demais utensílios existentes à data. A presença de fiadores não era exclusiva para os novos enfermeiros, sendo igualmente exigida nos contratos dos demais serventes. Estes fiadores constituíam um grupo muito heterogéneo de personagens, mas todos eles detentores de um ofício ou exercendo uma atividade que garantisse o cumprimento do contrato em caso de necessidade. Incluía artesãos (ourives, carpinteiros, chapeleiros, etc), homens de negócios, clérigos ou mesmo outros profissionais de saúde: barbeiros, boticários, médicos, cirurgiões, e, excecionalmente, enfermeiros do hospital, ainda que neste último caso estivessem proibidos de assumir essa responsabilidade. A partir do momento que eram contratados assinavam um rol de bens que pertenciam à enfermaria sob a sua alçada direta, espécie de testemunho que lhe era passado pelo seu antecessor. Estes inventários foram crescendo ao longo dos anos, da mesma forma que a capacidade de acolhimento desses espaços ia aumentando. Em 1773 o inventário a cargo de um enfermeiro de cirurgia incluía: 

50 Covilhetes de estanho [pequenos vasos de barro de figura côncava].

50 Pratos de estanho

1 Aparador de estanho

A roupa que lhe entregar o mordomo

1 Garfo de ferro

1 Seringa de latão usada

1 Lanterna

2 Canecas de folha-de-flandres. (Termos… Livro nº 14, p. 11)

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Seguindo a mesma fonte documental (Termos… Livro nº 14, p. 12), na mesma altura o inventário da enfermaria principal era composto por: 

60 Pratos de estanho

62 Covilhetes

1 Bacia e jarrão de estanho

1 [ilegível] grande de latão

2 Bules de estanho para os caldos dos doentes

1 Vaso do lavatório da comunhão

1 Braseiro; 1 colher de ferro que também serve a brasas (sic)

2 Castiçais de estanho do altar

1 Bacia de cobre pequena

1 Seringa de latão

36 Ferros de cor [ilegível]

2 Garrafas de vidro de 2 canadas

9 [ilegível] de canada e meia

6 de quartilho e meio

5 Potinhos de barro para os remédios

A roupa que se entregar o Mordomo

1 Garfo de ferro

O contexto salarial dos enfermeiros nos estabelecimentos hospitalares na cidade do Porto era relativamente reduzido e por vezes díspar, apresentando algumas particularidades no caso do Hospital Real. Apesar da retribuição se encontrar regulamentada, a documentação revela alguns casos de ausência de uniformidade retributiva. Assim, em 1772 a enfermeira da enfermaria de medicina de mulheres é contratada pelo valor tabelado: 12.000 réis por ano, acrescido mensalmente de 2 alqueires de pão e 1.200 réis de conduto. No mesmo ano, o enfermeiro da enfermaria principal auferia 20.000 réis/ano, mas devia ceder 4.000 desse valor ao seu ajudante. No entanto, o ordenado de 12.000 réis anuais continuou a ser a norma durante mais de 20 anos, mudando apenas a partir de 1793, altura em subiu ligeiramente para os 18.000 réis anuais, acrescidos dos habituais emolumentos, que não sofreram qualquer alteração. Mesmo assim ainda encontramos 2 casos de enfermeiras que em 1795 e 1798 foram contratadas pelos antigos 12.000 réis anuais, da mesma maneira que em 1794 nos deparamos com um novo caso de exceção, que coloca em 20.000 réis o vencimento

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anual de uma enfermeira readmitida. Em 1804 ainda temos notícia da tabela salarial anual subir definitivamente para os 18.000 réis/anuais no caso dos que ainda auferiam 12.000, mantendose os restantes emolumentos (Termos… Livro nº 16, p. 73). Tal como os demais serventes, os enfermeiros eram pagos em dinheiro e géneros alimentares, sobretudo o centeio e o milho-miúdo. A retribuição anual era de 12.000 réis, acrescida de 1.200 réis mensais e dois alqueires mensais de pão, geralmente sob a forma de cereal. Não significa que a retribuição fosse elevada, mas não era suficientemente baixa para ser totalmente rejeitada no contexto dos diferentes funcionários do hospital. Mas existiam outras ocupações com melhores vencimentos e menor grau de exigência. No contexto dos serventes, a “mulher do sangue”, o cozinheiro e a costureira auferiam um vencimento anual superior, se bem que devemos ter em atenção que no caso da costureira e da mulher do sangue não haver lugar ao pagamento de qualquer emolumento mensal. O mesmo aconteceria com os cozinheiros contratados a partir de fevereiro de 1797, que daí em diante passam a auferir exclusivamente o ordenado anual, o que pode justificar em parte a grande discrepância salarial. O caso da lavadeira é diferente; os contratos celebrados entre maio de 1797 e junho de 1798 apontam para uma retribuição mensal desusadamente elevada (6.400 réis/mês), que daí em diante se alteraria para um regime de pagamento à peça. Não existem muitos dados disponíveis acerca dos vencimentos noutros hospitais da cidade, mas dos poucos que se conhecem, facilmente se infere do baixo valor pago pela Santa Casa. Aníbal Barreira (2002, p. 271) apontou o caso dos enfermeiros do Hospital de São Francisco que em 1763 pagava 80 réis diários, valor que subiria em 1798 para os 100 réis/dia. Se estabelecermos uma comparação com as retribuições anuais dos médicos, cirurgiões e sangradores que também exerciam no Hospital Real, a diferença assume contornos de outra magnitude. Em 1753, o ordenado dos médicos era de 100.000 réis, subindo para os 150.000 em 1795. Em 1753 os cirurgiões auferiam 48.000 réis e os sangradores 20.000 (Barreira, 2002, p. 265-266). Dispensamo-nos de apontar a diferença abissal de retribuição existente entre enfermeiros e médicos, de tal forma que só é coerente comparar as retribuições da enfermagem num quadro comparativo que as coloque em paridade com os demais serventes do hospital. Na Figura 5 é possível verificar a evolução das retribuições dos funcionários do Hospital Real entre 1771 e 1799, estabelecendo uma comparação entre os enfermeiros e os demais serventes.

