Revista Reticências N. 05 2015.1

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MODELOS ALTERNATIVOS DE ENSINO Conheca escolas com metodos pedagogicos diferentes

EDUCAÇÃO SEXUAL & QUESTÕES DE GÊNERO

Ensino e Ressocialização

Juvemtude que vive às margens da educação e da sociedade

CONHECIMENTOS POPULARES Saberes culinários que passam de geração em geração

Estudante africana fala da experiência de viver no Brasil

Relato de abusos sofridos em ambiente escolar

As mudanças na lei em relação ao ensino religioso


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RETICÊNCIAS Revista produzida pelos alunos de Jornalismo Impresso I do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará

2015 UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ REITOR HENRY DE HOLANDA CAMPOS VICE REITOR CUSTÓDIO LUÍS SILVA DE ALMEIDA

DIRETOR do INSTITUTO DE CULTURA E ARTE (ica) Sandro Thomaz Gouveia

COORDENADOR DO CURSO DE jornalismo RAFAEL RODRIGUES DA COSTA

EXPEDIENTE TURMA ALAN KITIL ALINE MEDEIROS ana BEATRIZ LEITE ANA RUTE RAMIRES ÁVILA SOUZA OLIVEIRA CAIO VITOR CARLOS EDUARDO FREITAS CAROLINA MELO CLARYCE OLIVEIRA DANIEL DUARTE DIEGO BARBOSA FILIPE PEREIRA FLÁVIA OLIVEIRA

INGRID OLIVEIRA ISABELA ARRAIS IURY FIGUEIREDO JULIA IONELE KAMYLLA KAREN LARISSA PEREIRA MARCELO MONTEIRO MICHEL MIRON NÍCOLAS PAULINO RAFAEL BASTOS THEYSE VIANA TÚLIO CARVALHO PROFESSOR DANIEL DANTAS LEMOS

PROJETO GRÁFICO Yuri leonardo capa ÁVILA SOUZA OLIVEIRA diagramação ÁVILA SOUZA OLIVEIRA ANA BEATRIZ LEITE DANIEL DUARTE FILIPE PEREIRA INGRID OLIVEIRA NÍCOLAS PAULINO THEYSE VIANA

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SUMÁRIO

6 EDITORIAL

OS "3 IDIOTAS" E SEUS SABERES

8 REPORTAGEM

A LUTA LGBT PARA PERMANECER DENTRO DO ÂMBITO EDUCACIONAL

12 PERFIL

AUTODIDATA: O SABER MOLDADO COM AS PRÓPRIAS MÃOS

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TEMPEROS E TRADIÇÕES

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19 ARTIGO

REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NA PÁTRIA EDUCADORA

21 ENSAIO

MAR DE GENTE

26 ENTREVISTA

REFLEXÕES DE UM CRISTAL TRANSPARENTE

30 PERFIL

SABERES ALÉM-FRONTEIRA


34 ENSAIO

HISTÓRIAS A FIO

38 REPORTAGEM

JUVENTUDE DO LADO DE LÁ: AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS E A MAIORIDADE PENAL

52 ENTREVISTA

O SAGRADO É DE TODAS AS RELIGIÕES

54 ENSAIO

VIDA NA IGREJA

44 REPORTAGEM

INCLUIR PARA EDUCAR, EDUCAR PARA INCLUIR

49 REPORTAGEM

MÉTODOS PEDAGÓGICOS DE AVALIAÇÃO 2015.1 RETICÊNCIAS

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EDITORIAL POR Daniel Dantas Lemos

Bem mais que três idiotas

‘3 IDIOTAS’ É UM filme indiano de comédia lançado em 2009, dirigido por Rajukmar Hirani. O longa é uma adaptação do romance “Five Point Someone” de Chetan Bhagat A película já possui um remake, lançado três anos depois, tão grande o seu sucesso. O original quebrou o recorde indiano de vendas na estreia e guardou a maior bilheteria do primeiro fim de semana em cartaz. É um dos poucos filmes a ostentar a média de 100% de críticas favoráveis em todo o mundo, pelo site Rotten Tomatoes. “3 idiotas” conta a história de três colegas que superam os desafios da vida pessoal e escolar juntos na faculdade de Engenharia e alcançam muitas conquistas através de sua amizade.

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Há seis semestres, a disciplina de Jornalismo Impresso I oferece, a mim e aos alunos, um desafio. Trata-se de uma disciplina teórico-prática – e nossa tentativa é dar esse viés, mais prático, ao conteúdo proposto. Desse modo, surgiu a partir de um diálogo com a turma de 2012.2 a ideia de criarmos uma revista – a Reticências –, na qual a turma poderia experimentar todas as etapas da produção de um veículo impresso, além de realizar a possibilidade de escrever textos em diferentes gêneros do jornalismo. A partir de então, o desafio mudou de figura: conseguir terminar a edição da Reticências seguindo parâmetros que permitam à UFC sua publicação. Em 2015.1, chegamos novamente diante do dilema e do desafio. Como regra na produção, apenas o formato. Cabe aos alunos definirem tema e pautas a partir de um filme assistido em sala. Nos últimos semestres, em vez de uma decisão unilateral do professor, a escolha do filme também coube aos alunos – a partir de uma lista com três opções. A edição atual da revista Reticências traz como tema geral “Saberes”. Sua escolha se deu a partir do lindo e doce filme indiano “3 idiotas”. O longa discute os modelos de educação possíveis a partir da experiência de três amigos, Rancho, Fahran e Raju, em uma faculdade de engenharia indiana. A faculdade impõe sobre os alunos seu modelo de disputa


e competição. Rancho conduz seus amigos a uma experiência libertadora de aprendizagem. No fim, “tudo está bem”. Mas “3 idiotas” é, acima de tudo, um afetuoso filme sobre amizade e amor, que também emergem como valores fundamentais para o ensino-aprendizagem. Em uma sociedade milenar como a indiana, os saberes mais antigos, aliados à inovação e à cooperação, são enfatizados ao longo de toda película. É daí que partiram os estudantes para a escolha do tema e das pautas deste número de Reticências. E você, como eu, vai se emocionar com histórias de superação de marcas e traumas pessoais, com experiências de auto-aprendizagem, com cada um dos belos ensaios fotográficos, com os relatos de aprendizado em comunidades da periferia, espaços de luta e até mesmo dentro dos “aconchegantes” ônibus urbanos da cidade de Fortaleza. Esta revista resulta da atividade prática da turma do 4º semestre do curso de Jornalismo da UFC. Uma turma que, com todo o seu afeto, carinho e amizade, me propiciou muito prazer em nossa experiência de ensino e aprendizagem. Um turma que me ensinou muito mais do que eu jamais poderia ser capaz de ensinar. Bem mais que três idiotas, levo no coração Ranchos, Fahrans e Rajus.

