Drama 4

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Nº4 – revista de cinema e teatro –

tema

Dramaturgia Contemporânea Entrevistas Jean-Pierre Sarrazac Jorge Silva Melo Juan Mayorga Tim Crouch José Maria Vieira Mendes Panoramas Dramaturgia portuguesa e brasileira

além do tema Perfil Suso Cecchi D’Amico Entrevista John Logan


DRAMA revista de cinema e teatro N.º 4 | Março 2012 Editores Daniel Ribas e Pedro Flores Editor Convidado Jorge Palinhos Colaboram neste número Joaquim Paulo Nogueira, Jorge Louraço Figueira, Armando Nascimento Rosa, Carlos Costa, Jorge Feliciano, Sandra Pinheiro, Renata Portas, Cláudia Lucas Chéu, Rui Pina Coelho, Cláudia Marisa Oliveira, Ana Mendes, Luís Miguel Gonçalves, Ana Barroso, Pedro Faria, António Cardoso, Denise Duarte. Grafismo sergio-alves.com Paginação Ângela Ribeiro Imagem de capa Thomas Aurin Tipografia Dharma Slab e Lato Online http://drama.argumentistas.org Contactos drama@argumentistas.org APAD Travessa da Rua dos Pentes, 27 - r/c 1250-105 Lisboa Portugal Uma revista publicada pela APAD Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos Os artigos seguem a ortografia preferida pelos respetivos autores

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ENTREVISTA JOAQUIM PAULO

EDITORIAL por Jorge Palinhos

Apesar de ser uma arte milenar, o termo «dramaturgia» como hoje o conhecemos surgiu com o romantismo alemão, através de Gotthold Ephraim Lessing. Este, no século XVIII, juntou várias reflexões sobre o teatro em A Dramaturgia de Hamburgo, usando a palavra para designar o conjunto de textos que serviam de base para uma peça de teatro, uma ópera ou ballet, vistos de um ponto de vista crítico e teórico. O termo acabou assim por designar tudo o que dá forma, coerência e dinamismo narrativo e linear à obra dramática, pelo que se ajusta perfeitamente ao modelo clássico do teatro ocidental, fundado desde os primórdios na determinação aristotélica de que o drama era, antes de tudo, imitação e representação. Deste modo, o texto funcionava como um meio de aproximação racional à experiência humana que o teatro aspirava a emular.

No entanto, a partir do século XX, com a expansão do cinema e do audiovisual, com a descoberta do inconsciente, com a crescente desconfiança para com a racionalidade, a abordagem mimética do teatro começou a ser posta em causa. Autores como Antonin Artaud e Bertolt Brecht, entre outros, começaram a rejeitar a imitação e o realismo, procurando novas formas de escrita dramática. Uns promovendo o uso do género épico no teatro, como no caso de Brecht, outros advogando o fim da representação, em favor de uma presença não-mediada e autêntica do intérprete, como no caso de Artaud. Estas ideias transformaram a dramaturgia contemporânea num campo de muitas práticas e polémicas diferentes, com géneros como a performance, o teatro documental, o teatro in-situ a reivindicarem o seu lugar como dramatizações da experiência humana no mundo. Foi para dar conta dessas muitas ideias e práticas que decidimos dedicar o quarto número da revista Drama à Dramaturgia Contemporânea. Entrevistámos conhecedores profundos da dramaturgia contemporânea, como é o caso de Jean-Pierre Sarrazac e Jorge Silva Melo, e alguns dos seus autores mais emblemáticos, como Juan Mayorga, Tim Crouch e José Maria Vieira Mendes, que nos falaram de algumas das suas propostas e perplexidades. Publicamos ainda variados testemunhos, análises e perfis de dramaturgos, com olhares na primeira e na terceira pessoas sobre diferentes modos de escrever e encenar obras dramáticas que conversem com os dias de hoje. Nas rubricas permanentes, entrevistamos ainda John Logan - argumentista de O Último Samurai, O Gladiador, ou O Aviador - publicamos um perfil da guionista italiana Suso D’Amico - assídua colaboradora de Visconti, de Sica e Zefirelli - e apresentamos as habituais secções de Crítica e Livros. Porém, esta edição da revista é essencialmente dedicada ao tema Dramaturgia Contemporânea. Neste sentido, julgamos que este número representa um bom ponto de partida para um maior debate sobre a escrita para teatro na revista Drama, e uma maior compreensão dos vários caminhos que hoje se abrem à escrita dramática, permitindo assim um maior intercâmbio entre as áreas que dela partem para tentar representar a humanidade pelo prisma da presença e do presente.

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Ă?ndi ce 4


ENTREVISTA JOAQUIM PAULO

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TEMA editorial Jorge Palinhos

perfis 60 Valère Novarina Renata Portas

panorâmicas

10 Viagem pela Escrita Teatral em Portugal Joaquim Paulo Nogueira 14 Dramaturgia dos Brasis Jorge Louraço Figueira

entrevistas

22 Jean-Pierre Sarrazac 24 Jorge Silva Melo 28 Juan Mayorga 32 Tim Crouch 36 José Maria Vieira Mendes

testemunhos 42 Teatro Mitocrítico Armando Nascimento Rosa 46 Imagina que isto é um jogo Carlos Costa 52 Dramaturgia, visão política do mundo Jorge Feliciano 56 Processo criativo de escrita de teatro Sandra Pinheiro

64 René Pollesch Cláudia Lucas Chéu

análises 70 Narradores, actores e contadores de histórias Rui Pina Coelho 76 Agir num mundo imprevisível Cláudia Marisa Oliveira 78 A ficção que já foi realidade Ana Mendes 82 A vida é sonho Luís Miguel Gonçalves

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PARA ALÉM DO TEMA

perfil 86 O legado de Suso Cecchi D’Amico Denise Duarte entrevista 90 John Logan Pedro Faria livros 94 Sobre “On Film-making — an introduction to the craft of the director” de Alexander Mackendrick António Cardoso análise 96 O corpo e o sentido do trágico em Elephant de Gus Van Sant Ana Barroso 100 Cidade de Deus António Cardoso


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ENTREVISTA JOAQUIM PAULO

Tema 7


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ENTREVISTA JOAQUIM PAULO

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panor창micas

Viagem pela Escrita Teatral em Portugal 10


viagem pela escrita teatral em portugal

por Joaquim Paulo Nogueira dramaturgo e investigador

H

á muitas formas possíveis de falar da mudança de paradigma na escrita para teatro nos últimos dez anos, em Portugal, como o comprovamos pelos dois últimos encontros realizados sobre este tema, Novas Dramaturgias, no Teatro São Luiz, pelo Colectivo 84, em Novembro de 2010, e Escritas de Cena, em Maio de 20111, e todas elas reforçam a ideia de que algo mudou, de forma radical, na escrita de teatro em Portugal. Não desvalorizando a importância de todas as diferentes formas de problematizar estes contextos de mudança, vou propor um recuo até à segunda metade da década de 90. É minha convicção de que aí encontraremos o primeiro quadro de ruptura com uma situação de impasse que há muito se instalara na escrita para teatro em Portugal2.

O que nos permite olhar os anos 904 e descobrir práticas de superação deste impasse. E que não são muito diferentes daquelas que indicam o grau de desenvolvimento da escrita teatral noutros países: edição de textos, divulgação e leitura dos textos teatrais, experimentação, produção e montagem de textos, intercâmbio internacional e investigação. Também é certo que poderíamos recuar um pouco mais a algumas iniciativas nos anos 805 com importância para o desenvolvimento da escrita teatral. Mas foram intervenções muito marcadas por uma defesa, algo romântica, da escrita teatral enquanto património literário e artístico6, distanciando-a do processo teatral. Havia excepções7, claro, e de todas elas destaco o apoio para a integração de dramaturgos nas companhias, por parte do Serviço de Teatro da Gulbenkian, já que foi precursor na valorização da ideia de que o dramaturgo deve estar junto da produção teatral.

CONDIÇÕES DO IMPASSE NA ESCRITA TEATRAL NOS ANOS 80 Impasse que todos nós, que nesta altura já escrevíamos para teatro, conhecíamos bem, porque o vivemos na pele, convivendo com um negativismo crónico sobre as reais capacidades da nossa escrita dramática e que Eugénia Vasques desmontou, com um levantamento das mais “significativas explicações que têm sido avançadas como razões da mediocridade da nossa literatura dramática”. 3 Levantamento que, para além de assinalar a fragilidade e até algum preconceito de muitas das teses que justificavam a debilidade da nossa escrita dramática, permitiu também uma identificação das principais condições que afectavam o desenvolvimento da nossa escrita para teatro: a não inserção dos dramaturgos no processo de criação teatral, o desconhecimento dos textos escritos pelos autores portugueses, a escassa montagem da dramaturgia portuguesa contemporânea e a incipiente investigação sobre teatro e escrita teatral.

4  Mais concretamente a segunda metade desta década. Na primeira tinham surgido dois projectos: “Dramaturgias”, da Convenção Teatral Europeia (que praticamente não chega a sair do papel), pretendendo, entre outras coisas, criar uma plataforma de divulgação dos textos por várias companhias europeias, e o Círculo Dramatúrgico da Barraca, cujo prémio em 1994 nos traz o texto revelação do actor Francisco Pestana, Não há nada que se coma. 5  Destaque para o Ciclo de Teatro de Autores Portugueses realizado pelo Teatro Passagem de Nível, reunindo na Amadora autores como Norberto Ávila, Jaime Gralheiro, Jaime Salazar Sampaio, Augusto Sobral, Romeu Correia, Fernando Augusto, Fernando Dacosta, Luiz Francisco Rebello, entre outros. O que se compreende, já que era no teatro amador que a maior parte dos seus textos eram feitos. 6  A segunda metade dos anos 80 foi dominada pelo fenómeno Miguel Ro-

1  Na Escola Superior de Teatro e Cinema, numa organização de Armando

visco (Prémio Nacional de Teatro 1986 (e 87, este postumamente) e que se

Nascimento Rosa e Rui Pina Coelho.

suicida no ano seguinte. Rovisco, que dizia que escrevia teatro fechado no

2  Uma convicção construída durante a investigação sobre a “Escrita Tea-

seu quarto, é um caso flagrante de dissociação em relação à prática teatral.

tral nos Anos 90”, projecto de tese de mestrado com orientação pelo Prof.

7  O Teatro Semeador de Portalegre começou nos anos 80 um projecto

Doutor Paulo Filipe Monteiro (cuja orientação acompanha também o meu

de encomendas a dramaturgos (entre outros, Norberto Ávila e Jaime Sa-

projecto de doutoramento).

lazar Sampaio). A Comuna tinha Abel Neves como dramaturgo residente.

3  Em Jorge de Sena, Uma Ideia de Teatro, Lisboa, Cosmos, 1998. Vasques é

O TELA tentou em 1986 um projecto de escrita dramatúrgica que se ficou

autora também de Mulheres que escreveram para Teatro no Século XX.

pelo primeiro espectáculo, A Noite Antes da Festa.

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panorâmicas

A SEGUNDA METADE DA DÉCADA DE 90

No campo da divulgação, sublinhe-se os vários prémios literários destinados à escrita para teatro e o trabalho no campo editorial8. E a emergência de um trabalho crítico e de investigação – que a criação do Observatório de Actividades Culturais vem também valorizar – através do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que se torna num eixo da investigação teatral no nosso país. E se grande parte das iniciativas apareciam desligadas de um contexto explícito de desenvolvimento da actividade da escrita para teatro (embora criassem um lastro que começou a ser mediatizado com alguma insistência como o surgimento de uma nova dramaturgia), houve também projectos que se propunham intervir de forma integrada no campo da escrita para teatro. É o caso dos projectos da Efémero – Companhia de Teatro de Aveiro, dirigida por Carlos Fragateiro. Fronteiras, 1996, e Cenas de Amor e Guerra, 1997, são assentes em práticas experimentais de escrita em ateliers orientados por Daniel Simon, escritor e dramaturgo belga. Os textos acabam por ser editados com o apoio do IPLB e há leituras públicas dos mesmos. Ou o trabalho dos Artistas Unidos, uma companhia criada em 1996 e liderada por Jorge Silva Melo. A sua acção incluía a montagem de novos textos, a edição através de protocolos com editoras, seminários de escrita, leituras teatrais, uma publicação regular sobre as actividades do grupo, a participação em redes internacionais e a divulgação de reportório contemporâneo.

É neste período que a actividade cultural beneficia de um forte incentivo (Manuel Maria Carrilho, com Rui Vieira Nery e depois com Catarina Vaz Pinto, esteve à frente do Ministério da Cultura neste período). De norte a sul surgem novos grupos que procuram uma identidade que os singularize no campo da produção teatral. Aparecem novos autores. Começa a surgir um novo compromisso criativo, assente no diálogo, em que o texto é chamado a participar, com os outros elementos cénicos, na escrita do espectáculo. No Porto o Teatro Bruto (com Vânia Cosme) e Assédio (em colaboração estreita com Paulo Eduardo de Carvalho), em Aveiro a Efémero (com quem, entre outros, Luís Mourão e eu colaborámos), o Teatro Regional da Serra de Montemuro (com uma forte ligação a Abel Neves), em Leiria o Nariz-Teatro de Grupo (com Luís Mourão), em Almada o Teatro Extremo (que aposta na criação colectiva) e o Ninho de Víboras (com José Luís Peixoto), em Sintra, a Utopia Teatro (com Rui Brás e Nuno Vicente) e teatromosca (direcção de Paulo Campos dos Reis e Pedro Alves), Teatro Não (com Miguel Clara Vasconcelos), Artistas Unidos (com Jorge Silva Melo e José Maria Vieira Mendes), Teatro Lilástico (com Jacinto Lucas Pires), A Escola de Mulheres (com Isabel Medina) e Útero (direcção de Miguel Moreira). Estes novos grupos juntam-se a outros como Inestética Teatral (Alexandre Lyra Leite), Teatro do Tejo (José Mora Ramos), Teatroesfera (José Carretas e Teresa Faria), Teatro da Garagem (Carlos J. Pessoa), e, claro, a Barraca (Hélder Costa). Sem falar das duplas formadas entre encenadores e dramaturgos (Celso Cleto/Jaime Rocha, José Neves/Tiago Torres da Silva) ou à ligação da Cassefaz com Maria do Céu Ricardo. A par com este rejuvenescimento na escrita para o teatro, autores como António Torrado, Jaime Salazar Sampaio, Norberto Ávila, Hélia Correia, Luísa Costa Gomes e Fernando Augusto continuavam a trabalhar e a ver as suas peças montadas.

o DRAMAT – Centro de Dramaturgias Contemporâneas, que, nos seus poucos anos de existência, conseguiu tornar-se uma referência nacional enquanto projecto de desenvolvimento da escrita teatral.

8  Destaque para os prémios da SPA/Novo Grupo (onde surge João Santos Lopes com Às vezes neva em Abril) e do Circulo Dramatúrgico da Barraca, que melhor deram resposta à necessidade de levar a cena os textos premiados. Nas edições, especialmente as Edições Cotovia, mas também a Dom Quixote, Campo das Letras, Salamandra, Edições Tema. Ou o empenhamento neste campo do IPLB, Ministério da Cultura, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Teatro Nacional S. João e do DRAMAT e de companhias como, entre outras, o Novo Grupo, Artistas Unidos, Efémero - Companhia de Teatro de Aveiro e o Teatro Circo de Braga.

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viagem pela escrita teatral em portugal

bruça sobre as suas próprias experiências de criação. E NO FINAL DA DÉCADA, O DRAMAT – TNSJ…

O contexto de produção e programação está também cada vez mais esclarecido10. A internacionalização da nossa escrita teatral é feita tanto numa perspectiva europeia como numa perspectiva lusófona (com destaque para o Brasil e Cabo Verde). No quadro europeu assistiu-se a um movimento muito forte com Espanha que envolveu grupos, instituições, autores e outros criadores11. Houve uma participação em redes europeias de edição, de tradução12. A investigação sobre a escrita cénica deu um salto13. Desde 2000 surgiram novos colectivos 14 e novos autores15. A década fechou com um importante encontro no São Luiz e, meses depois, um novo encontro, agora na ESTC, era um sinal muito forte de que os diferentes envolvidos no desenvolvimento da escrita teatral estão muito atentos à necessidade de deixar um rasto no que se faz, de ligar, de criar vínculos entre as diferentes realidades de criação, produção, divulgação e investigação. —

Foi preciso chegarmos ao último ano da década de 90 para vermos surgir, num Teatro Nacional, o DRAMAT – Centro de Dramaturgias Contemporâneas, que, nos seus poucos anos de existência, conseguiu tornar-se uma referência nacional enquanto projecto de desenvolvimento da escrita teatral. Criado por Fernando Mora Ramos9 organizou oficinas de escrita (a mais importante com António Mercado, e de onde surgiram Pedro Eiras, João Negreiros, Fernando Moreira, Jorge Louraço Figueira e Ângela Marques), viagens pela dramaturgia europeia (com Joseph Danan, Maria Helena Serôdio, Paulo Eduardo de Carvalho, Jean-Pierre Sarrazac), produção de espectáculos (Sexto Sentido, de vários autores, Supernova, de Abel Neves, e Arranha-Céus, de Jacinto Lucas Pires), dinamização de práticas de leitura dos textos criados nestas oficinas, representação e edição dos textos teatrais (em parceria com a Cotovia), relação estreita com as escolas artísticas do Porto, a criação de um conselho de leitura do TNSJ. Tudo isto foram faces de uma intervenção global e coerente que, poucos anos depois do novo milénio, desapareceu sem deixar rasto, como se nunca tivesse existido (no historial do site oficial do TNSJ não encontramos qualquer referência a este projecto).

10  Algumas referências indispensáveis: o projecto Urgências, no Teatro Maria Matos, PANOS, na Culturgest, e Absurdos Contemporâneos (espectáculo e seminário), da Qatrel, que desafiou nove autores a escreverem pequenas peças. E também o trabalho do CENDREV com Armando Nascimento Rosa, que entre 2004 e 2008 estreou todos os anos um espectáculo deste autor. E as encomendas do Bando a Carlos Alberto Ma-

A ESCRITA TEATRAL NO NOVO MILÉNIO

chado, Jaime Rocha e Jacinto Lucas Pires. 11  A própria APAD, com o apoio da sua congénere espanhola, assegurou a participação portuguesa no Salão do Livro de Teatro em Madrid,

Dei-me ao trabalho deste esforço evocativo para chamar a atenção para um dinamismo, surgido nos anos 90, de superação de uma situação de impasse na escrita para teatro, acreditando que esse recuo nos ajudará a perceber melhor a intensa actividade que encontramos nesta primeira década do milénio. Consolidaram-se muitas experiências, criaram-se condições para afastar a questão do desenvolvimento da escrita cénica no quadro de mal entendidos cada vez menos produtivos sobre as querelas entre o texto e o teatro, sobre a tensão entre autores e encenadores. Hoje há uma cena emancipada de todos esses problemas que pareciam insanáveis até ao final dos anos 90. Nas suas diferenças de sentido e de estilo, o Teatro Praga, o Visões Úteis, o Teatro do Vestido, a Panmixia, o Colectivo 84, o Teatro da Garagem, a Mala Voadora, a Karnart, entre outros, trazem-nos um discurso sobre a cena que, mais ou menos frágil, mais ou menos canonizado, se de-

de 2003 a 2005. Em Évora o CENDREV lançou os Encontros de Teatro Ibérico. Os Encontros Internacionais de Escrita Dramática de Valdigna-Valência contaram também com a presença de autores portugueses. As revistas Alhucema (Teatro mínimo) e Puertas del Drama (Associação de Autores de Teatro) dedicaram um dos seus números a Portugal. 12  Jaime Rocha, Pedro Eiras, José Maria Vieira Mendes, Teresa Rita Lopes, Hélia Correia, Armando Nascimento Rosa, Abel Neves, Jaime Salazar Sampaio, Augusto Sobral são apenas alguns dos nomes que foram traduzidos em várias línguas. De registar aqui, na tradução, o trabalho incansável de Alexandra Moreira da Silva (Atelier Europeu de Tradução, Solitaires Intempestivs, Maison Antoine Vitez, Éditions Théâtrales) ou da tradutora e investigadora Tatjana Manojlovic. 13  Carlos Costa escreve Os Escritores de Cena na primeira década do séc. XXI (tese de mestrado) e neste momento há vários doutorandos (José Mascarenhas, Helena Simões, Guilherme Mendonça, Jorge Louraço Figueira, Jorge Palinhos e Mickael de Oliveira) que, em diferentes perspectivas, realizam investigações sobre a escrita teatral. 14  Como, entre outros, Primeiros Sintomas, Teatro Mínimo, Panmixia, Mala Voadora, A Máquina Agradável, o Teatro Praga, Visões Úteis, Teatro Plástico, Colectivo 84, Teatro do Vestido, a Qatrel e a Karnart. 15  Filomena Oliveira, Tiago Rodrigues, Cláudia Lucas Chéu, Luís Mestre,

9  Cujo projecto de trabalho é interrompido por José Wallenstein, director

Rui Pina Coelho, Jorge Palinhos, Ana Mendes, Luís Mário Lopes, Carlos

do TNSJ, que o substitui por Maria João Vicente, do Teatro da Garagem.

Costa, Patrícia Portela, Miguel Castro Caldas, Mickael de Oliveira e André Murraças, entre outros.

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entrevista joaquim paulo

Dramaturgia dos

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BRA


dramaturgia dos brasis

desespero de classe no cais de Santos e nas quelhas de São Paulo. Dias Gomes (1922-1999), apesar de não ser tão representado actualmente, é o autor de peças fundamentais da história da dramaturgia brasileira, como O Pagador de Promessas (1960), cuja versão cinematográfica ganhou a Palma de Ouro em Cannes, ou A Revolução dos Beatos (1962), por exemplo. Além destas obras foi também um dos principais inventores da teledramaturgia brasileira, com séries e novelas como O Bem-Amado ou Roque Santeiro, que emblematizam o carácter nacional brasileiro. Ariano Suassuna (1927), outro autor bastante presente, escreveu uma mão cheia de farsas brilhantes, que congregam as tradições nordestina e ibérica, entre as quais se encontra o mundialmente famoso Auto da Compadecida (1955). Suassuna foi também a figura principal do Movimento Armorial, um dos mais influentes movimentos da criação artística brasileira contemporânea, lançado no Recife em 1970. Estes quatro dramaturgos principais não estão sozinhos. Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), com Eles Não Usam Black-Tie (1958); Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), o Vianinha, com Chapetuba Futebol Clube (1959); e Augusto Boal (1931-2009), com Revolução na América do Sul (1960), são os três principais autores do Seminário de Dramaturgia do Arena, movimento de escrita teatral que buscou retratar a realidade do país, ao mesmo tempo que pretendia inovar formalmente. Os mesmos autores escreveram, respectivamente, Um Grito Parado no Ar (1972) e Ponto de Partida (1976); Papa Highirte (1968) e Rasga Coração (1972); Arena Conta Zumbi (1965) e Arena Conta Tiradentes (1967); peças que reflectiram as contradições da sociedade brasileira, tomando partido contra o regime político. Em 1968, Boal monta a Primeira Feira Paulista de Opinião, com textos curtos de vários autores, entre os quais ele próprio, Guarnieri e Plínio Marcos, mas também Lauro César Muniz (1938) e Jorge Andrade (1922-1984), recém-saídos do curso de dramaturgia da Escola de Arte Dramática, onde se formou também Renata Pallottini (1931). Maria Clara Machado (1921-2001) é o nome de referência no teatro para crianças. A esta geração nascida nos anos 20 e 30 do século XX podem juntar-se os escritores modernistas Oswald de Andrade (1890-1954) e Mário de Andrade (1893-1945), o primeiro porque é autor da peça O Rei da Vela (1937), que fez a fortuna crítica do Teatro Oficina e de José Celso Martinez Correa, numa versão afamada de 1967 que se tornou um marco da encenação no Brasil; o segundo porque escreveu Macunaíma (1928), que Antunes Filho encenou numa adaptação igualmente célebre, em 1978, e o libreto da ópera Café (1942).

