O corpo na velhice

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INSTITUTO POLITÉCNICO DE VIANA DO CASTELO ESCOLA SUPERIOR DE ENFERMAGEM DE VIANA DO CASTELO

SEMINÁRIO - ANTROPOLOGIA DO CORPO

O CORPO NA VELHICE

Elaborado por: Enf.º David Sousa Enf.º Fernando Lemos Viana do Castelo, Junho 2008


Antropologia do Corpo

II CPLEER - 2008

PENSAMENTO

"Idoso é quem tem o privilégio de viver uma longa vida... Velho é quem perdeu a jovialidade. Você é idoso quando sonha... Você é velho quando apenas dorme. Você é idoso quando ainda aprende... Você é velho quando já nem ensina. Você é idoso quando se exercita... Você é velho quando somente descansa. Você é idoso quando tem planos... Você é velho quando só tem saudades. Para o idoso a vida se renova a cada dia que começa... Para o velho a vida se acaba a cada noite que termina. Para o idoso o calendário está repleto de amanhãs... Para o velho o calendário só tem o ontem.

Giulio Vicini

Enf.º David Sousa e Enf.º Fernando Lemos

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mas que nunca fique velho."

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Que você, idoso, viva uma vida longa,


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AGRADECIMENTOS: Ao Prof. Mestre Pedro Pereira, pela simpatia e pela colaboração que nos prestou para que a concretização deste trabalho fosse possível. Às idosas entrevistadas, pois sem elas este trabalho não seria realizado, um agradecimento pela disponibilidade e afecto com que nos receberam, e pelos momentos fantásticos e divertidos que nos proporcionaram.

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que, com paciência, suportaram as nossas ausências.

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Um agradecimento muito especial aos nossos familiares

Enf.º David Sousa e Enf.º Fernando Lemos


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RESUMO O estudo que de seguida se apresenta pretende conhecer as percepções de mulheres idosas face ao envelhecimento do seu corpo. Assim, partindo de uma amostra constituída por quatro idosas, duas provenientes de meio rural e outras duas originárias de ambiente urbano, a colecta de dados foi realizada através da realização de entrevistas semi-estruturadas. Os resultados obtidos permitiram aferir se o meio de origem tem ou não influência nas concepções que estas idosas desenvolveram a partir dos sinais e sintomas de envelhecimento do seu corpo.

ABSTRACT The study that is presented below, aims to ascertain the perceptions of elderly women over the age of their body. Thus, from a sample of four elderly people, two from rural areas and two others from the urban environment, the gathering of data was performed by the implementation of semi-structured interviews. The results allow knowing if the means of origin has or not influence on these

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concepts that old women developed from the signs and symptoms of aging of their body.

Enf.º David Sousa e Enf.º Fernando Lemos


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SUMÁRIO

Nota introdutória

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1.

O Corpo

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2.

O Processo de Envelhecimento

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2.1. Síndrome do Envelhecer

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2.2. Envelhecimento e Modelos Sociais Femininos

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2.3. Envelhecimento e Estilos de Vida

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2.4. Envelhecimento e Qualidade de Vida

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3.

O Percurso Metodológico

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3.1 Tipo de estudo

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3.2 Definição da amostra

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3.3 A recolha de dados

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3.4 O tratamento da informação – a análise de conteúdo

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Bibliografia

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Conclusão

Enf.º David Sousa e Enf.º Fernando Lemos


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NOTA INTRODUTÓRIA O corpo e as imagens mentais que se criam sobre ele ocupam um lugar fundamental no inevitável processo de envelhecimento. A Antropologia alerta para a importância de se considerarem todas as formas que o corpo humano assume ao longo da vida, bem como o modo como cada cultura classifica essas formas, encaradas como evidências de poder social e prestígio ou, pelo contrário, de decadência e fragilidade. É evidente que o corpo é importante para os indivíduos nas suas diferentes fases da vida, seja como corpo de criança, de adolescente, de jovem, de adulto e de velho. As alterações das formas corporais ao longo do tempo indicam também a existência de uma história de vida. Assim sendo, é importante que as mudanças físicas sejam encaradas e reflectidas como parte de um processo e não apenas sujeitas a uma mera avaliação. As alterações sofridas pelo corpo, com o passar do tempo, sustentam diferentes representações sobre o mesmo. Noutras palavras, promovem várias formas de avaliar e também indicam percepções do valor do ser humano. O processo de envelhecimento modifica a aparência do corpo – no seu aspecto visível – de várias maneiras, as quais apontam também para uma alteração na percepção do próprio sujeito, pois “cada pessoa é única e envelhece em função do que viveu.” (Jaques, 2004:35). A visibilidade do corpo humano, tendo em vista que este ocupa espaço e é visto, chama a atenção para a mudança e apela a uma reflexão sobre a verdadeira comunicação entre os indivíduos. Assim sendo, uma análise das transformações a que o corpo está sujeito e à sua aparência na velhice, implica perceber as várias atribuições que são imputadas à identidade, à individualidade e ao valor social das pessoas idosas. Torna-se pertinente aferir a idade para se ser idoso, no entanto a imposição de um limite cronológico, é meramente arbitrária. “A entrada na velhice depende de vários aspectos que ultrapassam os limiares da mera cronologia. Cada indivíduo reage de forma única ao avanço da idade. A velhice é construída paulatinamente, para o que concorrem variáveis biológicas e sociais” (Farinnatti, 2002:129) Com este trabalho pretendem conhecer-se as concepções de quatro idosas

diferentes contextos sociais – rural e urbano.

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atribuem mais e menos importância e comparando as percepções com origem em

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acerca do envelhecimento do seu corpo, identificando posteriormente os aspectos a que


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1. O CORPO As transformações que acontecem no corpo ao longo da vida adquirem significados diversos nos diferentes contextos sociais. "O corpo é a mais irrecusável objetivação do gosto de classe, que manifesta de diversas maneiras. Em primeiro lugar, no que tem de mais natural em aparência, isto é, nas dimensões (volume, estatura, peso) e nas formas (redondas ou quadradas, rígidas e flexíveis, rectas ou curvas, etc...) de sua conformação visível, mas que se expressa de mil maneiras toda uma relação com o corpo, isto é, toda uma maneira de tratar o corpo, de cuidá-lo, de nutrilo, de mantê-lo, que é reveladora das disposições mais profundas do habitus". Bourdieu, P. (1988:188).

Na sociedade actual, permanece uma imagem negativa da velhice, que está associada a um declínio de vitalidade, não só porque já se ultrapassou o ponto alto da capacidade produtiva, mas porque esta mesma incapacidade está associada à perda gradual do controlo sobre o corpo e a mente (Featherstone, 1994). Deste modo, estar no mundo e ser identificado como sua parte integrante faz parte da percepção de si mesmo e do outro como seres independentes e autónomos e, nesta percepção de si próprio como membro da colectividade, está implícita a ideia de um corpo circunscrito, que define o seu espaço de privacidade e intimidade. A ideia de dignidade na terceira idade, embora não só nesta fase da vida, está associada a um corpo demarcado que, na velhice, é ameaçado por diversas interferências, muitas delas associadas à sua própria adequação ao modelo do envelhecimento. Os sinais negativos da velhice são normalmente evidenciados pela perda, gradual ou abrupta, destas formas de controlo, exigindo um maior esforço por parte da pessoa em dominar o seu corpo e vigiar o funcionamento da sua mente. Elias (1994) demonstra que o controlo do indivíduo sobre o seu corpo e as suas emoções faz parte de um amplo processo de instauração da modernidade, onde os grandes eventos estão remetidos às exigências de mudança de comportamentos e de sentimentos. Os procedimentos de socialização e a aprendizagem de conduta nos espaços públicos e

O corpo humano é feito de tecido adiposo, tecidos magros (músculos e órgãos), ossos, água e outras substâncias. À medida que envelhece, o montante e a distribuição destes componentes irá mudar. A percentagem de tecido adiposo pode aumentar cerca

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interligando o controlo da natureza, o controlo social e o autocontrolo” (Elias, 1994:116).