3 IDIOTAS (2009) Fahran, Rancho e Raju em aula na Universidade Imperial de Engenharia (Imperial College of Engineering, ICE)

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REPORTAGEM POR Alan Kitil Aline Medeiros Isabela Arrais Medeiros Iury Figueiredo Túlio Carvalho FOTO Isabela Arrais Medeiros

A luta LGBT para permanecer dentro do âmbito educacional O sistema educacional brasileiro, tanto público quanto privado, enfrenta diversos problemas de assistência a estudantes LGBT.

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sistema educacional brasileiro vigente já não contempla mais os interesses de uma parcela significativa daqueles que compõe esse setor. Segundo pesquisa realizada pelo Ibope para a Fundação Victor Civita, 94% dos professores alegam que a dificuldade de aprendizagem dos alunos são advindas da falta de assistência e acompanhamento familiar; 89% citam o desinteresse e a falta de esforço do aluno; 84% dizem ser decorrente do meio em que o aluno vive. Apenas 7% dos professores acreditam que parte dos alunos entrará em uma universidade. O sistema educacional público, seja na educação superior ou na escola inicial, enfrenta diversos problemas acerca da

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assistência e permanência dos estudantes. Ao tratar-se de estudantes LGBTs, esses problemas aumentam. Estas pessoas sofrem diariamente com preconceitos e discriminações pela sociedade em diferentes fases da vida. Durante a vida estudantil não é diferente. Por estarem inseridas na sociedade, as escolas e as universidades podem se tornar ambientes que perpetuam opressões e outros preconceitos. O sistema e as demais pessoas que compõem esses ambientes não estão preparados para entender, conviver e auxiliar pessoas com outras identidades de gênero e sexualidade. Diferenças entre o sistema público e o sistema privado de ensino podem ser percebidas. “Eu não posso dizer a razão, mas eu

digo que em instituições privadas a expressão LGBT não acontece ou acontece muito menos do que na pública. Inclusive eu já trabalhei em colégios regulares, particulares, e eu noto que aqueles que são gays são mais discretos. As razões eu não posso dizer porque eu não estou no mundo deles. Mas foi isso que eu notei”, afirmou o professor Otávio Martins, que trabalha em uma instituição privada e é ex-aluno de escola pública. As dificuldades também são sentidas quando se passa da escola para a universidade, por exemplo. “Por incrível que pareça, na faculdade foi mais difícil que na escola. Na escola, toda a minha trajetória escolar foi acompanhada por pessoas que cresceram junto comigo, que passaram vários anos juntos comigo. Quando eu cheguei na universidade as pessoas não sabiam da


minha trajetória, então não tinha como elas terem a mesma relação de respeito. Então as pessoas achavam que eu era um gay andrógino, que eu era um gay com traços femininos muito fortes, que mais parecia uma mulher, mas que se vestia como um menino”, declarou a estudante de Letras da Universidade Federal do Ceará, Sílvia Cavalleire. Sílvia é transexual e foi candidata a deputada estadual nas últimas eleições. Segundo o escritor Pedro Sammarco, o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais, sendo a expectativa de vida dessas de 35 anos. Sammarco é autor do livro “Travestis Envelhecem?”, que aborda a temática. Além disso, 90% desse grupo se prostitui de acordo com a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Isso porque muitas são expulsas de casa e não conseguem termi-

nar os estudos. Além disso, sofrem com o fato de, a príncipio, não se compreenderem. Isso se deve pelo julgamento feito pela sociedade. “A nossa sociedade simplesmente faz de conta que não existe, que não interessa, da mesma forma que a violência contra a mulher é banalizada, e assim, trinta anos é um absurdo. É uma vida de trinta anos que você não teve oportunidade de nada; trinta anos e você não teve nem seu nome garantido, você morre sem nenhum direito, muitas vezes morre como indigente, a família não vai pegar o corpo. Mas é esse contexto que a sociedade constrói. Ao mesmo tempo em que a pessoa não consegue estudar lá na infância, ela vai ser alvejada na rua e morta como uma indigente, porque ela nunca teve nenhuma oportunidade”, afirma Lú Sousa, assistente social e mulher trans.

O período escolar e universitário é extremamente marcante para a vida de todos, mas nem sempre guarda boas lembranças. Para Lú Sousa, foi a fase mais difícil de ser enfrentada em sua vida. “A escola, com certeza, foram os piores anos. Se você é gorda você sofre preconceito, se você é tímido você sofre preconceito, se você é negro você sofre preconceito. E no primeiro momento nenhum transexual vai sofrer um preconceito transfóbico, vai sofrer uma homofobia. Porque na escola as pessoas não sabem o que é transgênero, então primeiro preconceito é sempre oriundo do preconceito homofóbico. Sofri muito preconceito por parte dos professores. Os professores são os maiores reprodutores da heteronormatividade e do binarismo, porque eles reafirmam isso em sala de aula. A escola não tem espaço para o diferente”.

Se você é gorda você sofre preconceito, se você é tímido você sofre preconceito, se você é negro você sofre preconceito. E no primeiro momento um transexual vai sofrer uma homofobia.

Reconhecer a pessoa trans é reconhecer a cidadania 2015.1 RETICÊNCIAS

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Questões que podem parecer banais, como o simples fato de utilizar os banheiros nas escolas e nas universidades, passam a ser um desafio para pessoas transexuais. “O maior conflito foi quando eu fui usar o banheiro feminino. Era dia do meu aniversário de 18 anos, eu escolhi ir travestida para a universidade por que aquilo tinha muito significado pra mim. Eu estava atingindo a maioridade e poderia expressar o desejo de ser quem eu era, que era ser uma mulher. Só que algumas meninas da faculdade se sentiram incomodadas com a minha presença quando eu adentrei no banheiro”, conta Sílvia Cavalleire. O sistema educacional não parece ter abertura para as discussões LGBTs. Otávio Martins, que afirma ter estudado em uma escola que possuía um horário reservado para a aulas de educação sexual, identifica falhas nesses estudos: “A questão é que só foi exposta apenas a relação heterossexual. Só era visto reprodução, relação sexual entre homem e mulher... Eu tive que descobrir a homossexualidade sozinho”, diz o professor. Na escola em que trabalha, Martins afirma que “pontualmente, em algumas páginas do material didático que corresponde ao nível intermediário para avançado, que já são idades entre treze anos e idade adulta, existem algumas abordagens, mas coisas superficiais.” Assim como nos meios educacionais, os ambientes de trabalho são intimidadores e repressores. Segundo um levantamento feito pela consultoria Santo Caos, 40% dos trabalhadores LGBTs já sofreram algum tipo de preconceito dentro do espaço de trabalho. Dentre esses profissionais estão os da educação. Ou seja, não só os alunos sofrem por sua orientação sexual ou identidade de

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gênero, mas também os professores e profissionais da área de educação. O relato de Otávio deixa claro que constrangimentos acontecem até na relação entre os próprios educadores:

Uma criança de cinco anos já é vítima de preconceito dentro de uma escola se ela quiser brincar com um brinquedo que é do sexo feminino e o oposto também.

