O Estado de SP em PDF - Domingo 25072010

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O ESTADO DE S. PAULO

DOMINGO, 25 DE JULHO DE 2010

ARREMATE

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No banco dos réus

O jovem americano conhecido como “Bandido Descalço” é transferido da Flórida para Washington – onde será levado a julgamento. Ele é acusado de crimes como invasão de residências e estabelecimentos comerciais, além do roubo de cinco aviões durante a fuga

QUINTA, 22 DE JULHO

AP

na propriedade ao lado. De acordo com registros e entrevistas, Harris-Moore era alvo de frequentes repreensões na escola. Uma colega do quinto ano, Mariah Campbell, lembrou que alguns meninos caçoavam das roupas sujas de Harris-Moore. E disse que ele às vezes maltratava os demais alunos da classe. “Como nunca fazia a lição de casa”, diz Mariah, “ele nunca tinha permissão de participar do horário livre e de atividades de lazer.” Perto de completar 12 anos, Harris-Moore já sofria de uma série de problemas psiquiátricos, entre eles, depressão, déficit de atenção e distúrbios explosivos intermitentes, de acordo com uma avaliação psiquiátrica posterior. Foram-lhe receitados antidepressivos e medicamentos contra distúrbios psicóticos. Ele abandonou a escola pouco depois de concluir a nona série. “Colton nunca queria voltar para casa”, contaChrista Postma, quedisse ter setornado amiga dele no fim do ensino fundamental porque os dois estavam “sempre metidos em encrencas”. Os crimes pelos quais Harris-Moore foi indiciado ou aqueles que são atribuídos a ele mostram um foco cada vez mais concentrado na tecnologia e no transporte, envolvendo o furto de laptops e mountain bikes, dispositivosGPSselanchas.Masédifícilencontrar no passado dele algo que sugira que um dia ele seria capaz de pilotar aviões e levá-los paraforadopaís semnuncaterrecebidotreinamento de piloto. Ele é suspeito de roubar pelo menos cinco aviões – um deles durante a Olimpíada de Invernode Vancouver– eimprovisaraterrissagens com eles. Em todas as ocasiões escapou sem ferimentos – do pouso ou causados pelas autoridades que o perseguiam. Por uma cheesecake. Os céus sobre o Ca-

Autodidata? Ninguém sabe como o trouble boy da Ilha Camano, filho de mãe encrenqueira e pai ausente, aprendeu a pilotar aeronaves sozinho

O fujão dos pés descalços Com 19 anos, Colton Harris-Moore roubou aviões, fez a polícia de boba e virou ídolo na internet

WILLIAM YARDLEY THE NEW YORK TIMES

andido Descalço” não foi o único apelido que Colton Harris-Moore recebeu em poucos anos de vida. Vizinhos dizem que a mãe gritava termos tão chulos contra o garoto que eles até se encolhiam quando as palavras ecoavam pelos amplos gramados que cobrem boa parte da Ilha Camano, no Canal Puget, em Washington. Colegas de escola dizem que ele era do tipo valentão – isso quando aparecia para estudar. Ainda assim, quem sabe o mais leve de todos os apelidos que já teve seja o que mais revela a respeito dele. Muito antes do roubo de barcos e aviões transformá-lo em um expert em escapadas e um anti-herói da internet, Harris-Moore, de 19 anos, foi considerado suspeito de roubar biscoitos e pizza congelada da família Kostelyk, a alguns quarteirões da imundície que ele chamava de lar – um trailer estacionado numa rua sem saída, a menos de uma hora de Seattle. Os Kostelyks moravam numa casa de frente para o mar e tinham um freezer cheio de comida. Ele estava sempre duro e morava afastado da costa. “Chamávamos ele de ‘Menino da Ilha’”, lembra-se Linda Johnson, cuja mãe, Maxine Kostelyk, parece ter sido uma das primeiras vítimas de Harris-Moore. “Sei que ele voltou várias vezes para surrupiar pizza congelada, biscoitos, sorvete. O menino era alto e estava em fase de crescimento.” Quandofoifinalmentecapturadonasemana passada – numa lancha roubada nas Bahamas, fugindo da polícia com a ousadia de quem o faz numa partida de vídeogame –, o jovem de mais de 1,95 m já tinha se tornado uma sensação nos EUA. Depois de escapar de uma instituição juvenil de reabilitação no Estado de Washington há cerca de doisanos, ele iludiu autoridades de todo o território americano usando a astúcia e os pés (às vezes descalços) de maratonista. A polícia diz que ele passava períodos curtos (dias ou semanas) morando em casas abandonadas e, de alguma maneira, aprendeu até a pilotar aviões, dominando a arte de improvisar uma aterrissagem sem se ferir. Parecia impossívellocalizar eidentificar Harris-Moore, uma mistura de criminoso engenhoso e Huck