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privados são, ao mesmo tempo, condições e efeitos da modernidade: “Há um anel


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de 30% e depositar-se na direcção do centro do corpo, incluindo em torno dos órgãos abdominais. Conforme aumenta a gordura, a massa corporal magra diminui. Os músculos, fígado, rim e outros órgãos podem perder algumas das suas células. Os ossos podem perder sais minerais e tornar-se menos densos. A perda de tecidos reduz a quantidade de água no organismo. A perda de altura também está relacionada com o envelhecimento, devido a mudanças nos ossos, músculos e articulações. A perda de massa muscular nas pernas e as alterações na forma corporal podem afectar o equilíbrio. A vigilância e o controle de si mesmo são também exercidos de diferentes formas em homens e mulheres de distintos segmentos, dependendo dos espaços sociais em que se movem. As diferenças de género surgem, nesta fase da vida, sob a forma de uma intervenção diferenciada no corpo feminino e masculino. É frequentemente sobre o corpo feminino que se realiza um investimento médico e estético mais acentuado, comparativamente ao dos homens. O cuidado e a intervenção preventivos no corpo feminino iniciam-se muito cedo na trajectória de vida das mulheres e, actualmente, esses cuidados alcançam a velhice sob a forma de tentativas de controlo dos sinais corporais do envelhecimento, através de cirurgias, reposições hormonais, tratamentos estéticos, medicamentos, etc. Palmeira (2005) considera que falar em corpo só fará sentido quando esse corpo estiver referenciado a alguém, um corpo com dono, mas que age de acordo com o meio social em que se situa e movimenta. Assim, o que pertencia apenas à esfera do privado passa para a esfera pública, através de uma “subordinação do corpo ao olhar do outro, nesta era de corporeidade” (Palmeira, 2005:42) Na verdade, a mesma autora considera que o conceito do corpo em si está intrinsecamente ligado à imagem social da pessoa, quando sustenta que: “O corpo é um fenómeno com múltiplas facetas, nomeadamente a da desigualdade social, pois a forma como olhamos o corpo pode ser indicativa da pertença de classe. “Se, em meios mais desenvolvidos, o corpo é visto numa perspectiva estética, em meios com carências económicas o corpo é um instrumento de trabalho imprescindível à sobrevivência” (Resende, 1999, citado por Palmeira, 2005:42).

em que se encontra. Pedindo emprestadas as palavras de Erving Goffman (1961), a autora reforça esta ideia de que o corpo serve de fachada, quando diz:

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aparência a um actor social, o qual desempenha vários papéis de acordo com o cenário

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Ainda em Palmeira pode encontrar-se a convicção de que o corpo serve de


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“ o corpo manifesta-se nas interacções diárias que são sempre fachadas. Em cada fachada o actor social encarna uma determinada aparência e uma maneira de ser de acordo com o cenário em que se encontra. A aparência reflecte o estatuto social do actor e o papel (formal ou informal) que ele desempenha e a maneira refere-se ao papel da interacção que o actor vai desempenhar. Para determinada aparência podemos desempenhar vários papeis, o papel de simpático, arrogante, amigo, entre outros, que são acompanhados por uma determinada interacção que implica que o corpo se comporte de determinado modo. (Palmeira, 2005:43)

Já Michel Foucault (2000) é também referenciado por Palmeira neste contexto, uma vez que sustenta “a necessidade de adoptar uma nova forma de olhar o corpo (…) que coincide com o advento do capitalismo, através da vigilância.” Este autor atribui grande importância ao corpo, afirmando que ele é construído através do discurso. Muitas considerações haveria ainda a fazer sobre o corpo e as diferentes formas de o sentir, de o encarar e de lidar com ele, mas, para terminar, ficamos com a frase de José Gomes (2003, citado por Palmeira, 2005:45): “O corpo fala. O corpo traduz o que

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as palavras calam. O corpo é o inconsciente”.

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2. O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO Ao ser “forçado ao envelhecimento” o ser humano sente-se encurralado num beco sem saída, do qual não se pode fugir, pelo menos sem um exercício veemente e intenso de criatividade. Apregoar a beleza do envelhecimento, é, num certo sentido, “tapar o sol com a peneira”, pois a experiência subjectiva de um tempo que se escoa, de uma vida que já foi em parte vivida e que não pode ser revivida, é penosa e exige um esforço enorme por parte das pessoas para que se alcance uma forma de adaptação. Existem várias formas de descrever o processo de envelhecimento, pois a pessoa pode ser considerada idosa tendo por base não só a sua idade cronológica, mas também a biológica e social. Em termos cronológicos, vários autores aceitam que a idade dos 60 aos 65 anos corresponde ao limite de transposição de adulto para idoso. No entanto, esta avaliação é bastante insatisfatória já que apenas quantifica o número de anos de vida do indivíduo, não tendo em conta o envelhecimento efectivo do mesmo. De facto, podemos constatar que vários indivíduos com a mesma idade cronológica apresentam diferenças físicas e comportamentais, que levam a que lhes sejam atribuídos diferentes graus de envelhecimento / juventude. “Os aspectos de envelhecimento universais são aqueles que todas as pessoas mais velhas compartilham em certa extensão (pele enrugada, por exemplo…)1 ”. Assim, poder-se-á considerar também a idade biológica, sendo que esta se refere ao estado de desenvolvimento corporal / degeneração física do indivíduo. Ora, em termos biológicos, o envelhecimento está associado à perda de capacidades e funções, bem como à alteração do aspecto físico da pessoa: “… ela tem pouca correlação com as mudanças físicas. Podemos pensar em pessoas de 70 anos com a aparência estereotípica de pessoas velhas (cabelos grisalho, pele enrugada, etc.) mas também em indivíduos “bem conservados” que não apresentam esse aspecto (agerasia) e adultos jovens 2

que parecem prematuramente envelhecidos ”.

Atribuem-se determinadas características físicas aos idosos como, por exemplo,

será, pois, tanto mais velho quanto maior for a evidência dos sinais descritos. No

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STUART-HAMILTON, Ian - Psicologia do Envelhecimento: uma introdução. (2002:19) STUART-HAMILTON, (1) p.20.

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desempenho de outras tarefas, nos levam a catalogar a pessoa como idosa. O indivíduo

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as rugas e os cabelos brancos que, em conjunto com dificuldades na locomoção e