“O que aconteceu exatamente foi que eu estava numa mesa, na sala dos professores, contanto algumas coisas sobre mim, sobre gostos musicais e tudo mais, e uma pessoa que estava presente lá e que não tem vínculo social comigo a não ser esse do trabalho comentou com outra pessoa dentro do mesmo ambiente. E, devido o meu comportamento ali naquele momento existia alguma coisa que ela estaria confirmando naquela hora. Ela cutucou uma pessoa e disse: ‘olha, ta vendo aquilo que eu disse? Pois é, não tem como negar.’ Então, através disso, ela estava insinuando que eu sou homossexual sendo que ela não tinha perguntado diretamente a mim.”


Otávio, que afirma não esconder de ninguém a sua sexualidade, diz ter se sentido desconfortável diante dessa situação pelo fato das pessoas estarem discutindo a sua identificação sexual sem antes perguntar a ele. “Eu não tenho esse tipo de problema, quando as pessoas perguntam para mim eu falo.” diz o educador. “Eu sou educador? Sou. Sou uma pessoa bilíngue? Sou. Sou respeitado no lugar onde eu trabalho? Sou. Mas eu também sou gay. E eu usei até um contraste, eu usei ‘mas’, não é? Eu teria que adicionar: E sou gay também. Porque ser gay não é algo que contraste com todas as habilidades e qualidades que eu tenho na vida. A minha ideia é essa”, diz Otávio. E quando questionado sobre como melhorar a educação para o público LGBT mesmo di-

ante de tantas dificuldades, ele defende: “A minha ideia é: se você não pode falar com todas as letras, aja como você age em qualquer lugar. Não mude a sua atitude para que as pessoas que tiverem essa percepção e tiverem esse discernimento de identificar através de trejeitos ou aspectos culturais aprendam a respeitar vendo isso tudo. Vendo que a pessoa além de qualquer outro fator você está ali cumprindo o seu papel independente de qualquer preferência ou orientação.” Para Lú, a solução está na formação dos educadores. “Hoje isso é falado em sala de aula e as pessoas não fazem nada. Isso é compreendido enquanto uma condição humana e você não vê ninguém fazendo nada. O que poderia ser feito? Se a escola formasse professores que compreendessem

isso desde o pré, porque não é preciso você estar em um processo de hormonização pra você sofrer preconceito, uma criança de cinco anos já é vítima de preconceito dentro de uma escola se ela quiser brincar com um brinquedo que é do sexo feminino e o oposto também. Então, o maior desafio é a formação do professor, se ele quer realmente estar formado, se ele quer realmente entender. E aí vamos ter n elos, é a formação, é a questão familiar, são os princípios desse professor, porque, muitas vezes, ele vai colocar o que ele pensa diante do outro, o que ele pensa, ele leva pra sala de aula e reproduz isso”, conclui.

Não mude a sua atitude para que as pessoas que tiverem essa percepção e tiverem esse discernimento de identificar através de trejeitos ou aspectos culturais aprendam a respeitar vendo isso tudo.

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PERFIL POR Alan Kitil Caio Vitor Daniel Duarte Flávia Oliveira Rafael Bastos Túlio Carvalho

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udo começou quando trabalhava produzindo arte serigráfica em camisetas. Junto com uma amiga, decidiu se lançar no mundo do couro para aprender os primeiros passos da confecção pela internet, em vídeos e artigos. A amiga desistiu, mas Panassol continuou. A internet é essencial para seus trabalhos. Não apenas onde começou, mas é, ainda hoje, o principal meio de divulgação de sua arte e seus produtos. O sucesso de Diego é exemplo de que o impulso empreendedor e o esforço artístico são poderosos aliados. O mercado, como conta Panassol, deu espaço para que ele descobrisse seu lugar profissional e a expressão como artista. Torna-se um ciclo de conhecer o consumidor, o ambiente e a si mesmo. Diego, quais são suas principais especialidades e como você conseguiu desenvolvê-las? Ao longo do caminho, fui estudando e construindo minha marca. Tenho a preocupação estética e física das peças, mas também tenho a preocupação com o processo da gestão e da comunicação.

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Autodidata

Diego Panassol, 24, já passou pela universidade, mas seu trabalho, formação e experiência técnica devem muito pouco à academia, segundo o próprio. Diego é designer autodidata e ganhou destaque no cenário cearense e brasileiro com a confecção de artigos de couro, especialmente sapatos e bolsas com traços e características regionais.


Na labuta você aprende novas técnicas, desenvolve ferramentas, aprende também sobre valor de mercado, valor de produtos e custo de mão de obra. Já sobre comunicação, aprendi a exercitála e amarrar os pontos de diálogo e transferência de informação. Como é seu processo de produção e quem é seu público alvo? É preciso preparar modelagens em uma fôrma e transferi-las para o corte no couro, costurar o cabedal do sapato e depois passar para a parte de colar a peça. A produção das peças é variável, há dias que chego a concluir 20 pares, por isso o trabalho chega ao limite da exaustão. Sobre o público, no geral, direciono minha produção para o público feminino, entre 20 e 40 anos Como a internet faz parte do processo de aprendizado autodidata e do aprimoramento do seu trabalho? A internet foi o começo do meu aprendizado, sem essa plataforma talvez eu não teria começado. Ela faz tanto efeito na minha produção que, por ora, é meu único canal de divulgação e de vendas. O conhecimento está aí, dando sopa no universo, o que resta é a gente correr atrás e pegar. Quais as referências artísticas que te ajudam a compor seu trabalho? Eles trilharam caminhos parecidos? O ato de criar, como diria Herchcovitch, é expor ao mundo um sentimento. Daí a criação vem da tua bagagem cultural: dos livros, dos filmes, cores, perfumes. Eu venho das artes e isso me influencia bastante. Tive também um apreço enorme por aspectos da arte, como o desenvolvimento e uso de texturas e de como as coisas sob função de curadoria e experiência agregam valores incríveis. O ser por si só é criativo, o que diferencia de fato a criação é o próprio criador.

O que você acha do processo acadêmico tradicional? Eu não consigo seguir esse tradicionalismo de ir para a faculdade todo dia. Nas Universidades, o ensino ainda segue o método tradicional: um mediador vomitando informações de alguns teóricos sobre os alunos. Se vê pouco debate, pouco questionamento, pouca construção, já passei por isso em dois anos de curso na Unifor. Mas eu também sei que o ensino superior público tem uma pegada mais teórica e aprofundada, diferente do particular. Você ainda tem planos de fazer alguma universidade? Eu abandonei Publicidade e Propaganda e fui estudar Marketing. Esse semestre tive que trancar os estudos por conta da produção, mas pretendo voltar ainda esse ano. Queria ter um contato mais técnico na área calçadista mesmo. Existe um curso pelo Senai SP, em Franca. Tem outro curso em Milão que andei dando uma olhada, mas também existe na França, Nova Iorque. Lá fora, as pessoas entendem moda como investimento pessoal e mantém a cultura de se pensar, debater e produzir moda com qualidade e coerência.