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Figura 5. Evolução comparada dos vencimentos anuais das diferentes categorias de serventes do Hospital Real da Santa Casa da Misericórdia do Porto, em réis (1771-1799). 70000

60000

Porteiro ¹

50000

Mulher do sangue ² Ajudante de cozinheiro ³

40000

Ajudante de enfermaria ⁴ Enfermeiro⁵

30000

Costureira ⁶ Cozinheiro ⁷

20000

10000

0

Fonte: Elaborado a partir dos dados contidos nos Termos de entradas de serventes e enfermeiros no

Hospital Geral (1771 – 1800). Livros nº 14-163. Referências: ¹ Os valores entre 1781 e 1784 foram extrapolados a partir da remuneração mensal (500 réis/mês). ² Os valores de 1784 foram extrapolados a partir da remuneração mensal (1600 réis/mês). Entre agosto de 1786 e 1789 recebia 50 réis/dia. Desde dezembro de 1789 passou para 2000 réis/mês. ³ Único grupo profissional cujos rendimentos não sofreram qualquer evolução. ⁴ As ajudantes de enfermaria femininas recebiam 10 000 réis anuais, ao passo que os masculinos recebiam 12 000. ⁵ Aponta-se a remuneração tabelada. ⁶ Os valores entre 1780 e 1793 foram extrapolados a partir da remuneração mensal (1500 réis/mês). ⁷ Em 1796 assiste-se a uma retração pontual no ordenado anual. Desde fevereiro de 1797 deixa de receber emolumentos mensais, mas em contrapartida passa a receber o ordenado mais elevado de todos os serventes.

3

Nota: os vencimentos anuais não incluem os emolumentos mensais (pão e conduto). Os valores anuais do

porteiro, costureira e mulher do sangue foram extrapolados a partir dos vencimentos mensais.

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Ao comparamos as retribuições de todos os serventes, e sobretudo quando comparamos as dos enfermeiros com as dos ajudantes de enfermaria, nota-se uma grande proximidade retributiva, que é de plena igualdade no caso dos ajudantes masculinos; estes ajudantes recebem exatamente o mesmo que os enfermeiros até 1796, ou seja, 12.000 réis/ano. Quando exerciam estas mesmas funções de ajudante, as mulheres recebiam apenas 10.000 réis/ano, o que expressa uma desvalorização do valor do trabalho feminino. Somente a partir de 1796 se assiste a uma valorização formal do trabalho de enfermagem, expresso num único aumento salarial. Mesmo assim, até aí existiu uma equiparação da retribuição que não tinha correspondência com a subordinação hierárquica do ajudante face ao enfermeiro. Desconhecem-se as razões que estavam na base desta equiparação remuneratória, mas poder-se-ia supor que a sobreposição de funções e responsabilidades desvalorizou os enfermeiros face aos seus ajudantes, dado que na realidade o conteúdo funcional do trabalho de ambos era praticamente o mesmo. A atestá-lo está o conjunto de obrigações e responsabilidades que ambos partilham no articulado dos termos analisados. Tal como os demais serventes, os ajudantes de enfermaria deviam subordinação hierárquica aos mordomos, partilhando como os enfermeiros os deveres relativos à alimentação e medicação dos enfermos internados, acompanhando igualmente o médico na hora da visita. No entanto, também se encontravam sob a tutela do enfermeiro, devendo obediência aos “(…) primeiros enfermeiros, nas coisas pertencentes ao seu ofício, e em uma palavra, cumprir com todas as obrigações competentes ao seu estado e emprego” (Termos… Livro nº 14, p. 9). Apesar da pequena diferença hierárquica, não era invulgar encontrar auxiliares de enfermaria que ascendessem ao lugar de enfermeiro. A prática reiterada do ofício e a aprendizagem contínua em contexto laboral permitiriam adquirir os saberes e competências julgadas necessárias ao ofício. Se a isto acrescesse uma boa conduta, a oportunidade aberta por um despedimento, pelo beneplácito dos Mordomos, da Mesa ou do Provedor, qualquer um destes expedientes seria o suficiente para ser promovido. Um desses exemplos é o caso de José António, ajudante admitido ao serviço em junho de 1772 e provido no lugar de enfermeiro da cirurgia em junho de 1773 (Termos… Livro nº 14, p. 9). Para além do regime contratual e remuneratório, os termos de entradas também fornecem um conjunto de dados que ajudam a caracterizar o pessoal de enfermagem, incluindo o género, o estado civil, a naturalidade e o tempo de serviço. Entre 1771 e 1779 lavraram-se 32 contratos de enfermeiros, 18 homens e 14 mulheres. Não existe uma predominância clara de um dos sexos relativamente ao outro, o que facilmente