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entanto, a idade biológica nem sempre corresponde à idade cronológica. É frequente encontrarmos casos em que o indivíduo aparenta maior ou menor idade do que aquela que realmente possui. Isto, tal como foi referido, deve-se ao seu aspecto e à forma como desempenha as tarefas do dia-a-dia. O modo como a pessoa cumpre as suas funções do dia-a-dia, não só no plano físico da eficiência ou da maior ou menor dificuldade com que as executa, chama-nos a atenção para um outro aspecto: a idade social: “Outra medida comummente usada é a Idade Social, que se refere às expectativas sociais de como uma pessoa deve comportar-se em determinada idade cronológica…3”. De facto, o comportamento pode ser um forte indicador do verdadeiro grau de velhice da pessoa. Socialmente, são atribuídos comportamentos específicos aos idosos, de forma que a alteração dos mesmos leva a concluir que a pessoa tem uma mentalidade mais jovem ou mais característica do idoso. São distinguidos aqueles que, com uma idade cronológica e mesmo biológica mais avançada, mantém um espírito jovem e uma mentalidade aberta. Mas a distinção pode ser positiva ou negativa, dependendo da perspectiva do observador já que, se em algumas situações é valorizada a pessoa mais velha por ter um comportamento jovem, noutras preconiza-se que ao idoso fica mal comportar-se de formas consideradas inadequadas à sua idade. No entanto, as mudanças físicas não são as únicas, nem talvez as mais traumatizantes. A perda do papel social é altamente negativa já que tal papel é fonte de pertença, dinamismo e valorização. O envelhecimento é, portanto, um desenvolvimento multifacetado, englobado no processo vital do indivíduo, pelo que continua a ser ambíguo e insatisfatório eleger uma única definição de “idoso”, sendo necessário procurar diferentes abordagens para o fazer. Representa um conjunto de processos geneticamente determinados e pode ser definido como uma deterioração funcional progressiva e generalizada, resultando numa perda de resposta adequada às situações de stress e num aumento do risco de doenças relacionadas com a idade avançada (Kirkwood, 1996). Noutras palavras, a razão principal para que os idosos fiquem mais frequentemente doentes do que os jovens, é que, em função de uma vida mais longa, foram expostos por mais tempo a fatores externos, comportamentais e ambientais causadores de doenças, do que as pessoas jovens (Gray, 1996).

ainda que as diferenças socioeconómicas tornam as experiências de envelhecimento

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STUART-HAMILTON, (1, 2) p.20.

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plasticidade e a diversidade como aspectos fundamentais deste processo e mostra

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A evolução do conhecimento sobre o modo como as pessoas envelhecem indica a


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muito diversas. Quando se refere um processo diferenciado de envelhecimento entre homens e mulheres, destaca-se uma maior percentagem de mulheres idosas, o que indicia quase uma “feminização da velhice”, fenómeno resultante da maior longevidade do sexo feminino. Na verdade, é um facto reconhecido que homens e mulheres vivem e envelhecem de forma diferente. Há factores intrínsecos e extrínsecos que distinguem a mulher idosa do homem idoso e, como tal, afectam os seus processos de envelhecimento, diferenciando as suas experiências. A idade também não constitui um factor de uniformização das condições dos idosos, pelo contrário, à medida que envelhecem tornam-se cada vez menos parecidos e todas as consequências das suas diferenças (de género, raça, classe social, estado civil, cuidados de saúde) se unem, apresentando-se como determinantes para o seu estado de saúde e para a sua longevidade. No entanto, é claro que os indivíduos, de ambos os sexos, sofrem perdas com o aumento da idade e têm de se debater com preconceitos e estereótipos nos meios sociais em que se movimentam, quaisquer que sejam as suas características, mas os recursos de que dispõem para enfrentar e lidar com a velhice são, já de si, diferentes. 2.1 Síndrome do Envelhecer O envelhecimento é percebido pelo próprio indivíduo como um movimento sem retorno, em que cada passo o leva a sentir-se num estado que nunca é melhor do que o anterior. As transformações vivenciadas confirmam uma sensação permanente de perda e os sinais concretos dessa realidade são visíveis: algumas antigas referências vão desaparecendo aos poucos, passa a deixar de pertencer a um certo grupo, ou é-lhe exigido que deixe de exercer determinada função social ou familiar, como quando chega à idade de reforma. Para algumas pessoas, o processo de envelhecimento provoca fortes sentimentos de já não fazer parte de um universo que as reconheça como pessoas com valor. A própria vivência de “estar na reforma” transmite-lhes um sentimento de destituição do seu anterior grau de dignidade. Nesse momento, os sujeitos vêem-se simultaneamente pertencendo a uma vida com história, mas sentindo-se excluídos, pois começam a fazer parte dos “indivíduos portadores da síndrome do envelhecer”.

utilizado de uma forma às vezes camuflada e subtil pela sociedade, para se referir a indivíduos em processo de envelhecimento.

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sinais e sintomas”, que pode ser produzido por mais de uma causa, passa a ser

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A noção de “síndrome” como sendo um “estado caracterizado por um conjunto de


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A síndrome de envelhecer vai-se instalando e culmina com o tempo cronológico, passando a determinar uma bárbara sentença de separação do indivíduo da sociedade e, muitas vezes, dos seus próprios desejos. Os sinais desse envelhecer, que nem sempre podem ser evitados, passam a transformar-se num parâmetro de quem é o portador dessa síndrome. Hoje, na verdade, a sociedade não aceita de forma satisfatória a pessoa que envelhece. Quando ao envelhecer ocorre a percepção de que muitas das antigas representações das suas vidas se estão a desconstruir, a pessoa pode viver uma forte sensação de angústia. A perda do cônjuge, a reforma, o corpo que já não responde prontamente às solicitações... esses sentimentos podem ser vividos com muita dor e ser acompanhados de desejos de morte. A dor que a pessoa vivencia quando se apercebe que vai perdendo o que o ajudou a constituir a sua identidade, pode trazer um sentimento de desestruturação, muitas vezes acompanhado de um desejo de esquecer. Podemos perceber que à medida que as pessoas envelhecem muitos dos seus antigos investimentos começam a desaparecer. O facto de alguns terem sofrido perdas (de estatuto social, de carreira, de filhos, de cônjuge) leva também a uma dolorosa vivência de luto e passam a sentir como que uma “falência da sua própria pessoa”. 2.2 Envelhecimento e Modelos Sociais Femininos Na verdade, a percepção do envelhecer dá-se muitas vezes por meio de algo significativo: um olhar ao espelho que, num relance, mostra o tempo que passou ou a morte súbita de alguém próximo, ambas as situações podem ser detonadoras de um sentimento de finitude. Quando a imagem é vista, caso agrade, a pessoa quer possuir/manter o que vê. Então, o cérebro apreende essa imagem e ela deixa de existir apenas “fora” para fazer parte de “dentro”, ou seja, do imaginário da pessoa. Por outro lado, recusa a imagem que não seja boa aos olhos dos modelos aceites pela sociedade. E como o “modelo ideal” é de juventude e de formas simétricas, a própria forma é desmotivadora, porque não se coaduna com as imagens vendidas nas revistas, nos filmes, na televisão. As mulheres de trinta a quarenta anos já não são mulheres de vinte, são diferentes, com corpos modificados pelas vivências e com outros projectos de vida.

apreendidas, levando muitas mulheres a sentirem-se menos dignas ou humilhadas apenas porque envelheceram.

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ninguém reflecte sobre que imagem será interiorizada, elas simplesmente são

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Contudo, a imagem dos “media” é poderosa, porque vivemos numa cultura visual e


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Raras são as pessoas que aceitam o desafio de ver “a beleza da deformidade” provocada pela idade no corpo. Entenda-se aqui “deformidade” como o desvio da forma dada pelo modelo social, não o que é considerado "anormal", mesmo porque não existe anormalidade. As pessoas são e serão normais e anormais dependendo do contexto em que estiverem inseridas. Privilegiadas são aquelas que não correm atrás de modelos para agradar aos outros. O belo é, neste caso, o que é pleno da sua singularidade. Entendida como um tipo de consumo cultural, a prática do “culto do corpo” é actualmente uma preocupação generalizada, que transcende classes sociais e faixas etárias, baseada num discurso mediatista que ora se apoia na questão estética, ora recorre à preocupação com a saúde. Contudo, se enquanto preocupação geral o culto ao corpo está presente em todos os estratos sociais, a maneira como se concretiza no interior de cada grupo é diversificada: a escolha da modalidade desportiva, da ginástica, da dança ou do ginásio, está associada, provavelmente, às demais esferas da vida de cada um e às restantes escolhas que a pessoa faz. A linguagem corporal é, no caso particular das mulheres mais do que nos homens, uma marca de distinção social, que assume o consumo alimentar, cultural e a forma de apresentação pessoal (incluindo vestuário, artigos de beleza, higiene, cuidados do corpo em geral) como as mais importantes formas de marcar a diferença, de se diferenciar dos outros pela imagem positiva de si própria, o que reforça a autoestima, aspecto essencial para se envelhecer com harmonia. 2.3 O Envelhecimento e os Estilos de Vida Muitas pessoas se preocupam com as mudanças na sua forma corporal decorrentes da idade. Embora muitas destas alterações não possam ser evitadas, podem tomar-se algumas medidas para ajudar a reduzi-las e os diferentes estilos de vida e escolhas desempenham um grande papel na forma como as mudanças relacionadas com a idade terão lugar, tornando o processo de envelhecimento mais gradual ou mais célere. “Estilo de vida” é um conceito amplo que engloba a pessoa como um todo e em todos os aspectos da sua actividade, isto é a forma como gere a sua existência 4, pelo que esses aspectos se combinam para influenciar todas as dimensões que compõem o conceito de saúde física, mental, social, emocional e espiritual, e se traduzem, segundo