O ser por si só é criativo, o que diferencia de fato a criação é o próprio criador.

Seguir o próprio caminho é muito difícil. Pensar com a própria cabeça é o mais corajoso dos atos. Não sei se consigo passar uma receita ou uma lista, pois tudo pode ser extremamente variável. Porém, se você deixar de olhar para as dificuldades de maneira negativa, você poderá ver que cada uma delas podem se transformar em plataformas de aprendizado. Tudo é custoso, sim, mas nada impossível, mas apenas talento não é suficiente.

O que você diria para as pessoas que pretendem seguir o mesmo caminho de aprendizado? 2015.1 RETICÊNCIAS

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TEXTO Nome Sobrenome FOTO Nome Sobrenome POR Ana Beatriz Leite Carlos Eduardo Freitas Carolina Melo Ingrid Oliveira Marcelo Monteiro FOTOS Carlos Eduardo Freitas

CRÔNICA

REPORTAGEM

Temperos e Tradições O sabor do momento é acompanhar os festivais de comida, visitar food trucks e avaliar as novas tendências da comida gourmet. Mas, apesar disso, a tradição na alimentação ainda continua viva nos pratos cearenses.

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m várias famílias do Ceará, é comum encontrar uma receita de um bolo, uma carne, ou qualquer outro prato que é repassado de geração à geração. Esses pratos costumam ser a estrela dos banquetes em família, em que alguns conseguem tanta fama que ultrapassam os limites sanguíneos e viram um sucesso regional. Isso foi o que aconteceu com o Seu Manuel Martins, mais conhecido como “Seu Manuel do QuebraQueixo”, famoso em toda a cidade de Jaguaruana. Ele conta que ficou conhecido na região por causa do doce, receita que aprendeu ainda jovem. “Eu era solteiro e trabalhava com um senhor aqui, o Xandoca, ele fazia esse quebra-queixo e não ensinava a ninguém, mas eu lutando com ele, consegui aprender”, explica. Em um momento de necessidade financeira, Seu Manuel decidiu utilizar a iguaria para conseguir dinheiro. “Quando fez um ano que casei, eu estava desempregado, sem nada. Então me lembrei do doce, consegui arranjar uns cocos e açúcar e fiz o quebraqueixo. Foi o primeiro que eu fiz, isso em 1962, há 53 anos”, revela o doceiro. O sucesso foi tanto que ele não deixou mais de fazer a receita e continuou a vendê-la nas ruas da cidade, nas escolas e até a domicílio, garantindo uma freguesia fiel que começou a buscar o doce até na sua casa. “Eu faço duas vezes na semana”, diz Manuel. “São dez quilos de açúcar, cinco de cada vez que eu faço. Eu coloco aqui, e o povo já sabe, vem comprar aqui mesmo”, conta. Seu Manuel ainda garante que não existe quebraqueixo mais gostoso que o dele em todo o estado do Ceará. “Uma vez, em Fortaleza, eu conheci um senhor


só na família de Seu Manuel, mas também em toda a região da cidade de Jaguaruana. O prato é um exemplo de saber culinário que é transmitido através de gerações. E se engana quem pensa que a culinária está restrita somente ao lugar da cozinha e à mesa onde a comida é servida. A antropóloga Peregrina Capelo, professora aposentada da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que “a forma como a gente come, a forma como a gente prepara os alimentos, a forma como a gente cria os animais, abate esses animais, os vegetais, as frutas e os legumes, tem tudo a ver com a cultura em que as pessoas estão imersas”.

Saberes e sabores

que vendia quebra-queixo da 13 de Maio para a Praça da Sé. O quebra-queixo dele era muito alto e muito tostado, duro. Em Aracati, eu conheci um que fazia, mas era muito mole.”, relembra o jaguaruanense. Com uma receita simples que leva apenas quatro ingredientes, Seu Manuel conquistou o paladar dos cearenses. Açúcar, coco ralado, suco de limão e uma pitadinha de tempero de erva doce completam o manjar mais disputado de Jaguaruana, desejo até de mulheres grávidas. “Quem mais perturba por esse quebra-queixo é mãe gestante. Já chegou aqui gente dez horas da noite pedindo pra eu vender”, conta o doceiro. Mesmo depois de todos esses anos, Seu Manuel continua a produzir o doce, apesar da desaprovação dos filhos, que zelam pela sua saúde, mas já aderiram à tradição da família. “Agora com a minha idade, meus meninos não querem mais que eu faça, porque é meio trabalhoso, mas eu gosto de fazer. O meu menino faz e faz bem. Quando eu estava doente, há uns dias atrás, meu filho disse que viria aqui raspar os cocos e ajudar. Ele mesmo fez tudo completo”, relata orgulhoso. QUEBRA-QUEIXO O quebra-queixo A principal virou tradição não característica do doce é

De acordo com a antropóloga, cultura é toda forma de pensar, agir e sentir de um povo, e a gastronomia não poderia ser deixada de fora. “O que se come está diretamente relacionado com a história e as condições em que um povo está inserido e, mesmo com as mudanças nos contextos sociais e econômicos, os hábitos familiares continuam a ser reproduzidos através das gerações”, explica. Ela diz que “os filhos apreendem o saber de seus pais”, que, por sua vez, o apreenderam de seus avós e assim sucessivamente, surgindo as tradições familiares, que muitas vezes ultrapassam esse âmbito e se tornam tradições locais. A culinária que hoje conhecemos como típica do Nordeste foi extremamente influenciada pelos portugueses. Segundo Peregrina, eles “fizeram uma verdadeira revolução agrícola no mundo. Trouxeram plantas, animais, legumes e grãos”. Ela complementa que “a criação de gado também não era costume dos indígenas, mas sim algo que foi trazido pelos europeus e que se tornou de extrema importância na formação do nosso paladar”. O gado era um de nossos produtos mais importantes: funcionou como fator de ocupação, alimentação e até religioso, como é o caso do bumba meu boi, um folguedo típico da região Nordeste do Brasil. De acordo com Peregrina, essa valorização do

