Sob os signos das boiadas

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Presidente do Iphan Luiz Fernando de Almeida Diretor de Articulação e Fomento Estevan Pardi Coordenadora geral de Pesquisa, Documentação e Referência Lia Motta Coordenador Geral de Difusão e Projetos

Prefeito de João Pessoa Luciano Agra Secretário de Planejamento Aldo Preste Diretora de Planejamento e Licenciamento da Coordenação do Patrimônio Cultural de João Pessoa Rosangela Regis Toscano

Fábio Guimarães Rolim Coordenadora de Educação Patrimonial Sônia Regina Rampim Florêncio Diretora de Patrimônio Imaterial Célia Maria Corsino Diretor de Patrimônio Material e Fiscalização Andrey Rosenthal Schlee Diretora de Planejamento e Administração

Equipe técnica Átila Tolentino - Iphan/PB Carla Gisele Moraes - Iphan/PB Daniella Lira - pesquisadora - PEP/MP/Iphan Emanuel Braga - Iphan/PB Josélia de Almeida Martins - Copac/PMJP José Maria Bezerra Filho - Iphan/PB

Maria Emília Nascimento Santos

Josilane Maria do Nascimento Aires - Copac/PMJP

Superintende do Iphan na Paraíba

Maria Olga Enrique Silva - Iphan/PB

Umbelino Peregrino

Suelen de Andrade Silva - Iphan/PB

Diretora Técnica do Iphan na Paraíba Christiane Finizola Sousa Sarmento Diretora Administrativa do Iphan na Paraíba

Projeto gráfico e diagramação Daniella Lira

Lindaci Bandeira de Souza Agradecimentos Aldo Honório de Medeiros, Bento Soares da Silva, Carlomano Abreu, Centro Cultural Banco do Nordeste, Emídio Sarmento Meira (Biduca), Evandro Trajano Pedrosa, Francisca Edna Alves Pedrosa, Francisco Antônio de Sousa (Neguinho do Massapê), Francisco Assis Braga Júnior, Francisco César Gonçalves (Chico César), Francisco de Assis Ribeiro Braga, Francisco Mendes Campos (Nildo), Francisco Supino de Sá, Francisco Trajano de Lima, Israel José do Nascimento, José Alves César, José Bonifácio de Sousa (Zé Preto), José França de Oliveira, José Honório Medeiros, José Leite Pordeus (Galego), José Manuel do Nascimento (Zé Ferreiro), José Roberto Pordeus da Silva (Beto da Diamante Negro), Lauciane Vieira de Andrade, Laura Maurício, Lia Motta, Lucia Giovanna, Luis José Vieira da Nóbrega (Laércio), Marilene Roberto Braga, Milton de Assis Garrido, Museu do Brejo Paraibano, Nivalson Miranda, Prefeitura de Aparecida, Prefeitura de Nazarezinho, Prefeitura de São Francisco, Prefeitura de Sousa, Raimunda Alves da Rocha, Renata Santos, Romualdo Alves Braga, Secretaria de Estado da Cultura da Paraíba, Tiburtino Cartaxo de Sá. Agradecimento especial, in memoriam, a Eliane de Castro. Capa | Porta usada pelo Seo Zé Ferreiro para testar os ferros, Sousa/PB. Foto: Daniella Lira.


Casa do Patrim么nio de Jo茫o Pessoa

2012


Casa em taipa de pau a pique, Aparecida/PB. Foto: テ》ila Tolentino.