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RAPLEY, Mark - Quality of Life Research: a critical introduction. (2003:128-130). RAPLEY (4) p.93-99

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aceitação social e qualidade de vida 5.

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o mesmo autor, em níveis de satisfação, de bem-estar, competência, capacitação,


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O conceito de “estilo de vida” pode também, numa acepção global, ser definido como uma relação entre o sujeito e o meio onde actua e pressupõe a apropriação duma cultura particular para que possa viver, agir e dominar esse meio. Rocher (1989) definiu estilos de vida como “maneiras de viver”. Esta aparente simplicidade encerra em si uma complexidade extrema, na medida em que faz apelo a um equilíbrio na instabilidade. Isto porque as “maneiras” pressupõem um ajustamento de todas as dimensões do sujeito individual à colectividade social e ambiental e “viver” implica a realização das vontades, desejos e anseios do sujeito. Toda esta gama de conceitos pode encaixar no de estilo de vida, entendendo-se este, tal como refere Rapley, como a forma como “o indivíduo gere a sua própria vida, se relaciona consigo próprio, com as outras pessoas e com o ambiente 6”. Na verdade, se bem que a genética tem uma importância fulcral na forma como se processa o envelhecimento, a influência do estilo de vida é algo comummente aceite como preponderante. É sabido que a adopção de estilos de vida saudáveis contribui para uma maior qualidade do envelhecimento e, neste campo, a alimentação equilibrada e o exercício físico ocupam papéis importantes. Por outro lado, comportamentos de risco como o consumo de álcool, tabaco, sedentarismo e outros, ditam as suas regras, sendo responsáveis por muitos dos problemas associados à velhice. Mas quando se fala em estilos de vida, não pode esquecer-se a actividade profissional que o indivíduo exerceu. Uma vida inteira de trabalho na agricultura, nas pescas, na construção civil ou outras, deixam marcas consideravelmente diferentes do que aquelas que são originadas por profissões fisicamente menos exigentes. Desta forma, é fácil de se compreender porque é que, no primeiro caso, as pessoas apresentam marcas de envelhecimento precoce, em oposição ao segundo, em que os indivíduos parecem mais “poupados”. Assim, por força de diferentes experiências do quotidiano, de diferentes interacções sociais, de concepções culturais divergentes e de uma distinta condição sócio-económica e profissional, as concepções de estilo de vida dominantes no meio rural deverão ser diferentes das do meio urbano. O processo de envelhecer será, pois, singular, na medida em que cada indivíduo, na sua trajectória de vida, terá diferentes sinais de envelhecimento e diferentes formas

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de lidar com as perdas e as mudanças que vai vivenciando.

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RAPLEY (4, 5) p. 78-80

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Os distintos modos de viver o envelhecer, para alguns podem significar um luto pessoal enquanto que, para outros, são momentos em que tomam consciência de novas percepções sobre si mesmos. O momento da vida e o lugar social que cada indivíduo ocupa no presente contribuem para fundamentar a representação da sua própria trajectória. A experiência de vida, valorizada pelos idosos como uma das poucas vantagens da velhice, é uma interpretação do seu passado. “No meu tempo”, expressão recorrente nas narrativas de idosos, incorpora o contraste entre um “bom tempo do passado” e o momento presente de alguma insatisfação com as mudanças no corpo, na vida familiar/profissional, nos hábitos e costumes. Nas suas conversas, perpassa algum sentimento de rejeição e de não pertencimento ao mundo actual. O poeta e psicanalista Rubem Alves (2002:27-28), em As cores do crepúsculo: a estética do envelhecer, pode ajudar a compreender a magia deste tempo que repentinamente se instala em quem envelhece: “O crepúsculo é o dia chegando ao fim. O tempo se acelera como se transformam rapidamente as cores das nuvens, no seu mergulho na noite. E, paradoxalmente, o tempo fica imóvel, paralisado num momento eterno. Por isso é que o crepúsculo é um momento sagrado, de oração, quando o eterno se oferece a nós numa taça efémera. Por isso cessa o trabalho (...). O Outono é o crepúsculo do ano. A colheita terminou. Tudo fica frágil, à espera. (…) E o tempo se imobiliza na espera do Inverno. Sim, imóvel como a folha de Outono. À espera do próximo vento. Como ela é bela na eternidade daquele momento efémero (...)”.

A beleza também é assim, uma coincidência entre a eternidade e despedida: aquilo que se deseja que exista eternamente e que escapa por entre os dedos, como água, ficando apenas o vazio. 2.4 Envelhecimento e Qualidade de Vida O factor individual surge como fundamental para se afirmar a inexistência de um sentido único de envelhecimento, podendo diferentes pessoas percorrerem diferentes percursos de envelhecimento com uma idêntica qualidade de vida. Nas palavras de Castellón (1998-2003), referenciado por Fonseca, (2007) “os indicadores de “qualidade

relações pessoais”. Ao que o mesmo autor afirma, “o conceito de envelhecimento “com qualidade de vida” só faz sentido numa perspectiva ecológica, visando o indivíduo no

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económicos, saúde, habitação, intimidade, segurança, pertença a uma comunidade,

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de vida” associados ao envelhecimento [são]: autonomia, actividade, recursos


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seu contexto sociocultural, integrando a sua vida actual e passada, ponderando uma dinâmica de forças entre as pressões ambientais e as suas capacidades adaptativas”. A qualidade de vida na terceira idade pode ser definida como “a manutenção da saúde, em seu maior nível possível, em todos aspectos da vida humana: físico, social, psíquico e espiritual”, segundo o “The WHOQOL Group” (1994), da Organização Mundial de Saúde. Acrescente-se a esta definição que qualidade de vida também pode ser o prazer de ter um corpo saudável e a aceitação de seus limites, o prazer de interagir em sociedade, a satisfação dos desejos na medida do possível e aceitável, a alegria de compartilhar e de aprender. Portanto envelhecer com qualidade de vida implica em sentir-se bem consigo mesmo, com as outras pessoas e com o mundo envolvente. Um dado conhecido e praticamente universal é que as mulheres vivem mais do que os homens e esta “vantagem” poderá ser atribuída, em parte, às diferentes doenças que acometem uns e outros. De facto, a incidência de doenças graves e/ou fatais é muito maior em homens idosos do que em mulheres de idade avançada. Entre estas predominam doenças incapacitantes e crónicas, mas não fatais, como artrite e hipertensão, que comprometem seriamente a sua qualidade de vida. Já entre os homens prevalecem as doenças isquémicas de coração, muitas vezes mortais. Assim, as mulheres idosas apresentam índices mais altos de morbilidade e mais baixos de mortalidade em comparação com os homens da mesma faixa etária. No âmbito da saúde e da funcionalidade física o género é um factor de risco mais importante do que idade, na medida em que as mulheres idosas são mais frágeis e se percebem como mais frágeis do que os homens idosos. Ora quando os efeitos da fragilidade física se somam aos efeitos de variáveis como a baixa escolaridade, o viver só e ter que se cuidar, ou o precisar de cuidados por parte de outrem, a qualidade de vida das mulheres tende a declinar. Normalmente ocorre que, na velhice, são as mulheres as mais afectadas pelas consequências negativas do prestar cuidados a

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pessoas da mesma idade ou mais velhas, geralmente o cônjuge, pais e sogros.