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Finn da alta tecnologia. Entretanto, o exame de sua infância e de seusproblemassugere umquadromuitomenos cinematográfico. De acordo com documentosdotribunaledaadministraçãopública, além de dúzias de entrevistas, HarrisMoore não era herói nem sequer de si mesmo. Ao contrário: seja ao se esconder na casa da árvore de propriedade dos Kostelyks, esperando pela entrega da lanterna de alta potência que, segundo a polícia, ele encomendou com um cartão de crédito roubado, ou ao voar sozinho no início do mês em direção às Bahamas num Cessna que surrupiou, isolado no pequeno cockpit por mais de 1.500 km, Harris-Moore se viu sozinho e faminto durante a maior parte da vida. Isso não mudou – nem mesmo enquanto milhares de fãs o festejavam no Facebook. “Ele diz que não dá a mínima para isso”, disse Monique Gomez, advogada que representou brevemente Harris-Moore nas Bahamas. “Tudo que quer é deixar o episódio todo para trás.” A advogada ainda acrescentou um diagnóstico pessoal: “Acho que, se tivesse recebido uma orientação adequada na vida, não teria feito o que fez”. Garoto-problema. De fato, Harris-Moore teve uma infância volátil e se envolveu em conflitos frequentes com a mãe, Pam Kohler. Sofreu os danos da ausência de um pai. E, deacordocomdocumentospúblicos,funcionários do serviço de proteção à criança foram orientados a cuidar do caso da família em pelo menos 12 ocasiões antes de HarrisMoore completar 15 anos. O relatório de um funcionário do serviço social logo após a primeira detenção de Colton, aos 12 anos de idade, chega a uma rápida conclusão: “Colton quer que a mãe pare de beber e fumar, arrume um emprego e traga comida para casa. A mãe se recusa”. Quando Harris-Moore tinha apenas 4 anos, alguém denunciou Pam Kohler depois de testemunhar “uma mulher agarrar uma criança pequena pelos cabelos e bater na cabeça dela com força”, de acordo com um resumopsiquiátricomontado12anosmais tarde. Antes de ele completar 10 anos, uma investigação envolvendo “negligência e maustratos”tinha sidoiniciada. Aindaassim, Pam nãofoiacusadapornenhumcrimerelacionado a essas queixas. Agora com 59 anos, a mãe de Harris-Moore não quis dar entrevista. Uma advogada contratadapor ela para cuidar das investidas da imprensa e das propostas de livros e de filmes adaptados a partir da história de seu

STUART ISETT/THE NEW YORK TIMES

REPRODUÇÃO

AP

filho nega que haja nos registros públicos alegações de abuso envolvendo sua cliente. Em Haven Place, estrada de cascalho na extremidade sul da Ilha Camano, onde Harris-Moore cresceu e onde sua mãe mora até hoje, vários vizinhos dizem se lembrar dos gritos de mãe e filho, que atravessavam a noite. Todos eles solicitaram que seu anonimato fosse preservado por temerem a reação de Pam. Não por acaso. Uma placa pintada à mão no fim da cerca de madeira da casa da mulher alerta: “Não ultrapasse este ponto, ou eu atiro”. Indagado se essa ameaça deveria ser levada a sério, um vizinho não pestanejou: “Ela atira mesmo”. E se lembrou do caso de um topógrafo que afirmou ter ouvido disparos feitos em sua direção enquanto trabalhava

As cenas do crime. De cima para baixo, a vizinha Maxine Kostelyk, de quem o larápio ainda menino surrupiava biscoitos e pizzas, se espanta com a fama repentina; a camiseta da fuga, sucesso de vendas na internet; e o meliante, enfim capturado pelas autoridades americanas

nal Puget tremem com o intenso tráfego de pequenos aviões que circulam pelas ilhas locais. Pam Kohler disse uma vez aos repórteres que seu filho era capaz de identificar os diferentes modelos que sobrevoavam a região. A internet está repleta de especulações sugerindo que Harris-Moore teria aprendidoavoar utilizando programasdesimulação nos laptops que roubava. Mas não há indícios concretos sobre como ele teria de fato aprendido a pilotar. “Essa é a pergunta que todos farão a ele quando Harris-Moore começar a falar, caso decidafalar”, declarouEd Wallace, investigador do gabinete do xerife de Island County. O rótulo de “Bandido Descalço” é um apelido relativamente novo na região. Sua origem está nas pegadas que foram encontradas no ano passado durante algumas das investigações e nos desenhos de pegadas que a polícia acredita terem sido feitos pelo próprio Harris-Moore em lugares onde seus crimes ocorreram. “Ele vestiu a carapuça e usava o título com orgulho”, disse o xerife Bill Cumming, de San Juan County. Os vizinhos dizem se lembrar de ocasiões em que Harris-Moore aparecia descalço durante a infância. Na época, ele se queixava aos assistentes sociais de que sua mãe não o encorajava a ser mais responsável. Os assistentes apontaram mais de uma vez para o fato dea mãe de Colton se recusar a dar prosseguimento aos programas de acompanhamento e tratamento que eram prescritos para seu filho. Christa, a amiga problemática do oitavo anoquehojetrabalhanocontroledequalidade de uma empresa de pesca no Alasca, disse ter participado desses programas de acompanhamento e isso a ajudou muito. No bairro de Harris-Moore, muitos também dizem que ele dava a impressão de procurar substitutos para a figura paterna durante a infância – pedindo aos outros que fizessem sanduíches de pasta de amendoim para ele ou então observando-os cuidar das tarefas básicas do lar, para depois roubar suas caixas de correio ou seus computadores. Outros ressaltam que o tempo todo em que suas loucas escapadas tornavam-se cada vez mais espetaculares e estimuladas por amigos virtuais na internet ele manteve contato com a mãe. Harris-Moore foi trazido de volta ao Estado de Washington na quarta-feira para comparecer ao tribunal no dia seguinte. Ele enfrenta uma acusação federal por roubar um avião e transportá-lo de um Estado para outro e pode ser acusado de muitos outros crimes – tais como invasão de propriedade com o intuito de roubar, furto e fraude no cartão de crédito. E, se no final sua mãe o encorajou publicamente a fugir para um país que não tivesse acordo de extradição com os EUA, em vez disso, Harris-Moore foi parar nas Bahamas. “Ele não estava realmente tentando fugir”, diz Kyle Ater, que encontrou pegadas descalças desenhadas com giz no chão de sua loja de comida natural na ilha próxima de Orcas – depois de, segundo a polícia, o estabelecimento ter sido invadido por Harris-Moore, que destruiu o sistema de alarme apenas para comer uma cheesecake inteira guardada no refrigerador. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL


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