Sob os signos das boiadas é um convite a uma viagem pelo universo das marcas de ferrar gado que povoam o sertão paraibano. Resultado de uma pesquisa desenvolvida na Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional na Paraíba, por meio do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do Iphan – PEP/MP, esta exposição busca contribuir para a valorização das manifestações culturais do sertão e mostra a força e complexidade da tradição dos ferros de marcar bois e dos ofícios do ferreiro e do vaqueiro. Para o desenvolvimento completo da pesquisa e da exposição, foram de fundamental importância as viagens realizadas aos municípios de Sousa, Aparecida, São Francisco e Nazarezinho, onde foi possível entrar em contato com pessoas diretamente associadas à tradição dos ferros. Entrando de casa em casa, pudemos apreciar a hospitalidade do sertanejo, que a tudo responde com presteza, simplicidade e uma sabedoria que não se aprende na escola, mas na lida do dia-a-dia. Eles, a princípio, não entenderam a importância de tantas perguntas, o porquê de se falar sobre um assunto tão corriqueiro. Não sabiam eles que isso tudo é novidade para quem vem da capital... Mas, aos poucos, contaram histórias e descreveram práticas, que aprenderam com os pais e que ensinam aos filhos, como verdadeiras “aulas” que vão se repetindo de geração em geração. E nessas conversas informais aprendemos muito, inclusive que o conhecimento não está apenas nos livros, e que esse somatório de informações enriquece e provoca reflexões que ultrapassam a pesquisa. Um olhar apurado sobre a tradição dos ferros de marcar gado, enfim, é o que se propõe. Uma tradição que representa, juntamente com os ofícios do ferreiro e do vaqueiro, uma das veias da identidade do povo sertanejo e se reveste como uma referência cultural de todo o povo brasileiro. Daniella Lira - pesquisadora PEP/MP/Iphan


E simplesmente me limitarei à descrição do desenho mais original e mais digno de estudo, já pelas suas denominações interessantes, já pela importância que assume na vida dos sertões: é o desenho das marcas de gado, dos ferros, assim chamadas porque são impressas no couro do animal com um carimbo de ferro aquecido ao fogo. Gustavo Barroso

Ferra do gado, Sousa/PB. Foto: José Maria Bezerra Filho.



Com o processo de ocupação territorial no nordeste e mais especificamente nos sertões, a criação de gado passou a ser uma das principais atividades econômicas, de forma que as práticas relacionadas ao ciclo do gado – entre elas a marcação dos animais – tornaram-se recorrentes na região. Sítio Várzea dos Ramos, Aparecida/PB. Foto: Daniella Lira.



A tradição dos ferros de marcar é complexa, repleta de práticas que se relacionam e a diferenciam de tantas outras que fazem parte do vasto mundo dos sertões. Embora não existam regras escritas determinando como deve ser realizada, sua permanência se confirma ainda hoje, sendo transmitida de pais para filhos, varando o tempo.

Seo Laércio esquentando os ferros no Sítio Santa Cruz, Sousa/PB. Ao lado, Seo Laércio entregando o ferro em brasa ao filho Lauciane. Fotos: Daniella Lira.



Pintura egípcia que retrata a ferra do gado em 2000 a.C. Fonte: FARIA, Oswaldo Lamartine de. Ferro e Ribeiras do Rio Grande do Norte. Fortaleza: Imprensa universitária da UFC, 1984.

Não se pode afirmar ao certo a respeito da origem do uso dos ferros, mas através de uma pintura tebana que retrata a marcação de animais em 2000 a.C., no Antigo Egito, conclui-se que há pelo menos 4.000 anos essa tradição vem sendo realizada. O uso dos ferros chegou a Portugal e foi trazido ao Brasil, juntamente com o gado que era enviado para a colônia. Assim, por influência do colonizador, a tradição passou a fazer parte da dinâmica socioeconômica dos criadores de gado também no novo mundo.


Ferro de Seo Francisco Supino de Sá, Fazenda Angélica, Aparecida/PB. Foto: Emanuel Braga.


Ferros usados na Fazenda Angélica, Aparecida/PB. Ao lado, animal marcado com vários ferros, Fazenda Paraíso, São Francisco/PB. Fotos: Daniella Lira.