ASIS por Jorge Louraço Figueira dramaturgo e encenador

A

origem de um dos maiores mananciais da dramaturgia de língua portuguesa é o Brasil, em particular São Paulo e o Rio de Janeiro, onde estrearam as mais relevantes peças teatrais e os mais brilhantes dramaturgos. A importância dessa produção para a dramaturgia ocidental ainda está por avaliar. Com este artigo pretende-se dar um primeiro passo nessa avaliação, fazendo um sumário de obras e autores recomendáveis. Os dramaturgos mais célebres do Brasil, de quem o visitante actual encontrará sempre uma peça em cartaz, são Nelson Rodrigues (1912-1980), autor de Boca de Ouro (1959), Beijo no Asfalto (1961) e A Serpente (1978); e Plínio Marcos (1935-1999), que escreveu Dois Perdidos Numa Noite Suja (1966), Navalha na Carne (1967) ou Querô (1979). O primeiro autor retrata as neuroses sexuais dos moradores do Rio de Janeiro, o segundo o

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panorãmicas

Para os dramaturgos que cresceram nos anos 70 e 80, viram as suas peças estrear nos anos 90 ou 2000, e escrevem o que se pode chamar, em sentido próprio, a dramaturgia nova, contemporânea ou emergente, esta herança pode ser considerada ora pesada, ora leve. Por um lado, as realizações do teatro brasileiro desde o final dos anos 50 ao início dos anos 70 são admiráveis. Em particular, os autores citados conseguiram sintetizar em dramas individuais, concretos e reconhecíveis, as tragédias e comédias colectivas de toda uma nação, muitas vezes alegoricamente, com uso da metáfora, o que enriqueceu a poética e a universalidade das suas obras. Por outro lado, as tradições de excelência e de engajamento foram interrompidas à força, em especial no período de vigência do Acto Institucional n.º 5, de 1968 a 1978, deixando as novas gerações sem correia de transmissão: sem espectáculos, sem textos, sem mestres. Os novos autores tanto podem tentar reclamar a herança como decidir fazer tudo de novo. A poética dramática de Hegel e a dramaturgia épica de Brecht, nacionalizadas, constituem um dos lotes dessa herança, que teve em todos estes autores, mesmo Nelson Rodrigues, admiradores mais ou menos confessos. O trabalho de Stanislavski, por outro lado, encontrou o seu caminho para o teatro brasileiro através da imigração de artistas de teatro dos países do leste europeu, como por exemplo Eugénio Kusnet; mas também dos estudos dedicados de Vianinha e Boal. O cuidado na realização plástica e cénica parece ter vindo com os criadores italianos. As influências portuguesas revelaram-se nas tradições populares, mais rurais, como nos Autos Nordestinos, ou mais urbanas, como no Teatro de Revista ou no Circo-Teatro (melodramas rasgados apresentados em tendas, na segunda parte de espectáculos circenses). Porém, as influências dos contemporâneos vivos vêm também de outros lugares de drama e narrativa: a literatura, o cinema, a televisão, a música popular, a performance, os videojogos, a internet, enfim, todos os produtos de circulação global que, mal ou bem, são consumidos em todo o mundo. O teatro brasileiro é mundial na sua constituição.

O senso comum tem considerado que o primeiro espectáculo em português vernáculo do Brasil foi Vestido de Noiva (1943), e consequentemente atribuído ao seu autor, Nelson Rodrigues, nascido nos anos 10, o papel de pai fundador de uma dramaturgia especificamente brasileira. Porém, tanto O Rei da Vela como Café precedem Vestido de Noiva na tentativa de uma escrita teatral autóctone. Em qualquer dos casos, a dramaturgia brasileira contemporânea parece estar associada a um projecto de formação de literatura nacional, sonhado já no final do século XIX, mas somente desenvolvido no início do século XX. (Este tópico mereceria um estudo próprio, que excede em muito o âmbito deste artigo.) Esta tradição – ou tradições – foi severamente atacada nas décadas de 60 e 70. A dura repressão de que o teatro brasileiro foi vítima até ao fim dos anos 70 tem como exemplo a proibição, na véspera da estreia, de O Berço do Herói (1965), de Dias Gomes, uma peça que denunciava o falso heroísmo de um militar da Força Expedicionária Brasileira. Nos anos de chumbo da ditadura militar brasileira todas as peças de Plínio Marcos chegaram a estar censuradas. E apesar das célebres posições de direita, Nelson Rodrigues parou de escrever teatro entre as peças Toda Nudez Será Castigada (1965) e Anti-Nelson Rodrigues (1973). Álbum de Família, ao contrário, censurada desde 1945, estreou em 1967. Em 1971, Boal vai para o exílio, onde formulará o seu Teatro do Oprimido. Vianinha morre prematuramente aos 36 anos, em 1974. Guarnieri praticamente abandona os palcos depois de 1976.

Em qualquer dos casos, a dramaturgia brasileira contemporânea parece estar associada a um projecto de formação de literatura nacional.

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dramaturgia dos brasis

Trabalhando a partir de fontes documentais e orais, num processo de pesquisa partilhado, Abreu é um bom exemplo, entre vários, de um modo de trabalhar que se generaliza a partir dos anos 80 e conhece o seu apogeu nos anos 90 e 2000, com o chamado Teatro de Grupo, inspirado em várias experiências similares na América do Sul. Este movimento adopta um modo de produção cooperativo, encontrado para viabilizar a criação de espectáculos, e que usa uma retórica do trabalho colectivo, por vezes mais eficaz na teoria do que na prática. No Teatro de Grupo, uma parte da produção dramatúrgica não se separa da encenação, em especial quando os espectáculos são apresentados na rua ou em espaços não convencionais. As obras são criadas em regime de improvisação colectiva ou ‘devising’, casos do Núcleo Bartolomeu, dirigido por Claudia Schapira, ou do grupo XIX, conduzido por Luiz Fernando Marques; mas também de autores premiados individualmente como é o caso de José Fernando de Azevedo, do Teatro de Narradores, com Cidade Desmanche (2010); e ainda de Grace Passô, do Espanca!, com Por Elise (2005). A colaboração de Reinaldo Maia com Marco Antonio Rodrigues no grupo Folias e a encenação e escrita de Márcio Marciano e Sérgio de Carvalho no Latão devem ser vistos à luz desse conceito de ‘processo colaborativo’. De facto, mesmo quando se afirmaram como autores individuais, cujas obras têm autonomia literária e são montadas por outras companhias, os melhores dramaturgos brasileiros criaram em contextos teatrais desenvolvidos, experimentando e discutindo ideias em grupo ou parceria. Dramaturgos aparentemente mais convencionais nos métodos de trabalho e na atribuição de autoria são Bosco Brasil (1960), de Budro (1994) e Novas Directrizes em Tempo de Paz (2001); Fernando Bonassi (1962), de Apocalipse 1,11 (2000), com o Teatro da Vertigem, e São Paulo É Uma Festa (2001); o profícuo Mário Bortolotto (1962), com Medusa de Rayban (1997) e Nossa Vida Não Vale Um Chevrolet (1994), entre muitas outras. Um pouco mais novos, Samir Yazbek (1967), de O Fingidor (1999), sobre Fernando Pessoa, e As Folhas do Cedro (2010), sobre as origens libanesas do autor; Newton Moreno (1968), com Agreste (2004) ou VemVai, O Caminho dos Mortos (2007), e Gero Camilo (1970), com Aldeotas (2004) e A Casa Amarela (2011), evocam um nordeste saudoso trazendo a poética do regional para o seio do urbano. Roberto Alvim (1973) dirige um estúdio dedicado à dramaturgia contemporânea em São Paulo, o Club Noir, onde estreou a sua peça Pinokio (2011).

Estes métodos foram adoptados conforme a visão de mundo dos artistas de teatro. Num país dilacerado por desigualdades sociais – como quase todos os países – as obras teatrais revelam invariavelmente vínculos entre ideologia e militância políticas, por um lado, e práticas artísticas, por outro. Neste sentido, segundo José Fernando Azevedo, encenador e dramaturgo de São Paulo, o teatro brasileiro é mundial não só pelas influências e contribuições estrangeiras à sua formação, mas também porque se dá numa sociedade constituída por e constitutiva das relações desiguais do capitalismo global. Entre a geração nascida nos anos 20 e 30, de Gomes, Suassuna, Andrade, Boal, Pallottini, Vianinha, Guarnieri, Marcos e Muniz (Rodrigues nasceu nos anos 10), e a geração nascida nas décadas de 60 e 70, de que falarei de imediato, parece haver um hiato. Os dramaturgos e as obras a assinalar correspondentes a esse período são Naum Alves de Souza (1942), com as peças No Natal a Gente Vem Te Buscar (1979), Aurora da Minha Vida (1981), e Suburbano Coração (1989), com músicas de Chico Buarque; e Luiz Alberto de Abreu (1952), com Bella Ciao (1980), a partir de documentos e depoimentos de imigrantes anarquistas italianos, Lima Barreto ao Terceiro Dia (1984), cruzando biografia e ficção, ou O Livro de Jó (1995), criado em processo colaborativo no Teatro da Vertigem. Abreu escreveu ainda uma quinzena de peças, no âmbito do projecto Comédia Popular Brasileira, para a Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, entre 1994 e 2006. As suas obras mais recentes são Em Nome do Pai e Um Dia Ouvi a Lua.

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entrevista

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dramaturgia dos brasis

No final dos anos 90, incentivados por um programa de dramaturgia desenvolvido pelo Royal Court Theatre, vários dramaturgos criaram uma companhia em São Paulo, da qual fizeram então parte Cássio Pires (1972), Claudia Pucci (1974), Fábio Torres (1973) e Paula Chagas (1975), entre outros. Na mesma época, em Fortaleza, o curso de dramaturgia do Instituto Dragão do Mar formou autores como Edilberto Mendes (1968) e Marcos Barbosa (1977). Nos últimos anos, surgiram dramaturgos que trabalham com dispositivos que estabelecem regras de jogo para actores e espectadores diferentes das regras convencionais da ficção, mais ou menos épica, e ainda do processo colaborativo. Nestes espectáculos, o conteúdo é apresentado de forma dinâmica e interactiva, com alguns aspectos dramatizados, é certo, mas sobretudo recorrendo à narrativa, à exposição de documentos, imagens ou pessoas, ou à participação de outros não actores. São exemplo disso, no Rio de Janeiro, A Falta que Nos Move (2005) e Corte Seco (2010), dirigidos por Christiane Jatahy (1968); ou Ele Precisa Começar (2005) e Ninguém Falou que Seria Fácil (2011), de Felipe Rocha (1972), dirigidos por Alex Cassal (1967), ambos do grupo Foguetes Maravilha. O leitor pode fazer download das obras de alguns destes autores nos sites Catálogo da Dramaturgia Brasileira [www.kuhner. com.br/catalogo/], Dramaturgia Contemporânea [www. dramaturgiacontemporanea.com.br] e @dramaturgia [www.novasdramaturgias.com]. O site Teatro Para Alguém apresenta textos escritos para a internet [www. teatroparaalguem.com.br]. O Núcleo Bartolomeu organiza todos os meses uma prova de dramaturgia, o Dramaturgia Concisa Contemporânea, ao jeito das poetry slams, em que os autores têm um tempo limitado para escrever um texto, depois submetido à votação do público. O grupo Satyros, de São Paulo, organiza anualmente o Drama Mix, no âmbito do evento Satyrianas, convidando cerca de 50 autores para apresentarem textos curtos. Vários grupos e instituições promovem leituras encenadas ou montagens modestas de textos inéditos. Os prémios de dramaturgia mais importantes do Brasil são os Shell, em São Paulo e no Rio de Janeiro, e o prémio da Associação Paulista de Críticos de Arte, para peças estreadas. Para textos inéditos, o concurso mais importante é o prémio António José da Silva, da Funarte e do Instituto Camões. Uma caracterização de cada um dos dramaturgos ou de grupos deles, por temas, formas, pensamento, está fora do âmbito deste artigo, que apenas propõe um mapa ini-

cial. Ainda assim, um mapa precisa de uma Rosa dos Ventos, sob pena de ser lido de pernas para o ar, e enviar o leitor no sentido contrário ao da cova do tesouro. Qualquer espectador ou leitor mais assíduo de dramaturgia contemporânea constata facilmente a sua diversidade. As poéticas do discurso, do movimento e da acção são muito diferentes de peça para peça e de autor para autor. Mas os textos e os dramaturgos estão normalmente mais a norte ou mais a sul, mais a leste ou mais a oeste. Uns põem as personagens a fazer mais referências ao próprio mundo, outros menos. Uns têm vocabulário mais rural, outros mais urbano. Uns têm um tom confessional, autobiográfico, outros um registo documental, de testemunho. Algumas peças são mais dramáticas, outras mais narrativas. Algumas personagens são como as pessoas, inconstantes e incoerentes, outras quase não existem, são apenas os próprios autores a falar por elas. A crítica e a academia revelam a atenção dos novos autores ao pós-dramático, aos retratos do quotidiano ou aos dispositivos metafóricos. Será? Alguns dramaturgos fazem questão de reatar os laços quebrados com a tradição do Teatro de Arena: espectáculos como Orestéia (2007), do Folias; Ópera dos Vivos (2010), do Latão; e Cidade Fim (2011), dos Narradores; fazem uma retrospectiva da história recente da linguagem teatral no Brasil, em relação dialéctica com os meios de comunicação de massas, ao mesmo tempo que expõem as suas versões da luta de classes na América do Sul. As experiências aparentemente pósdramáticas, que expõem o próprio jogo teatral e invocam directamente as autobiografias de vários autores e companhias, avançam porque têm um ponto de partida anterior. Seja como for, é em diálogo com a herança linguística, técnica e artística dos autores anteriores, e partindo das circunstâncias do país, que os dramaturgos brasileiros farão a sua própria herança para legar aos vindouros. Não perca as cenas do próximo capítulo. —

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entrevista joaquim paulo

Jean-Pierre Sarrazac Jean-Pierre Sarrazac é dramaturgo, encenador, professor da Universidade de Paris - Sorbonne III e de Lovaina e é tido como um dos principais especialistas europeus na poética do drama moderno. Algumas das suas peças já foram encenadas em Portugal e tem três livros publicados em português: O Futuro do Drama, A Invenção da Teatralidade e O Outro Diálogo. Jean-Pierre Sarrazac teve a amabilidade de arriscar algumas respostas às perguntas que lhe colocámos – e de nos dizer logo que qualquer uma delas daria um longo estudo – com as quais procurámos contextualizar o lugar do drama contemporâneo.

por Jorge Palinhos

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jean-pierre sarrazac

Em termos gerais, o que é que distingue a dramaturgia contemporânea da dramaturgia clássica? «Desconstrução», creio que essa é a palavra-chave. As formas dramáticas canónicas, tal como foram definidas desde Aristóteles até Hegel, são alvo de uma desconstrução: colocadas em causa e despedaçadas – fragmentadas – desde as noções de fábula, personagem e diálogo. Extinguiu-se a sacrossanta «progressão dramática»: pelo contrário, as peças funcionam com base na retrospecção, por um regresso maciço do passado para o presente. A catástrofe já não encerra a peça; antes a inaugura. A personagem já não tem um rosto identificável; tende para o anonimato, para a coralidade de uma polifonia de vozes anónimas. O diálogo é minado pelo monólogo, o solilóquio, os equivalentes do «fluxo da consciência» romanesco. O espaço e o tempo dramático vacilam. O espaço, por exemplo, no caso de Beckett, torna-se uma marca do tempo.

O problema é que Lehmann concluiu, de uma forma teleológica – neo-hegeliana, digamos assim, ou adorniana, – pela morte do drama. Tal é desmentido por uma parte significativa das escritas dramáticas que hoje se fazem. Penso, por exemplo, no caso de Koltès, de Vinaver, de Kane, de Fosse de que já falei. Na verdade, à noção de pós-dramático prefiro, pela sua claridade, a noção de paradramático, que exclui a ideia – na minha opinião, falsa – da morte do drama. Não, não acabámos com o dramático, mesmo que contaminado pelo épico, pelo lírico ou mesmo pelo rapsódico. O dramático remete-nos para o encontro catastrófico com o outro, mesmo que este outro esteja em nós mesmos. Tal catástrofe continua bastante presente na trama das nossas vidas e temos necessidade de a ver em cena. O excessivo favor que hoje é atribuído à noção de pós-dramático fez-me pensar no reconhecimento que obteve na altura a do «teatro do absurdo». Martin Esslin, o seu teorizador, escreveu sobre as origens do teatro do absurdo, que, segundo ele, remontavam à própria tragédia grega; hoje, há quem nos diga que o teatro pós-dramático remonta a Ésquilo!

Num contexto de hiperinformação e hiperoferta cultural, o que é que o teatro e a dramaturgia ainda podem proporcionar que nenhum outro meio de comunicação permite? A presença. Uma presença real do actor em relação com o virtual de uma personagem que não é mais, como diria Michel Foucault, que um «rosto de areia». O futuro director do Festival de Avignon, Olivier Py, anunciou a sua intenção de que este festival voltasse a valorizar o texto como elemento essencial da cena. Será que o texto hoje é menos importante para o espectáculo teatral? Antoine Vitez dizia que um verdadeiro autor dramático era aquele que transportava um universo consigo. Este universo está presente – ou não – no texto. Mas está presente segundo o modo do vazio, da incompletude. O texto teatral contemporâneo deve aceitar este estado de incompletude, que significa a abertura para a cena. Um grande texto de teatro – e estou a pensar em Strindberg, Pirandello, Brecht, Jean Genet, Jon Fosse – é aquele que convoca poderosamente a cena, que cria o jogo no drama.

Na sua opinião, quais são os autores que transformaram mais radicalmente a cena dramática europeia dos últimos trinta anos? Em relação aos autores –já mencionei dois ou três, mas seria necessário mencionar mais de trinta, como Kroetz –, mas também os encenadores, que são verdadeiros autores de espectáculos. Tivemos, segundo esta perspectiva «paradramática», Antoine Vitez e os seus teatros-narrativos. Hoje são muitos aqueles que podemos qualificar como autores de espectáculos ou «escritores de palco». Na minha actividade como autor dramático, eu próprio pratiquei este teatro paradramático. E aqui, em Portugal, onde encenei um texto não-dramático, O Lavrador da Boémia (Cendrev, 1997), ou ainda, há alguns anos, no Cantiga para jà, Place de la Révolution (Companhia de Teatro de Braga e Centro Dramático Galego, 2003) a escrita de um espectáculo – e não de uma peça – sobre aquilo que resta hoje da Revolução dos Cravos … —

Hans-Thies Lehmann propôs a noção de teatro pós-dramático e há um interesse crescente na performance. O que é que tudo isto traz de novo ao teatro de hoje? O grande mérito de Lehmann é o de ter em conta as inovações trazidas por Bob Wilson e de propor análises perspicazes e subtis de espectáculos onde o teatro se liberta do drama. Tem em conta a separação entre teatro e a forma dramática que ocorreu nos primeiros decénios do século XX, nomeadamente com Artaud.

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Jorge Silva Melo ttt Dispensa apresentações, e é quase impossível descrever na totalidade, o percurso de Jorge Silva Melo, uma das figuras mais conhecidas da cultura portuguesa actual. Estudou cinema na London Film School, fundou o Teatro da Cornucópia com Luís Miguel Cintra, foi assistente de direcção de Peter Stein, Giorgio Strehler, João César Monteiro, Paulo Rocha, António-Pedro Vasconcelos e Alberto Seixas Santos. Em 1995 fundou a companhia Artistas Unidos, que desde então tem vindo a descobrir e a montar alguma da melhor dramaturgia contemporânea europeia. Pedimos-lhe que respondesse a algumas questões que lhe colocámos sobre esta. por Jorge Palinhos fotografia Sara Matos

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jorge silva melo

Grande parte da carreira do Jorge Silva Melo foi feita a encenar, descobrir e acompanhar a dramaturgia contemporânea, quer portuguesa, quer europeia. O que é que há nesta dramaturgia que tanto fascina o Jorge Silva Melo e que a distingue da dramaturgia clássica? Não diria “grande parte”, nem diria “carreira”. Sim, trabalho sobre o teatro contemporâneo desde 1974, mal a censura caiu. Com efeito, no Teatro da Cornucópia revelei Jean Jourdheuil/Bernard Chartreux, Kroetz, Fiama Hasse Pais Brandão, Michel Deutsch, Jean-Paul Wenzel. E quando saí estava a escrever textos com Almeida Faria, Nuno Júdice e Maria Velho da Costa. Tal como depois nos Artistas Unidos, também aí recorri àquilo a que chamo os clássicos dos contemporâneos. E se agora regressei a Pinter, Orton, Heiner Müller ou Beckett, nos anos 70 revelei Horváth, o jovem Brecht, Karl Valentin - os que estavam na base do teatro que então se fazia de mais interessante. Provavelmente, o facto de a minha formação ser o cinema faz-me respeitar quem agora escreve, os argumentistas (que também sou). Nada distingue a dramaturgia contemporânea da dramaturgia clássica: apenas o facto de ainda não ter encontrado a sua forma. E é isso o que me interessa, procurar a forma para o meu dia de hoje (que espero sempre seja o de, pelo menos, mais cem pessoas...), estar com quem procura, estar perto de quem ainda não sabe como será a imagem que terão de nós. Mas tal como me interessa o teatro que se faz ao mesmo tempo que escrevo, interessa-me acima de tudo o teatro que não encontra solução nas soluções cénicas existentes - e isso agora como antes. Como poderia eu então explicar porque estou a fazer Musset (não representado a não ser 60 anos depois da sua morte), ou Büchner (um século a aguardar a cena possível). Aquilo que me interessa é tornar possível o que parece impossível: vozes fora da norma (de qualquer norma).

de qualidade”, espero nunca (mas nunca, mesmo) fazer tal coisa, nem ter que ir apresentar os textos ao Instituto da dita Aquilo que me interessa é o que cria novas regras para si próprio. Ou, como dizia o grande Robert Voisin, editor: “só quero fazer aquilo que mais ninguém quer”. Nos últimos anos tem havido um interesse crescente em relação às chamadas “escritas de cena”, em que a palavra passa a submeter-se à cena e à visão do encenador. O que de novo traz esta tendência ao teatro? Errado. Esse “interesse” é velho como a “commedia dell’arte” e, no século XVIII, Goldoni deu cabo dessas “escritas especificamente teatrais”. A especificidade teatral assim como a visão (ou miopia?) do encenador são coisas que de todo não me interessam, não gosto e nem quero saber. Também não gostava da D. Palmyra Bastos que tinha “olho” (ou seria “visão”?) para o efeito teatral contra a disciplina literária. Só me interessa o teatro que se trabalha, na bela formulação de William Gaskill, “from the text outwards”. A actual formatação de espectáculos de festival que circulam pelo mundo proclamando a autonomia cénica e a submissão da palavra (essa coisa que definitivamente nos separou do macaco-nosso-santo-pai) é um das modas mais reaccionárias, estúpidas, preguiçosas, marciais, desistentes, arranjistas, economicistas que já vi. É que, depois de Tadeusz Kantor... Fazer dramaturgia contemporânea implica lidar com autores vivos, que assistem às encenações dos seus textos e podem reagir melhor ou pior a estas. Em que medida tal pode condicionar, enriquecer ou complicar o trabalho do encenador? Os autores vivos com quem trabalhei não assistem às encenações dos seus textos (encenação é um trabalho hermenêutico muito íntimo que se passa com os actores); assistem aos espectáculos (e alguns assistem a alguns ensaios). Sempre adorei trabalhar com outros, discutir, não tenho nem quero ter “visão”, sou argumentista e às vezes enceno ou realizo, o que faço é sempre com outras pessoas. E tenho o maior prazer em ter o Jon Fosse ou o David Lescot ou o José Maria Vieira Mendes ou o Spiro Scimone na plateia. São camaradas, andamos nisto.