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3. PERCURSO METODOLÓGICO Com a realização deste estudo pretendem conhecer-se as concepções de mulheres idosas de diferentes contextos sociais e com distintos estilos de vida face ao envelhecimento do seu corpo. 3.1 Tipo de estudo Para prosseguir este objectivo foi efectuada a necessária pesquisa bibliográfica e, como se pretende conhecer bem de perto esta realidade, optou-se por um estudo de cariz qualitativo, uma vez que na investigação qualitativa o foco de pesquisa é a compreensão mais profunda dos problemas, é o que está por detrás de certos comportamentos, atitudes, ou convicções. No paradigma qualitativo, o investigador é o instrumento de recolha de dados por excelência e a qualidade (validade e fiabilidade) dos dados obtidos depende muito da sua sensibilidade, da sua integridade e do seu conhecimento. 3.2 A definição da amostra Não há neste caso, como é óbvio, qualquer preocupação com a dimensão da amostra, nem com a generalização de resultados, face à limitada dimensão do estudo, derivado da escassez de tempo para o concretizar e mesmo do propósito a que o mesmo se destina. Assim, a amostra utilizada foi formada por quatro idosas, duas delas oriundas de meios urbanos e outras duas provenientes de meios rurais, conforme se pode consultar resumidamente na tabela que se segue:

Idosa 2

Idosa 3

Idosa 4

67

83

85

73

Estado civil

Viúva

Viúva

Viúva

Viúva

Nível de escolaridade

4ºano

4ºano

3ºano

4ºano

Meio: rural/urbano

Rural

Urbano

Rural

Urbano

Cozinheira

Modista

Agricultora

Funcionária de secretaria

Idade

Actividade profissional

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Idosa 1

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CARACTERIZAÇÃO DA AMOSTRA


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Actividade doméstica

Doméstica / agricultora

Doméstica

Doméstica / agricultora

Actividades domésticas jardinagem

Crenças e práticas

Católica vai à missa e arranja os altares

Católica reza o terço diariamente

Católica vai à missa ao Domingo e participa nas cerimónias religiosas sazonais.

Católica vai a missa aos domingos e dias santos de guarda

Jardinagem, tratar animais domésticos, caminhadas, ler, participar em grupos de cantares tradicionais (janeiras e marchas populares)

Ver TV, ler livros sobre a religião católica.

Ir a festas populares, fazer excursões religiosas.

Fazer caminhadas, natação, viagens, ler e ver TV

religiosas

Ocupação de tempos livres (lazer, desporto…)

Tabela 1 - Caracterização da amostra

De uma breve análise à tabela acima apresentada podem extrair-se as seguintes ilações: - O intervalo etário existente entre as quatro idosas situa-se entre os 67 e os 85 anos, o que fornece uma amplitude razoável para o interesse deste estudo, dado envolver mais do que uma geração. - No que se refere ao estado civil a amostra é uniforme, na medida em que todas as idosas se encontram na condição de viuvez, o que acontece também no que diz respeito ao seu nível de escolaridade, que é muito baixo, estando situado entre o 3º e o 4º ano do ensino básico, correspondente às 3ª e 4ª classes do antigo ensino primário. - Quanto ao contexto social de origem procuraram-se pessoas oriundas de contexto rural e urbano, tendo sido possível conseguir duas de cada um deles, o que permitirá uma análise comparativa da influência deste aspecto nas concepções

contexto rural temos uma cozinheira e uma agricultora e em ambiente urbano as duas idosas encontram-se já aposentadas mas, na sua vida activa, exerceram as profissões de funcionária administrativa e modista.

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- As ocupações profissionais são diversificadas, sendo que, nas idosas de

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evidenciadas pelas idosas.


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- Face às suas crenças e hábitos religiosos, todas elas se identificam com a religião católica, usualmente participando nas actividades de culto. - A ocupação dos tempos livres acontece de forma distinta, na medida em que duas pessoas se encontram ainda numa fase de vida activa no exercício da sua actividade profissional, como é o caso da cozinheira e da agricultora; as restantes duas idosas, dado estarem já reformadas, têm mais tempo para dedicar a este tipo de actividades de lazer e ocupação de tempo livre, embora seja de realçar que uma das idosas que ainda trabalha é, simultaneamente, a que mais actividades deste género pratica. Na verdade, esta foi a amostra possível de reunir num relativamente curto espaço de tempo, pois algumas dificuldades se colocaram entretanto. De facto, algumas idosas previamente escolhidas para fazerem parte da amostra vieram a revelar-se demasiado emotivas, o que interferiu com o normal decorrer da entrevista, não possibilitando a obtenção de dados utilizáveis neste estudo. Por isso, das seis pessoas inicialmente seleccionadas, apenas quatro vieram a integrar, de facto, a amostra final. 3.3 A recolha de dados Os dados foram conseguidos através da realização de entrevistas, por estas se apresentarem como a forma mais simples, directa e confiável de obtenção de dados para esta finalidade. Poder-se-á definir entrevista como “a técnica em que o investigador se apresenta frente ao investigado e lhe formula perguntas, com o objectivo da obtenção dos dados que interessam à investigação” (Gil, 1999:117). Enquanto técnica de colecta de dados, a entrevista é um instrumento muito adequado para a obtenção de informações “acerca daquilo que as pessoas sabem, crêem, esperam, sentem ou desejam, pretendem fazer, fazem ou fizeram, bem como acerca das suas explicações ou razões a respeito das coisas precedentes” (Selltiz et al., 1967, citado por Gil, 1999:117) Dentre os diversos formatos de entrevistas, foi eleita a entrevista semiestruturada, que se caracteriza pela existência de um guião previamente preparado, o qual serve de eixo orientador para o desenvolvimento da mesma; este instrumento procura garantir que os diversos entrevistados respondam todos às mesmas questões (neste caso questões abertas), mas não exigindo uma ordem igual da sua formulação,

As questões colocadas foram apenas quatro (para além de uma destinada à caracterização), mas de carácter aberto, pois requerem uma explicitação mais pormenorizada do pensamento, de modo a permitir às pessoas que se explanassem

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um elevado grau de flexibilidade na exploração das questões colocadas.