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se compreende se tivermos em consideração a existência de enfermarias separadas por género (3 masculinas e 2 femininas), o que impunha uma contratação equitativa.

Figura 6. Enfermeiros contratados pelo Hospital Real da Santa Casa da Misericórdia do Porto (17711799).

44% 56%

Homens (n=18)

Mulheres (n=14)

Fonte: Termos de entradas de serventes e enfermeiros no Hospital Geral (1771 – 1800). Livros nº 14-16.

Os dados relativos ao estado civil mostram que cerca de 45% dos homens eram casados, percentagem que desce para pouco mais de 5% das mulheres, onde se podem contar cerca de 10% de viúvas. No entanto, estes números devem ser vistos com cuidado: a elevada percentagem de desconhecidos pode enviesar os resultados e colocar em causa eventuais conclusões a este respeito.

Figura 7. Distribuição dos enfermeiros por estado civil.

MULHERES

1

1

2

CASADO

10

SOLTEIRO VIÚVO HOMENS

8

0%

20%

3

40%

7

60%

80%

DESCONHECIDO 100%

Fonte: Termos de entradas de serventes e enfermeiros no Hospital Geral (1771 – 1800). Livros nº 14-16.

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Dada a natureza institucional do trabalho e a localização geográfica do hospital, seria expectável que a naturalidade dos contratados correspondesse de uma forma global à cidade do Porto. De facto, assim é. Mesmo tendo em atenção que desconhecemos a naturalidade de pouco menos de metade dos casos, encontramos o caso de um enfermeiro natural da Galiza, outro de Santa Comba de Moura Morta (Peso da Régua) e uma enfermeira de Lamego, o que pode indiciar correntes migratórias coevas.

Figura 8. Distribuição dos enfermeiros por naturalidade.

PORTO

MULHERES

7

1

6 LAMEGO

HOMENS

8

1

1

SANTA COMBA DE MOURA MORTA

8

GALIZA 0%

20%

40%

60%

80%

100%

DESCONHECIDA

Fonte: Termos de entradas de serventes e enfermeiros no Hospital Geral (1771 – 1800). Livros nº 14-16.

No tocante à alfabetização, surge-nos uma clara disparidade entre géneros, o que não constituía novidade para o tempo: no Porto, o número de mulheres alfabetizadas era inferior ao dos homens e a percentagem dos alfabetizados seria baixa (Ramos, 2000, p. 360-362). Aqui, o termo a “alfabetização” é utilizado no sentido de distinguir os que assinam daqueles que não o fazem ou que apenas assinam de cruz. No caso das enfermeiras, 92% seriam analfabetas, uma vez que apenas uma delas assina o seu nome no contrato. No caso dos homens assiste-se a um panorama substancialmente diferente: 61% deles sabe assinar o seu nome, se bem que nalguns deles a qualidade da caligrafia indicie um uso limitado da escrita. Noutros casos, a firmeza do traço e a forma primorosa da caligrafia denotam precisamente o oposto. Apesar destas diferenças, não devemos realizar deduções automáticas, uma vez que o facto de saber assinar o nome nem sempre corresponderia a uma prova automática de alfabetização. Numa altura em que a enfermagem laica constituiria o ofício de uma minoria, seria certamente mais fácil a uma pessoa plenamente alfabetizada desempenhar outra

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atividade melhor remunerada que a enfermagem, pelo que estes resultados devem ser encarados com alguma reserva.

Figura 9. Distribuição dos enfermeiros por alfabetização.

MULHERES

1

13 ASSINA NÃO ASSINA

HOMENS

11

0%

10%

20%

30%

7

40%

50%

60%

70%

80%

90%

100%

Fonte: Termos de entradas de serventes e enfermeiros no Hospital Geral (1771 – 1800). Livros nº 14-16.