Os ferros Os ferros, que indistintamente podem ser denominados “ferro de marcar” ou “marca de ferrar”, são instrumentos usados para carimbar o gado de forma permanente. Os criadores usam a marca como um sinal individual da propriedade, da família e do território, capaz de identificar cada rês que, por sua vez, carrega a marca do dono impressa no couro.



O ofício do ferreiro Os ferros são produzidos pelo ferreiro de forma totalmente artesanal. Em uma oficina simples, muitas vezes herdada do pai, que um dia lhe ensinou o ofício, o ferreiro, com mãos de artista, inicia o trabalho minucioso de recorte, modelagem e solda, ao som ritmado pelas batidas das ferramentas no ferro e na bigorna. Ao finalizar a peça, o artífice a testa em portas, janelas ou algum outro suporte de madeira que esteja ao seu alcance, produzindo um mostruário de suas obras.

Na página anterior, ferreiro Israel, de Sousa/PB, fazendo um ferro de marcar. Na foto ao lado, testando-o em uma porta de madeira. Fotos: Daniella Lira.


Ferramentas do ferreiro Israel, Sousa/PB. Foto: Daniella Lira.


Mão do Seo Zé Ferreiro, Sousa/PB. Foto: Daniella Lira.


A ferra A ferra é o ato de marcar o animal com o ferro em brasa. Os vaqueiros entram em cena e, de forma que parece ser calculada, laçam o animal e marcam-no com o ferro do proprietário, na coxa posterior, sempre no lado direito. Caso o animal já tenha alguma marca, ferra-se acima ou à frente da marca existente.

Esse ritual, que faz parte da cultura do homem do sertão, pode parecer cruel para quem “vem de fora”, mas é comum e, muitas vezes, necessário para aqueles que lidam com o gado. Vaqueiro laçando e em seguida marcando o animal. Ao lado, Seo Laércio, vaqueiro de Sousa/PB. Fotos: Daniella Lira.



Ferro da ribeira do Rio do Peixe, usado pelo Seo Francisco na Fazenda AngĂŠlica, Aparecida/PB. Ao lado, marca da ribeira no couro de um animal. Fotos: Daniella Lira.


O ferro da ribeira Até o momento em que as propriedades no sertão nordestino não eram cercadas e o gado vivia solto, existia a necessidade de ferrá-lo com uma segunda marca, que promovia uma identificação geográfica. Usava-se, assim, no lado esquerdo do animal, a marca da ribeira, representando regiões que se distinguiam pelo nome dos rios que as banhavam. Cada ribeira era representada por um símbolo adotado por todos os criadores da região, que usavam um ferro em comum, além da sua própria marca. Com o surgimento de fronteiras e a criação confinada do gado, a marca da ribeira caiu em desuso, de forma que, hoje, dificilmente se encontra um fazendeiro que ainda a utilize.


O registro Os criadores de gado costumam registrar seus ferros em livros nas prefeituras para legitimar suas marcas, de modo que fiquem assegurados da posse de seus animais. Assim, em caso de perda ou roubo, podem utilizar o poder público municipal para comprovar sua propriedade por meio da marca ferrada no couro da rês. Esse registro é mais um costume relacionado à tradição dos ferros, não representando uma obrigação determinada pela legislação. Ferro usado pelo Seo Francisco Supino de Sá, Aparecida/PB. Foto: Emanuel Braga. Ao lado, recibo fornecido pela prefeitura de Sousa no momento do registro de um ferro. Foto: Daniella Lira.




A marca Segundo a tradição, as marcas surgem a partir de um desenho inicial que pode servir de base para toda uma família, ou seja, o caixão da marca. Nessa base, os descendentes acrescentam ou subtraem traços de acordo com critérios pessoais, criando marcas individuais capazes de identificar suas posses. Essas modificações são denominadas de diferenças ou divisas e podem ser números, letras ou simplesmente traços lineares ou curvos.

Caixão da família Supino de Sá

José Supino de Sá

Ao lado, marca usada no gado pelo Seo José Leite Pordeus, Aparecida/ PB. Foto: José França de Oliveira.