a sua difícil mastigação

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animal não é à toa, afinal, “dele se aproveita tudo: a peregrina carne, os chifres, o couro, os A antropóloga fica ossos”, entre outras partes. animada ao explicar Surgiu, portanto, toda uma sobre práticas alimentares. arte alimentícia a partir das diferentes carnes do boi, que foi combinada com as diversas outras culinárias que já existiam aqui. “Elas vieram se juntando e formaram todo esse caldo cultural, que tem toda uma superestrutura econômica de produzir juntamente com o poder”, comenta a pesquisadora ao relacionar as culturas portuguesa, indígena e africana. Além da criação do gado, também herdamos dos portugueses técnicas de conservação de alimentos através da gordura, da farinha e do açúcar. A professora cita o exemplo de conservação do queijo, alimento Vivemos em uma era de espetacularização da extremamente gorduroso, através da farinha: “Os alimentação. Reality shows de comida,Food Trucks, queijos eram guardados o ano inteiro dentro de caixas gourmetização, etc. É preciso que o alimento posto de farinha para manter o frescor deles. Todas as casas no prato tenha uma boa apresentação para que seja tinham essas caixas enormes cheias de farinha, que fácil fotografá-lo e compartilhar o resultado nas era a farinha que a família fazia. Porque dentro da redes sociais. Conhecido por fotos mais trabalhadas, farinha o queijo respirava”. o Instagram pode oferecer uma galeria de pratos Os fazeres herdados dos portugueses, porém, decorados, onde dificilmente são vistas fotos do nosso foram reinventados e se transformaram em algo típico velho feijão com arroz. A antropóloga Peregrina da região Norte e Nordeste do Brasil. O hábito de usar aponta essa mudança nos hábitos alimentares dos farinha é até hoje mantido por diversas famílias, como brasileiros como “resultado da globalização e da é o caso da família da antropóloga. “Quando eu chego urbanização”; na casa de uma filha minha, por exemplo, Ao relembrar o passado, ela afirma que eu encontro farinha de milho pra fazer o no mercado dos Pinhões “tudo era fresco”. pão-de-milho. Todos os meus filhos são “Hoje você entra nesses supermercados, loucos por farinha” revela. Da farinha A antropóloga aponta cheios de coisa congelada: os hambúrgueres, de mandioca, típica da região Nordeste, essa mudança nos os kibes, as carnes, os frangos”, lamenta. derivou a tapioca, e as farinhadas, então, explica que isso ocorre “porque hábitos alimentares Peregrina ganharam um propósito diferente. o capital hoje, para se reproduzir, precisa dos brasileiros de pressa”, e complementa que a relação A vendedora Vanuza dos Santos conta que, ao fim das farinhadas em sua como “resultado da vendedor-freguês é “mais difícil”. “Você não família, a tapioca maior era prêmio para tem mais a relação direta com seu freguês, globalização”. a filha que fizesse o melhor trabalho. “A com quem você compra a carne a vida inteira, gente arrancava a mandioca, raspava com quem você compra milho, feijão... Hoje e, pra fazer a tapioca, éramos nós, as se encontra tudo isso no supermercado”, diz. mulheres, que espremíamos a massa para fazer a A professora cita ainda o fenômeno dos fast goma. A nossa mãe até brincava que, quem espremesse food,cujo próprio nome que se dá a essas redes já mais, ganhava a tapioca maior, que tinha no final das faz referência à rapidez vital do capitalismo. “Essas farinhadas”. empresas que estão em toda parte proporcionam Os saberes culinários eram passados de mãe para alternativas ao paladar das pessoas, que, por não filha, conta Vanuza. “A gente tinha que fazer mesmo, possuírem tempo suficiente para se alimentar, deixam pois as mães da gente saíam pras casas de farinha, pra de lado comidas típicas dos seus roça, e a gente tinha que fazer comida. A mãe ensinava lugares de origem e dão espaço a esses pra mais velha e a mais velha ia ensinando pras outras produtos”, explica. Por causa disso, filhas”, lembra. A partir da alimentação, necessidade segundo Peregrina, alimentos como básica do ser humano, as tradições culinárias se carne do sol e a coalhada “as pessoas instauram e, mesmo com sua simplicidade, se não têm mais consumido tanto assim”. propagam através das gerações. Como qualquer “No máximo, a gente come tapioca, forma de cultura, porém, a gastronomia é fluida e as que agora tem em tudo quanto é lugar, formas de cozinhar mudam de acordo com a época. até em lugares chiques. Tapioca, que é “Não faço do jeito que a minha mãe fazia, hoje não tupi-guarani!”, explica a antropóloga tem mais como fazer”, revela a vendedora. relatando o processo de gourmetização que atinge até os alimentos tradicionais Pratos do dia e os reinventa a partir de uma nova fórmula de venda.

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POR Aline Medeiros

RESENHA

Pro Dia Nascer Feliz: A imersão nas escolas brasileiras

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documentário Pro Dia Nascer Feliz (89 min) do diretor João Jardim foi lançado em 2006 e fala da já tão debatida educação brasileira. No entanto, o filme traz uma vivência tanto da parte dos professores quanto dos próprios alunos que compartilham suas histórias de dentro e fora da sala de aula. João Jardim viaja por escolas do nordeste ao sudeste mostrando as dificuldades particulares de cada uma, passando pela falta de estrutura – como falta de higiene básica e salas de aulas precárias –, pelo desgaste dos professores, que tem que lidar com alunos trabalhosos e um corpo docente insuficiente, e pela falta de interesses dos alunos, dos quais muitos se envolvem com a criminalidade, não respeitam os professores ou sofrem com a falta de estímulos para continuar a estudar. A primeira, com certeza a mais precária do filme, é a Escola Dias Lima localizada no interior de Pernambuco, em Manari. A baixa qualidade da educação é tão gritante que faltam recursos didáticos, o corpo docente, embora muito esforçado,

não tem uma formação acadêmica necessária para suprir a demanda da educação para os próprios vestibulares. Estruturalmente, falta, na escola, condições básicas de saúde, como banheiros de qualidade, papel higiênico, pias para lavar as mãos. Isto se dá por conta da falta de verba repassada para a manutenção desta. A dificuldade para os alunos se inicia na hora de ir para a escola, que, por ser longe, necessita de um ônibus que os levem até o local, este muita vezes em péssimas condições para a segurança dos alunos. Durante o documentário, fala-se que Valéria – a estudante que estava sendo acompanhada pela equipe –, em duas semanas, só foi para a escola três vezes. O Colégio Estadual Guadalajara, localizado em Duque de Caxias (RJ) é a segunda escola a ser retratada. Nesta é importante destacar a história de Douglas, um aluno prestes a entrar no ensino médio. Com o ensino fundamental terminando, ele não possui nota suficiente para passar para o Ensino Médio, a partir daí entra o conselho estudantil. Douglas estava começando a se envolver com