Se bem que existia uma pseudo-especialização entre os praticantes da enfermagem, como o enfermeiro das febres (conhecida como enfermaria de medicina a partir dos finais de 1785), o enfermeiro da cirurgia ou o enfermeiro de convalescentes, da documentação analisada não transparece a existência de qualquer aprendizagem formal. A aprendizagem realizava-se em contexto hospitalar ou até conventual, mas não era requerida qualquer alfabetização. Entre todos os contratos de enfermeiros, são sobretudo os dos homens onde se encontram os indícios mais fortes de alfabetização. No entanto, surge a dúvida se realmente os enfermeiros realizariam todos os registos que faziam parte das suas incumbências, ou se isso seria em parte letra morta. Em outubro de 1794, a Mesa da santa Casa sugeriu que as visitas médicas que os enfermeiros acompanhavam passassem a contar com um escriturário, registando-se em tábuas (mapas) na cabeceira dos doentes “(…) o seu alimento e remédios e não entregue à débil memória e vontade do Enfermeiro” (Regimento… Livro nº 11, p. 29). Nesta altura, o facto de saber ler e escrever seria certamente uma mais-valia profissional, embora não constituísse grande óbice ao exercício do ofício de enfermeiro. A diligência no cumprimento de funções, a obediência e o espírito caritativo jogavam um papel bem mais importante na manutenção do emprego.

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6. Norma e desvio num espaço sob pressão

A qualidade do exercício da enfermagem numa estrutura hospitalar, depende, entre outros fatores, das condições e do volume de trabalho. Atendendo apenas aos inventários de 2 enfermarias para homens em 1773 (Termos… Livro nº 14, p. 11-12), é lícito concluir que nessa altura o hospital teria uma capacidade instalada para atender a pelo menos 110 enfermos. Se tivermos em consideração que para além dessas duas enfermarias existiam pelo menos mais 3: duas para mulheres (medicina e cirurgia) e uma para convalescentes, o número de camas não seria inferior a duas centenas. Nos anos de 1778-80 as epidemias que atingiram a cidade levaram a uma ocupação desusada das instalações, chegando a existir casos de ocupação simultânea de leitos por dois doentes. Em 1799, havia já “muitos enfermos deitados pelo chão e a dois e três em cada cama” (Basto, 1931, p. 26-27). A crescente atividade hospitalar encontra-se manifesta não só nos inventários mas também em alguns dos contratos. Num deles, em outubro de 1783, foi a enfermeira da cirurgia das mulheres quem solicitou a contratação de uma nova ajudante, pelo facto da sua enfermaria estar “(…) cheia de mulheres doentes e precisava de ajudanta para auxiliar o trabalho do curativo e expedientes da dita enfermaria” (Termos… livro nº 14, p. 66V). A urgência seria tal que foi a própria enfermeira quem propôs a nova candidata, atestando da sua “fidelidade e honestidade.” Em 1799 a enfermeira Ana Ribeira foi readmitida numa situação de rutura de pessoal, pela “(...) urgentíssima necessidade da sua assistência, por terem caído enfermas as ajudantes e não se achar quem pudesse suprir o seu lugar” (Termos… Livro nº 15, p. 31V). No mesmo documento o mordomo informava a Mesa com apreensão, apontando que “... no mesmo [hospital] há necessidade de Enfermeira, com maior razão de terem caído enfermas as ajudantes e desejando esta socorrer os miseráveis doentes de tudo o que lhe for preciso" (Termos… Livro nº 14, p. 31V). Se bem que os enfermeiros tidos por competentes podiam continuar ao serviço durante décadas, assistia-se a uma elevada rotatividade de profissionais, pelo que podemos inferir que este ofício não fosse desempenhado indefinidamente pelos seus praticantes. A figura 10 mostra o nome e os respetivos meses de serviço de cada um dos enfermeiros contratados. O tempo médio de serviço de todos eles, homens e mulheres, rondava os 59,8 meses. No caso das mulheres era de 45,6 meses e no dos homens 69,4 meses, o que mostra

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que os homens permaneciam em média mais 14 meses em serviço. Encontrámos apenas 5 casos de enfermeiros que serviam por mais de sete anos, 4 deles do sexo masculino.

Figura 10. Meses de serviço por enfermeiro contratado entre 1771 e 1799. Valores aferidos ao mês.