No início do século XIX, Almeida Garrett afirmava que, fora Gil Vicente, não existia dramaturgia portuguesa. Apesar de todas as medidas que Garrett e sucessores tomaram para a fomentar, hoje continua a afirmar-se a mesma coisa. Qual é, afinal, o problema da dramaturgia portuguesa? Nenhum, a não ser este: não há teatro em Portugal, porque havia de haver autores? Sim, há umas casas abertas em regime de franchising, mas prefiro sanduíches feitas à mão e sem luvas de plástico.

Ao longo da sua longa carreira, o Jorge Silva Melo já encenou muitos textos e autores, uns mais famosos do que outros. Quais desses textos e autores se lhe entranharam debaixo da pele e ainda o acompanham até hoje? Georg Büchner, pai de todos nós, sim. E Heiner Müller, meu amigo. E Jon Fosse, esse imenso escritor. Claro que os que mais me ficam debaixo da pele e me acompanham são os meus, que escrevi alguns... —

Os Artistas Unidos ocuparam um novo espaço, o Teatro da Politécnica, tendo alguns jornais dito que este passaria a ser uma “casa de autores”, assente numa dramaturgia de qualidade. Será que o dramaturgo ainda continua a ser o principal autor de teatro? Não conheço outro, conhecem? E não sei o que quer dizer “principal”; se for isso, não quero. Quero uma casa de autores. Principais ou figurantes... Quanto à “dramaturgia 25



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Juan Mayorga Juan Mayorga é um dos mais conceituados dramaturgos espanhóis da actualidade. Formou-se em filosofia e matemática, sendo autor de vários estudos sobre Walter Benjamin. É membro do conselho de redacção da revista de teatro Primer Acto e docente na Real Escuela Superior de Arte Dramático de Madrid. Várias peças suas, como Cartas de Amor a Stalin, Hamelin, O Rapaz da Última Fila, etc., estão traduzidas para português. Na seguinte entrevista colocámos-lhe algumas questões sobre o labor da escrita e a influência que o seu percurso exerce sobre as peças que tem vindo a escrever. por Jorge Palinhos

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juan mayorga

Quando está a escrever ou a ler um texto, como é que reconhece nele potencial ou qualidade dramatúrgica? Um texto teatral deve provocar um desejo de reunião. Primeiro, de alguns actores que queiram converter esse texto numa experiência no espaço e no tempo. Em seguida, de alguns espectadores que se reúnam com aqueles actores num dado lugar e dada hora para partilhar e completar essa experiência. Como escritor e como leitor, é essa capacidada de convocar que me leva a reconhecer um texto como sendo autenticamente teatral. Quando desejo que a palavra escrita seja pronunciada por um ser humano perante outros; quando desejo que a acção escrita seja realizada por um ser humano perante outros, então sinto que estou perante um texto para teatro.

não a tiver compreendido mal, uma obra de arte é mais bela quanto mais complexa, sempre que essa complexidade não confunda o seu destinatário. Esta complexidade sensata é aquilo que procuro. No entanto, qualquer uma das decisões que mencionei podem ser revogadas durante o processo de escrita. O trabalho até obter uma primeira versão pode ser relativamente breve (Cartas de amor a Stalin) ou demorar anos (Los yugoslavos). Todavia, nunca dou por terminado um texto. O texto está atravessado pela minha vida, e atravessa-a. A vida – bem como as encenações – levam-me a entender de novos modos o texto, e amiúde a reescrevê-lo.

Qual costuma ser o ponto de partida dos seus textos e como é que estes se desenvolvem? Os meus pontos de partida são muito diversos. Uma experiência pessoal (O rapaz da última fila, El cartógrafo), uma fotografia (La tortuga de Darwin), uma notícia de jornal (O jardim queimado, Últimas palavras do gorila albino, Hamelin), um facto histórico (Cartas de amor a Stalin, Caminho do céu)... Noutras ocasiões a origem é mais obscura (Los yugoslavos). O comum a todos estes casos é que algumas personagens te assaltam e te pedem que lhes dês corpo, espaço, tempo, linguagem: teatro. Quando quis escrever a partir de um tema (Animais nocturnos, A paz perpétua, 581 mapas), não o consegui fazer até dar com essa situação ou essa personagem capaz de arrastar a ideia pelo espaço e pelo tempo.

Esta complexidade sensata é aquilo que procuro.

Como nascem e crescem as personagens nos seus textos? Não há nada de tão misterioso e fascinante como a criação de uma personagem que se impõe aos poucos ao seu criador até que um dia se torna mais real do que o próprio criador. De onde é que surgem as minhas personagens? Primeiro da minha própria vida e das vidas das pessoas com quem me tenho cruzado. Também a partir da minha vida como leitor e espectador. Quando me coloco diante do papel, penso em cada personagem em relação com as demais – nos seus possíveis conflitos, nas suas possíveis alianças, nas suas semelhanças, nos seus contrastes. E procuro, sobretudo, a ferida e a luz da personagem.

De que forma é que estrutura o texto e a trama dramática até à sua forma final? Geralmente resisto ao impulso de escrever, deixando que o motivo inicial me acompanhe durante meses e se vá associando a outros. Desse modo vão surgindo situações, personagens... Deste modo vai aparecendo também a forma da obra. A dado momento, detenho-me para pensar sistematicamente na obra que estou a projectar, e é nessa altura que tomo decisões sobre as personagens, os espaços, os tempos, a linguagem verbal e a linguagem teatral, a estrutura... Tento ter em conta a parte sétima da Poética de Aristóteles, segundo a qual, se eu

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juan mayorga

Qual a sua intervenção e relação com o encenador, actores e restante equipa na passagem do texto para a cena? Se o encenador me pede que colabore na montagem do texto, faço-o com todo o gosto, como mais um elemento da sua equipa. É o encenador que deve determinar os limites dessa colaboração. Em nenhum dos casos assumo o papel de juiz da encenação. O texto sabe coisas que o seu autor desconhece e que o encenador e os actores poderão descobrir. O melhor que pode suceder a um autor é que a encenação revele aspectos do texto que este ignorava ter escrito. E eu já tive a sorte de receber esse presente mais do que uma vez.

Tem feito várias versões teatrais de textos clássicos do teatro, de autores como Shakespeare, Ibsen, Tchekhov, etc. O que é que o trabalho sobre textos clássicos traz às peças originais de Juan Mayorga e o que é que o Juan Mayorga pode trazer a estas peças clássicas? Entre os meus trabalhos, distingo aqueles em que parti de um texto alheio e desenvolvi outro que considero próprio (Palavra de Cão, Fedra, Primera noticia de la catástrofe, La lengua en pedazos), de experiências em que fui mediador entre um texto clássico e o espectador contemporâneo. Neste último caso considero-me um tradutor, inclusivamente se trabalho no espaço da minha própria língua – por exemplo, quando adapto Lope de Vega ou Calderón de la Barca. O tradutor é, certamente, um criador, mas é-o dentro da obra de outro, à qual deve ser fiel mesmo quando parece atraiçoá-la. Deixem-me acrescentar que a adaptação de textos clássicos foi a minha melhor escola como dramaturgo. Não só porque me permitiu entrar em relação íntima com os segredos de enormes autores, como também porque me proporcionou um duplo ensinamento moral: trabalhar com os grandes textos da literatura dramática universal tornou-me muito mais humilde – sei que tudo o que escrevi nada vale perante a cena da fraga de Dover de Rei Lear –, mas também mais ambicioso – ao dar-me a ver até que ponto a velha arte teatral é capaz de guardar e alargar a experiência humana. —

O Juan Mayorga tem formação em Filosofia e Matemática. Em que medida é que esta formação influencia as peças que escreve? Os matemáticos são capazes de expressar, com apenas alguns signos, realidades muito complexas – por exemplo, a idea de elipse ou o teorema de Fermat. A Matemática é uma extraordinária criação da imaginação humana e uma formidável linguagem de síntese, e conhecê-la ajudou-me a evoluir nessa arte de imaginação e síntese que é o teatro, em que um objecto, um gesto, uma frase, devem dar conta de uma personagem, de uma situação, de uma época. Costumo dizer que o teatro deve ser uma linguagem sem gorduras e que o seu órgão é a imaginação, e ambas as coisas também se podem dizer sobre a Matemática. Não reconheço qualquer separação entre o meu trabalho como filósofo e o meu trabalho no teatro. É verdade que a filosofia e o teatro parecem ter âmbitos infinitamente separados, visto que uma é o reino do abstracto – as ideias – e o outro é o do concreto – os corpos no espaço –, mas pelo menos desde Sófocles – e estou a pensar na Antígona –que alguns homens de teatro foram capazes de tornar concreto o abstracto. A filosofia e o teatro nascem do assombro perante o mundo e a vida; ambos vivem do conflito e têm um carácter constitutivamente dialéctico. O teatro pode tornar visíveis problemas e paradoxos que interessam à filosofia; inclusamente pode dar a ver problemas para os quais o filósofo ainda não tem palavras.

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Tim Crouch Actor e dramaturgo britânico, Tim Crouch tem vindo a afirmar um percurso singular na busca de novos temas e formas de fazer teatro e performance. Várias das suas peças já foram apresentadas e tiveram assinalável sucesso um pouco por todo o mundo ocidental. Algumas foram apresentadas em Portugal, e estão publicadas na colecção «Livrinhos de Teatro», como é o caso de Um Carvalho e O Autor. Fomos tentar perceber como é que Tim Crouch escreve e o que é que o inspira no seu trabalho de escrita e encenação. por Jorge Palinhos

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tim crouch

Quando está a ler ou a escrever um texto, como é que reconhece nele o potencial de se tornar uma peça teatral? Esse é o processo mais lento. É um processo de testar uma ideia para garantir que é mais do que apenas a ideia. Normalmente há uma dança entre ideia e narrativa. Quero explorar uma ideia e quero contar uma história. Idealmente quero que seja uma boa história, que contribua para a ideia, sem que isso prejudique o prazer da história. Por isso, a minha abordagem nunca parte da personagem. Sei que alguns escritores dizem que se limitam a juntar as personagens e ver para onde vão. Eu não o faço.

de investigação narrativa. Desenvolve-se uma cena. Esta pode ficar na montagem final ou pode ser combinada com outra cena. Estou sempre a pensar no texto em palco. Não escrevo textos “literários”. Os meus textos são roteiros para o espectáculo ao vivo. A forma como a peça funciona ao vivo determina a sua estrutura final.

Normalmente, qual é a inspiração para escrever um texto e como é que desenvolve a ideia inicial? Na verdade só tenho uma ideia (ou fascínio) – e cada uma das minhas peças constitui uma forma diferente de explorar essa ideia. Essa ideia para mim existe no potencial que se pode obter entre o palco e o público – que transformações se podem obter sem alterações físicas. Por exemplo, a minha próxima peça debruça-se sobre a forma como representamos pessoas – reais – no palco – como é que nós, de forma ingénua, procuramos uma transfiguração física nessa representação. Poderia escrever um panfleto com esses meus pensamentos, mas prefiro contar uma história que os explore. E, associada a essa história, sustentada nessa história, estará a forma como a história é contada. Desse modo, a forma e o conteúdo orientam-se para explorar algo de semelhante. A inspiração para começar a escrever normalmente surge após um longo processo de leitura e anotações. É entre a bruma das notas que as coisas começam a ganhar forma. O meu trabalho enquanto escritor é procurar essas formas e testá-las em relação à minha ideia.

Enquanto autor, como é que nascem e se desenvolvem as suas personagens? As minhas personagens representam mais ideias do que “outras pessoas” vivas e dinâmicas. O meu trabalho é desafiar a perspectiva representacional da interpretação de uma personagem. Estou interessado na ideia de que uma personagem ser negociada entre o actor e o público. Isso torna-se claro na minha peça O Autor, onde cada um dos actores representa uma personagem com o seu próprio nome, uma personagem próxima da sua própria personalidade. Eu desempenho um homem chamado Tim Crouch que é dramaturgo e encenador. Uso as minhas próprias roupas, falo com a minha voz normal. A única coisa que distingue o eu real do eu ficcional é a divisão narrativa entre as acções que desempenho na ficção e na minha própria vida. Não preciso de demonstrar essa diferença através da representação de ‘outra’ personalidade. O público é convidado a fazer essa distinção. A minha peça que mais assenta numa personagem é a minha peça para jovens, I, Malvolio, porque estou a responder a uma personagem muito vívida criada por Shakespeare. Na peça não sou claramente eu. Mas também não me sinto obrigado a ser fiel à personagem. Posso saltar entre actor e personagem facilmente e isso não vai afectar a identificação do público com essa personagem. Se tanto, vai até aumentar essa identificação, pois este compreende a natureza da criação.

Normalmente há uma dança entre ideia e narrativa.

Como é que estrutura o texto e o enredo até à sua forma final? As minhas peças não são peças tradicionais – estruturadas em torno da acção psicológica. Por vezes as personagens não têm nomes ou são veículos para um estudo ideológico, e não códigos regidos por personagens. A estrutura nasce da própria escrita. Alguns autores estruturam tudo antes de começarem a escrever cenas ou diálogos. Eu não. Eu começo com um palpite associado a uma ideia e história. Trabalho de forma intuitiva – seguindo uma linha

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tim crouch

Costuma também encenar e interpretar os seus textos. Como é que trabalha com o resto da equipa no processo de adaptação do texto para o palco? Trabalho com dois colaboradores – Andy Smith e Karl James. Não trabalhamos sempre juntos. O Andy e o Karl têm as suas próprias carreiras. O início do nosso processo de trabalho dá-se quando começo a escrever algo. Partilho as minhas ideias iniciais com o Karl e o Andy. As suas respostas irão guiar os meus pensamentos sobre o rumo do trabalho, mas eles não têm qualquer interferência na escrita. As minhas peças não assentam no devising. No entanto, nas nossas discussões, nós falamos do que cada peça precisa para poder ser encenada. Cada peça tem necessidades diferentes. Por exemplo, a minha próxima peça vai exigir um designer – algo que nenhuma das minhas outras peças para adultos necessitava. Por isso, vamos precisar de um designer com quem colaborar. A equipa varia consoante as necessidades da peça. No caso de O Autor, escrevi para actores específicos. Só tivemos de fazer uma audição para uma personagem, a jovem mulher, Esther. No caso de Um Carvalho, o segundo actor era cedido pelo teatro ou festival onde decorria a apresentação. Eu não quero escolher aqueles actores, mas apenas conhecê-los pela primeira vez uma hora antes do espectáculo. Desse modo posso manter o processo vivo – um processo que foi discutido e pensado por mim e pelos meus colaboradores.

A maior parte das suas peças jogam com as convenções do teatro. Um Carvalho exige a participação de um actor convidado que nada saiba da peça, e O Autor é contado do ponto de vista do público. Porquê essa necessidade de explorar os limites do teatro e do drama? Não me proponho a explorar limites. Talvez me limite a tentar não colocar restrições àquilo que posso fazer em termos de forma. Mas julgo que deve acontecer o mesmo com todos os escritores. Deixar a forma ir atrás daquilo que o conteúdo determina. E deixar o conteúdo ir atrás do que a forma determina. Nesse aspecto, todas as obras de arte devem ser experimentais. Nenhum artista deve ter a intenção de se repetir a si próprio. O segundo actor de Um Carvalho não sabe nada sobre a peça em que participa porque esta sensação de perda tem uma ligação narrativa com a personagem que está a interpretar na peça.

Não me proponho a explorar limites. Talvez me limite a tentar não colocar restrições àquilo que posso fazer em termos de forma.

Algumas das peças do Tim Crouch parecem ser bastante influenciadas pelas artes plásticas. O que pensa que a escrita dramatúrgica pode aprender com as artes plásticas contemporâneas? As artes plásticas estão menos sujeitas ao realismo figurativo. As ideias podem ser mais fluídas, mais imediatas, mais abstractas. As artes visuais também exigem mais do seu público. Não temem o espaço em branco ou o deixar coisas por dizer. O teatro é difícil porque assenta na forma humana, e essa forma transporta consigo uma certa literalidade – um realismo inato que, creio, deve ser questionado pelo teatro. O realismo que fique para o cinema e para a televisão – o teatro deve acompanhar as artes visuais para novos territórios de expressão. —

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entrevista joaquim paulo

José Maria Vieira Mendes Nascido em 1976, José Maria Vieira Mendes tem já um longo percurso no teatro. Frequentou a Internacional Summer Residency do Royal Court, de Londres, traduziu Samuel Beckett, Jon Fosse, Harold Pinter, Heiner Müller, Rainer Werner Fassbinder e Bertolt Brecht, e é autor de uma obra dramática considerável, premiada e publicada em várias línguas. Em Portugal trabalhou fundamentalmente com as companhias Artistas Unidos e Teatro Praga. Acedeu a responder a algumas perguntas sobre o seu trabalho de criação e sobre a sua visão da dramaturgia contemporânea. por Jorge Palinhos

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josé maria vieira mendes

Qual a sua intervenção e relação com o encenador, atores e restante equipa na passagem do texto para a cena? Não trabalhamos com encenador nem com qualquer tipo de hierarquia, tanto nas funções dentro do grupo como entre os vários elementos (cenografia, atores, música, iluminação) que constituem o espetáculo. Trabalhamos num coletivo. E o texto não passa para a cena. O texto é o texto. A cena é a cena. São dois elementos distintos e de convivência difícil. E tentam encontrar-se num espetáculo. Em alguns espetáculos. Tal como os restantes elementos. É tudo o mesmo. E o texto tanto pode ser o princípio (cronológico) da criação do espetáculo, como aparecer no meio ou no fim. Não há regras. Não há método. Não há hierarquia predefinida.

Quando está a escrever ou a ler um texto, como é que reconhece nele potencial ou qualidade dramatúrgica? Não acredito em potencial ou qualidade dramatúrgica de um texto. Gosto ou não gosto do que estou a escrever ou a ler. O “potencial dramatúrgico” tem sido responsável por uma estagnação de uma certa dramaturgia que se fixou numa ideia de que o texto prevê um espetáculo. A mim interessa-me hoje escrever para um teatro que não sei o que é ou pode ser. E não espero com o meu texto que o teatro encontre uma resposta, antes um estímulo para se continuar a perguntar. Qual costuma ser o ponto de partida dos seus textos e como é que estes se desenvolvem? Tenho tido um percurso de mais de dez anos de escrita para teatro que passou por várias fases. Desliguei-me entretanto de uma escrita para um teatro de texto e concentrei-me no meu trabalho com a companhia Teatro Praga, da qual faço parte. E dentro deste coletivo tenho trabalhado de diferentes formas, seja escrevendo textos com um grupo de pessoas, durante os ensaios, tentando preencher uma estrutura e conceito de espetáculo amadurecida, em conjunto e recorrendo a diferentes materiais, seja propondo um texto meu como objeto literário que pretendo que seja lido pelos restantes membros da companhia e entendido como estímulo para um espetáculo que não se pode fazer.

O José Maria Vieira Mendes já colaborou com os Artistas Unidos, que praticam um teatro mais literário, e hoje integra o coletivo Teatro Praga, mais influenciado por uma estética da performance e das artes plásticas. Quais os desafios e atrativos de escrever para estas duas diferentes formas de fazer teatro? Neste momento não escrevo para nenhuma forma de teatro. Apenas faço espetáculos com o Teatro Praga. E nem todos os espetáculos que faço enquanto membro do Teatro Praga têm textos escritos por mim. Às vezes nem sequer uma frase escrevo. O Teatro Praga faz teatro. Não faz performance nem artes plásticas, mas trabalha com essas influências como trabalha com as influências da música, do teatro, da televisão e do cinema, ou seja, de tudo o que se passa à nossa volta. Teatro é um termo suficientemente abrangente apesar de tanta gente o tentar reduzir. Continuo a escrever peças de teatro. Acabei de escrever uma peça a que chamei Terceira Idade, uma comédia. Vamos tentar fazer um espetáculo em que esse texto seja dito. Ou parte dele. Se mais alguém quiser fazer qualquer coisa com este texto, não me oponho. É pouco provável que vá ver o espetáculo ou participar nos ensaios. Mas, atenção, o texto é uma peça de teatro. E não teatro. A minha relação com os Artistas Unidos, que é uma relação neste momento com o Jorge Silva Melo, tem por um lado que ver com o passado, e, no presente, com uma espécie de prolongamento do passado no presente. Parece-me mais difícil os Artistas Unidos interessarem-se por aquilo que ando a escrever agora. Mas não quero ajuizar por eles.

De que forma é que estrutura o texto e a trama dramática até à sua forma final? Vou escrevendo. Tenho ideias. Penso. Manipulo. Não me interessa a “trama”. Só trabalho com ela para mostrar que ela não interessa para nada. Interessam as ideias. A trama apenas serve para dizer coisas como “Adensa-se a trama. E fica tramado.” E fujo da forma. A sete pés. Como nascem e crescem as personagens nos seus textos? Ninguém nasce nem ninguém cresce. O teatro não é a vida. O teatro é o teatro. Ou é aquilo que torna a vida mais interessante do que o teatro. Nascer e crescer são metáforas que a mim não me dizem nada. Trabalho com a ideia de ator. Um ator a dizer um texto. E o texto pode ter umas personagens ou não. (Quando as tenho em textos, só lá estão para mostrar que as personagens não interessam para nada.) Mas não pode deixar de ter ideias. Pensamento. São pessoas a pensar em palco. Pessoas a fazer coisas para outras pessoas. Pessoas que entrem e saem, não nascem e morrem.