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sendo que o desenrolar da entrevista se vai adaptando ao entrevistado, mantendo-se


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sobre o que quisessem, não se sentindo limitadas pela pergunta. O Apêndice 1 integra o guião utilizado na condução das entrevistas. 3.4 O tratamento da informação – a análise de conteúdo Numa fase imediatamente após a realização das entrevistas e respectiva gravação áudio, começou por se organizar todo o material recolhido, transcrevendo as gravações realizadas às pessoas entrevistadas para texto (Anexo 2) e atribuindo a cada uma designação e um número de ordem que a identificasse (Idosa 1, 2, 3 e 4). Posteriormente analisaram-se os conteúdos em profundidade, procurando unidades de sentido pertinentes para o objectivo do estudo. De seguida, procedeu-se à descrição dos dados obtidos, enriquecida com referências extraídas das entrevistas, que permitirá conhecer as percepções das idosas entrevistadas através das suas próprias palavras e expressões. Será a essa descrição que passaremos. O percurso de vida das idosas entrevistadas, apesar dos diferentes contextos de origem, tem pontos comuns em vários aspectos, nomeadamente o facto de todas elas terem um baixo nível de escolaridade e ainda o terem iniciado a sua vida activa muito jovens: “Desde que nasci, ora bem, foi trabalhar no campo… andei na escola muitos anos, até aos doze, mas só fiz a terceira classe”. (Idosa 3) “Podia ter estudado, mas não foi possível (…) Fiz-me uma modista… foi o que pude fazer.” (Idosa 2) “Desde muito cedo comecei a trabalhar no armazém com o meu pai. A vida era difícil e todos tínhamos que ajudar”. (idosa 4)

Nota-se que, esse facto, apesar de sentido como inevitável na sua condição de vida à altura, é fonte de algum desgosto e que as idosas se apercebem dele como uma perda de oportunidade para terem tido possibilidades de uma vida melhor. O casamento surge naturalmente como a fase seguinte da vida. “Depois casei e tive 4 filhos”. (Idosa 2).

Mas também é encarado como ponto de viragem na vida destas pessoas: “Casei com trinta e… talvez trinta e oito anos e depois a vida é outra como se sabe…”

nosso corpo muda, as mulheres alargam e os homens engordam, não é o que se costuma dizer?” (Idosa 1)

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“Claro que o casamento mexe com a gente, a partir daí as coisas são diferentes, até o

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(Idosa 3)


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De seguida, a maternidade é percepcionada como uma situação de acréscimo de responsabilidade: “Depois do casamento, casada, havia outras preocupações, as preocupações que houve… e depois os filhos e mais canseira, a gente começa a ter outra responsabilidade (…) os filhos são muito preocupantes…” (Idosa 1).

Paralelamente, é também reconhecida como desencadeadora de mudanças corporais consideradas irreversíveis: “O envelhecimento foi-se notando a partir aí dos meus 30 anos, porque eu casei com 25, depois tive 2 filhos e a partir dos filhos o nosso corpo nunca fica igual” (Idosa 4) “Estive a pensar no corpo que muda e vi que, ao longo da vida, eu sempre me vi ao espelho. Não sei se era curiosidade ou o que era, mas nunca tive vergonha de me ver… muitas mulheres têm vergonha e então, quando se olham, apanham um choque. Eu não, eu acompanhei o meu corpo, eu percebi as mudanças quando tive filhos” (Idosa 2)

Cedo ficou demonstrado que o estilo de vida e as vivências familiares das idosas influenciam, de alguma maneira, a perspectiva que têm sobre o envelhecimento. Aliás, o envelhecimento é muitas vezes apontado como consequência directa dos mesmos. “As coisas já não são como antes, pois já tenho 73 anos e os inícios da vida não foram nada fáceis”. (Idosa 4)

Predominantemente nas idosas provenientes de meio rural, o trabalho árduo e a vida de sacrifico são entendidos como causa de envelhecimento do corpo. Consideram que a vida de hoje está bastante facilitada em relação ao “seu tempo”, pelo uso de máquinas e mudança de mentalidades e estratégias: “… E a vida era escrava porque não havia máquinas, era trabalhar em casa e ainda sair com eles para os ir ajudar, na lavoura com o gado, era tudo apanhado à foucinha, a terra era lavrada à sachola, não havia nada… era uma vida, para falar verdade, escrava.” (Idosa 3)

Tal como foi referido anteriormente, algumas experiências vividas são tidas como fonte de grande sofrimento e levam a manifestações físicas de envelhecimento. Isto é dito claramente pela idosa 1, que expõe da seguinte forma: “No fim de 3 anos de morte do meu marido morre-me a filha. (…) a morte de uma filha que me pôs isto… como é que eu hei-de explicar… não haver reacções, nem forças, coragem. Isto fez-me muito em que eu envelhecesse”.

que decorre esse processo e pela manifestação inequívoca dos seus sinais: “Para mim, eu achava que não ia envelhecer nunca, o tempo passou muito depressa, só acordei quando fiz 50 anos e achei que foi uma coisa muito rápida! Não percebi, de maneira

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sentimentos diferenciados, nomeadamente de espanto e surpresa, pela rapidez com

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A percepção que tiveram e têm acerca do envelhecimento do seu corpo provoca


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alguma, tanto que eu queria viver a vida, não queria morrer, não queria envelhecer, queria voltar um pouco atrás, agora que já passei muito pela vida, eu queria e aproveitar o tempo em que eu era mais jovem” (Idosa 1).

Surgem também sentimentos que podem ser descritos como tristeza e desgosto: “Com o passar dos anos senti-me sempre bem, senti-me até com saúde. Nos dias de hoje a idade já não permite muito… Ainda me apetece fazer algumas coisas e podia às vezes fazer mais mas… deixa-me andar” (Idosa 3) “Tenho encarado… [o envelhecimento] embora entristece, não posso negar que entristece. No entanto vou-me compondo, para melhorar a minha imagem o mais possível mas, em relação à opinião de certas pessoas até encaro… encaro bastante” (Idosa 2) “Já sinto que não sou a rapariga que era dantes (…) o que me preocupa é a minha saúde e que não me falte forças para ir tratando das minhas coisinhas” (Idosa 4) “Isto [a morte do marido e de uma filha] fez-me muito em que eu envelhecesse, e muitos desgostos que eu tive na vida, foi uma coisa que nem passou por mim eu me cuidar (…) Isto deu-me cabo de mim, pôs-me muito velha e além de ficar muito velha, na altura não me cuidei e hoje sei, com a idade de 67 anos estou perfeitamente… que devia ter outra cara, outra imagem…” (Idosa 1)

Desvenda-se um pouco a ideia da juventude como tempo de oportunidades perdidas, como refere a Idosa 2: “Quando era jovem sonhava viajar, mas tinha sempre outras coisas importantes, agora que posso, já não quero, tenho menos vontade de fazer as coisas, não tenho muito ânimo, tenho medo de me sentir mal, quando era jovem não era assim. Com a idade a gente também ganha medos.”

A questão do envelhecimento do corpo remeteu inicialmente para o campo da funcionalidade. Ficou claro que, se não era o aspecto mais importante, pelo menos era o que mais as pessoas referenciavam: “Agora, desde que vieram os oitenta… comecei a sentir-me um pouco mais mal. Constipando um pouco, ataca-me logo os brônquios e tenho que tomar medicamentos para limpar. Tenho… às vezes não me posso aninhar… são os ossos, os tendões”. (Idosa 3)

No entanto, note-se a referência à força de vontade como principal mola impulsionadora para manter a actividade física no dia-a-dia:

“… mantenho as capacidades do meu corpo com muita firmeza e muita vontade, eu sou muito corajosa! Não tenho dificuldades no funcionamento do corpo, a minha força de vontade é trabalhar, não me relaxo ao trabalho nem ao corpo, é para trabalhar e eu tenho mesmo… digo isto com convicção, eu tenho força de vontade para trabalhar. (Idosa 1)

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não custava nada e agora custa.” (Idosa 3).