Teresa Angélica

48

Estevão José de Mello

60

Custódio José de Carvalho

3

Maria Ferreira

35

Ana Ribeira

60

António da Silva

37

Teresa Angélica

24

Márcia Ventura

13

Rosa Maria

83

Maria da Assunção

11

Ana Joana Gomes

6

Manuel Teixeira

180

José António de Azevedo

312

Ana Ribeira

157

Maria Ritta

14

Mariana Teresa

5

Francisco José de Sousa

23

Leocádio Joaquim da Silva

321

Maria Ana

11

José Manuel dos Santos

12

José Pereira Ramos

175

Ana Ribeira

90

José Bernardo da Fonseca

7

Gabriel Guedes

13

José de [ilegível]

7

Antonio José Moreira

62

José António

21

António José Moreira

12

Teotónio Manuel de Azevedo

0

António José Pinheiro

3

Clara Maria de São Domingos

82

José António

27 0

50

100

150

200

250

300

350

Fonte: Termos de entradas de serventes e enfermeiros no Hospital Geral (1771 – 1800). Livros nº 14-16.

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As mulheres permaneciam em serviço menos tempo que os homens, mas subsistem dúvidas acerca dos motivos que as levam a abandonar o ofício ou as verdadeiras razões de despedimento. Mesmo assim, a análise dos dados aponta várias razões possíveis, algumas delas claramente explicitadas, e outras que permanecem obscuras. A permanência em funções e a saída eram determinadas por um conjunto de fatores. Em primeiro lugar, pela vontade do enfermeiro, que a qualquer altura podia por termo ao contrato e em segundo pela disponibilidade para exercer funções, o que acontecia em caso doença. São vários os casos de interrupção forçada por períodos mais ou menos longos devido a doença, o que implicava a imediata suspensão de pagamento. Geralmente, o hospital dispunha permanentemente de 5 enfermeiros em funções, substituídos conforme eram dispensados. O incumprimento das cláusulas contratuais podia levar ao despedimento simples, ou, em casos graves, o visado podia incorrer em pena de expulsão, comprometendo dessa forma a possibilidade de uma futura readmissão. Se analisarmos os motivos de saída, percebemos melhor a pressão a que se encontrava sujeito o exercício da enfermagem laica. Residem aqui os “desvios” àquilo que deveria ser a norma no comportamento e desempenho das funções impostas pelo regulamento. Na verdade, o perfil dos contratados nem sempre correspondia às exigências das determinações regulamentares: a norma assistiu a desvios, num espaço sob pressão.

Figura 11. Motivos de saída dos enfermeiros contratados entre 1771 e 1799. TRANSFERÊNCIA MULHERES

7

2

1

DESPEDIU-SE

4

FOI DESPEDIDO EXPULSÃO FUGA

HOMENS

2

3

2

2

1

1

7

MORTE BAIXA

0%

20%

40%

60%

80%

100%

DESCONHECIDO

Fonte: Termos de entradas de serventes e enfermeiros no Hospital Geral (1771 – 1800). Livros nº 14-16.

Metade das mulheres simplesmente foi despedida (50%), duas delas foram expulsas (14%), e apenas uma saiu por motivo de doença (7%). No caso dos homens, assistimos igualmente a duas expulsões, mas a percentagem de despedimentos foi bastante inferior: 20%.

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A maior parte das saídas masculinas tiveram lugar de forma voluntária, distribuindo-se de forma mais ou menos semelhante entre o autodespedimento (16,5%), a fuga (5%), a morte em serviço (5%) e a transferência interna (10%). Os que abandonavam as funções eram poucos, e só encontrámos um caso de fuga: o enfermeiro dos convalescentes, que em agosto de 1778 “recebeu dois mil reis de ordenado de dois meses e ausentou-se sem ter a atenção de se despedir ou dar parte da sua retirada ao mordomo do hospital ou à mesa da misericórdia” (Termos… Livro nº 14, p.7). O não cumprimento das funções regimentais era apenas um dos motivos passíveis de ser invocados para o despedimento. As fontes são relativamente omissas quanto aos reais motivos, apontando por vezes razões vagas e imprecisas. A enfermeira despedida em março de 1786 foi mandada “…embora por defeitos que se lhe achavam” (Termos… Livro nº 14, p. 70V), ao passo que a enfermeira Márcia Ventura foi despedida em setembro de 1788 após 11 meses de serviço “por justos motivos” (Termos… Livro nº 14, p. 83). A enfermeira Maria Ferreira foi despedida em junho de 1798 e “não pode ser admitida, pela falta de seriedade e bom procedimento” (Termos… Livro nº 15, p. 58). No caso da enfermeira Maria Ana, a gravidade das acusações levou a um registo pormenorizado. Despedida em novembro de 1779 ao cabo de 11 meses de trabalho ininterrupto, a justificação assentou em queixas dos doentes acerca da sua “(…) pouca caridade, com que os tratava, deixando-os gritar nas suas maiores dores sem ao menos lhes perguntar o que tinham (…) sendo dotada de más palavras, a todos escandalizava (…)” (Termos… Livro nº 14, p. 33V). O inquérito encetado pelo mordomo António Gomes acabou por confirmar estas e outras acusações, incluindo o desvio de géneros alimentares aos próprios doentes, o que levou ao despedimento sumário. Os baixos ordenados estavam na base de vários problemas, entre os quais os casos cada vez mais frequentes de gratificações que alguns doentes entregavam aos enfermeiros, com o intuito de obterem tratamento preferencial e/ou uma melhoria na dieta alimentar. Apesar de formalmente proibidos de aceitar qualquer gratificação, a documentação mostra que em 1794 o hospital se debatia com a preferência nos tratamentos a doentes que gratificam os enfermeiros que os cuidavam (Regimento… Livro nº 11, p. 21-23). Acrescia a isto o facto do número de doentes internados exceder a capacidade hospitalar, que em 1794 já tinha atingido um claro ponto de rutura, tal como o atestam as queixas contra os enfermeiros (Regimento… Livro nº 11, p. 23V). Feitos de forma discreta, os abusos dos enfermeiros, que “regulavam a dieta para disporem dela a seu arbítrio, por afeição ou interesse usando de falarem baixo e por acenos”, eram prática corrente (Regimento… Livro nº 11, p. 27).