Tendo trabalhado como dramaturgo, tradutor de teatro, formador de escrita dramática e júri de prémios de dramaturgia, que visão tem sobre a dramaturgia portuguesa contemporânea? Nenhuma. E também não sei o que é “dramaturgia”. —

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entrevista

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josĂŠ maria vieira mendes

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ENTREVISTA JOAQUIM PAULO

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entrevista joaquim paulo

TEATRO

MITOCRÍTICO «As afinidades compulsivas entre a forma filosófica e a forma poética, o seu nascimento geminado no impulso primordial em direcção ao significado, em direcção à tentativa da consciência humana de encontrar alojamento no mundo conhecido – tentativa a que podemos chamar “mito” – provocaram esses conflitos de que a República de Platão continua a ser um exemplo.» George Steiner, Paixão Intacta (2003)

Uma breve introdução

«A mitologia é a verdade dispersa, túnica rasgada de um deus morto a quem só podemos ressuscitar juntando com paciência piedosa todos os pedaços. Esta tarefa é superior às nossas forças. Por isso os egípcios confiavam a Ísis a missão divina de caminhar sozinha através da noite para fazer da seara cintilante das estrelas o corpo único do seu esposo ressuscitado, Osíris, o sol brilhante.» Eduardo Lourenço, Ísis ou a Inteligência (2008)

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teatro mitocrítico

pós-junguiano Gilbert Durand cunhou o termo, a partir dos anos 70 do século passado. Mas confesso que me interessa agora antes de mais perseguir o sentido que a etimologia desta palavra composta me suscita. Mitocrítico pareceu-me à partida uma expressão capaz de reunir e conciliar operativamente as duas facções da querela antiga que Platão instituiu, já bem patente no Íon, entre filósofos e poetas: sendo que o mito se encontra do lado da poesia; e a crítica é o ofício reflexivo da filosofia que pode, se a tal se dispuser, intentar uma perspectiva interpretativa do «delírio mítico» do poeta-xamã. Renunciando à radicalização do seu mestre, que expulsava os poetas da cidade ideal, Aristóteles identifica um lugar discursivo de meio termo onde se fundem poesia e filosofia num casamento inesperado: nos três géneros teatrais cultivados pelos gregos (tragédia, comédia e drama satírico), a criação dramática configura o terceiro termo que proporciona uma síntese para a antítese platónica entre poesia e filosofia. Porque é conveniente não esquecer que o alvo de estudo da Poética - esse que ficou sendo conhecido como o primeiro tratado de teoria literária no Ocidente - é precisamente a poesia dramática e a destinação cénica a que esta está votada. Na Poética, surpreende-nos Aristóteles ao afirmar que a poesia dramática é algo mais filosófico do que a História porque, ao contrário dos particularismos factuais desta, o drama visa a representação do universal através dos caracteres que integram a acção teatralizada. Esta declaração, que decerto faria estremecer Platão, seu mestre, é uma tomada de posição que legitima por inteiro a abordagem mitocrítica vista nestes moldes, uma vez que reconhece uma vocação filosófica nos modos com que o dramaturgo concebe os mitos para serem expostos no palco da pólis. E é o mesmo Aristóteles que fala do mito como alma do drama, ainda que a acepção aristotélica de mito, na Poética, seja eminentemente secular, mais abstracta (ou conceptual) do que sincrética, e se reporte ao que entendemos por estória, enredo, narrativa que a cena dramatiza. Esse mito de que fala o filósofo não é necessariamente a matéria-prima elementar dos sistemas de crença religiosa, embora possa com ela coincidir, visto

Armando Nascimento Rosa dramaturgo e professor na Escola Superior de Teatro e Cinema

T

al como o sonho para Freud, na sua centenária teoria da interpretação dos sonhos, também para mim a escrita de uma peça teatral tem por base um desejo primordial: o desejo de ver a transformação daquele guião de palavras e ideias com potenciais imagens num espectáculo de gente viva e actuante no lugar da cena. Mas esse desejo, que preside à escrita do sonho de acordados que o teatro é, consiste num desejo explícito, cuja latência é inteiramente manifesta, contrariando freudianas censuras, mesmo sabendo que a raiz desse desejo tem uma natureza que se estende por uma vasta paisagem que os olhos da consciência já não alcançam, mas apenas intuem. Com estes mesmos olhos da consciência dirigidos para o que faço, tanto na escrita dramática como nas incursões do ensaio (tendo o teatro por horizonte), verifico que uma designação me será comum a ambas estas modalidades de produção estética e hermenêutica: refiro-me a uma constante mitocrítica, dinamizadora simultânea de imaginário e pensamento. Que é isso de teatro mitocrítico? É a pergunta que coloco a mim mesmo no arranque deste artigo. Começo pelo termo mitocrítico. Ele ocorre-me num exercício de imaginação conceptual, não obstante estar ciente do contexto semântico e metodológico influente com que o

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testemunhos

A partir do último quartel do séc. XIX, dá-se, em metamorfose, um retorno afirmativo do mito, esse recalcado na utopia unilateral que dominou o racionalismo moderno. O seu regresso aloja-se num centro nevrálgico do sujeito da cultura, difícil já de extirpar a partir daí; refiro-me à manifestação dos recursos mitológicos mobilizados pela psicologia do inconsciente, que fornecem modelos de explicabilidade a uma possível hermenêutica da psique - o contributo de Nietzsche é também sintomático e significativo do regresso da imaginação mítica como expressão do recalcado no discurso filosófico do Ocidente, com toda a (psico)patologia inerente à violência do seu gesto. Os mitos psicanalisam-nos na nossa tentativa mesma de os psicanalisar. Eles falam da pluralidade dramática da psique porque é neles que a psique exprime a geografia profunda da sua linguagem. Isto porque a psique humana possui uma natureza mitodramática, a começar pela palavra grega que a nomeia, sinónima do nome da jovem mortal Psique que contrai núpcias, sem o saber, com o deus Eros, esse estranho amante que não quer deixar-se ver por ela à luz do dia. Uma actividade mitocrítica pode ver-se transfigurada na narrativa aventurosa deste casal singular a que Apuleio deu forma literária: se aceitarmos que Eros representa a função complexa inscrita na misteriosa sedução do mito; e Psique, por sua vez, representará o desejo «crítico» da consciência que pretende conhecer o mistério dessa atracção de acordo com as várias dimensões que a experiência humana proporciona. Pela observação dos trabalhos árduos em que a humana Psique se vê implicada, percebe-se como o envolvimento íntimo com a natureza poderosa do mito se pode tornar em motivo de sobrevivência ou aniquilação do humano. Nos conteúdos de um «nada que é tudo», segundo a definição pessoana de mito, reside um brilho fascinante e perigoso, encantatório e mortífero, belo e abissal; como bem o sabemos ao vivenciar o terror e a compaixão que o espectáculo interactivo da História produz em nós, nesta dupla condição de agentes e pacientes dela. E o mito é tema multiforme que passa a pulsar na circulação cultural da modernidade tardia, com Freud e com Jung a incentivarem-nos a empreender diferentes mitanálises dela. Não é espaço e lugar aqui para teorizar sobre o mito enquanto polarizador de discussões no consciente colectivo; e bem assim aos modos de entendê-lo nas suas múltiplas acepções, antiga, moderna, contemporânea. Mas na intenção de procurar extrair sentidos e leituras

que os mitos a que o teatro antigo recorre pertencem ao universo politeísta e xamânico, onde deuses e seus poderes ou influências contracenam com personagens objectivamente mortais, que só o teatro dotará de imortalidade simbólica, na sua efémera epifania. Esta ambiguidade está por isso inerente às origens do teatro e ao pensamento sobre ele no Ocidente; ou seja, os mitos gregos que motivam a criação dramática emergem de dois afluentes distintos, mas oriundos porém de um rio comum: o afluente numinoso e xamânico das mitologias que alimentam o sentido e a forma dos rituais e das mundividências que lhes estão associadas; e o afluente poético-narrativo que está na base da autonomia artística dessa actividade humana a que o futuro viria a chamar literatura. A sobrevivência do mito no secularismo estético das literaturas nem sempre é tão estritamente secular, como é sabido, visto que servirá, muitas vezes, para disfarçar credos heréticos ou simplesmente incómodos (porque socialmente minoritários e/ou reprováveis pelos poderes dominantes), sob os figurinos aparentemente inócuos da efabulação literária. No teatro, esta aparência inócua tende obviamente a desfazer a sua camuflagem, exibindo em pleno os alvos a que se destina, não obstante o despiste irónico e lúdico de sentidos que a cena produz no espectador. Num outro ângulo, também a literatura e a arte dramáticas, portadoras do vinculo numinoso das suas origens (e digo numinoso na acepção etimológica do termo, visto que os numes ou daimónes eram humanamente invocados para a aparição no rito lúdico da cena), darão à luz novos complexos míticos, pela vias geminadas da imagética, da narrativa e da acção. Complexos esses que se constituem como verdadeiros atractores da psique, conjurados pela imaginação poética, a que Bachelard chamou complexos de cultura, ao identificar exemplos deles - como sejam o complexo de Ofélia ou o complexo de Swinburne (em A Água e os Sonhos, 1942).

Os mitos psicanalisam-nos na nossa tentativa mesma de os psicanalisar.

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teatro mitocrítico

de constelações míticas habita a pulsão mitocrítica que resulta, como o nome indica, da aliança entre a fonte magnética e esfíngica do mito e a vontade hermenêutica de saber o que ele diz, o que ele é capaz de nos fazer ver e dizer e que de outro modo não poderíamos exprimir. Como o mito foi para os antigos matéria de inspiração criativa, o enamoramento que a psicologia profunda fará com o imaginário mitológico, para que a psique possa falar de si própria, manifesta uma força motriz desafiadora da imaginação simbólica na arte.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Poética. Trad. de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986.

A pulsão que me conduz à criação dramatúrgica descobre a sua dimensão mitocrítica neste jogo entre o mito como motor da imaginação dramática e a imaginação dramática como potenciadora de sentidos que reconhecem na psique humana a natureza simbólica do discurso mítico. O teatro e a dramaturgia são dinamizados por materiais mitológicos desde as suas origens, de maneiras mais ou menos explícitas. E talvez seja apenas uma simples tautologia reclamar a legitimidade da designação de teatro mitocrítico. Persisto porém em fazê-lo, uma vez que clarifica para mim o que me traz na paixão pela escrita para cena, desde a minha primeira peça, concluída em 1988, na qual um motivo mítico me servia para transformar em teatro o terror e a compaixão que experienciei perante uma tragédia contemporânea assistida à distância, através dos media: o desastre nuclear ocorrido no Brasil, na cidade de Goiânia, em 1987, e que daria origem a Goiânia – Uma Nova Caixa de Pandora, obra dramaturgicamente ambiciosa que pretendia, na experimentação juvenil da minha escrita para teatro, aferir a possibilidade de abordar em teatro o trágico da condição contemporânea, de habitantes num planeta vivo com futuro ameaçado. —

BACHELARD, Gaston [1942]. A água e os sonhos. Trad. de Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

A pulsão que me conduz à criação dramatúrgica descobre a sua dimensão mitocrítica neste jogo entre o mito como motor da imaginação dramática e a imaginação dramática como potenciadora de sentidos

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LOURENÇO, Eduardo, «Ísis ou a Inteligência». In Relâmpago. Revista de poesia, n.º 22, pp. 27-29. Lisboa: Fundação Luís Miguel Nava, Abril de 2008.

STEINER, George [1996]. Paixão Intacta. Ensaios 1978-1995. Trad. de Margarida Periquito e Victor Antunes. Lisboa: Relógio d’Água, 2003.

[O presente artigo corresponde a um excerto inicial do ensaio «Notas para um teatro mitocrítico», publicado em São Paulo in Sala Preta. Revista de Artes Cénicas, n.º 9, 2009, Programa de Pós-Graduação em Artes Cénicas, Departamentos de Artes Cénicas, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, pp. 73-84.]


entrevista joaquim paulo

é um

Imag jOgO :

Paisagem, viagem, participação e tecnologia na dramaturgia do Visões Úteis – 1999/2011

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imagina que isto é um jogo

gina

que isto entre pinhais e montanhas. O Projecto Umbigo repetiu-se por mais dois anos, acabando por ser absorvido pelo ritmo padrão dos novos processos criativos a partir daí adoptados – baseados numa metodologia colaborativa e direcção partilhada – que passaram a forçar períodos longos de reflexão em que a ausência do Porto era substituída pelas novas possibilidades oferecidas pelas tecnologias da comunicação. Em 2001, no âmbito do projecto Visíveis na Estrada através da Orla do Bosque, o VU desenvolvia o que terá sido um dos primeiros blogues portugueses; Tanto mais que tecnicamente não se tratava de um blogue (a tecnologia ainda não estava disponível), mas sim de um sítio em que o Webmaster inseria quotidianamente não só informação e imagens sobre o andamento do projecto, mas também os contributos e comentários de toda a equipa, como se cada um tivesse a possibilidade de o fazer. Na verdade era a prefiguração de uma tecnologia ainda inexistente, mas que ficaria disponível pouco depois e que passaria a marcar grande parte dos processos criativos até à actualidade. Assim, e sempre que se trata de processos de escrita original, procede-se, com muitos meses de antecedência (às vezes um ano ou mais), à abertura de um blogue interno – só acessível à equipa – no qual se desenvolvem as preocupações, formas e temas que sustentarão o projecto. A tecnologia foi vital para potenciar o encontro, a partilha e a democratização dos processos – logo dos produtos – convidando cada cocriador a responsabilizar-se pela sua maior ou menor participação. E, ao longo desta última década, o rasto destes processos foi-se acumulando numa série de ruínas que sobrevivem escondidas em www.visoesuteis.pt - onde a generalidade dos originais produzidos são disponibilizados sob licenças de creative commons.

por Carlos Costa Co-director artístico e de produção do Visões Úteis

E

m 1999 os directores artísticos do Visões Úteis (VU) refugiavam-se numa aldeia da Beira Alta para o primeiro Projecto Umbigo, que se traduzia em algumas semanas de retiro para trabalho não enquadrado em nenhum processo de produção. Nestas semanas alternavam-se momentos diversos como o estudo individual, apresentações teóricas, exercícios de escrita e encenação e training de actor. E, ao longo das corridas matinais, íamos apontando lugares que “só por si” pareciam sustentar a encenação de determinado texto e imaginando – sem qualquer espírito prático - uma megaprodução que convocasse o público a uma peregrinação por encenações de textos “clássicos”: entre o pôr do sol e o nascer do sol, em quatro pontos perdidos

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testemunhos

Mas também é verdade que as novas possibilidades digitais não apagaram a obsessão pelas viagens – que o Projecto Umbigo indiciava. Pelo que, em 2001 - e no referido Visíveis na Estrada... –, o VU propunha-se trabalhar, entre outros, precisamente o tema da viagem; e, para testar o tema na própria forma, decidiu-se escrever/apresentar um primeiro espectáculo e em seguida viajar com toda a equipa numa carrinha durante um mês, pelas estradas da Europa, ao encontro de artistas, intelectuais e políticos que, nas suas actividades, reflectiam sobre os mesmos motivos do projecto. No regresso escreveu-se e apresentou-se outro espectáculo (diferente do primeiro, na medida em que a viagem teria alterado – e alterou – a nossa percepção do mundo). Na altura este processo criativo gerou reacções de perplexidade e desaprovação, sendo considerado bizarro e irresponsável por diversos agentes do sector. Entretanto, e depois de vários anos em que as possibilidades de encontro digital parecem ter bastado em termos de processo criativo, o VU voltou em 2010 a “perder-se” em viagens. Por um lado uma comedida (3 dias) incursão na rota dos moinhos de D. Quixote, seguida de uma residência de duas semanas na comunidade piscatória da Afurada, tentando cruzar um imaginário universal e ficcional com um imaginário local e documental, no âmbito do projecto Vento. Por outro lado uma “bizarra” viagem de duas semanas pela França, Itália, Suíça e Alemanha na tentativa de uma cartografia espiritual do legado do projecto medieval da Ordem de Cluny, e que pressupunha pernoitar em cada uma das doze rotas que há mil anos ligavam Cluny ao mundo, bem como microperformances nas respectivas ruínas e monumentos - sendo que aqui o resultado final acabou por ser uma instalação interactiva: A Língua das Pedras (Cluny, 2010). Esta último projecto era já o reflexo de dez anos de experimentação performativa em estreita ligação com a paisagem, e que na maior partes das vezes não assumia uma “forma teatral”, mas que, de um modo ou outro, forçava sempre o participante a uma viagem. Refiro-me fundamentalmente às experiências com o formato audiowalk que se vão sucedendo numa constante reelaboração do próprio conceito.

Em Coma Profundo (Porto, 2002) assumia-se uma dramaturgia imprecisa e extremamente política, que nascia da tensão urbanística entre uma comunidade que se sentia expulsa do seu território pela especulação imobiliária e os novos habitantes que procuravam apenas um “sétimo andar com vista para o mar”. Já em Errare (Parma, 2004) assumia-se uma estrutura romanesca articulada pelo desencontro entre dois irmãos e claramente inspirada pela geografia da cidade (em que um rio separava o centro histórico da zona da resistência antifascista e dos novos emigrantes). Mas apesar das claras diferenças estruturais marcava-se o fundamental denominador comum de ser a paisagem (leia-se a geografia, a arquitectura, o urbanismo, as pessoas) a determinar a dramaturgia. Tudo isto através de guiões definidos ao segundo e em que o olhar do participante era subtilmente manipulado através da espacialização do som – que “forçava” o olhar numa dada direcção - e de pequeníssimas intervenções plásticas no percurso – que confundiam realidade e ficção. Posteriormente o formato sofre importantes desenvolvimentos com os projectos Os Ossos de que é Feita a Pedra (Santiago de Compostela, 2009) e Viagens com Alma (Cête, Paço de Sousa, Santo Tirso e Vairão, 2011). No primeiro pelas condicionantes de um proto-espaço público – o estaleiro da Cidade da Cultura da Galiza – que forçava um assumir das intervenções plásticas e também o “caminhar em grupo”. E, no segundo, pela fragmentação da dramaturgia por quatro minipercursos, mas sobretudo pelo abandono do controlo obsessivo dos tempos e olhar do participante, permitindo um espaço de co-escrita (ainda não de diálogo) que era estranho às experiências anteriores.

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imagina que isto é um jogo

De referir também, como exemplo de fusão entre as experiências de performance na paisagem dos audiowalks e um registo teatral, o projecto O Resto do Mundo (Porto 2007) em que a subida do rio Zaire, ao encontro das trevas, romanceada por Joseph Conrad, era adaptada a um espectáculo in itinere, para três espectadores/participantes por sessão, a bordo de um táxi que se perdia no trajecto entre o centro do Porto e os bairros da periferia. Mais uma vez a dramaturgia era sobretudo imposta pela descoberta do percurso, estruturando-se em função da paisagem atravessada (e dos seus ecos na banda sonora), mas também de pormenores da condução (uma aceleração, uma mudança de caixa, um ponto de embraiagem hesitante numa subida, uma inversão de marcha “forçada” por um engano, um caminho aparentemente demasiado estreito para o tamanho do carro). Tudo isto numa sujeição absoluta da ficção no interior do habitáculo aos ditames da realidade exterior (entre outras, uma das sessões foi interrompida por uma brigada da PSP que emboscou o táxi numa rua sem saída; E noutra sessão foi necessário empreender uma fuga de um veículo de narcotraficantes que, por sua vez, fugia de uma rusga policial). De referir que a generalidade destes processos criativos acabou por gerar leituras-vídeo que se assumiam como novos objectos artísticos (e não como meros registos). Finalmente – ainda que com menor discernimento, dada a falta de uma profundidade temporal mínima – temos a deslocação destas motivações num duplo sentido. Por um lado para paisagens de interior (também poderíamos dizer lugares) em associação com estruturas particulares de linguagem, nomeadamente em A Comissão (Porto, 2011), um projecto para salas de reunião de hotel. Por

outro lado para uma reacção, eminentemente política, ao modo de produção e programação dominante, nomeadamente em Boom & Bang (Porto 2010), um espectáculo em que toda a equipa e logística cabe numa viatura vulgar e que foi apresentado por todo o país, atravessando circuitos de programação diversos e não convencionais (circuitos em que a relação entre artistas e público não necessita da mediação de um “programador”). Tudo isto num movimento em que as opções estéticas – relacionadas com lugares, paisagens, modos de participação, estruturas de linguagem – incluem assumidamente a questão política da inscrição da performance na comunidade respectiva; situação que parece conduzir a uma libertação da logística produtiva normalmente associada à criação teatral (recintos específicos com grandes possibilidades técnicas). Para terminar, em jeito de inutilidade arqueológica, recordo que o título de uma das primeiras experiências aqui referidas (Coma Profundo) foi “roubado” da versão portuguesa de uma obra de Douglas Coupland, sendo esta pilhagem justificada com a partilha de um fascínio pela celebração, em Israel, do Dia da Memória. E dez anos depois, e com tantos desvios ao longo do caminho, talvez seja este o sentido que permanece: a tentativa de construção de breves momentos de partilha que – através do apelo a uma específica relação com espaços, tempos, memórias, movimentos e modos de participação – gravem um sentido na comunidade específica que integramos. —

Mais uma vez a dramaturgia era sobretudo imposta pela descoberta do percurso, estruturando-se em função da paisagem atravessada..

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Dramaturg visĂŁo polĂ­tica do mundo


dramaturgia, visão política do mundo

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Os tempos de hoje, com a diferença de o socialismo não se colocar ainda tão evidentemente como a alternativa ao capitalismo, são muito idênticos aos tempos de Brecht, particularmente dos anos entre a grande crise do capitalismo de 1929 até aos anos da Segunda Grande Guerra. Hoje, a luta de classes agudiza-se, e o capitalismo, em crise profunda, defende-se aguçando as suas garras fascistas. De facto, em relação aos tempos de Brecht, a grande novidade é que não há grande novidade, vivemos ainda num sistema de exploração do ser humano pelo ser humano, apenas com algumas evoluções em termos de refinamento das suas formas de dominação, mas o essencial mantém-se. É neste contexto mundial, com repercussões óbvias em termos nacionais, que nós, trabalhadores das artes e da cultura, tal como todos os outros trabalhadores, nos deparamos. Portanto, a grande questão do mundo, o derrube do capitalismo e a edificação de um sistema social e económico alternativo, está ainda por resolver na prática. Colocado que está o problema, chegou a parte em que pelo menos alguns leitores devem estar a perguntar-se o que é que tem tudo isto a ver com arte, teatro ou dramaturgia. Nos dias que correm a ideologia dominante continua a separar as artes da política, fazendo-nos crer que temos de optar por uma ou por outra. Portanto se assumimos que o nosso trabalho tem uma perspectiva política então não estamos a fazer arte, e se estamos a fazer arte então não podemos assumir uma perspectiva política. Normalmente a classe dominante considera depreciativamente que é política, ou de intervenção, a obra que coloca em causa os seus interesses, a sua visão do mundo, porque à classe dominante interessa que o mundo seja imutável, porque este mundo, tal como está, serve na perfeição os seus objectivos predatórios.

por Jorge Feliciano Dramaturgo e encenador do Teatro Fórum de Moura

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famosa a frase em que Marx afirmava “os filósofos têm interpretado o mundo de diferentes maneiras. Mas o que importa hoje é transformá-lo”. Esta frase, contendo todo um programa, teve repercussões em todas as áreas da vida. Milénios de idealismo dissipavam-se no ar. Obviamente as artes e o teatro não podiam passar ao lado do materialismo marxista. Ao perguntarem-lhe se poderia o teatro reproduzir o mundo, Brecht respondeu “creio que o mundo de hoje pode ser reproduzido, mesmo no teatro, mas somente se for concebido como um mundo susceptível de ser transformado”. Brecht apontava assim aquilo que seria o novo papel do teatro na sociedade do seu tempo, um tempo de agudização da luta de classes, de ascensão do socialismo, de enorme crise do capitalismo, que, em desespero de causa, arrancou a máscara e lançou as garras de fora numa deriva fascista.