a criminalidade e as drogas e deixando a escola de lado. Para o conselho, reprovar Douglas só o desistimularia mais e o faria desistir da escola, se envolvendo cada vez mais na criminalidade. Ainda, nem tudo é negativo na vida de Douglas, este se envolve com projetos culturais de música, sobretudo de raiz africana, para os professores isso pode ser sua salvação. O aluno também fala de seus sonhos, como entrar no colégio do exército, garantindo, assim, uma melhora para sua vida. A terceira escola já mostra uma realidade melhor. Localizada em Itaquaquecetuba (SP), os alunos fazem parte de uma classe média/baixa. No entanto, ainda se apresentam problemas bem comuns em outras escolas públicas, como falta de professores, falta de interesses os alunos. Além disso, percebese a dificuldade financeira, como na tentativa de montar um cinema para os alunos, que acaba não dando certo. Uma das partes mais marcantes e mais corretas dessa parte é a frase: “Tá todo mundo cansado de ouvir os problemas da educação, mas ninguém faz nada.” O Colégio Santa Cruz é, com certeza, o mais diferente de todos. Colégio particular localizado no bairro Alto de Pinheiros (SP) traz uma estrutura de primeiro mundo e alunos da elite paulista. Nesta parte, irá mostra mais a vida pessoal dos alunos, suas concepções de mundo, relacionamentos amorosos, estudos, relações com os pais, mostrando dificuldades cotidianas de adolescentes como que universidade escolher, a solidão, problemas psicossomáticos, entre outros. A última é, de fato, a mais problemática. A Escola Levi Carneiro (SP) é pública, porém, além dos problemas estruturais presentes nas escolas do Brasil, a criminalidade nesta é um fator marcante. No filme, relata-se a morte de uma aluna, causada por uma briga. Isto, segundo os professores, tem relação direta com os pais. Dessa forma, o filme nos faz imergir no cotidiano das mais diferentes escolas do Brasil. Trouxe as mais diversas experiências e, através da história contado pelos próprios alunos e professores, traz a reflexão de para onde segue a educação brsileira. 2015.1 RETICÊNCIAS

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O Cinema de Pier Paolo Pasolini Libertação do Pudor e do Autoritarismo Moral

POR Rafael Bastos

RESENHA O italiano Pier Paolo Pasolini notabilizou-se no cenário cinematográfico europeu dos anos 60 e 70 tanto pela sua ousada narrativa poética (principalmente em suas adaptações para textos clássicos de tragédias gregas, em que os planos sucedem-se em belas sequências abstratas e oníricas) quanto por sua ácida crítica e sátira aos costumes da sociedade burguesa e à rigidez clerical que rege até hoje as prerrogativas morais da sociedade europeia. Notório comunista, apesar de crítico do reacionarismo marxista e das repúblicas socialistas totalitárias dos anos da União Soviética, e homossexual declarado, Pasolini legou em sua filmografia obras de profundo caráter político e subversivo, com reflexões acerca da liberdade sexual, regimes totalitários e costumes tradicionais da vida civil burguesa. “Comício de Amor” (1965) é um documentário em que Pasolini atravessa a Itália entrevistando do mais simplório italiano a representantes da elite acadêmica italiana sobre coisas relativas a sexualidade, denunciando dessa maneira o extremo pudor moral dominante na sociedade europeia. Clássicos políticos como “Pocilga” (1969) e “Saló ou os 120 dias de Sodoma” (1975) trazem profundas reflexões sobre a relação do capital com regimes totalitários e a desumanização generalizada que a radicalização desses conceitos pode gerar.

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Pasolini ainda adaptou para o cinema renomadas tragédias gregas, como “Medéia” (1969) e “Édipo Rei” (1967), que, junto com o clássico “Teorema” (1968), formam o início do ápice estético da carreira do cineasta, em que o rigor da composição do plano sublima-se numa montagem rítmica desenhando-se em uma estrutura narrativa poética e erótica sobre a natureza humana. O Diretor italiano soube como ninguém captar o confronto entre os instintos mais primitivos e sexuais do ser humano contra a prisão e barreiras dos códigos morais burgueses e clericais. Apesar de “ateu”, a adaptação do diretor para o evangelho de São Matheus é uma das principais obras religiosas de todos os tempos, reconhecido inclusive pela Igreja Católica. Suas obras são ambientadas nas mais diversas fases do decurso da humanidade. No início dos anos 70, com o lançamento dos três filmes da renomada “Trilogia da Vida”, Pasolini consegue com primor diluir sua madura retórica política na sua estética poética. A trilogia – dividida em “Decameron “(1971), “Os Contos de Canteburry” (1972) e “As Mil e Uma Noites “(1974) - consiste em adaptações de clássicos da literatura erótica, terreno fértil para que Pasolini desenvolva seu pensamento e ideal cinematográfico ao limite de suas possibilidades. As três obras consistem em narrativas anedóticas centradas em classes populares pobres e marginalizadas. Os contos notabilizam-se por seu erotismo e humor satírico, distribuídos em histórias de traição, orgias e relações sexuais proibidas. Pasolini

abre o painel de uma sociedade anarquizada, pautada pela pureza das relações sexuais e do amor a todo custo, resistindo ao pudor dos dogmas religiosos e preconceitos cristalizados nas hierarquias sociais. Genitálias e cenas de sexo são humanizadas e filmadas em primeiro plano. Para o diretor italiano, não existem tabus e barreiras, apenas a poética do corpo humano entregue aos seus instintos mais primitivos. Em “As Mil e Uma Noites”, Pasolini adapta à sua maneira a “estética do terceiro mundo”, desenvolvida pelo cineasta brasileiro Glauber Rocha, em que as nuances e a essência dos países subdesenvolvidos são captadas pela valorização do feio, da sujeira, do indivíduo marginalizado e corrompido pelo caos social. Porém, diferente de Glauber, Pasolini idealiza o subdesenvolvimento, insuflando o belo e o poético em pessoas que confrontam o ideal de beleza clássica (os personagens são desnutridos, banguelos e pobres), dos recantos mais pobres e castigados do mundo árabe. A narrativa é centrada no amor impossível de dois jovens, que precisam superar as mais diversas barreiras para concretizarem sua união (analogias à desumanização das relações capitalistas são claras). Para o diretor italiano, a sexualidade ganha contornos espirituais e a verdadeira liberdade e autoafirmação das classes está na revolução sexual e do amor livre. A exortação ao primitivismo do sexo e do amor é o nó que une a humanidade em meio a rigidez das diferenças de classes.