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Daí que as providências regulamentares da administração manifestassem a preocupação em acabar com este tipo de comportamento:

“Que os enfermeiros, ajudantes e os mais do serviço das enfermarias não aceitem dinheiro algum nem outra cousa por gratificação de lhe darem melhor cama ou preferência no comestível, ou da pessoa da sua obrigação ou amizade, ou pelos amortalhar” (Regimento… Livro nº 11, p. 27).

O défice de alfabetização de grande parte dos enfermeiros, aliado aos abusos do pessoal das enfermarias e à quantidade de internados, levou a uma nova proposta da Mesa em outubro de 1794, sugerindo-se que os médicos também passassem a ser acompanhados nas visitas por um escriturário. Nessa altura, recomendava-se que os médicos e cirurgiões prescrevessem a alimentação dos enfermos à “(…) vista da necessidade do doente, evitando-se o perniciosíssimo abuso de serem os mapas incorretos que formavam, ditados pelos enfermeiros (…)”, registando-se em tábuas (mapas) na cabeceira dos doentes “(…) o seu alimento e remédios e não entregue à débil memória e vontade do Enfermeiro, podendo à vista da tabela o irmão Mordomo, ou qualquer ajudante vindicar (sic) da falta de execução do que nela se acha determinado” (Regimento… Livro nº 11, p. 29). A preocupação com os bens hospitalares e os desvios de géneros levou a um reforço da vigilância dos mordomos, que deveriam “(…) indagar se os enfermeiros, ajudantes, ou pessoas empregadas no serviço do hospital convertem em diferentes usos o qual é aplicado para os doentes. Não só comestíveis, mas também lençóis, roupas, remédios (…)” (Regimento… Livro nº 11, p. 27V). As obrigações contratuais acerca das roupas das enfermarias eram relembradas a cada inspeção dos mordomos. Realizados com intervalos irregulares, os inquéritos punham a descoberto as faltas de roupa, obrigando os enfermeiros a repor a correspondente dívida, sob pena de despedimento. Em setembro de 1795 foi levantado um auto de declaração da “roupa que se achava em falta”; o exame indica o nome dos enfermeiros que nelas prestavam serviço, bem como as coimas impostas a cada um pela roupa desaparecida:

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Quadro 1. Coimas pagas pelos enfermeiros em setembro de 1795. Enfermaria

Nome

Coima

Medicina de homens

José António

Entregou 2 travesseiros

Medicina das mulheres

Ana Ribeira

6 tostões por 2 lençóis em falta

Cirurgia dos homens

António Silva

820 réis por 2 lençóis “velhos”, 2 travesseiras e 1 toalha

Cirurgia das mulheres

Maria Ferreira

6 tostões por 2 lençóis

Convalescença de homens

Leocádio Joaquim

1080 réis por 1 lençol, 3 travesseiros e 4 camisas

Fonte: Termos de entradas de serventes e enfermeiros no Hospital Geral (1771 – 1800). Livro nº 15, p. 64.

A inspeção realizada em abril de 1796 não detetou falhas significativas senão um lençol na medicina dos homens, que o enfermeiro pagou (Termos … Livro nº 15, p. 59V). No entanto, em abril de 1798 as coimas foram ainda maiores do que as verificadas em 1795:

Quadro 2. Coimas pagas pelos enfermeiros em abril de 1798. Enfermaria

Nome

Coima

Medicina de homens

José António

600 réis por 20 lençóis

Medicina das mulheres

Ana Ribeira

2500 réis por 3 lençóis e 2 travesseiros

Cirurgia de homens

Estevão José de Mello

18 tostões [1800 réis] por 18 travesseiros. O fiador (António Jorge de Araújo) pagou 3 640 réis por 6 lençóis, 3 camisas e 4 toalhas

Cirurgia das mulheres

Maria Ferreira

1500 réis por 5 lençóis e 1 manta

Convalescença de homens

Leocádio Joaquim

10 tostões [1000 réis] por 2 lençóis e 4 travesseiros

Fonte: Termos de entradas de serventes e enfermeiros no Hospital Geral (1771 – 1800). Livro nº 15, p. 104.