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entrevista joaquim paulo

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dramaturgia, visão política do mundo

Neste novo tipo de relação de produção todos os participantes ganham uma nova responsabilidade colectiva sobre o seu trabalho, já que todos passam a ser agentes activos da construção da visão política do mundo expressa na peça, que deve ter ainda em conta a activação do público nessa mesma construção. Este processo de colectivização do trabalho teatral suscitará novas perguntas. Por exemplo sobre o papel do dramaturgo nele, agora que não está mais isolado no cubículo onde escreve. Implica também repensar as técnicas de ensaio, de improvisação, de discussão e activação ideológica da equipa. Implica repensar os próprios tempos de produção e as suas formas de circulação e de relação com os públicos. Implica repensar o ainda largamente dominante formato “à italiana”. Implica repensar os modelos de pesquisa. Implica repensar a própria formação das equipas. Representa um enorme atraso, no mundo de hoje, não ser normal os grupos de teatro terem dramaturgos ou equipas de dramaturgia residentes, que escrevem, que pesquisam, que contribuem em permanência para a dinamização filosófica e ideológica dos ensaios. A progressiva transformação dos modelos de produção actuais, esgotados e alienantes, em modelos de produção colectivizados, implicará necessariamente uma mudança na dramaturgia, na visão política do mundo dos colectivos e, claro, dos dramaturgos nele envolvidos e na visão expressa nas peças produzidas. No Brasil são vários os grupos que estão bem conscientes destas necessidades já com um bom caminho percorrido; entre eles, a Companhia do Latão. Em Portugal, esse processo está ainda muito atrasado, mas existem vários sinais de transformação. O nosso grupo, o Teatro Fórum de Moura, está percorrendo esse trilho. —

Daí que a classe dominante não esteja minimamente interessada na ideia das artes reproduzirem o mundo enquanto algo transformável. A sua luta é precisamente a oposta, à classe dominante convém-lhe que mundo actual e as suas relações de opressão surjam, perante os espectadores passivizados, como representações naturalizadas, intrínsecas a uma mistificada natureza predefinida do ser humano. Obviamente a classe dominante raramente assume este combate, um dos seus truques mais eficazes é fazer-nos crer que não está em luta. Desta forma a sua cultura é por si naturalizada como sendo apolítica, imparcial, interclassista. É esta a sua dramaturgia, é esta a visão que lhe interessa passar do mundo, e essa visão é profundamente política. Que fazer?

Representa um enorme atraso, no mundo de hoje, não ser normal os grupos de teatro terem dramaturgos ou equipas de dramaturgia residentes

Em primeiro lugar, todos aqueles que estão interessados no papel activo do teatro na transformação do mundo devem recusar com clareza a separação entre arte e política. As duas correlacionam-se tanto na cultura dos actuais dominados como na cultura dos actuais dominadores. Depois, a tarefa mais importante: reestruturar as relações de produção estabelecidas dentro dos grupos de teatro e/ou equipas de trabalho. Felizmente hoje, em Portugal, estão a desenvolver-se novas formas de relação entre os vários trabalhadores que participam no trabalho colectivo que é montar uma peça de teatro. É necessário cada vez mais que, em contraponto à especialização, se assuma a colectivização do trabalho teatral, de forma a acabar com a barreira entre aqueles que controlam a dramaturgia, isto é, a visão política do mundo expressa em determinada peça, e aqueles que a concretizam em cena. Normalmente, no teatro actual, essa visão política do mundo é controlada essencialmente pelo encenador, ou pelo dramaturgo, ou pelos dois. À restante equipa cabe apenas reproduzir o mais fielmente possível essa visão, normalmente previamente definida e preparada ainda antes de os ensaios começarem.

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Processo na escrita de teatro por Sandra Pinheiro Dramaturga

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ma peça de teatro surge de uma ideia. Muita gente diz-me frequentemente perante alguma situação mais caricata ou estranha: “Devias escrever uma peça sobre isto”. E todos os textos que escrevi para teatro partiram da realidade e de acontecimentos concretos que me marcaram profundamente. Quando isso acontece, e quando realmente começo a sentir vontade de escrever uma peça sobre o assunto, mergulho no tema e tento recolher o máximo de informação possível para perceber a situação e que tipo de história poderá debruçar-se sobre essa situação. É uma fase complicada porque estou a pensar num tema e muitas vezes penso no tema em abstracto. É nesta altura que habitualmente me surgem algumas ideias, começam a aparecer as personagens e a missão destas e finalmente a história final. Só depois disto é que começa o processo de escrita.


processo criativo na escrita de teatro

O processo criativo na escrita de teatro é muito semelhante ao usado noutras artes e segue basicamente os quatro passos: preparação, incubação, iluminação e verificação. No entanto, no caso da escrita de teatro, quando chegamos ao momento da verificação voltamos novamente atrás, porque para fazermos avançar a história é necessário criar cenas dialogadas e em cada uma dessas cenas temos de ter claro de que forma a acção das personagens nos leva ao desenlace final. E aqui é que começam as dificuldades, porque, para cada cena, e por vezes para cada diálogo, é necessário passar por estas quatro fases, tendo sempre a atenção de conjugar vários elementos: a acção dramática, o tempo, o espaço, o texto e a intenção. E isto tem de ser pensado para cada uma das personagens a cada minuto da peça. É nesta fase que as coisas se tornam mais complicadas e que é necessário recorrer a uma grande aliada no processo criativo na escrita de teatro: a disciplina e a organização do trabalho são fundamentais nesta fase porque é muito fácil cair na tentação de partir para uma ideia que nos parece melhor e muito menos complicada. Não é verdade. É uma armadilha colocada pelo nosso cérebro, que começa a bloquear perante as situações mais complicadas. Palavras como resistência e persistência são fundamentais nesta fase, porque muitos textos em todo o mundo ficam muitas vezes na gaveta por causa desta repetição constante do processo criativo.

uma técnica que tem acabado por dar bons resultados e que consiste em escrever o mesmo diálogo três vezes. Dá mais trabalho, mas gosto mais da solução final. Na primeira vez escrevo o que a personagem diz, e imprimo. Na segunda vez, escrevo o que a personagem sente e quer dizer. Mais uma vez imprimo e guardo. Quando vou escrever a terceira vez, leio o que escrevi das duas vezes anteriores e escrevo finalmente o que a personagem vai dizer. É muito importante escrever e verbalizar o que a personagem sente; mesmo que enquanto autores saibamos o que é, nem sempre está claro que palavras a personagem usa, e como as usa, e o que faz enquanto usa essas palavras. Escrever essa cena ajuda a clarificar quem é aquela pessoa e o que a move. É claro que há o risco, e muitas vezes acontece, de, ao mudar determinada cena ou diálogo, isso ter um impacto em toda a acção dramática. Isso é normal, e significa que o processo tem de voltar atrás e começar de novo. Voltar atrás não deve, no entanto, ser visto como um retrocesso na escrita. Antes pelo contrário. Sempre que se volta atrás porque se descobriu um facto novo numa personagem ou na história significa que vamos fazer avançar o texto com um maior conhecimento da nossa peça. O processo criativo na escrita de cena é mais complicado do que noutras artes. É que em teatro ou em cinema estamos a lidar com pessoas reais, ou que podem ser reais. E o autor tem de conviver com todas essas pessoas dentro de si, inventar passados, criar situações, descobrir os sonhos e as angústias dessas personagens, definir a forma como falam, como se mexem, como se movem. E tem de saber em todos os momentos que sentimentos têm e como se expressam, mostrando-o na acção e sugerindo-o nas palavras. É um processo extremamente difícil e complexo, que requer criatividade, mas acima de tudo muita persistência e dedicação. E requer que estejamos muito atentos à realidade, porque, se olharmos com cuidado, a maior parte das soluções para os nossos problemas de ficção estão lá: nas personagens reais que levamos emprestadas para protagonizarem os dramas e as comédias que escrevemos para os palcos. —

Dependendo da minha relação com as personagens assumo diferentes papéis quando estou a inter ogar. Posso ser o terapeuta, o polícia, o médico, o padre. .

Como se consegue ultrapassar este problema? Em primeiro lugar temos de ver se é um problema de história ou se é um problema de diálogo. Se estivermos com um bloqueio na história teremos de voltar novamente à fase da incubação. No entanto existem alguns exercícios que podem ajudar a vermos a história com maior clareza. O exercício que faço com maior frequência é interrogar as minhas personagens. Mas mesmo usando esta técnica podemos ser criativos. Dependendo da minha relação com as personagens assumo diferentes papéis quando estou a interrogar. Posso ser o terapeuta, o polícia, o médico, o padre... Um exercício interessante é interrogar a mesma personagem assumindo papéis diferentes. As respostas serão naturalmente diversas e quase de certeza que no final deste exercício terei a história muito mais clara. No meu caso muitas vezes o problema está no diálogo. Trabalhar o subtexto é das coisas que acho mais difíceis de fazer. Ao longo do tempo também fui desenvolvendo

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ENTREVISTA JOAQUIM PAULO

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Valère Novarina

Biografia Valère Novarina nasceu em 1947 em Chêne - Bougeries, filho de Manon Trolliet, actriz, e Maurice Novarina, arquitecto. Em 1974 Jean- Pierre Sarrazac encena a sua primeira peça L`Atelier Volant. Na mesma altura, Marcel Maréchal encomenda-lhe uma adaptação livre com base nas obras Henrique IV de Shakespeare e Falstaff, que sobe à cena no Teatro Nacional de Marselha em 1976.

por Renata Portas Encenadora e actriz fotografia Patrick Fabre

Retrato em chiaro oscuro, à maneira de Rembrandt

Le Babil des Classes Dangereuses é finalmente publicado em 1978, graças ao esforço de Jean-Noel Vuarnet, que confia o manuscrito a Christian Bourgois.

Boca e Ouvidos, os senhores do Teatro As palavras trançam, formam entre elas quatros, cruzadas simples, cruzaduras, cerziduras, pontos torcidos, alguns oito, cruzes duplas, cruzes de oito, treliças, heptalhas, trepadeiras, hexadrilhas, octametros, pentagramas, sextilhas, novenas, dodecaedros, quadrilhas, dezenas deléforas, pontos do avesso e bordados; tecem a frase com todo o vazio em volta, traçando a três: o tempo, o espaço, o sopro; a coisa, a contracoisa, o vazio entre elas; o menos, o mais, o impulso do menos para o mais; a limalha, o íman, a atracção – prendem duas coisas com o vazio entre elas que é o lugar oco do amor; prendem entre as duas o 3 que é sua relação soprada e de desejo.1

Valère Novarina, actor, autor, teórico, é um dos autores em evidência na dramaturgia contemporânea. Criador homenageado na última temporada do Théâtre de l´Odéon, conta com inúmeros estudos sobre a sua obra, e com festivais inteiramente devotados ao seu trabalho – nos Estados Unidos, no Brasil, na Suíça entre outros. Falar de Novarina e da sua obra – onde a linguagem é o pilar do drama - é atraiçoá-lo. Há anos que Novarina se debruça sobre a linguagem como matéria, origem e coisa primeira do mundo, para lá do Homem, independente. A armadilha está em que, para falarmos deste, e do seu universo, precisamos por instantes de abandonar o credo, e usar a linguagem como moeda de troca entre aquele que escreve e aquele que segura a página na mão – em busca de compreensão, de mesura do mundo – tarefa impossível. Tentemos.

No teatro novariniano duas personagens governam a cena: a Boca e o Ouvido. A Boca, signo maior do actor, é relegada para uma função inferior – a boca de cima é comandada pela boca de baixo, pelos intestinos, pelos órgãos inferiores. A linguagem não é um exercício de intelecto, é um jacto ejaculatório. É uma compulsão, uma desordem, uma outra ordem do mundo que, acidentalmente, foi doada ao Homem. 1  Excerto de Théâtre des Oreilles – Où habite le Théâtre, colagem de textos de Valère Novarina, com dramaturgia de Renata Portas, para o espectáculo com o mesmo título. Tradução de Angela Lopes, revisão e adaptação de Diogo Dória e Renata Portas. Estreou na Fábrica da Pólvora – Lugar Comum (Agosto, 2006) e teve apresentações no Clube Literário do Porto (Out.2006) Festival S´Esta Rua Fosse Minha (Out.2007) e Festa da Poesia (Dez.2007)

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valère novarina

O teatro é um sítio para se ouver – ver com os ouvidos –, e não o sítio da celebração visual, do festim dos olhos. “Ouver” significa lembrar Santo Agostinho: “Vê-se a linguagem mas ouve-se o pensamento”2, entrar no teatro e ouvir as línguas que nos chegam de todos os lados, cegar para poder ver, ver as línguas de fogo, línguas em festa, que assaltam a boca do actor e tomam o espectador de sobressalto.

A linguagem musculada é frequentemente interpretada de forma musical nas suas encenações e em outras. Mas a musicalidade não é o fim que resume as suas intenções. Como traduzir a linguagem, e o seu carácter autónomo em palco, sem cair nesta armadilha? Algumas experiências foram feitas utilizando marionetas, como Allen S. Weiss4, ou só com a gravação da voz do actor, como fizemos em 2006, tentando eliminar o corpo para que a voz pudesse emergir sozinha. Mas são incompletas, na medida em que é necessário ao actor que seja capaz de cumprir o desígnio da língua. O actor novariniano, pneumático, tem de ser capaz de reunir técnica e abandono, rigor e humor, mestria e ausência da mesma. Tem de se reinventar constantemente, sair de si, existir para lá de si mesmo, e dos outros, despir-se do corpo.

Práxis Novarina é um fazedor de teatro. Constantemente interpelando a teoria e a prática imiscui-as uma na outra. Não é a teoria, a dramaturgia, labor das mãos, labor do pensamento? Não é toda a escrita algo que escapa ao autor? Algo que lhe foge das mãos de cada vez que ele imagina ter encontrado o sentido? Qual o lugar do teatro? Em todo o lado, diria Novarina. Numa tela, o teatro está lá, coisa residual. O teatro não é um lugar, nem uma disciplina, é uma presença, um modo de estar. Assinalámos que isto não é um desejo de transdisciplinaridade, é antes uma contaminação do teatro, e uma interpelação das outras disciplinas. Esta interpelação constante e a erudição do seu teatro fizeram com que inicialmente o seu teatro fosse recusado pelas editoras e pelos teatros. Foi em grande medida devido à vontade do director artístico de Avignon, de alguns actores, e de Jean- Pierre Sarrazac, que estreia a primeira peça sua em 1976, que este começa a encenar textos seus (que hoje são amplamente encenados em França, e em vários pontos do mundo).

Um teatro irmão da filosofia e do logos Novarina, licenciado em Filosofia e Filologia, vai beber a ambas as disciplinas para criar um teatro de línguas e de saber. Um teatro no qual a acção é a palavra, e o verbo é rei. Apesar da unidade da obra, conseguimos dividir dois momentos: um primeiro, no qual a sua obra é inteiramente filosófica, quer na palavra escrita, quer na palavra dita, e nas suas realizações: através do uso de aforismos, contaminações, neologismos, e de um perpétuo questionamento dialéctico entre actor/texto e espectador; num segundo momento, o humor (que está sempre presente, no sentido de minar a seriedade do teatro da linguagem, evitando cair numa retórica da palavra-gesto repudiado por Novarina no teatro francês) ganha espaço, e com a celebrização do autor, que encena cada vez mais, o humor e a excessiva exuberância pictórica, musical, ganham terreno e de alguma forma cristalizam a sua realização plástica.

O actor novariniano, algumas armadilhas O actor é o homem menos o homem.(…). O nosso mais belo mito não é nem Fausto nem Don Juan, mas O MITO DE PINOCCHIO. Somos Pinocchio ao avesso: somos de madeira e temos que nos desfazer de nós – nos desfazer do homem e voltar a ser máscaras. (…) A antimatéria teatral é assim; representa visivelmente não-lugares: e entretanto o homem está ali – e o universo. O teatro é um lugar muito físico onde um corpo vem dizer: nada me é mais impossível do que um corpo.3

Ce dont on ne peut parler, c’est cela qu’il faut dire Esta proposição, formulada por Valère Novarina, serve para resumir bem o seu pensamento e obra e encerrarmos este brevíssimo perfil. Haveria muito mais a dizer sobre Novarina: do seu entendimento do espaço e dos objectos à relação com a dramaturgia contemporânea, ou à forma como nele a palavra se transfigura em corpo. E, no entanto, faltam-nos sempre palavras para o encerrar, tal o espanto perante o mesmo e as questões que nos provoca – e não é isto o que ele nos diz? —

O desafio maior que Novarina coloca é ao actor: mestre da respiração e da exegese vocal, mas sem fazer disto técnica oca, remetendo-a para o narcisismo, sacrificial no caminho da doação, do ritual, mas sem cair na lembrança do actor santo de que falava Grotowski – aqui há recolhimento mas co-habitam contracção e expansão, movimentos complementares.

2  De Trinitate – Santo Agostinho

4  Allen S. Weiss, performer, criou com Gregory Whitehead o espectáculo Theater of The Ears, em 2000, N.Y.

3  Excerto de Théâtre des Oreilles – Où habite le Théâtre, idem

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René Pollesch por Cláudia Lucas Chéu dramaturga e encenadora fotografia Thomas Aurin

Coqueluche Pós-Dramática Berlinense

Autor pós-dramático A denominação teatro “pós-dramático” foi formulada pelo crítico e professor de teatro alemão Hans-Thies Lehmann na sua obra Postdramatisches Theater publicada em 1999 na Alemanha. Segundo este, desde o Teatro Isabelino ao Teatro Burguês do final do século XX, a produção teatral tem funcionado sempre dentro dos mesmos princípios aristotélicos. Contudo, Lehmann defende que existe uma nova forma teatral apoiada numa espécie de teatro do acontecimento, que não se preocupa com a adesão do espectador. Outro dos aspectos levantados por Lehmann refere-se às características fragmentárias dos textos usados nesta forma teatral e/ou às montagens várias/transversais, que criam uma nova reescrita cénica. Surge então, um novo universo textual e/ou cenográfico e os problemas que são propostos aos criadores e ao espectador não seguem a lógica do psicologismo tradicional. É possível entender o teatro pós-dramático como uma tentativa de conceitualizar a arte no sentido de propor não uma representação, mas uma experiência do real (tempo, espaço, corpo) que visa ser imediata: teatro conceitual. A imediatidade de toda e uma experiência compartilhada por artistas e público se encontra no centro da arte performática”1

René Pollesch é um dos mais prestigiados autores e encenadores do teatro alemão contemporâneo. Nascido em 1962 em Frankfurt, estudou no Instituto de Estudos Teatrais de Giessen, foi aluno de Heiner Müller e Georges Tabori, estagiou no Royal Court Theatre de Londres, traduziu e adaptou Ovídio, Shakespeare, Joe Orton, entre outros, e dirigiu o Teatro de Lucerna e o Schauspielhaus de Hamburgo. Entre 2002 e 2007 trabalhou na Volksbühne como director artístico da Sala Prater, e foi considerado pela prestigiada revista Theater Heute como um dos melhores dramaturgos alemães, após um inquérito realizado junto dos leitores. Em 2001 e 2006, Pollesch recebe o Dramatist Prize da cidade de Mülheim, e, em 2007, é-lhe atribuído o Viennese Nestroy Prize. Pollesch distingue-se da maioria dos encenadores alemães e/ou europeus, sobretudo porque contrariamente a estes (cuja principal prática artística é escolher textos clássicos e encená-los) apresenta sempre espectáculos da sua autoria, reescritos com a colaboração dos elencos com quem trabalha (actores, bailarinos, e muitas vezes, com elementos que não são artistas).

1  Lehmann, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático, trad. Pedro Süssekind, Editora Cosac & Naif, São Paulo, 2007, p. 223.

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Ora os textos para cena de Pollesch (e os seus espectáculos) encaixam nesta nova forma teatral que descreve Lehmann, pois uma das suas principais marcas é não existirem códigos teatrais reconhecíveis: não há narrativa, nem personagens, nem sinais de catarse (iminente). Pollesch substitui todos estes elementos por um discurso político/filosófico (com uma forte componente reflexiva) em que os actores se transformam numa espécie de actor-cantor-pop. Não são os actores que se referem ao seu trabalho de modo irónico e distanciado para destruir eventuais ilusões – como na tradição do Teatro de Brecht. A sua posição ontológica é da família dos performers de música pop: os actores (Darsteller) não se colocam de forma perceptível no modo quotidiano da auto-identidade, e a sua presença também não é tapada pelo conceito do actor (Schauspieler). 2 Pollesch assume nos seus textos muito mais as referências dos pensadores contemporâneos: Slavoj Zizek, Gilles Deleuze, Jean Baudrillard, entre outros, do que propriamente as da linhagem dramatúrgica dos encenadores ou dramaturgos em geral (excepção feita a Brecht e Müller). Os discursos que constrói no seus textos são normalmente intercalados por manifestações coreográficas (sem pretensão de serem interpretadas como tal) acompanhadas por música e/ou vídeos. Raramente os seus espectáculos excedem os 90 minutos de duração, possivelmente no seu entender o tempo de concentração adequado aos tempos contemporâneos (à semelhança de uma sessão de cinema ou da própria resistência humana non stop – em estado sóbrio – numa aula/pista de dança). Talvez uma das razões que distinga tão claramente Pollesch dos outros encenadores/autores alemães, tenha que ver com o facto de a sua formação ter sido iniciada pelo professor e crítico polaco, Andrzej Wirth, que, vindo do sistema da Universidade Americana, lhe trouxe uma outra forma de pensar a dramaturgia. Esta nova leitura dos acontecimentos assentava não sobre a História do Teatro Alemão (como era habitual à data transmitir-se), mas na linha dos vários encenadores ao nível mundial: Erwin Piscator, Bertolt Brecht e Robert Wilson; e na estrutura da performance em Nova Iorque dos anos 70.

Outras das razões que Pollesch aponta para que os seus textos não possuam personagens têm que ver com a influência assumida de Gertrude Stein: As pessoas chegam e partem, mas a conversa na festa permanece igual. Pollesch usa este princípio nos seus trabalhos: o texto “existe” na sala (havendo sempre a presença do Ponto na cena), os actores entram e saem, mas o texto não se altera. Não acredito no diálogo, nem no plot, nem na narrativa, acredito numa outra coisa: na comunicação. Não interpreto os meus textos, não uso metáforas. Os (nossos) textos são muito objectivos e directos. Tentamos e comunicamos com as pessoas na audiência.3 As criações de Pollesch são ainda, e também, consideradas uma espécie de “teatro do capitalismo”, pois este mostra como a linguagem de gestão económica (conceitos como outsourcing, marketing municipal, globalização ou networking, entre outros) se encontra completamente instalada no quotidiano das pessoas, ocultando desta forma as grandes questões. As que lhe/nos interessam. B Fico completamente à nora quando oiço toda a gente a falar do amor! Devíamos obrigar os capitalistas a finalmente falar de dinheiro, porque estão sempre a falar de amor e da família e a lamentar a perda do meu querido pai!/ C O fim da família é uma tendência humana. E se a minha relação não é produtiva tenho de acabar com ela. Uma economia de mercado liberal não se pode dar ao luxo de manter relações não produtivas./ B O que é que queres dizer com “não produtivas”? Tu és a minha mãe.4 —

2  Diedrich Diedrichsen, “Maggies Agentur: Das Theather von René Pollesch”,

3  René Pollesch em entrevista ao The Wall Street Journal, “Theater With a Bi-

Stefan Tigges (org.), Dramatische Transformations, transcript Verlag, Bielefeld,

ting View of Society” por J.S. Marcus, 7 de Agosto de 2007, (tradução minha).

2008, p.107; retirado do posfácio de José Maria Vieira Mendes, O Amor é mais

4  Pollesch, René, O Amor é Mais Frio Que o Capital, Trad. José Maria Vieira

Frio que o Capital e Outras Peças, Artistas Unidos, Livros Cotovia, 2001, p. 129.

Mendes, Artistas Unidos/Livros Cotovia, 2011, Lisboa, p. 18.