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“A força de vontade continua igual. É claro que a gente, para fazer um trabalho, dantes


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De facto, este aspecto assume um lugar de destaque, mesmo apesar da referência a alguns problemas de saúde, pelo que o temperamento da pessoa se apresenta como factor relevante na forma de encarar os sinais do envelhecimento: “Eu também tenho os meus problemas de diabetes, e eu não sou uma pessoa que me, que como, que quero comer, eu só tenho muita força, muita energia, à beira de pessoas da minha idade eu sou uma pessoa que parece que me nasce a força, não quebro, não faço quase muito a uma dor de cabeça, a uma dor que me dê num osso, nem nada, é para andar para a frente eu ando para a frente e ultrapassei muito a minha vida atrás (…) para eu viver com muita força como eu tenho e com coragem de viver” (Idosa 1)

De realçar o esforço consciente por manter a actividade física, nomeadamente através de caminhadas: “Eu sou muito polivalente, porque faço caminhadas, eu cuido-me de mim agora ultimamente” (Idosa 1) “Ainda dou umas voltas, faço umas viagens, vou até à cidade se me lembro. O que, às vezes, não vou (…) mas eu gosto de ir. Pela idade que tenho não tenho que ficar sempre em casa (…) gosto de me alargar assim uns pedacitos. Vem aí Santa Luzia [a peregrinação] e não sei se me atreva, senão ainda era capaz de ir… E elas dizem assim – Tu tens sorte que andas. Nós queremos andar e não podemos. E eu digo-lhes – Não andais porque estais habituadas a estar sempre aí sentadinhas sem fazer nada e depois quereis e não podeis.” (Idosa 3)

Nota-se que os idosos, hoje em dia, dão preferência a fazer caminhadas do que a outras formas de actividade física. Na verdade, é uma prática que não requer habilidades específicas, que não tem horários marcados nem custos associados. Para além dessas vantagens ainda podem desfrutar da companhia de outras pessoas, o que aumenta a sua motivação e permite, para além do exercício físico, um aumento do bemestar e da auto-estima. Associada a esta última referência estão também as questões de peso corporal e os cuidados com a alimentação, que ganham algum destaque na voz de duas das entrevistadas, curiosamente ambas provenientes de meio rural: “ [Falando acerca de outras pessoas da sua idade] E depois estão ali com um peso… as pernas não podem com elas e por isso é que elas não vão” (Idosa 3) “Eu não quero comer exagerado, sei o que devo comer… eu penso bem para frente porque já estou com 67 anos e continuo a pensar no futuro como quando era nova, mas não dá

era o prazer do proibido, do que não havia… agora há de tudo e eu não posso comer. Mas tem que ser assim, senão a saúde… Eu tenho fé em Deus que, se tiver cuidado, ainda vou andar por cá muitos anos” (Idosa 1)

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que havia... agora não posso, mas como com todo prazer graças a Deus, mas naquela época

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para fazer as coisas como quando era nova; quando era nova eu podia comer o que queria do


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No entanto, a perda de capacidades físicas associadas ao trabalho e às actividades de vida diárias parece ser o natural indicador de velhice, ou pelo menos, o principal e mais incomodativo. Tal como corroboram as entrevistas, alguns sinais e sintomas físicos contribuem em boa medida para a noção de envelhecimento do corpo: “Praticamente não tenho dificuldades, só que menos quantidade. Claro que me canso um bocadinho, mas acho que ainda estou bem para fazer alguma coisa daquilo que fazia…” (Idosa 2). “Embora se conheça que não é a vida que foi, a gente conhece bem, o corpo… está cansado. À noite às vezes dói-me as pernas, mas ainda durmo bem.” (Idosa 3). “Estou na fase de caminhar para… mais de idade e de dia para dia a gente vê que envelhece. Além que eu não procuro de futuro ficar mais jovem, cada vez mais velha, é natural, muito natural” (Idosa 1)

Embora possa parecer aparentemente secundário, o aspecto estético não deixa de estar presente na percepção das entrevistadas sobre o envelhecimento do corpo. Apesar de ter sido referido que o aspecto funcional adquire a principal importância, no campo estético existem também preocupações e denotam-se com alguma tristeza as evidências do envelhecimento: “Só a parte estética ficou abandonada, pronto, e hoje já não vou a tempo, mas gostava… agora só na próxima é que faço uma plástica! (…) O que eu sinto é mais na parte do envelhecimento visual” (Idosa 1) “Eu noto que envelheci por tudo, mas os espelhos… quando a gente tivesse aí trinta anos haviam de acabar… para uma pessoa não olhar para eles. Porque uma pessoa olha e… ai Jesus! O cabelo ainda se punha preto, os dentes ainda se recuperam, mas as rugas não dá para tirar” (Idosa 3).

No entanto, a preocupação com a imagem é partilhada entre o contexto rural e o urbano, o que poderia não ser previsível, destacando-se uma idosa de contexto rural que faz várias afirmações que reforçam esta ideia: “Quando me visto, até fisicamente sou uma menina, sei-me arranjar, também não me relaxo, também gosto de por o meu creme, gosto de por a minha base, quando saio, assim… pronto, não é para vir para o trabalho, nem pintada, mas venho com um creme, pronto, a proteger-me a pele” (Idosa 1)

Mas também no contexto urbano surgem afirmações que vão no mesmo sentido: “Tento melhorar o mais possível a minha imagem. Gosto de arranjar o cabelo… estou

“Continuo a cuidar de mim e faço questão de me arranjar (…) Já sinto que não sou a rapariga que era dantes” (Idosa 4).

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imagem o mais possível. E quanto às roupas faço por me ficarem o melhor possível” (Idosa 2)

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ainda muito… gosto de pôr um bocado de batom, gosto de me arranjar e de melhorar a minha


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Correndo o risco de contrariar as expectativas, o aspecto estético é, pois, conotado com relativa importância no processo de envelhecimento do corpo pela generalidade das entrevistadas, não havendo marcadas distinções entre o meio rural e urbano. Uma idosa oriunda de ambiente citadino (idosa 4) faz revelações surpreendentes sobre a consciência que tem dos sinais de envelhecimento e do que estará ou não ao seu alcance fazer para os tentar controlar: "De vez em quando leio livros sobre envelhecimento, a vida na terceira idade mas, seja quem for o autor, diz sempre que é magnífico ser velho! É bom ser sensato, ter a sabedoria da vida; é excelente estar naquela fase da vida em que se compreende o que é realmente importante. Eu não suporto pessoas que dizem coisas deste tipo. Começo a perguntar a mim mesma - Em que é que estão a pensar? Não têm pescoço? É, o pescoço diz tudo, é o espelho da nossa idade, nós podemos usar maquilhagem, pintar o cabelo, usar cremes anti-rugas, mas não há nada que possamos fazer em relação ao pescoço. Só usar gola alta! É um inimigo silencioso. A cara é uma mentira e o pescoço é a verdade."

Algumas atitudes com que encaram o processo de envelhecimento parecem, pelo menos à primeira vista, positivas, o que sugere que o aspecto estético do envelhecimento não será o mais determinante: “Não me aflige nada sobre isso… os sinais de envelhecimento do corpo… eu acompanho porque, é encaro isso muito bem, porque é normal…” (Idosa 1) “…e nesse aspecto ainda gosto de viver.” (Idosa 2) “Claro que tenho as minhas rugas mas isso não me preocupa…” (Idosa 4)

A nível relacional, as opiniões divergem. Aliás, é neste ponto que se encontram as perspectivas mais afastadas. Os sinais de envelhecimento causam reacções diversas nos outros, reacções essas que despoletam atitudes diferenciadas nas entrevistadas. A idosa 1, por exemplo, refere a forma positiva como lida com tudo isso, destacando o bom-humor como a sua estratégia preferencial para lidar com a situação: “O envelhecimento, os sinais, as rugas, não interfere nada na relação com os outros, porque eu enfrento bem, encaro bem (…) encaro com bom-humor, não tenho culpa de ser assim, não tenho vergonha, não tenho problema. Às vezes dizem-me assim – “Pensei que estivesses melhor” Eu só lhes digo – “Tu para lá vens, tu para lá vens e vás…” E ela diz-me assim, às vezes dizem-me, mas eu sinto-me muito feliz, que eu hoje sou uma, eu sinto-me feliz

Portanto, o relacionamento com os demais não só não é afectado como, segundo esta entrevistada, até beneficia:

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Refrigerante!” (…) Encaro com bom-humor, sempre, muito, muito, muito”.