Antônio Supino de Sá

João Supino de Sá

Em destaque, o caixão a partir do qual se desenhou a marca dos irmãos José, Antônio e João Supino de Sá. A marca de seo José foi usada pelo seu filho e ainda hoje ferra o gado do seu neto Francisco, também conhecido como Tiquinho de Bilinha, no município de Aparecida.


As diferenças, acréscimos usados para distinguir as marcas, podem ser traços retos ou curvos e suas combinações podem formar uma variada gama de ferros. No decorrer dos tempos, esses traços foram batizados com nomes que se popularizaram por todo o nordeste.

tronco

puxete

haste

galho

pé de galinha

i aberto

i fechado

flecha

cruz

cruz egípcia

martelo

enxada

escada

asa

flor

quadro

baú

balança

lua

meia-lua


Ferro do Seo JosĂŠ Leite Pordeus, Aparecida/PB. Foto: Carla Gisele Moraes.


Mas essa não representa a única forma de se criar uma marca. Os filhos podem usar a mesma marca do pai, acrescentando um segundo ferro com um número que o diferencie ou podem criar uma marca totalmente original. Muitas dessas marcas são formadas a partir de letras sobrepostas ou combinadas, geralmente reproduzindo as iniciais dos proprietários. As marcas de ferrar vão sendo criadas de geração em geração e, de uma forma bem particular, desenham a cultura dos sertões, por meio da composição de um universo repleto de traços, que, sozinhos ou em conjunto, identificam os criadores de gado através dos campos e dos tempos.

Marca usada no gado pelo Seo Laércio, Sousa/PB. Foto: Daniella Lira. Ao lado, Seo Bento Soares e sua marca, Fazenda Paraíso, São Francisco/PB. Foto: Átila Tolentino.



Os ferros são capazes de representar a propriedade, não apenas de animais, mas de qualquer bem material que as receba. Podem, também, caracterizar a “origem nobre” das famílias, assim como faziam os brasões de armas na tradição europeia medieval. Ainda, a partir dos ferros das ribeiras, são capazes de demarcar um espaço territorial próprio, constituído por áreas dissociadas dos limites municipais.

Queijos marcados com o ferro do produtor, Soledade/PB. Ao lado, marca do proprietário no frontão da casa, Fazenda Acauã, Aparecida/PB. Fotos: Daniella Lira.




O homem do sertão atribui valores às marcas de forma que sua representação vai muito além da cicatriz feita a “ferro e fogo” em um animal. As marcas de ferrar podem ser consideradas como referências culturais daqueles que fazem parte do universo rural, no qual a tradição dos ferros está inserida, configurando, para seus habitantes, uma identidade local e contribuindo, em um contexto mais amplo, para a diversidade cultural brasileira.

Fazenda Paraíso, São Francisco/PB. Foto: Átila Tolentino.



O povo conserva aquela educação que até surpreende visita pela sua elegância, cultura e sociabilidade. ‘Entre que a casa é sua’ – é o convite que ainda não se apagou. Quem ali vai, não quer sair. Dizem que é a água do Rio do Peixe, que prende. Não, não é só a água é o coração do seu povo. Rosilda Cartaxo

Ferreiro Seo Zé Preto, Aparecida/PB. Foto: Daniella Lira. Ao lado, vaqueiros, ferreiros e criadores de gado que contribuíram com a pesquisa. Fotos: Átila Tolentino e Daniella Lira.


E toda essa tradição parece que está sendo arredada das lembranças e varrida das casas como uma nódoa. A obrigação de mantê-la viva não é por soberba descabida e sim por respeito ao tempo que se foi, pois é com os cacos das coisas que se reconstitui um passado e se argamassa a história de um povo. Oswaldo Lamartine de Faria

Casa em taipa de pau a pique, Aparecida/PB. Foto: Átila Tolentino.



Casa do Patrim么nio de Jo茫o Pessoa


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