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entrevista joaquim paulo

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entrevista joaquim paulo

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análises

Narradores, actores e contadores de

histórias por Rui Pina Coelho dramaturgo e investigador

Em Gatz (2006), o espectáculo de cerca de sete horas de duração dos nova-iorquinos Elevator Repair Service, lia-se da primeira à última palavra o romance The Great Gatsby, de Fitzgerald. O estratagema era inusitadamente original. Um empregado de escritório chega ao seu local de trabalho; ao deparar com o seu computador avariado, abre displicentemente uma gaveta e de lá retira um livro que começa indolentemente a ler. Progressivamente, todos os seus colegas do escritório, que entretanto foram chegando, tornar-se-ão as personagens do

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narradores, actores e contadores de histórias

romance. Além de ser um espectáculo de uma frescura e de uma beleza invulgares, tratava-se de um claro exemplo de como o teatro contemporâneo se apropria de matérias textuais diversas e de como a experiência romanesca e literária se misturam com a experiência teatral e performativa. Gatz serve aqui para introduzir as relações que se poderão estabelecer entre alguma da cena teatral contemporânea e o movimento de revivalismo da narração oral, à luz das figuras do narrador, do contador de histórias e do actor. Sendo assim, procurarei aqui cartografar alguns pontos de contacto entre o teatro e a narração oral visando identificar as suas aproximações e sublinhar as suas diferenças. A relação entre narrador-actor e texto-cena serão centrais para as noções de “epicização” de Peter Szondi, que em Teoria do drama moderno (1956) debate a crise do drama e as suas tentativas de salvamento; de “rapsodização” de Jean-Pierre Sarrazac, que em L’avenir do drame (O futuro do drama, 1981) aponta para uma reinvenção do modelo dramático; ou mesmo para a de “pós-dramático” de Hans-Thies Lehmann, que discute a superação do modelo dramático. Este último, numa das obras mais influentes da moderna teorização teatral (Postdramatic Theatre, 1999), afirma: “O princípio da narração é um traço essencial do teatro pós-dramático; o teatro torna-se o local do acto narrativo” (Lehmann, 2006: 109, t.m.). Argumentando que a narração se inscreve numa teatralidade que privilegia a presença em detrimento da representação e que muitas vezes se confunde com a exposição de narrativas pessoais, aponta também para a dimensão política do acto de contar: “Perdida no mundo dos media, a narração descobre um novo lugar no teatro” (Lehmann, 2006: 109, t.m.). Será mais ou menos óbvio que todas estas noções (epicização, rapsodização ou pós-dramático) – ainda que em graus diferentes – devem em grande medida a sua formulação ao autor que neste ponto é paradigmático: Bertolt Brecht, para quem “o acto de contar histórias está no coração do teatro”. O teatro épico e o modelo de representação brechtiana são centrais para a relação entre a narração e a representação e para a constituição do modelo do contador de histórias contemporâneo, sobretudo no que diz respeito à maneira como o actor se apropria da personagem.

Se, no que diz respeito a estes pontos de contacto, o actor-épico brechtiano é lugar de passagem quase obrigatória, também o será o célebre ensaio de Walter Benjamin, de 1936, “Der Erzähler” / “O narrador” (que em inglês recebe a elucidativa tradução de “The Storyteller”). Benjamim discute o papel do contador na sociedade e a natureza do acto de contar. Assim, lamentando o declínio do narrador/contador de histórias nas sociedades mecanizadas, Benjamin reclama para esta figura uma dimensão eminentemente política. Radicando o narrador/ contador numa tradição popular e encarando-o como um crítico social de carácter subversivo, perfeitamente comprometido com a sua comunidade, encontra na figura do “agricultor sedentário” e na do “mercador dos mares” os arquétipos do moderno contador.

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narradores, actores e contadores de histórias

Estes parecem ser os traços determinantes daquilo que é o acto de contar uma história, entendido aqui na sua dimensão performativa: representação a solo, ausência de adereços e figurinos, predomínio de uma dinâmica vocal e o estabelecimento de uma relação informal e democrática com o público. E, portanto, não será de estranhar que no final dos anos 60, primórdios dos anos 70, na sequência da agitação do Maio de 68 e da consequente contestação a todas as formas de autoridade, os jovens artistas se tivessem interessado por modelos não-formatados de representação teatral e por manifestações mais espontâneas de criação. Visando um combate ao mercantilismo da arte e à sua mediação pela crítica, e, sobretudo, preconizando um ataque à alienação entre o intérprete e o espectador, procurando experiências vividas em simultâneo pelos criadores e público, serão anos férteis para as experiências em torno da performance e do happening. Impulsionados por um ímpeto anticapitalista e anti-imperialista, formados ideologicamente nas manifestações parisienses, na contestação à guerra do Vietname, nas lutas pelos direitos civis ou pelo desarmamento nuclear, uma geração de criadores provenientes do tecido (ou das franjas) teatrais vai interessar-se por todos os instrumentos de contracultura, e em especial por aqueles que contrariassem as formas de cultura mediática, de mass media ou de grande escala e que se afastassem das narrativas e visões oficiais (Cf. Wilson, 2006). Esta “geração dos media” vai resistir através de várias formas artísticas: do body art, da performance, do happening, da nova dança, sempre sob o signo da experiência subjectiva, da não-formatação e da autobiografia. E, claro, uma das formas que também irá traduzir esta necessidade de revitalização será o “storytelling”, expressão que também se inscreve no Zeittheatre (no teatro do momento). No limite, tal como afirma Michael Wilson: “Por direito próprio, o movimento da narração oral é melhor entendido como um ramo de um vibrante teatro alternativo. (Wilson, 2006: 16, tm.). Frutos desta aproximação do teatro à narração, são paradigmáticos os exemplos do italiano Dario Fo, de John McGrath, fundador do grupo escocês 7:84, o actor inglês Ken Campbell (The Ken Campbell Roadshow) e o norte-americano Spalding Gray, ligado aos nova-iorquinos Wooster Group; o teatro-narração do autor-intérprete italiano Davide Enia; e até mesmo algum do trabalho de Peter Brook.

Patrice Pavis - distinguindo a figura do contador da do narrador no teatro (ou do récitant) – declara que o narrador no teatro pode manifestar-se de várias maneiras: um “narrador ou recitante que canta o recitativo”, por uma voz off ou “numa personagem situada mais ou menos à margem da acção” (Pavis, 1999: 258). Ainda de acordo com Pavis, o narrador aparece preferencialmente associado ao sistema épico ou a formas de teatro popular. Se atentarmos na constituição de um ponto de vista subjectivo, também o encenador pode ser visto como um narrador. Mas Pavis salienta que “só pode haver narrador sob a forma de uma personagem que é encarregada de informar os outros caracteres ou o público, contando e comentando directamente os acontecimentos” (ibidem: 258). Contudo, o caso mais frequente será “aquele de uma personagem-narradora que, como no caso do relato clássico, narre o que não pôde ser mostrado directamente em cena por razões de conveniência ou verosimilhança” (ibidem: 258). Por outro lado, e ainda de acordo com Patrice Pavis, o contador de histórias é “[U]m artista que se situa no cruzamento de outras artes: sozinho em cena (quase sempre), narra a sua ou uma outra história, dirigindo-se directamente ao público, evocando acontecimentos através da fala e do gesto, interpretando uma ou várias personagens, mas voltando sempre a seu relato” (Pavis, 1999: 69). Deste modo, o objectivo desta figura será o de estabelecer um contacto directo com o público, “reatando os laços com a oralidade” (Ibidem: 69). E este é, com efeito, um dado importante: o estabelecimento de uma ligação mais próxima com o público permite que haja uma partilha do tempo do espectáculo: estão ambos no tempo da narração. Um outro dado relevante será o de que o foco do espectáculo transita da corporalidade do actor para a imaginação do espectador. O objectivo será pois deixar que o corpo do intérprete desapareça.

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análises

Assim a frutífera história das contaminações entre narradores, actores e contadores de histórias está longe de estar terminada. Mas, por agora: vitória, vitória, acabou-se a história.

Sendo assim, a génese da moderna narração oral e de alguma da cena contemporânea tem uma origem comum. Contudo, esta não é uma história fácil de arrumar. Pois, se é no pós-Maio de 68 que se dá um revivalismo da narração oral, tal como a conhecemos hoje, esta actividade não é de aí originária. Com efeito, trata-se de uma prática ancestral com remotas tradições. E, por vezes, a reivindicação da tradição, entendida como sinónimo de verdadeira, pura e original (por oposição à moderna narração oral, sinónimo de adulterada ou contaminada) faz desequilibrar esta aproximação. O esforço para classificar ou definir a narração oral contemporânea pode revelar-se uma tarefa com um elevado grau de frustração. O enquadramento em que se apresenta pode ser extremamente variado: desde altamente performativas ou baseadas em oficinas de trabalho; de site-specific; centradas em histórias tradicionais, contos de autor ou escritas pelo próprio contador; parte de programas de terapia ou de consultadoria de empresas; como instrumento pedagógico ou de incentivo à leitura. Podem ser interpretadas por contadores provenientes da tradição ou por contadores profissionais – ou por contadores outrora da tradição oral e agora profissionalizados – ou por contadores que só contam para a sua comunidade. Já para não falar em todas as variantes dos “platform storytellers” (contadores de palco) e das suas variadíssimas maneiras de entender o exercício da sua actividade e da sua relação com a projecção ou encobrimento da sua personalidade em palco… (Cf Wilson 2006) Procurando uma clarificação objectiva, Michael Wilson identifica as seguintes características para o contador de histórias da actualidade: surgiu de um novo tipo de arte dos anos 60/70; apesar da sua “juventude” reclama fre-

quentemente uma tradição mais antiga; está centrada num performer a solo ou num grupo de performers; os contadores trabalham normalmente a partir de um reportório, tal como um cantor ou um músico; é normalmente low-tech em luzes, som, cenário, adereço e figurinos; raramente trabalham com um encenador ou coreógrafo; e a principal dinâmica é a vocal. Para classificar as proveniências dos contadores, Kay Stone, académica norte-americana, propõe três classificações: o contador tradicional; o contador urbano moderno; e o contador neotradicional. Parece-me, contudo, mais esclarecedora a divisão proposta por Wilson. Assim, este propõe um modelo tridimensional, agrupado por “background”, “Modus operandi” e “Propósito”. Segundo Wilson, de acordo com o seu “background”, os contadores de histórias poderão ser: tradicionais; contadores que chegam de profissões não-performativas (professores, livreiros, etc…); actores que se tornam contadores; e amadores entusiastas da narração oral. Segundo o modus operandi, podemos encontrar: uma actividade tradicional; contadores que o fazem num contexto de uma outra profissão; contadores autoempregados que fazem profissão do acto de contar; e contadores não-remunerados que contam em festivais, bares, etc. E, finalmente, de acordo com o propósito ou intuito, podemos identificar a narração oral no âmbito da tradição; da educação; do reforço da identidade cultural; do entretenimento; da terapia; e da espiritualidade ou evangelismo.

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actores, narradores e contadores de historias

Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter (1992), “O Narrador: Reflexões sobre a obra de Nikolai Lesskov”, trad. Maria Amélia Cruz, in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio de Água, pp.27-57 (1936). BROOK, Peter / CROYDEN, Margaret (2003), Conversations with Peter Brook (19702000), New York & London, Faber and Faber. COELHO, Rui Pina (2008), “Sem corpo, sem problemas : Narradores e contadores de histórias”, Sinais de cena, n.10, Dezembro, 18-21. LEHMANN, Hans-Thies (2006), Postdramatic Theatre, translated by Karen Jürs-Munby, London & New York, Routledge (1999). PAVIS, Patrice (1999), Dicionário de teatro, trad. sob direcção de J. Guinsburg e Maria

Contudo, estas categorizações não dão conta das relações entre o contador de histórias e o actor. A fronteira entre o contador tradicional (aquele da tradição oral) e o contador-actor é muito ténue e na cena contemporânea há muitos focos de contaminação. Muitos contadores recorrem a recursos teatrais, tais como microfones, luzes ou música. Por outro lado, muitos actores trocam a interpretação pela narração oral e a narração afirma-se cada vez mais como um lugar-comum no teatro contemporâneo. Enfim: este ressurgimento do fenómeno da narração oral no final dos anos 60, inícios de 70, e que sofreu posteriormente um boom nos anos 80, em parte explicado pela abertura do sistema educativo (um pouco por toda a Europa) aos contadores e pela consolidação dos incentivos à leitura, vai influenciar determinantemente a cena teatral contemporânea e vai, igualmente, receber o ímpeto renovador de actores que se deixam fascinar pelo acto de contar. Assim a frutífera história das contaminações entre narradores, actores e contadores de histórias está longe de estar terminada. Mas, por agora: vitória, vitória, acabou-se a história. —

Lúcia Pereira, S. Paulo, Editora Perspectiva. SARRAZAC, Jean-Pierre (2002), O futuro do drama, trad. Alexandra Moreira da Silva, Porto, Campo das Letras (1981). SZONDI, Peter (2001), Teoria do drama moderno : 1880-1950, Trad. Luiz Sérgio Repa, São Paulo, Cosac & Naify Edições (1956). WILSON, Michael (2006), Storytelling and Theatre: Contemporary Storytellers and their Art, London, Palgrave Macmillan.

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análises

Sabemo-nos habitantes de uma sociedade de consumo e de simulacro, em que tudo se julga em arenas de aparência. Cada época constrói as suas armas secretas e a sua vulnerabilidade; a nossa assenta numa ideologia burguesa que transformou a arte em bem de consumo, sem antes ter tempo de a integrar na vida de todos os dias. Consequentemente a representação do quotidiano é, na actualidade, um objecto privilegiado de todo o tipo de prática artística, sendo alvo de discursos e metadiscursos suportados por construções teóricas diversas. A vantagem desta panóplia de modelos de reflexão é a de poder oferecer, segundo as circunstâncias, modelos alternativos de interpretação. Estas múltiplas teorias, na sua base estruturante, procuram saber se a representação do quotidiano se constrói a partir da arte, e com a sua ajuda, ou se será a própria arte que se contagia das representações do quotidiano. A produção contemporânea do estereótipo estético e a homogeneização cultural fizeram com que a ambivalência que caracteriza a metáfora artística desaparecesse. Desta forma, a representação precede já o acto da interpretação, fazendo desaparecer a heteronomia dos elementos socioculturais que estão na génese da conceptualização dos discursos artísticos. A representação cénica do quotidiano entra neste registo ambivalente, onde a representação do outro é vista como imagem reflectida num espelho imaginário. É nessa encenação de reflexos que vão surgindo imagens que são mais imaginárias do que reais. Tomemos como exemplo a partitura cénica “ A hora em que não sabíamos nada uns dos outros”, do dramaturgo Peter Handke, na qual

por Claúdia Marisa Oliveira investigadora

im previsível

Agir num mundo

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agir num mundo imprevisível

este regista aleatoriamente os transeuntes que observa a atravessar uma praça. Encontramos neste exercício dramatúrgico dois níveis: o olhar real de um quotidiano (alguém que observa um outro que passa) e o olhar estético-cénico (construção dramatúrgica dessa passagem). Espelho múltiplo de funcionamento: alguém que passa; alguém que observa; alguém que recria vida a partir dessas imagens de corpos. Temos aqui a base de todo o jogo artístico: a vida como praça, onde nos projectamos todos os dias em espelho de nós ao outro; o palco como praça, onde nos revemos ao ser espelho para o intérprete. A estetização do quotidiano põe em cena um corpo sem expectativas, um corpo que apenas se preocupa em obter o olhar do acaso dos encontros entre si e o outro que passa. Esta cultura urbana é uma estética pública com o objectivo último de demonstrar que na vida quotidiana cabe uma multiplicidade de manifestações estéticas, que participam na idealização colectiva do prazer de ser espectáculo. Não há sociabilidade sem sedução e, por consequência, sem um reconhecimento do outro como objecto estético. À visão de um universo artístico, fruto de uma série de influências e resultante de uma concentração de imaginários, corresponde o ideal da busca do quotidiano pelo não-dito, através da desconstrução da vida. Nesse sentido, não se busca, tanto, a apresentação do real mas a sua repetição, numa tentativa de o dotar de novos sentidos ou, pelo menos, de o mostrar caricatural e absurdo (como é exemplo o trabalho de Pina Bausch). Note-se que esta repetição do real faz com que se dilate a distância entre o jogo e a significação, abrindo portas para novos sentidos. Este fenómeno surge, provavelmente, quando estamos perante propostas que procuram a reprodução espectacular do quotidiano, sem que a metáfora esteja presente. Face a este contexto, a arte liberta-se da função de ser simulacro de vida para ocupar um espaço de “ilusão”. Espaço branco, espaço vazio onde se reinventa um novo humano. Não necessitamos de ter vivido basta-nos a aparência desse vivido, a imagem virtual na relação com a vida de todos os dias. A representação artística do quotidiano apresenta duas linhas essenciais: uma primeira que busca formalmente uma pesquisa artística a partir do quotidiano; uma outra que procura a transcrição desse quotidiano de forma linear como matéria-prima, não sujeita a metáfora. Nesta “arte do quotidiano” constatamos que a representação, em termos de concepção cénica, acontece em espaços privados, em não-lugares, potenciando relações íntimas entre as personagens. No entanto, face a este espaço privado não está presente uma intensidade emocional de um universo acolhedor; frequentemente, ele surge como antítese para convocar a não-pertença, o deserto, o

vazio. O espaço privado surge como contrassenso a uma relação afectiva humana significativa. É um espaço povoado de fantasmas que vive da memória de um outro que não existe. O espaço doméstico converte-se numa terra de ninguém, que reflecte a solidão e o medo ontológico das personagens que o habitam. Todo o espaço privado pode converter-se, sob a existência dos objectos que nele habitam, num espaço de opressão e terror. É exemplo disto “la classe morte” de Kantor. O berço que inicialmente lembra o espaço da infância, subitamente transforma-se, pelo seu uso rítmico, num objecto sufocante e repressor. Deparamo-nos, então, com um espaço privado repleto de objectos familiares mas deserto de gente; o espaço acolhedor do privado activa um processo de despovoamento, instalando um processo de desagregação do sujeito, marca da ruína da vida afectiva. Neste sentido, o corpo separa-se da voz: enquanto que a voz continua submersa no mundo da linguagem, o corpo desintegra-se num vazio e num caos dissonante, numa construção de subtexto que tenta o retorno biográfico numa perda progressiva de identidade. A cena contemporânea tende, igualmente, a alargar o campo da personagem: num primeiro momento, através do corpo singular da personagem; depois, através do território simbólico da figura. A noção da personagem moderna surge, então, de uma dupla posição: a percepção da forma gratuita e mesquinha como o homem habita o mundo; a percepção de que há uma força, um poder que lhe é superior e que o domina. As personagens da contemporaneidade passam a ter como denominadores comuns: a somatização do corpo, a sombra e a monstruosidade. A confusão consciente entre corpo social, corpo pessoal e corpo de prazer é permanente; resta um corpo de ausência, em que os silêncios adquirem sentido cénico. Neste contexto, a representação do quotidiano será sempre um simulacro de uma vida que já de si é um constante jogo de espelhos, onde cada momento é uma verdade provisória à qual, cada um de nós, atribui um sentido. Em relação ao espectáculo que se denominou de quotidiano nota-se uma dificuldade em verbalizar. A palavra surge gratuita e convencional e os silêncios crescem; o diálogo, quando existe, está repleto de estereótipos, e o corpo, nestes casos, suprime a ausência da palavra. Estes silêncios têm um valor psicológico, e encarregam-se de exprimir o “não dito”. Muitas vezes, o silêncio corresponde à constatação de um vazio: se nada é dito, é porque não há nada para dizer. O silêncio revela um abismo, é um silêncio que se alicerça no corpo e que encontra a sua razão de ser no gesto e no movimento. —

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análises

A ficção

realidade

que já foi por Ana Mendes dramaturga e guionista

Tal como o cinema, o teatro parece ter descoberto um novo modo de expressão. Não é ficção, não é documentário. É uma ficção baseada na realidade. Desde o 11 de Setembro que assim é. O documentário ganhou uma pujança nunca antes vista. Embora se diga que o teatro de documentário existe desde os gregos, foi com Brecht e Piscator que este género mais se desenvolveu, naquilo que designaram por ‘teatro da era científica”. Tratava-se de um teatro de documentário “puro”, no sentido em que a história/ narrativa era recheada de imagens que pretendiam fazer com que o espectador reflectisse acerca da realidade. Por exemplo, a peça a Mãe Coragem de Brecht foi inspirada na invasão da Polónia, e é um trabalho anti-guerra, em que se procura despertar consciências para o avanço do nazismo e fascismo. Assim, a uma história de ficção (Mãe Coragem), adicionou-se um contexto real (a Guerra dos Trinta Anos como uma metáfora para a Segunda Guerra Mundial) para que os espectadores possam ver a peça como uma consequência do capitalismo. Tantos anos depois, já ninguém quer dar lições de capitalismo a ninguém, mas os artistas voltaram-se de novo para a realidade, criando histórias-inventadas-quase-reais. No entanto, as novas narrativas já não são necessariamente épicas, nem têm a pretensão de entender a humanidade em toda a sua vastidão. Centram-se mais no vizinho do lado ou num habitante longínquo da Patagónia, logo que nos pareça familiar. São micronarrativas. Contam, muitas vezes, histórias de pessoas simples, aparentemente iguais a nós.