POR Iury Figueiredo

Redução da maioridade penal na Pátria Educadora

ARTIGO

A

Pátria Educadora não quer mais educar. Como uma mãe que nega seus filhos por suas mal criações sem assumir que a culpa de tudo isso é dela. E pensar que dizemos, todos os dias, que esta pátria amada é mãe gentil. Não há gentileza em negligenciar necessidades básicas às crianças de nossa terra. E se tem uma coisa que nosso hino nacional tem razão é que esses filhos não fogem à luta. São maltratados diariamente por um sistema opressor, desde que se entendem por gente. Então eles lutam. Lutam com meios que possuem, pelas formas que aprenderam. O nosso estado, os nossos representantes políticos, a nossa elite, ensinaram a violência para estas crianças, e quando elas mostram o mal que aprenderam, todos estes citados anteriormente ficam surpresos. Privilegiados em seus carros de luxo com suas roupas caríssimas, eles gritam do alto de seus prédios que não há mais solução para aqueles jovens. Que eles entraram no crime porque querem e que já tem consciência do que fazem. Mais uma vez, o conservadorismo aponta para a vítima de seus males e coloca a culpa nela. Lembro de propagandas da minha infância que diziam que o lugar de criança e adolescente não era na rua, ou trabalhando, e sim na escola. Por que motivo estamos aqui, dez anos depois, cogitando a hipótese de colocar estes indivíduos que ainda estão em formação em celas sujas e em condições de vida muito abaixo do que se

pode chamar de precário? E vale lembrar que as nossas leis já possuem um sistema de privação de liberdade para menores infratores, e que, em tese, educa esses jovens para tirá-los da criminalidade. Não seria mais importante concentrar estes esforços em tornar funcional estes centros de ressocialização? Não seria essa a saída mais inteligente e com maior capacidade de resultado prático? Mas não é o que a elite conservadora pensa. Isso porque não interessa tanto a eles pensar e discutir tudo isso. Os filhos da elite estão protegidos pelo dinheiro de seus familiares e nunca são punidos (por exemplo, Thor Batista, filho do empresário Eike Batista). Não são os jovens dos prédios de bairros nobres que serão atingidos pela mudança dessas leis. São as crianças de periferia. São os adolescentes negros. São os jovens que a nossa sociedade negligenciou e que agora quer tirar da frente dos nossos olhos, esconder em baixo do tapete os males que criamos. Não se pensa em cuidar daqueles que agredimos, mesmo sem ser fisicamente. É preciso educar mais do que julgar. Porque a educação liberta o que a ignorância quer prender. Precisamos mais de livros do que de grades. Precisamos mais de escola do que de cadeias. Precisamos construir um futuro de liberdade e apagar estes pensamentos fechados que clamam por mais prisão.

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POR Carlos Eduardo Freitas FOTO Carlos Eduardo Freitas

RELATO

O Titanzinho e o Pirambu Podem até parecer diferentes, ou iguais, e são, ambos. O morador de uma periferia de Fortaleza sempre vai achar um bocadinho da sua em uma outra periferia de Fortaleza. Foi o que aconteceu na primeira vez que cheguei ao Titanzinho. “É o que chamamos de ilha”, essa foi a frase de entrada na área do Cais do Porto do Mucuripe. Aquele pedaço da cidade que só quem vai pra lá é quem realmente tem alguma coisa para fazer na região. Entre a Praia do Futuro, um ponto turístico, e o finzinho da Beira-Mar, um outro ponto turístico, pasmem: há mais um local para a turistada. Ou pelo menos deveria haver. O Farol do Mucuripe, cantado e adorado pelos fortalezenses de nascença e de vivência está entregue a Deus dará. A maresia, segunda maior do mundo, toma conta do prédio construído há quase duzentos anos e que representa uma parte viva da história de Fortaleza. Se não fosse o grafite do Grud e

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do pessoal do Concreto, dificilmente o poder público tomaria para si a proposta de revitalização (que até agora não aconteceu). Mas o Farol ainda resiste e a arte urbana pintada nele também. Assim como a comunidade que ali habita. Remoção deveria ser o sobrenome do bairro (ou de cada morador dali) se o houvesse. Viver sempre na espreita, na tentativa e na esperança de não ser desapropriado, de não ser jogado para um canto e depois para um outro, sempre em pé-de-fuga expulsos pela tão famosa especulação imobiliária. Se o estaleiro caiu, a vontade é de que o Aldeia da Praia também caia. Projeto esse que visa dar à comunidade um suposto lazer em uma área onde o pessoal já costumava viver, surfar e se divertir. Outro bairro da periferia de Fortaleza que sofre com as remoções e com a falta de apoio do poder público é onde eu moro, o

Pirambu. As ruas estreitas do Titan são iguaizinhas às do Pirambu: com o povo sentado na rua, conversando miolo de pote e rindo, galhofando; os bares do Piramba são points conhecidos que nem os do Titan, e da criatividade deles então... nem se fala. Comunidades que têm uma similaridade grande entre si e uma relação estreitíssima com o mar. E o Titanzinho foi o cenário perfeito para as histórias que conheci com o Coletivo Audiovisual ao qual atualmente faço parte. Em uma mostra de como a extensão universitária pode produzir saber e aprendizado para, com ela, relacionar o meu mundo com o alheio. O Pirambu e o Titanzinho têm mais similitudes do que qualquer um imagina, e só vivendo, sentindo e intervindo que faz sentido aprender com o corriqueiro, que muitas vezes é mais diferente do que também qualquer um imagina.


Mar de

Gente

POR Isabela Arrais

ENSAIO

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MAR DE GENTE Atirei-me ao mar Mar de gente onde Eu mergulho sem receio Mar de gente onde Eu me sinto por inteiro... O Rappa

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TEXTO Nome Sobrenome FOTO Nome Sobrenome POR Ana Rute Ramires Isabela Arrais Iury Figueiredo Júlia Ionele Kamylla Karen Larissa Pereira Marcelo Monteiro

CRÔNICA

ENTREVISTA

Reflexões de um cristal transparente

S

air de casa nem sempre significa liberdade. Mais do que independência, essa atitude pode significar a fuga aos abusos sexuais que podem aprisionar uma criança logo cedo. Isso foi o que aconteceu no passado de uma mulher cuja pele de cristal resistiu com firmeza aos impactos que arriscaram sua tenacidade. Helena Damasceno, 41, é universitária e autora de “Pele de Cristal”, livro publicado a partir de postagens em um blog homônimo, descrito pela escritora como “resultado de um processo terapêutico”. A terapia, por sua vez, veio após uma vida preenchida de traumas. “Eu tive comprometida toda a infância, toda a adolescência e o início da idade adulta”, revela, complementando que os abusos eram cometidos contra outros membros da família. “Minha família era incestogênica. Eu não fui a primeira e nem a última vítima do mesmo agressor”.

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Eu tive comprometida toda a infância, toda a adolescência e o início da idade adulta

Embora sua antiga casa sempre estivesse cheia de parentes, ela lembra que o agressor era “uma pessoa incontestável”, fator que “alimentava o silêncio da família”. “Ele é um cara acima de qualquer suspeita, com um comportamento reto, equilibrado”, afirma. Além disso, ela diz que “muito da violência acontecia de forma simbólica”. “Entre um olhar ameaçador, uma manipulação genital e um estupro não há diferença alguma”, declarando que “não existe fita métrica pra dor”. É surpreendente, porém compreensível, o fato de o agressor nunca ter sido denunciado por Helena. Nem mesmo a lei Joanna Maranhão, cuja prescrição começa a contar apenas a partir da data em que a vítima completa 18 anos, pode ampará-la. “Ela não me alcança mais porque só da violência em si já tem 20 anos que não acontece mais, então a lei não me alcança mais”, explica.