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porque eu sou uma primavera refrigerante! Respondo assim – “Eu sou uma Primavera


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“E elas dizem “- Esta mulher nunca dá parte de fraca!” (…) Eu até me rio, até levo a coisa para me rir, eu me rio, sou simpática e até já nem pareço velha!” (Idosa 1)

Neste caso é evidente que a personalidade funciona como moderadora do funcionamento e promotora de bem-estar, na medida em que estabelece relações recíprocas com outros domínios do funcionamento psicossocial. Assim, a qualidade de vida na velhice deriva, em grande parte, da manutenção dos mecanismos de autoregulação em contacto com o meio circundante. Outras perspectivas emergem das respostas de outras entrevistadas. No primeiro caso, a idosa 3, originária de contexto rural, refere a sua tristeza pela reacção pouco sensível de algumas pessoas aos seus sinais de velhice: “Algumas dizem: estás velha, estás mais acabada… às vezes as pessoas são más, não têm respeito” (Idosa 3)

Uma das idosas proveniente de ambiente urbano refere-se ao período da menopausa como sendo marcante no modo de ser que a pessoa assume a partir daí: “Eu aceito todas as transformações, elas não me chocam, mas as outras pessoas que me cercam, as mulheres especialmente, têm algumas reacções que eu não gosto. Mas tenho a impressão de que elas não ficaram mais amargas porque passaram pela menopausa, elas já eram amargas, o próprio carácter ficou talvez um bocadinho mais forte, os traços que a gente tem depois ficam um bocadinho mais fortes, mas não se transformam, quem era amarga ficou mais amarga, quem era doce ficou ainda mais doce” (Idosa 2)

Já a idosa 4, também originária da cidade, apresenta um entendimento oposto, não se deixando afectar pelas opiniões de outros: “A mim não me importa o que os outros pensam, eu sou o que sou, arranjo-me o melhor que posso, os outros não me interessam”

A opinião de uma entrevistada de contexto rural vem reforçar esta mesma ideia, que considera importante ao ponto de a transmitir às suas filhas: “Eu tento passar isso para minhas filhas, vocês vejam-se ao espelho, não tenham medo, conheçam-se bem, não se assustem com o que os outros comentam, isto é normal, todas as pessoas envelhecem, não são só vocês! Assim já podem responder a quem vos criticar, nada de deprimir é mas é para ter cuidado e não se deixar decair” (Idosa 3)

Poder-se-á então concluir que não existe uma uniformidade na forma como o envelhecimento do corpo afecta as relações interpessoais das idosas, nem uma relação que se possa definir como directa e/ou específica com o meio de onde é originária a

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pessoa.

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CONCLUSÃO Começamos este trabalho na busca de algumas respostas para perguntas que muitas vezes ficam latentes no passar dos anos, das vivências, das preocupações de uma vida. Qual seria o entendimento de determinadas pessoas, neste caso mulheres idosas, perante o envelhecimento do próprio corpo? Seria o meio de onde provêm um factor determinante nas suas respostas? Que relação poderia ter o estilo de vida com a sua opinião? Foi com alguma dificuldade que realizámos o trabalho de campo necessário à realização deste estudo pois, além de ter sido complicado encontrar pessoas com o perfil adequado ao fim a que nos propúnhamos, estas muitas vezes mostraram-se renitentes ou evasivas na sua forma de responder, o que denota existir ainda algum tabu no que diz respeito a falar sobre o corpo. Queremos desde já garantir que nunca pretendemos tirar conclusões generalizadas deste nosso estudo. Para além de servir como forma de avaliação, este trabalho foi útil para

testarmos

algumas

opiniões

pré-concebidas

e,

devemos

dizer,

ficámos

surpreendidos com o resultado. O método utilizado permitiu visualizar o quotidiano de um grupo de mulheres idosas, obtendo-se uma indicação do seu estilo de vida, bem como do ambiente físico e parceiros sociais presentes durante a realização das suas actividades diárias, possibilitando desenhar um panorama do universo bio-psico-social das mesmas e, ao mesmo tempo, respeitando as suas limitações e distintas trajectórias de vida. A percepção do envelhecimento do corpo é, pois, algo complexo e retratável em várias frentes. Já aqui abordámos as perspectivas funcionais, estéticas e relacionais e concluímos que são coadjuvantes da perspectiva geral, ou seja, não há uma delas que se sobreponha definitivamente às outras, de modo a podermos concluir que é aquela a grande responsável pela concepção do envelhecimento do corpo. A principal conclusão que podemos tirar é a clara evidência de que o meio de origem das idosas entrevistadas não é manifestamente influente sobre a concepção que têm do envelhecimento do seu corpo.

que não sentem os efeitos da idade.. O aspecto estético é reconhecido pelas entrevistadas como algo importante e objecto de vaidade, não sendo no entanto o mais preponderante.

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as maiores dificuldades e queixas, mas também é fonte de regozijo e satisfação naquelas

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A funcionalidade do corpo assume-se como aspecto mais crucial. É nele que recaem


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Se estes dois aspectos reuniram bastante consenso, o relacional é mais divergente. Ou seja, o envelhecimento do corpo é, para algumas idosas, algo que não interfere na sua relação com os outros, podendo mesmo ser fonte de reconhecimento. Já para outras as reacções dos outros, quando são negativas, influenciam a seu estado de espírito e, portanto, o modo como se relacionam. Mais uma vez, embora divergentes, as opiniões não evidenciam uma relação directa com o meio de origem. Onde de facto concluímos que o meio de origem é diferenciador, é na influência dos estilos de vida na percepção do envelhecimento do corpo. É evidente que o meio rural determina uma vida de maior desgaste e privações, uma maior exposição aos elementos, à necessidade. No fundo e nas palavras de uma das idosas, “uma vida escrava”! Logo, determina também um maior envelhecimento ou um envelhecimento mais precoce. Finalmente, a realização deste trabalho contribuiu também para uma reflexão pessoal acerca destas questões que, tal como uma das entrevistadas referia, parece não nos dizerem respeito mas, quando menos se espera e quase sem dar por nada, a velhice

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chega e com ela os seus sinais e sintomas.

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JAQUES, Maria Ermelinda - Ser Idosa - Abordagem Psicossomática no Contexto


Antropologia do Corpo

II CPLEER - 2008

PALMEIRA, Tânia Maria Von Stein. - O corpo na velhice – representações e práticas. Tese de Mestrado apresentada em 2005 à Universidade do Minho, consultada em 05/06/2008, às 22.00h e disponível no endereço electrónico: http://repositorium.sdum.uminho.pt/dspace/bitstream/1822/4913/3/Tese%20de%20Inves tiga%c3%a7%c3%a3o%20-%20T%c3%a2nia.pdf RAPLEY, Mark - Quality of Life Research: a critical introduction. London: SAGE Publications, 2003. ROCHER, Guy - Sociologia Geral. Acção social. Lisboa: Editorial Presença, 1989. STUART-HAMILTON, Ian. - A Psicologia do Envelhecimento: uma introdução. São Paulo (Tupã): Papyrus, 2002. The WHOQOL Group. - Development of the WHOQOL: Rationale and Current Status.

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In: International Journal of Mental Health, 1994, 23 (3), p. 24-56.

Enf.º David Sousa e Enf.º Fernando Lemos


Antropologia do Corpo

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Trabalho realizado por: _________ ___________________________________ Enf. David Sousa ____________________________________________

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Enf. Fernando Lemos

Enf.ยบ David Sousa e Enf.ยบ Fernando Lemos


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