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a ficção que já foi realidade

A grande questão parece ser: porquê o documentário aqui e agora? A resposta pode ser o 11 de Setembro, pois os ataques terroristas nos EUA introduziram uma ruptura no mundo como o entendíamos até então. O impossível aconteceu, as torres ruíram, e ninguém até hoje conseguiu explicar o que aconteceu. Paradoxalmente, toda a gente viu o acontecimento em directo pela televisão. Consequentemente, há um retorno ao documentário como forma de encontrar uma explicação para a realidade, que nem a arte nem o jornalismo conseguem fornecer. Nunca se fez tanto teatro de documentário - tribuna, investigação, entrevista, verbatim - como agora. A guerra do Iraque e do Afeganistão foram provavelmente um dos temas mais representados, precisamente entre países anglo-saxónicos, os mais envolvidos no conflito... Mas não foi só através do teatro de documentário que este retorno à realidade se fez sentir. Outros modos de expressão surgiram ou evoluíram muito. Tal é o caso das peças de teatro que usam pessoas reais em palco, algumas delas cruzando ficção com histórias pessoais. Um dos melhores exemplos é a companhia alemã Rimini Protokoll, que desenvolve peças de ensaio em que se analisam temas reais em palco, colocando em cena especialistas desse mesmo assunto. Por exemplo, na peça Cross Word Pit Stop criaram um cenário de Fórmula 1 e colocaram em palco senhoras de cerca de 80 anos de idade que tinham de executar simples tarefas domésticas, tais como manobrar aparelhos caseiros, algo tão difícil para elas como pilotar carros de Fórmula 1 para um cidadão normal. Ao mesmo tempo que efectuavam as tarefas, as autoras-personagem contavam episódios da sua vida. Estas microbiografias contavam as histórias das senhoras isoladamente, mas tinham também uma função mais abrangente, pois permitiam entender um problema mais vasto, o envelhecimento da sociedade. Toda a gente se emociona quando uma velhinha de 80 anos não se lembra do que tem de dizer a seguir. A ficção ultrapassa a realidade, criando um momento único em palco. Estes novos grupos de teatro receberam influências dos movimentos de performance que nasceram nos anos de 1960, ou se desenvolveram a partir dessa data, encabeçados por Joseph Beuys e Pina Bausch. No entanto, estes movimentos não seriam possíveis sem a obra de Brecht, que, pela primeira vez, desenvolveu um teatro

não-aristotélico, que não pretendia provocar empatia com o espectador ou explorar as suas emoções. Antes pelo contrário, Brecht pretendia transformar o público num elemento crítico, um agente-interpretador da realidade. Brecht também introduziu um modo performativo de representação, em que os actores, em vez de encarnarem os personagens, os demonstravam, olhando os espectadores de frente, dizendo-lhes directamente: o que está aqui é um actor a representar para ti, não um personagem. Todas estas inovações, e muitas outras, foram assimiladas pelos movimentos de performance que agora inspiram as novas gerações de profissionais de teatro. É claro que a estas influências muitas outras se juntam no campo da arte, som, música, cinema e etc. Hoje, as companhias de teatro – notavelmente as de documentário e performance – voltaram-se para a realidade, interpretando-a numa pequena escala, na micronarrativa, na história que cabe no universo individual de cada cidadão. Quem se interessa hoje em dia por um épico sobre os EUA? Muito poucos. E sobre um agricultor perdido na famosa 69 route nos EUA? Muitos. Há muito mais hipóteses de criarmos empatia com o senhor, ainda que nenhum de nós seja agricultor, do que com o calhamaço dos EUA. Heiner Müller disse um dia que o acto de as pessoas se debruçarem para a realidade tinha a ver com o facto de estas reclamarem para si o direito de interpretar o mundo, recusando os códigos impostos da Disney e similares. É bem verdade. Todos sabemos que Hollywood não vende apenas filmes, mas uma visão do mundo. O mundo tecnicolor, em que um homem é um cowboy e uma mulher uma loira de vestido branco às pregas. Feios só em África, na Ásia ou na Índia. Fome, dor e sofrimento só no terceiro

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ŠAna Mendes, still film National 03, 2008


a ficção que já foi realidade

mundo; nos EUA os cidadãos não sofrem, estão protegidos pelos media. Como Susan Sontag referiu, no livro Olhando o Sofrimento dos Outros, nunca nos EUA o sofrimento, a morte ou a decadência são expostos; tudo é visto sempre à distância, ao longe. A cobertura do 11 de Setembro parecia uma operação militar, o que não deixa de ser estranho, considerando a imprevisibilidade do evento. Os corpos caíam como penas, nunca se viam sinais de decomposição. Nas guerras em África, nos cataclismos na Ásia todos os corpos são esventrados. Estes e outros códigos são impostos pelo cinema e pela arte em geral. Ensinam-nos que o sofrimento só ocorre entre os famintos no terceiro mundo. Também nos dizem o oposto: o que é um pôr do sol, por exemplo. Não é aquele que os nossos olhos vêem, mas aquele que Hollywood nos mostra. O que é um beijo, o que é um parto, como beber champanhe, o que são flores, o que é uma expressão triste ou alegre... está tudo codificado. E, se como Heiner Müller notou, pensarmos na Disney... o caso é mais grave, pois mal nascemos já somos aculturados pela indústria de desenhos animados... Por isso, a solução pode passar por fechar os olhos a esta invasão de códigos e olhar à volta, reimaginar o que vemos. Não me parece que se possa encontrar o sentido da realidade, mas é um acto de liberdade imenso poder olhar à volta e recriar os factos, reordená-los. É claro que quando se chega à prática nada é tão belo ou poético. Não faltam hoje em dia companhias que se copiam umas às outras, clonando os trabalhos. O mundo globalizado em que vivemos hoje faz com que as tendências sejam as mesmas, como na moda, em que uma agência dita de que cores, botões ou fechos vamos gostar. E todos os estilistas seguem, sem excepção. No caso do teatro, este sentir global também é verdadeiro. É também verdade que, neste novo género híbrido, é difícil saber quem é o quê, o que vemos exactamente em palco – realidade ou ficção? Uma personagem ou uma pessoa? Uma pessoa provavelmente. Penso que essa será uma das notas deste novo teatro – as pessoas contam. O que todos procuram são as pessoas, é um momento de pretensa intimidade em palco, ver as regras ruir, algo que não pode ser repetido, que nos faça sentir humanos num mundo de máquinas. E, é claro que é mais fácil sentir a pessoa quando se tem uma história real, e não quando esta é ficcionada.

Quem perde com isto é o autor, pois há a ilusão de que basta recortar páginas de jornal para se ter uma peça... mas, se calhar não basta, é preciso muito mais do que isso para se ter um trabalho consistente, que não morra na tendência do momento. Mas há bons exemplos e refiram-se: a Need Company, por exemplo, uma companhia de teatro belga que, desde os anos 70, elabora peças que misturam teatro e performance, ou não fosse o fundador um artista plástico. Mas não é uma companhia de teatro documentarista. O que eles fazem é teatro puro e duro, com influências da performance, uma visão muito estética, mas que usa uma narrativa, uma ficção que incorpora elementos reais, muitas vezes da biografia de Jan Lawers, o fundador da companhia. E são lindas as peças. Perfeitas, estéticas, emocionantes, poéticas, bem escritas, com movimento... intensidade. Em Portugal, há bons exemplos apesar do negativismo dominante, talvez pelo facto de existir ainda um certo isolamento que faz com que vozes individuais persistam de certa forma contra tendências mais globalizantes. A isto acresce a natureza poética e contemplativa dos portugueses em geral, visível nos filmes – e não me refiro apenas a Manoel de Oliveira. Há um certo vagar na imagem, nos planos que não correm, e no tempo que, paradoxalmente, é algo que os portugueses não têm medo de gastar. Ao contrário do resto do mundo, que corre em ânsia de qualquer coisa, os portugueses param, olham e escutam. Ficam à espera de algo que está para vir. Mas essa inacção, a contemplação pura e simples, faz parte da natureza do teatro, pelo menos no teatro de memória. —

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análises

Uma família. Um pai, uma mãe e um filho. Um Pedro, uma Maria e um Filho. Uma Sagrada Família, em que o filho não tem nome. A que este não pertence. Não tem nome e não tem voz. Mas onde é a voz predominante. Seja da razão, seja do cerne da questão, assim como da intensidade dramática. A voz que volteia a mesa de jogo quando este jogo parece adormecer. Nesta peça de Jacinto Lucas Pires, Sagrada Família, temos consciência de que “o melhor do mundo são (mesmo) as crianças”. Isto porque temos a sensação de que só a criança é o mais humano de entre os seres que nela respiram. Tudo o que gira neste pequeno mundo dramático, por Lucas Pires criado, não é mais do que a vida perniciosa, vazia, e despojada de valores em que se tornou a sociedade contemporânea. Esta peça não é, de todo, a elevação de um pensamento tipicamente

A vida é sonho por Luís Miguel Gonçalves actor e colaborador da Biblioteca Nacional de Portugal

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?


a vida é sonho?

moralista. Ela espelha cruamente uma lógica de viver social que revela, para além de tudo o mais, uma forma de existir presa a uma profunda indiferença face à sociedade e, até mesmo, do indivíduo em relação a si próprio. Através de um discurso artístico marcadamente contemporâneo, Lucas Pires espraia um rol de quadros, de cenas de guião, de ficheiros informáticos guardados em pastas ramificados em a), b), c)..., de árias de ópera, de sonhos soltos, relembrando-nos constantemente em que sociedade estamos inseridos. Uma sociedade de estímulos. Uma sociedade do marketing, das referências, estéticas e outras, com frases feitas que algumas personagem vão dizendo ao longo da peça; ou com o teatro dentro do teatro, como um dos quadros/cenas desta peça, onde as personagens olham para o Mundo que para eles possivelmente representa a televisão, mas que para o espectador e o leitor da peça representa o público, pois as personagens olham em frente e nada existe no seu campo de visão a não ser o público; ou até como a ária/canção, rica em slogans publicitários e interrogações diárias que não passam disso mesmo, interrogações diárias que possuem muita força nesse determinado momento, mas no seguinte se dissolvem como a espuma das ondas do mar. Toda a peça é como uma viagem de montanha russa pelo viver e conviver na sociedade do 3D e da velocidade, já não de cruzeiro, mas de fibra óptica. O mais ilustrativo dessa experiência de vida está contido nos diálogos das personagens. Podemos observar uma dinâmica primorosa no decorrer dos mesmos. Seja pela forma como falam, que mostra bem as diferenças entre elas: caracterização, objectivos, fraquezas, desejos, evolução dramática; seja pela forma contemporânea como dialogam: sem ouvir realmente o outro, tentando levar sempre a sua opinião avante, interrompendo o raciocínio, desconversando, focando o seu discurso em si próprios e nos seus problemas, fugindo à responsabilidade de solucionar os mesmos, fugindo à realidade.

sua vida. É a história de uma Maria que para ajudar o seu “Pê” pede a um empresário António, vizinho do casal, para entrar com uns dinheiros. É a história de um António que para entrar com uns dinheiros se aproveita sexualmente de Maria e fica com remorsos. É a história de uma Arlete, mulher de António, que vive segundo a conduta do “parece bem/parece mal” e acredita que Pedro a salva de um tumor com a ajuda da religião. É a história de uma religião denominada “MERDA” que se transforma em partido político. É uma história onde a culpa e a indiferença vão de mão dadas com o medo e a desumanidade. É a história de um Filho que quer atenção e respostas por parte dos pais e acaba morto. Um dos factos mais interessantes desta peça é, sem sombra de dúvida, a personagem do Filho. Tendo o objectivo claro de pretender ser ouvido pelos pais e de obter respostas a todo o custo, é assaltado por pesadelos surrealistas e por desejos sexuais por Arlete. Com um traço de uma nitidez surrealista ímpar, Lucas Pires conduz-nos através da loucura sonhada de um miúdo que deambula pela peça, qual fantasma de Hamlet, expondo a realidade dura e crua da vida das restantes personagens, bem como da sua própria. Uma personagem que sofre realmente com a indiferença de todos, e com a sua própria fraqueza e incapacidade perante as situações desumanas a que vai assistindo, consciente e inconscientemente, no desenrolar da peça. Pouco claro, porém, é a causa da sua morte. Lucas Pires deixou essa questão demasiado em aberto. No entanto, esta pode ter algumas leituras possíveis. A primeira prende-se com a solidão, a segunda com excesso de perguntas que o levam à loucura e consequente morte, a terceira com o facto de o seu objectivo de vida estar cumprido, sendo esta última a consciencialização de que a sua vida é um sonho e, tal como nas palavras de

Esta é a história de uma família desempregada e que precisa de dinheiro para sobreviver. É a história de um Pedro que decide acreditar que se formar uma religião as coisas mudam, pois pode ganhar dinheiro com isso e acreditar em algo maior do que o vazio em que se tornou

Calderon de la Barca: “(...) Qué es la vida? Un frenesí./ Qué és la vida? Una ilusión,/ una sombra, una ficción,/ y el mayor bien es pequeño,/ que toda la vida es sueño,/ y los sueños, sueños son.” —

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entrevista joaquim paulo

Para AlĂŠm 84


entrevista joaquim paulo

do Tema 85


perfil

análises

Suso Cecchi D’Amico foi provavelmente a mais importante guionista que o cinema mundial conheceu. Uma das pioneiras do guião neo-realista, trabalhou com grandes guionistas e com os maiores diretores italianos de meados dos anos 40 do século XX em diante. Sua morte em 31 de julho de 2010 estabelece um marco para reviver seu legado e sua contribuição para a história do cinema mundial, herança que se traduz em uma construção estilística de guião, não atrelada a normas. Suso construiu um estilo próprio de estrutura para seus guiões, fundado em sólida pesquisa a partir da qual tecia uma narrativa consistente, muitas vezes de base histórica. Estilo este indiferente à estrutura em três atos e não subjugado a cartilhas ou normas pré-concebidas de escrita de guião.

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a ficção que ja foi realidade

O legado de

Suso Cecchi D’Amico por Denise Duarte

Breve biografia Nascida Giovanna Cecchi, em Roma, a 24 de julho de 1914, sua mãe, Leonetta Pieraccini, era pintora e o pai, Emilio Cecchi, um renomado crítico e escritor em seu país, sendo considerado por alguns estudiosos a mais importante figura das letras italianas no século XX. Emilio também trabalhou em cinema como guionista e produtor, vindo a administrar os estúdios Cinecittà no pós-guerra. Suso herdara, assim, bem mais que o apelido carinhoso, diminutivo de Suzana, como o pai a chamava, mas igualmente seu pendor pelas artes literárias e cinematográficas. Em 1938, Suso casou-se com o famoso músico, crítico musical e intelectual italiano Fidele d’Amico, passando então a assinar Suso Cecchi d’Amico. Profunda conhecedora de literatura, recebendo influências de Dostoievski e Tolstoi, Suso dedicou a vida ao cinema. Entre 1946 e 2006 escreveu cerca de 118 obras, entre argumentos e guiões para cinema e televisão. Com Luchino Visconti manteve parceria até a morte do diretor, tendo trabalhado, entre outros, com Mario Monicelli, Michelangelo Antonioni, Vittorio De Sica, Franco Zeffirelli, Federico Fellini e Martin Scorsese, e com grandes guionistas, como Cesare Zavattini, Enrico Medioli e Tonino Guerra.

Gênese de um movimento cinematográfico Finda a 2ª Guerra Mundial, Suso e seus amigos (Cesare Zavattini, Roberto Rossellini, Vittorio De Sica, Luchino Visconti, Federico Fellini e outros) percorriam as ruas de Roma colhendo histórias junto à população. A idéia era fazer filmes tendo por base depoimentos, no intuito maior de mostrar o sofrimento do povo italiano naqueles anos difíceis. Inicialmente sem estúdios ou recursos para pagar equipe e equipamentos, valeram-se quase sempre de atores não profissionais, das ruas da cidade e outras locações naturais como cenário. Se por um lado ressentiam-se das dificuldades que envolvia fazer cinema sem financiamento, por outro desfrutavam de grande liberdade criativa ao não se filiarem a grandes estúdios. Na prática, esses guionistas e diretores trabalhavam juntos no set de filmagem, sem dimensionar que gestavam um novo movimento cinematográfico, o neo-realismo Italiano.

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Suso Cecchi D’Amico

“Guião é trabalho de um artesão, não de um poeta. Eu não sou poetisa, sou artesã”.1 A frase de Suso transformou-se em marca registrada de seu pensamento sobre o ofício do guionista. Sua visão era bastante pragmática ao não considerar o guião uma arte: “A verdadeira arte é uma criação individual”2. Sendo o filme uma obra coletiva, não considerava inteligente a doutrina que perdura no cinema desde os anos 20/30 do século passado que predispõe somente ao diretor os créditos pelo filme. Por outro lado, ela outorgava ao guionista papel fundamental no processo, o único a merecer ser chamado de autor. Suso seguia regras próprias na construção de seus guiões. Uma delas determinava para cada cena três elementos: o momento crucial de uma situação, seu final e o início de uma nova situação. Avessa às convenções narrativas hollywoodianas, a autora não seguia a tradicional estrutura em três atos. No entanto, evitava indicar livros ou normas para criação de guiões a seus alunos. A intenção era demonstrar que não há regras a serem seguidas. Suso também se dedicava à análise da estrutura de certos filmes, como The magnificent ambersons (1942), de Orson Welles, visto por ela inúmeras vezes no intuito de aprender sua estrutura. Suso temia pelo futuro do cinema e considerava medíocres os filmes de hoje. Sua proposta seria encarar o cinema por prazer, como na época em que ela e seus amigos saiam às ruas de Roma para fazer os filmes que queriam, sem pensar em lucros. Recebeu 19 prêmios de guião, entre eles o Oscar de Melhor Argumento de 1966 por Casanova ‘70, e o Leão de Ouro pelo conjunto de sua obra no Festival de Cinema de Veneza de 1994. Continuou escrevendo até 2006. Mas seu último trabalho de sucesso foi o roteiro do documentário Il mio viaggio in Italia (1999), de Martin Scorsese.

tação de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, guião no qual Suso trabalhava em processo adiantado, foi interrompida pela morte de Visconti em 1976. Suso escreveu alguns dos mais importantes filmes da história do cinema para Visconti dirigir, incluindo guiões de cunho histórico, melodramas e dramas psicológicos, um cinema que não guardava espaço para finais felizes. O questionamento de seu lugar num mundo em transição, sentimentos de decadência, fracasso e desesperança compunham uma construção de personagens que primava pela densidade e expressividade dos conflitos interiores. Tal desenho estabelecia contrastes entre personagens de diferentes classes sociais e indicava que Suso possuía talento incomum para construir tipos muito distintos. A decadência da nobreza, à qual o próprio Visconti pertencia, e de seus valores ante o surgimento de uma nova classe, tanto quanto a vida de pessoas comuns eram temas que permeavam grande parte da obra da autora. Seus personagens eram seres em conflito com uma nova ética ou com uma nova confluência de forças alheias a sua vontade. Não raro revelavam espanto com os novos tempos e se resguardavam muitas vezes com desdém, compondo em si mesmos o retrato solitário de uma época que em breve não mais existiria, situados que estavam a beira do abismo histórico. Conclusão O digital e a internet vieram impor novos caminhos para a televisão e o cinema. O texto hipermidiático apresenta-se como possibilidade para o guião. Porém, nenhuma inovação técnica será capaz de sozinha comportar um bom guião. É preciso que o guionista domine a arte de escrever boas histórias. E é sob este aspecto que o trabalho de Suso Cecchi D’Amico precisa ser estudado. Muito provavelmente, a figura do guionista, como ela o desempenhou, já não exista nos próximos anos. Ainda assim, permanecerá como inspiração. Uma indicação de que a história do cinema precisa ser repensada no sentido de incluir e dimensionar a contribuição dos guionistas. O legado de Suso deve ser tomado como referência para essas questões e para indicar a necessidade de se reservar um lugar de destaque para o guionista nos estudos históricos de cinema e audiovisual. •

Com Visconti Foi com Luchino Visconti que firmou a mais constante e duradoura parceria. A partir do convite para escrever Belissima (1951), Suso trabalharia com o diretor durante 25 anos, em 11 filmes. Em seguida viriam Senso (1954), Le notti bianche (1957), Rocco e i suoi fratelli (1960), Boccaccio ‘70, episódio Il lavoro (1962), Il gatopardo (1963), Vaghe stelle dell’Orsa (1965), Lo straniero (1967), Ludwig (1972), Gruppo di famiglia in un interno (1974) e L’innocente (1976). ������� A adap1  Tradução minha da entrevista de Suso Cecchi D’Amico a Mikael ColvilleAndersen, publicada no endereço http://zakka.dk/euroscreenwriters/ screenwriters/suso_cecchi_damico.htm. 2  Idem.

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entrevista

anรกlises

John Logan 90


john logan

A sua paixão pelo teatro, conta, começou cedo. Foi criado com os pais a lerem-lhe poesia. Mas um dia, tinha ele oito anos, o pai levou-o ao cinema. O filme foi “Olivier”, o musical realizado por Carol Reed. A luta com espadas deixou Logan apaixonado pela arte de contar histórias.Apercebendo-se da paixão do filho, o pai de Logan colocou a poesia de lado e começou a ler-lhe Shakespeare. O dramaturgo admite que pouco percebia das histórias que o pai lhe lia, mas dava conta que a estrutura daquelas histórias o mantinha curioso e inspirado.Começou também a ir ao teatro e aquele espaço passou a ser a sua “casa”. Mais adulto, o próximo passo que John Logan considerava natural para alguém que queria estar no teatro foi o de estudar para ser actor. Foi estudar para Chicago – Northwestern University - onde se apercebeu que ser actor não era de facto para ele. Manteve-se nos estudos mas começou a ter aulas de escrita dramatúrgica. As aulas obrigavam-no a escrever uma peça num ano. E assim, aos 18 anos John Logan tinha escrito a sua primeira obra. “A partir desse momento sabia que a minha grande felicidade era escrever para actores”, recorda o dramaturgo norte-americano. Para pagar as contas, de dia arrumava livros nas prateleiras da Biblioteca da universidade onde tinha estudado e à noite escrevia peças de teatro. Lá trabalhou durante 10 anos.

por Pedro Faria

Os créditos cinematográficos de John Logan são mais que suficientes para que ele seja nomeado como um dos melhores guionistas da actualidade. Chegou à fama depois do filme “Um Domingo Qualquer” (1999), que teve Oliver Stone como realizador e Al Pacino no papel principal. Mas foram as nomeações aos Oscars pelos filmes “Gladiador” (2000) e “O Aviador” (2004) que o levaram a ser um dos mais requisitados guionistas de Holllywood, na última década. A sua carreira inclui ainda os guiões de “Star Trek Nemesis” (2002), “O Último Samurai” (2003), “Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street” (2007), “Rango” (2011) e os filmes “Coriolanus” (uma adaptação da peça de Shakespeare realizado por Ralph Fiennes, que também tem o papel principal), “Hugo” (realizado por Martin Scorsese) e o tão adiado e aguardado filme 23 da saga Bond (que terá a mão do realizador Sam Mendes). Mas o que impressiona no discurso humilde de John Logan é que, mesmo depois de tantos sucessos no cinema, continua a considerar-se, antes de mais, um dramaturgo.

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entrevista

Ao meu sinal, libertem o inferno

E tanto escreveu e praticou a sua escrita que um dia um produtor leu uma das suas peças e o chamou a Los Angeles para apresentar 10 ideias de filmes. A viver do outro lado do país, Logan teve de pedir dinheiro emprestado ao Maximus melhor amigo para pagar o voo. Na reunião, [Russel Crowe apresentou a seguinte frase: “Rei Lear na NFL”. em Gladiador] John Logan propunha colocar a personagem principal de uma das obras-primas de William Shakespeare na liga profissional de futebol americano. Adoraram a ideia. Mas havia um último desafio: escrever o guião do filme em 12 meses sem qualquer adiantamento. Logan aceitou, mas teve de deixar o emprego a arrumar livros e pedir mais dinheiro emprestado a amigos. Viveu e respirou futebol americano durante um ano e assim nasceu o guião para o filme “Um Domingo Qualquer”, e um guionista no corpo de um dramaturgo. Uma prova de que é necessária perseverança para se concretizar um sonho. Apesar de não gostar de dar entrevistas e de lhe serem conhecidas poucas aparições públicas, John Logan participou no passado mês de Setembro numa série de palestras por guionistas organizada pelo British Academy of Film and Television Arts (BAFTA) e British Film Institute (BFI). A DRAMA esteve presente e apresenta algumas das perguntas a que John Logan respondeu. Disse recentemente que para se ser guionista não se devem ver filmes. Que se deve primeiro ser um dramaturgo. Quer explicar esse pensamento? O meu background é o teatro. Eu não andei em nenhuma escola de cinema. E como se pode perceber pelo meu percurso, durante 10 anos eu li e escrevi para o teatro. É esse o meu segredo. Ler Hamlet uma vez. E outra. E outra. Até se perceber cada palavra da obra. E depois ler Rei Lear. E depois ler-se poesia. E depois Sófocles. E perceber o que é ser dramaturgo. Perceber a forma em que queremos trabalhar e o que existiu antes de nós. E só depois, se quiserem, talvez se devam ver alguns filmes. Há a noção de que o cinema é constituído por imagens. Mas também é linguagem e personagens a exprimiremse através do diálogo. E o diálogo tem sido muito desvalorizado nos filmes, ultimamente. Ler livros sobre guionismo é uma completa perda de tempo. O que esses livros ensinam é a forma estandardizada de escrever e a famosa estrutura de três actos. Se queremos ser escritores temos de seguir os estranhos caminhos da poesia e da vida levada às áreas mais extremas possíveis, ofensivas e provocadoras.