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Os valores das coimas avivam ainda mais a grande assimetria entre as responsabilidades exigidas e a retribuição auferida, justificando os diversos problemas associados ao ofício em contexto hospitalar. A documentação alude ainda àquilo a que hoje designaríamos por degradação dos padrões de qualidade dos cuidados e da higiene. A 13 de fevereiro de 1800 a Mesa lavrava um termo de registo onde se advertiam “(…) aos Enfermeiros (…) que nunca jamais deitem o Enfermo que chega de novo a mesma roupa de cama que serviu a outro enfermo que saiu curado, erro este em que estão atualmente praticando escandalosamente contra as intenções da mesa (…)” (Regimento… Livro nº 11, p. 45-45V). No entanto, seria redutor encarar os desmandos hospitalares apenas sob o prisma deste grupo profissional. Os problemas da Mesa com os funcionários do hospital não se resumiam à enfermaria, alargando-se de igual maneira com todos os grupos profissionais, e nalguns casos de modo bem mais grave. O Quadro 3 mostra os motivos de saída de enfermeiros, comparando-os com os demais serventes, revelando outros locais plenos de conflitualidade e instabilidade laboral. Um dos lugres mais problemáticos e com maior rotatividade de pessoal era sem dúvida a cozinha. Mais de 49% dos cozinheiros foram despedidos ou expulsos, e é da cozinha que temos notícia dos maiores problemas, incluindo agressões, desobediência, alcoolismo e furtos. Apesar dos proventos do cozinheiro serem comparativamente dos mais elevados, nem por isso eram vistos como adequados ao exercício da função. Em agosto de 1795 o titular do cargo despediuse por não lhe terem aumentado o ordenado de 4.800 réis mensais (Termos… Livro nº 15, p. 54). O vencimento acabaria por ser aumentado mais tarde, e em março de 1799 já se encontrava nos 5.400 réis/mês (Termos… Livro nº 15, p. 124). O rol das razões invocadas na hora de dispensar os cozinheiros é longo, pelo que apontaremos apenas algumas situações que explicitam a vivência no local de maior instabilidade e conflitualidade de toda a instituição. Em março de 1774, o cozinheiro foi expulso por alcoolismo e agressões ao seu ajudante (Termos… Livro nº 14, p. 14). Noutro caso, e seguindo as palavras do mordomo: “Este cozinheiro não deve ser mais admitido sem ordem e mandato da mesa”. Mais tarde, em maio de 1789, aponta-se que “Entrou no Hospital, e depois de pedir licença de baixo de termos pacíficos se foi à cozinha descompor os oficiais dela, insultando-os com palavras afrontosas sem atender a pessoa alguma e prometendo espancamento” (Termos… Livro nº 14, p. 85V). Mas os cozinheiros não estava sós neste estendal de peripécias. Entre os ajudantes de cozinha, que geralmente exerciam funções por períodos de tempo iguais ou inferiores a um ano, também se encontram vários casos de negligência laboral, desobediência e roubo.

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Porteiro

Costureira

Lavadeira

Servente

F

M

M

M

F

F

F

Despediu-se

3

0

13

17

1

5

2

1

0

0

0

Foi despedido

2

7

18

16

4

13

5

2

0

2

2

Expulsão

2

2

3

3

0

6

1

1

0

0

1

Fuga

1

0

1

1

1

0

1

0

0

0

0

Transferência/pr omoção

2

0

4

3

0

1

5

1

0

0

0

Morte

1

0

1

1

0

1

0

0

0

0

0

Baixa (doença)

0

1

0

0

1

0

0

0

0

0

0

Desconhecido

7

4

17

21

8

6

14

7

1

3

0

Total de contratados

18

14

57

62

15

32

30

12

1

5

3

%

56

44

48

52

100

100

100

100

100

100

100

Ajudante

de cozinheiro

F

Ajudante

M

saída

Cozinheiro

F

Motivo de

do sangue

Mulher

M

Enfermeiro

de enfermaria

Quadro 3. Saída de funcionários do Hospital Real (1771-1799).

Fonte: Termos de entradas de serventes e enfermeiros no Hospital Geral (1771 – 1800). Livros nº 14-16.