Como dramaturgo e guionista, quais são, para si, as grandes diferenças entre os dois? Eu acordo todas as manhãs e sinto-me um dramaturgo. É o mundo em que me sinto confortável. Não sou um homem de Hollywood, e daquele mundo. Só me interessa ser um bom dramaturgo e escrever bem. E no teatro tudo roda à volta do escrever bem. Sinto-me mais inspirado quando vejo um bom trabalho no teatro. Nos filmes procura-se a metáfora visual enquanto no palco é a frase do diálogo ou a interacção entre personagens. Quando coloco o cérebro do cinema, penso: a personagem está a sentir isto, por isso o que vou mostrar? Pode falar um pouco das diferenças entre produzir uma peça na Broadway e Londres? Londres é o centro do mundo para o teatro. E assim tem sido desde o século XVI. Seja por causa de Shakespeare ou John Osborne, War Horses ou Cameron Mackintosh. Londres é o coração do teatro falado em inglês. Todos os dramaturgos norte-americanos aspiram a nada mais que fazer parte desta tradição. O momento mais cativante de toda a minha carreira foram os ensaios de “Red” [peça pela qual Logan ganhou um Tony] porque eu passei a minha vida a sonhar trabalhar num teatro britânico. Já escreveu muitos filmes de acção, o que não é algo que se espere de alguém que deriva do teatro. Quais são os desafios de escrever acção para filmes? É difícil. Escrever sequências de acção é a parte mais difícil do meu trabalho. Tem tudo a ver com a metáfora visual. Quando escrevo uma cena de futebol americano em “Um Domingo Qualquer”, uma cena de luta no “Gladiador” ou “Último Samurai” ou uma sequência de acção em Bond, o que tento exprimir é a narrativa emocional que a personagem está a atravessar. E encontrar uma forma visual de apresentar isso. E leva uma eternidade a fazê-lo.

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john logan

Quão diferente é o processo de uma adaptação, como “Hugo” , em relação a uma história original? Há quem diga que adaptar é mais fácil, mas para mim é mais díficil. Quando escrevo algo original não tenho obrigações para ninguém. Quando escrevo a adaptação de “Coriolanus” tenho o Shakespeare no ombro. Quando escrevo Hugo e sei que foi Brian Selznick - que é um autor que respeito - quem escreveu a obra original o meu trabalho é não os desapontar. Há algo na visão deles que me inspirou, e eu só quero trazer essa visão a um novo meio. Se há alguma coisa fácil é o esqueleto da história. Mas tudo o resto é um grande sentido de responsabilidade de um escritor para outro.

Eu não os quero subornados, Jack. Eu quero isto feito legalmente. Eu queroos «comprados».

Como foi trabalhar com grandes actores como Johnny Depp, Leonardo Di Caprio, Russel Crowe ou Tom Cruise? Devido à minha experiência como dramaturgo, estou habituado a falar com actores. Sinto-me confortável a falar com eles. E parte do meu trabalho como dramaturgo ou guionista é ajudar. É ouvir a sua linguagem e envolverme nela. Porque as palavras escritas não deixam de ser palavras escritas. E as palavras só vivem quando faladas, expressas. Seja num palco ou em frente a uma câmara. Preciso de ouvir as palavras vindas da boca do actor. Com um actor como o Leonardo, em “O Aviador”, sentamo-nos durante horas e horas apenas a falar de História e a ler transcrições de notícias. Enquanto um actor como o Tom Cruise já não tem essa proximidade. Adoraria que os orçamentos dos filmes permitissem mais ensaios, algo que raramente acontece. Porque os ensaios são das poucas oportunidades que o guionista tem para ouvir as palavras que escreveu exprimidas em voz alta. Um realizador como o Sam Mendes, que vem do teatro, já percebe essa necessidade. E é por isso que o novo Bond teve duas semanas inteiras de ensaios. E quando se chega ao cenário toda a gente sabe o que se quer comunicar. •

Howard Hughes [Leonardo Di Caprio em O Aviador]

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livros

análises

On FilmMaking

por António Cardoso

“Tendo estabelecido que ensinar as regras para fazer cinema não é possível, eu vou agora, com a ajuda destas notas, tentar fazer isso mesmo”, escreve Alexander Mackendrick no final do prólogo de “On Film-Making – an introduction to the craft of the director”. Este livro, editado pelo escritor e documentarista Paul Cronin, é uma compilação de notas de aulas e sketches produzidos por Mackendrick durante os vinte e cinco anos que passou, após o seu aposentamento de realizador de cinema em 1969, a ensinar o seu ofício no Instituto das Artes da Califórnia. Começando por nos relembrar que o cinema é um meio, Mackendrick enfatiza o papel do filme como “uma linguagem de comunicação que transmite um conceito da imaginação do criador para o olho e o ouvido da mente daqueles aos quais a mensagem é destinada”. Na opinião do ex-realizador Britânico, o “artista ou artesão”, antes de introduzir qualquer inovação na sua área, deve começar por compreender e dominar os princípios que ele pretende subverter, tal como “um especialista em demolições tem de compreender todos os princípios de arquitectura antes de conseguir fazer o seu trabalho”, correndo, caso contrário, o risco de produzir na sua audiência um efeito não pretendido ou de não conseguir criar o efeito pretendido. Mackendrick acrescenta ainda que “[s]e um filme funciona nunca é simplesmente porque este seguiu as regras. Se, no entanto, falha, é quase certo que a quebra de uma ou mais regras é a raíz do problema.”

– an introduction to the craft of the director de Alexander Mackendrick

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on film-making

Apesar de ter como subtítulo “Uma Introdução ao Oficio do Realizador”, o livro dedica cerca de dois terços do seu conteúdo à arte da construção dramática. Nesta primeira parte, Mackendrick começa por focar um tema recorrente nas suas notas: a natureza pré-verbal do cinema. Embora seja possível reproduzir diálogo em grande quantidade num filme (na forma de som ou, durante a época do cinema mudo, através de cartões com legendas), este também é capaz – através de imagens cinematográficas muitas vezes sincronizadas com efeitos sonoros – de contar histórias puramente em movimento, em “acção e reacção”, tornando secundária a componente verbal. “Consequentemente”, escreve Mackendrick, “o significado essencial e subjacente de diálogo em filme é frequentemente transmitido de forma muito mais efectiva por uma complexa e intrincada organização de elementos cinemáticos que são não só não-verbais, mas também nunca podem ser completamente analisados por meios verbais.” Por outro lado, o antigo cineasta acrescenta que o cinema chega ao seu auge de interesse e vigor quando as imagens jogam contra o sentido literal do diálogo, ou seja, quando ao que é dito pelo actor se contrapõe o que esta a ser visto pela audiência. Neste caso, o diálogo consegue exprimir muito mais do que o significado literal das suas palavras, focando então a atenção no ritmo do subtexto e tornando possível o relato de várias histórias em simultâneo. “On Film-Making” dedica-se então à apresentação e elaboração, baseando-se em várias obras – em particular a antiga “Poética” de Aristóteles e a, mais recente, “Play-Making” de William Archer – de teoria dramática, de temas como a origem do drama, a importância da tensão dramática, as diferenças entre literatura e drama, as características de uma personagem em ficção, exposição (ou seja, explicação através de diálogo) e ironia dramática, utilizando exemplos de filmes entre os quais “O Terceiro Homem”, “Ladrões de Bicicletas”, e “Mentira Maldita” (este último realizado pelo próprio autor). Para os mais dedicados, a compilação presenteia-nos ainda com um capítulo inteiramente constituído por exercícios para o estudante de construção dramática. A primeira parte do livro termina com um capítulo sobre a relação de trabalho entre o realizador e o actor, onde Mackendrick se centra na importante questão de quanto é que o actor precisa de saber sobre o trabalho do realizador. A segunda parte – e último terço – desta compilação é dedicada ao tema da gramática de filme, onde Mackendrick começa por nos apresentar uma personagem que representa o realizador na fase de planeamento de set-ups de câmara e encenação de performances: “a Teste-

munha Alada Ubíqua Imaginária Invisível, uma criatura desenhada para personificar o olho e ouvido da mente do realizador saltando pelo tempo e espaço de um mundo imaginário construído em frente à lente da câmara”. Armado com este seu novo conceito, o ex-realizador de Hollywood responde a duas questões complexas de forma muito simples. Primeiro, à questão: “onde é que o realizador coloca a câmara”, Mackendrick escreve que é “no preciso ponto de onde em qualquer dado instante a Testemunha consegue ver tudo o que é necessário ver e só o que é necessário ver”, dentro, claro está, dos limites do mundo real em que as filmagens são feitas; a resposta à segunda questão – “quando é que o realizador deve fazer um corte na acção” – é igualmente simples: “quando a Testemunha quer ver algo que ainda não consegue ver”, ou seja, dentro de cada shot deve existir sempre algo que cria na audiência o desejo de saltar no momento certo – no espaço e no tempo – para a próxima imagem. A segunda parte de “On Film-Making” continua então com a exploração de temas essenciais para a compreensão do ofício de um realizador, tais como a importância da imagem e do som como meios de dirigir a atenção da audiência, geografia mental e condensação do tempo de ecrã, e inclui também um pequeno capítulo dedicado a técnicas básicas de desenho (algo inestimável, na opinião de Mackendrick, para quem quer aprender a comunicar). Esta compilação termina com um estudo – como modo de sumariar os capítulos anteriores – de algumas cenas do clássico “Citizen Kane”, “visto por muitos”, diz o antigo cineasta, “como o filme mais importante de sempre feito em Hollywood”. No seu epílogo, acabando como começou, Mackendrick relembra os seus estudantes de que a teoria não os vai em geral ajudar a produzir bom trabalho, mas é possível que os ajude a identificar os seus erros. Modestamente, o ex-realizador conclui: “como instrutor, as únicas coisas que eu posso ensinar são as que vocês já sabem, aquelas ideias e opiniões que se vocês parassem e considerassem por mais de dez segundos, iriam provavelmente perceber intuitivamente ao nível mais básico. Isto é, acredito eu, o que procurei respeitosamente fazer nestas aulas e notas. Espero que vocês as aproveitem ao máximo.”•

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O corpo e o sentido do trรกgico em

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a ficção que ja foi realidade

Elephant de Gus Van Sant

O sentido do trágico tem assumido diferentes contornos ao longo do tempo, mas no cerne da tragédia, independente do contexto cultural, está sempre uma crise. Por isso, o conflito, a liberdade, o conhecimento ou a ignorância são modos primeiros de dizer o trágico. Embora se refira muitas vezes o desfecho infeliz como típico da tragédia, importa acentuar que o mais importante não é o desfecho, mas o processo. A experiência revela-se através do corpo, na dificuldade enorme enfrentada pelo sujeito na sua relação com a identidade, tanto na perceção da morte, como nos seus impulsos destrutivos. A destrutividade e a fragmentação do corpo podem muito bem ser compreendidos como sintomas visíveis da dilaceração interior (as balas que atingem as vítimas em Elephant, para além de serem quase sempre mortais, são primeiro objetos que deformam corpos. Antes da morte, temos corpos mutilados, em pedaços). A visceralidade do corpo exposta através da ferida, mutilação e desmembramento é um dos traços mais marcantes da tragédia. A corporalidade e a sua postura definem, mas também questionam, os limites do Eu e, nessa luta entre a unicidade e a cisão, ressoa o conceito de trágico que assombra o ser humano desde a antiguidade clássica. Deste conflito ou

por Ana Barroso

A imagem do corpo enquanto elemento potenciador de uma individuação física implica a herança metafísica da tragicidade: a par da libertação do indivíduo enquanto ser que age sobre o mundo que o rodeia, impende “uma ‘sentença de morte’ que (des)organiza a chamada ‘vida’”1. O corpo, enquanto expressão de identidade do sujeito, tem sido, ao longo da história, pulverizado por crises cíclicas, iniciada pela dramática divisão entre corpo e alma, ou seja, entre a finitude e a eternidade. Esta divisão clássica tornou-se frágil e instável para, cada vez mais, a organicidade do corpo por oposição à imaterialidade da alma, ceder às pressões de um deslocamento da fronteira que separa a vida da morte. A corruptibilidade inevitável do corpo deixou de ser redimida pela sublimação da alma para se constituir como um dilema humano irresolúvel.

1  Bragança de Miranda, J.A. Corpo e Imagem. Lisboa: Nova Vega, 2008: 14.

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análises

complementaridade, conforme a perspetiva, entende-se a necessidade da luta permanente entre a vida e a morte para evitar o inevitável: o desaparecimento físico do Eu no tempo. A representação através da fotografia “é sempre uma forma de protesto contra o desvanecimento do Ser no tempo.”2 Será essa a função de Elias, o jovem fotógrafo de Elephant, que prefere “portraits… mainly”. Para o homem contemporâneo existe uma sensação de vazio onde pessoas e coisas não passam de fantasmas, como se não tivessem sustentação ontológica, daí o trágico. As fotografias de Elias permitem recuperar a sustentabilidade e a identidade perdidas. No entanto, não se evita o lamento e o sentimento de desolação perante perda da felicidade e da integridade, agora só possíveis através da nostalgia pelo passado. A tragédia ateniense sempre demonstrou uma grande preocupação com as fronteiras do corpo, tanto a nível da sexualidade (masculino/feminino), como a nível de humanidade (humano/animalesco) e da sua finitude (mortalidade/imortalidade). A personagem manifesta-se através do corpo do ator e do discurso. E aquilo que o define é o sofrimento, colocando o protagonista numa condição de extrema vulnerabilidade e insegurança. Neste sentido, a masculinidade é posta em causa: a emoção, a instabilidade e incerteza eram características que per-

tenciam ao domínio do feminino. A força, a integridade e poder pertenciam ao domínio masculino. Quando estas características são abaladas profundamente, então o homem assume a sua condição trágica. Em Elephant, a confusão sexual de Alex e Eric é um elemento fraturante da personalidade, encontrando-se os protagonistas perdidos de uma integridade sexual e identitária. Na realidade é volúvel e vacilante o corpo do indivíduo assume-se como lugar de transformação, de metamorfose. Se recuarmos à tragédia grega, o herói vive, agita-se e pensa. Essa reflexão é o logos, que o distingue do herói épico. Do conflito entre a vontade individual e a ordenação do mundo, surge o trágico: “que se aprende, sofrendo”3. Numa época em que se reflete sobre os valores que subjazem às sociedades democráticas ocidentais, retoma-se a marca indelével deixada pela figura do trágico na antiguidade clássica grega. As personagens de Elephant ressoam as de Eurípedes: figuras do quotidiano, que sofrem, discutem, reagem. O herói problemático e instável, que desafia a ordem social estabelecida, não pode assumir-se como poderoso e intocável, pelo contrário, será esmagado pela sua revelação, porque só assim conhecerá o seu verdadeiro íntimo, afastando-se da familiaridade integradora da sua personalidade para encontrar uma estranheza assustadora e fraturante. O Ser

2 Medeiros, Margarida. Fotografia e Narcisismo. O Auto-retrato

3  Rocha Pereira, Maria Helena da. Estudos da História da Cultura Clássica.

Contemporâneo. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000: 36.

Cultura Grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986: 311.

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elephant

que emerge desta experiência não mais se integrará nas normas e nos valores que ousou desafiar, restando-lhe uma irremediável solidão que, quase sempre, terminará com a morte. No quarto, enquanto Alex toca ao piano um excerto da Sonata ao Luar de Beethoven, a câmara faz uma panorâmica circular e vemos na parede um desenho a preto e branco de um elefante. Alex, a quem ninguém dá importância, será quem planeia o massacre. Não interessa uma abordagem didático-moralista do significado da tragédia em Elephant. Desde logo, existe uma ambiguidade latente: os diálogos são improvisados e as personagens são interpretadas por actores não profissionais4, reproduzindo no filme atitudes e comportamentos típicos dos adolescentes americanos. O estilo visual do filme assenta em longos planos-sequência, no ritmo lento e numa estrutura narrativa não linear. A câmara é distante, apenas observa. Esta estética de distanciamento coloca as personagens e o espetador numa situação de crise, de insolubilidade.5 Um ato como o da perpetração de um massacre não pode ser reduzido a um ou dois motivos, existem muitos, nem sempre claros ou lógicos. Se é verdade que o ser humano necessita de encontrar razões para atos que escapam a qualquer racionalidade, muitas vezes essas razões não passam de bodes expiatórios que pretendem apenas sossegar a perplexidade perante um comportamento violento incontrolável. Nietzsche defendeu que o nascimento da tragédia resulta da fusão do espírito Apolíneo e o Dionisíaco. Se o primeiro representa a moderação do sujeito e uma ética que respeita e não infringe as leis do mundo, o segundo representa os instintos, a potência das emoções: a ilusão e a beleza escondem o sombrio, o desmesurado da existência humana. É no aniquilamento da aparência que o indivíduo se identifica com a vida em toda a sua exuberância para revelar a essência do mundo. Sem retórica, sem lógica. É a disformidade que se manifesta6. Aparentemente, são a arbitrariedade e o vazio social que se manifestam na exuberância dos actos insanos dos dois rapazes. Elephant não é um filme sobre o que transforma dois adolescentes em assassinos. É uma reflexão sobre as pequenas coisas do quotidiano que podem destroçar o interior de um ser humano levando-o a gestos

desordenados e doentios, perturbadores da ordem do real. As tensões, as incertezas e o colapso da ordem social são expostos através da ambiguidade, acima de tudo no discurso verbal, frequentemente incapaz de revelar a complexidade dos actos e pensamentos humanos. A linguagem pode revelar-se poderosa no controlo dos acontecimentos, mas pode também conduzir a falácias. Revelador, mas também opaco, o discurso verbal pode bem acentuar o trágico da condição humana7. Na ausência da organização estruturada da linguagem que possibilita sentidos, irrompe o caos: o filme termina com a câmara a afastar-se da cena em que Alex profere as palavras sem sentido do jogo “eeny-meeny-miny-mo” a um casal de namorados para decidir quem vai matar primeiro… O filme não explica a tragédia e recusa uma exposição retórica sobre as mentes e comportamentos psicóticos de Alex e Eric. Os corpos dos jovens movimentam-se pelos espaços da escola, interagem, mas não existe uma verdadeira comunicação entre eles, apenas uma erupção inesperada de violência. Estudantes e professores morrem, outros conseguem escapar, mas por mero acaso. Ao recusar dar-nos uma resposta fechada para encerrar um problema, Van Sant solicita uma problematização de caráter mais filosófico. Tylksy evoca o mito do Minotauro, adaptando-o à realidade contemporânea - os corredores infindáveis e labirínticos onde os adolescentes se perdem e estão prestes a ser devorados pela besta, mas onde também se podem transformar em carrascos.8 A besta pode bem ser a sociedade, mas é dessa sociedade que nascem os que a combatem e os que são engolidos por ela. Esta imagem antropofágica reforça a importância do agir do corpo sobre o mundo, uma luta física permanente por uma ética e por uma liberdade individual, uma questionação da ordem social. Dessa necessidade ou insolência profundamente humanas (a hybris da tragédia grega) resulta o sofrimento materializado em atos cometidos contra os corpos. Alex e Eric são os heróis trágicos em conflito com a ordem do Estado (representada aqui através de uma das suas instituições mais importantes, a escola), mas sendo um conflito insolúvel inevitavelmente arrasta as personagens para a destruição. E no final, não existe nenhuma purga ou libertação. •

4  O corpo e a identidade do ator confundem-se com os da personagem: o nome da personagem é o mesmo do actor, as roupas e a maquilhagem que usam são as que os actores usam no seu quotidiano. 5  McKibbin, Tony. “Too Cool for School: Social Problems in Elephant”. Senses of Cinema, 2004.

7  Goldhill, Simon. Reading Greek Tragedy. Cambridge: Cambridge

www.sensesofcinema.com/contents/04/32/elephant.html 28/12/09.

University Press, 1986:18-19.

6  Nietzche, Frederico. A Origem da Tragédia. Tradução de Álvaro Ribeiro.

8  Tylski, Alexandre.”Gus Van Sant et le Minotaure”. Cadrage. Août, 2003.

Lisboa: Guimarães Editores, 1988: 35-37.

http://www.cadrage.net/films/elephant/elephant.html 31/12/2009

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filme

análises

Sobre

Cidade de Deus por António Cardoso

“Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.” Esta simples expressão típica do povo Brasileiro e verbalizada por Buscapé, um jovem habitante da favela que tem como nome o título da segunda longa metragem de Fernando Meirelles (baseada no romance de Paulo Lins com o mesmo nome), reflecte o tema principal de “Cidade de Deus.” A primeira situação em que vemos Buscapé - encurralado entre criminosos e polícia - dá a entender de forma puramente visual o dilema com que ele se depara constantemente e do qual não consegue escapar: colocar-se ao lado da polícia e arriscar ser morto pelos criminosos, ou juntar-se a estes correndo o risco de sofrer as mesmas consequências pelas mãos da autoridade.

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sobre cidade de deus

Apesar de ser visto por muitos cineastas e críticos de cinema como um método demasiado óbvio de exposição, em “Cidade de Deus” o flashback é utilizado copiosamente e de modo extremamente eficiente, revelando à audiência informação previamente retida com o objectivo - sem dúvida alcançado - de criar suspense ao longo do desenrolar da história. Bons exemplos são os homicídios cometidos por Dadinho, na altura uma criança a iniciar a sua vida de assaltante, e a repetição da morte do segurança do banco, desta vez encenada do ponto de vista do seu filho (na altura em que este, após uma primeira tentativa falhada, acaba por vingar o seu pai) por Mané Galinha, um honesto ex-militar e habitante da favela. Por outro lado, o longo flashback inicial durante os anos sessenta, quando Buscapé era ainda uma criança, permite-nos - sem quebrar o ritmo da acção - assimilar as motivações das personagens principais desde o início das suas vidas e de certo modo adivinhar as suas acções futuras. No final desta viagem ao passado torna-se mais ou menos claro que Buscapé sonha com uma carreira como fotógrafo, e Dadinho como criminoso.

Outra ferramenta constantemente utilizada em “Cidade de Deus” para expor informação é o voice-over, o qual tem o mérito de restringir toda a acção do filme ao ponto de vista observador e algo distante de Buscapé. Sentindo-se ele próprio um outsider dentro de um mundo violento e claustrofóbico do qual ele tenta a todo o custo sair, Buscapé é um protagonista com o qual nos é particularmente fácil identificar. Através deste voice-over, as várias personagens e as suas histórias particulares - as quais estão ligadas entre si através da acção principal, a história de Buscapé - ao longo de duas décadas vão-nos sendo apresentadas durante o filme, sendo deste modo criada uma narrativa não-linear que nos mantém envolvidos durante mais de duas horas. Sendo o principal motor da acção deste argumento, a vida de Dadinho (mais tarde Zé Pequeno) é desenvolvida no ecrã - sob o olhar e lente fotográfica de Buscapé desde a sua infância e início de carreira como assaltante, passando pela sua subida ao trono como traficante de droga da favela, até, por fim, à sua morte. Em paralelo, fortemente influenciada em vários pontos pela acção de Zé Pequeno (envolvendo em particular a maquina fotográfica oferecida por Bené, o seu braço direito, a Buscapé), a história do nosso jovem protagonista - a tentativa contínua de fuga a uma vida de crime e, a certo ponto, a própria incapacidade de entrar nela - é seguida na primeira pessoa. Ironicamente, mas talvez sem grande surpresa, a queda final de Zé Pequeno tem como consequência directa o salto de Buscapé para um início de carreira como fotógrafo. A indecisão entre as duas últimas fotografias (examinadas à lupa) por parte de Buscapé - uma mostrando o embolso por parte da polícia do dinheiro acumulado por Zé Pequeno através dos seus negócios ilegais e a outra evidenciando o homicídio deste (cometido pelos “Caixa Baixa,” um gang de crianças no início das suas vidas de delinquência) - e a sua escolha da segunda em detrimento da primeira são mais um exemplo visual de outro dos temas do filme de Fernando Meirelles: o sensacionalismo da comunicação social e a ameaça de uma polícia corrupta, que contribuem para a perpetuação da imagem da favela como um núcleo de crime (devido à promoção involuntária de uma educação errada para os seus habitantes mais novos). Esta mesma perpetuação é tornada óbvia pela última cena do filme, na qual observamos com alguma inquietação os “Caixa Baixa” a deslocarem-se em grupo pelas ruas de uma “Cidade de Deus” temporariamente destronada. •

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a ficção que ja foi realidade


uma publicação da Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos


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