A cozinha era um local de tal forma problemático e causa de tantos desmandos, que em outubro de 1787 o contrato do cozinheiro estipulava claramente que “(...) não consentirá pessoa alguma de fora, nem doente na cozinha, nem conversas desnecessárias dos mesmos serventes” incluindo no clausulado que o cozinheiro não devia consentir “nela senão os servos”, impedindo a “entrada das pessoas de fora” das quais provinham “muitos inconvenientes prejudiciais à economia da casa, que se tem visto e experimentado (...)” (Termos… Livro nº 14, p. 84V). Outro exemplo pouco edificante é-nos relatado em julho de 1799, altura em que “Foi despedido (…) por desinquietar as serventes do Hospital, sendo achado em [ilegível] com uma delas, e além disso por pouco fiel, e por não observar as obrigações que tinha prescrito de não consentir na cozinha os enfermos e particularmente os soldados” (Termos… Livro nº 15, p. 116). Não se julgue, contudo, que estes problemas eram apanágio dos serventes. Para além dos variados casos de funcionários despedidos e expulsos em todas as categorias profissionais,

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em novembro de 1797 foi a vez de 2 praticantes de cirurgia serem repreendidos e multados por faltarem à suas obrigações, mas sobretudo por injúrias contra os mordomos e agressões a um ajudante de enfermaria (Regimento… Livro nº 11, p. 38).

7. Conclusões

Os enfermeiros do Hospital Real enquadravam-se num contexto institucional onde detinham funções que ultrapassavam as ditas artes de curar, participando, se bem que de forma subordinada, na gestão da sua enfermaria. A enfermagem estava ligada à prática de um trabalho que incluía cuidar da higiene e alimentação dos doentes, ministrando-lhes os remédios e cuidando da manutenção da limpeza das enfermarias. Os tratamentos, fossem eles medicamentosos ou outros, realizavam-se sob a tutela do médico e/ou do cirurgião-mor. No caso dos enfermeiros do Hospital Real da Misericórdia do Porto, não se fugia destas convenções. Detendo a autonomia na gestão interna da sua enfermaria, tutelavam por sua vez o trabalho dos seus ajudantes, que habitualmente se confundia com o seu, mas com o encargo acrescido da administração de todo o espólio, incluindo mobiliário, louças e demais utensílios sob a sua responsabilidade. Mesmo assim, subsistia uma certa sobreposição de competências relativamente aos seus ajudantes, assente numa escassa distinção retributiva e numa diferenciação profissional mitigada. As fileiras da enfermagem hospitalar eram preenchidas de forma irregular, podendo depender da reconversão profissional (ou tirocínio) de cirurgiões, ou através da promoção dos ajudantes, expedientes que revelam um ofício ocupado por uma heterogeneidade de proveniências. O estatuto era inferior ao de médicos, cirurgiões, dos sangradores, ou até dos cozinheiros, algo que se pode inferir a partir dos ordenados auferidos, mas também pelo tipo de subordinação hierárquica e funções desempenhadas na orgânica hospitalar. E se poderíamos apontar a especificidade do trabalho realizado, esta não era tanta que o colocasse num patamar substancialmente

diferente

dos

ajudantes

de

enfermaria,

cujo

trabalho

não

era

substancialmente diferente e cuja remuneração era pouco inferior. Se seria de supor encontrar uma ocupação eminentemente feminina, é interessante notar a existência de uma divisão muito equitativa entre géneros, o que não destoa com a divisão das próprias enfermarias.

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As grandes diferenças dentro do grupo parecem encontrar-se em aspetos como a alfabetização, a duração média do tempo de serviço ou os motivos que os levam a sair do hospital. Sendo aparentemente díspares entre homens e mulheres, os motivos que se enumeraram revelam os problemas decorrentes de um recrutamento e formação díspares. Apesar dos desvios encontrados deixarem transparecer os problemas de um grupo profissional assimétrico e sob a pressão de múltiplas obrigações e baixos salários, tal não deve ser encarado senão como uma das faces de um problema de conflitualidade laboral, que se mostra bem mais evidente noutros espaços da instituição. Daí que o ofício da enfermagem não possa ser desligada do contexto institucional em que se inscreve. Ao longo do último quartel do século XVIII o Hospital Real debateu-se com problemas internos decorrentes do elevado volume de doentes, da desadequação entre as exigências colocadas aos serventes e a qualidade do recrutamento. O facto de se trabalhar num hospital que avançava lentamente para o seu termo e o grande investimento posto na construção do novo Hospital de Santo António, talvez possam justificar em parte a manutenção de baixos salários, fator que tem sempre peso na hora de analisar a vivência laboral de quem trabalha em qualquer instituição hospitalar.

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Notas Este artigo serviu de base à comunicação apresentada no II Simpósio Internacional da Associação Internacional de História da Enfermagem, realizado na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa em 10 de novembro de 2015, originalmente intitulada “…tratar dos doentes da enfermaria com toda a caridade…”: norma e desvio no ofício de enfermeiro do Hospital Real da Santa Casa da Misericórdia do Porto (1771 – 1799).

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