Marcas em silêncio O silêncio das vítimas é comum em casos de violência intrafamiliar. No entanto, segundo Helena, “uma criança que sofre abuso sexual sempre comunica isso de alguma forma”. “A gente grita, a gente fala o tempo inteiro. Só que a gente fala com outras maneiras, com outras palavras. O corpo fala muito mais do que o que a gente consegue formalizar em uma palavra, uma frase”, complementa. A escritora relata que, com a exposição do caso, “a família foi convidada a dialogar sobre isso”. Após a publicação do livro, alguns familiares tomaram conhecimento do abuso, pois, apesar de não citar o nome do agressor em nenhuma das páginas, “para um bom entendedor meia palavra basta”. “Todo mundo sabe quem ele é”, afirma. O medo de represálias e da reação dos familiares foi o que levou Helena a procurar ajuda para superar o trauma: “Eu passei mais de dois anos em terapia para entender como é que a família iria lidar com isso”. Vida de traumas Em razão do abuso, Helena teve problemas em diversos aspectos da vida desde criança. Ela conta que o abuso sexual “afetava diretamente” o seu rendimento nos estudos, pois “não conseguia aprender”, problema agravado pela falha do sistema educacional. “A escola é um modelo falido que não funciona mais”, declara, afirmando que a instituição “precisa trazer o respeito para dentro da sala de aula”. De acordo com ela, ainda hoje “o debate acontece fora da sala”, fato que impossibilita a responsabilidade e a reflexão. Para que esse quadro mude, ela ressalta que “o diálogo precisa estar na frente”.

RELATO

Helena Damasceno enumera fatos contados ao longo do livro em seus comentários

Hoje minha maior vingança é querer ser feliz

SUPERAÇÃO

Mais de 20 anos depois, Helena consegue comentar sobre os abusos sem se sentir mal.

A escritora relata que chegou a escrever uma prova inteira com as palavras ao contrário quando criança. “Eu me sentia burra, muito burra. Eu decorava para a prova, mas depois eu não lembrava mais de nada”. Para superar tais dificuldades, Helena desenvolveu um método de aprendizagem particular. “Eu comecei a achar que aquela palavra tinha que me lembrar de alguma coisa, porque eu conseguiria saber como ela é escrita”, explica. Disciplinas como matemática “eram um inferno”, mas a técnica, após algum tempo, passou a funcionar. “Eu fui fazendo associações para entender”, relembra. Hoje, já com a firmeza e a segurança proporcionadas pela superação, Helena comenta com facilidade sobre o trauma de infância e ajuda mulheres que passam ou passaram pela mesma violência

através de palestras e conversas. A relação com sua família “mudou completamente” e hoje o convívio é harmônico. Amante e estudante de psicologia, hoje ela reconhece a sua liberdade. “Demorei 16 anos pra poder começar a limpar a sujeira que estava dentro de mim”, declara firme e certa de si. “Hoje minha maior vingança é querer ser feliz”, conclui.

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POR Julia Ionele

CRÔNICA

A forma de saber D

e todas as coisas da vida a que mais encantava Zezé era o saber. Nascido no interior de São Paulo, o menino de seis anos era um dos cinco filhos de um casal pobre. Era astuto. Entrou na Escola sem dinheiro para o uniforme, era motivo de piada por ter os dedos saindo do sapato, a farda doada pela Instituição. Zezé era sonhador, daqueles que não se contentam com a vida que tem e que querem mudar o mundo. O menino Zezé era aplicado, filho de analfabetos, mal sabia o que era a vida, mas tinha a vontade de viver. Era uma aula de terça ¬- feira a tarde, a professora do primeiro ano pediu para que cada um escrevesse uma frase para que explicasse aos colegas o significado dela em sua vida. O pobre menino pegou o lápis afiado e pôs-se a escrever a frase. Ao final da aula, a professora leu atentamente cada uma das frases, e algumas diziam: “O mundo é belo” “ A flor é cheirosa” sem mostrar distinção pelos alunos, mas curiosamente ela leu a frase de Zezé: “Nunca é tarde para aprender.” A professora pediu que

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cada um dos alunos discorressem a cerca da frase, foi então que chamou Zezé para explicar a sua. O menino pequeno, franzino, que mal enxergava atrás da mesa, começou: Dona Glória, nunca é tarde para aprender. Todos os alunos se olharam como quem não tivesse compreendido o pensamento do colega. A professora entendendo a surpresa das crianças pediu que Zezé continuasse. - É professora, nunca é tarde para aprender. Outro dia Cândida, minha irmã mais velha, pegou catapora e vovó Maria não sabia como tratar, foi quando um vendedor lá das bandas do Nordeste do país ensinou que banho de água morna acalmava as feridas, ela não saiba, mas teve paciência e apreendeu. A professora achou a colocação de Zezé engraçada e pediu para que continuasse - Minha mãe não sabia como cuidar de crianças, até que casou com o papai e teve seu primeiro filho aos 15 anos, depois disso vieram mais quatro, ela não sabia, mas teve paciência e aprendeu. Ele respirou e continuou. - No nosso último natal, papai

estava desempregado e o dinheiro de mamãe mal dava para sustentar a casa, papai não sabia como nos presentear, mas naquela noite ganhamos um caloroso abraço, ele disse que não sabia amar, mas com paciência, ele também aprendeu. Ninguém ensinou a mulher a conquistar os espaços na sociedade, elas não tiveram preparação de como ser uma astronauta, nem física, mas com competência, elas aprenderam. O remédio não brota do chão, o que existem são as suas matérias primas, ninguém ensinou o farmacêutico a fazer remédio, mas por necessidade, eles aprenderam. A senhora D. Glória nasceu ensinando? E ele prosseguiu: - Eu sei que a senhora não nasceu ensinando, não sabia repassar os seus conhecimentos para os alunos, mas com vontade a senhora também aprendeu. Aprender é a coisa mais importante da vida, se você deixa de aprender, logo você deixa de viver, não adianta viver com a idéia de que aprendeu tudo, sempre tem algo para aprender, seja em casa ou na escola, na alegria e na dor, sozinho ou em grupo, feliz ou triste, no sucesso ou no fracasso, em sorrir ou em chorar, aprender é o maior bem que se pode ter, e ele é como um pássaro, não se pode apenas criar em uma gaiola e proibir que ele faça vôos mais altos e que e passe o saber aos demais, aprender é repassar. A gente ganha muito mais quando ensina do que quando aprende só professora, e nunca, nunca é tarde para aprender. Naquele dia depois da aula, Dona Glória ficou em sala relendo o papel que continha “Nunca é tarde para aprender”. Ela sabia naquele dia tinha confirmado a maior lição: que aprender é necessário. E você? O que aprendeu hoje? Está repassando seus conhecimentos? Já dizia Drummond que “perder tempo em aprender coisas que não interessam, priva-nos de descobrir coisas interessantes.” aprendaa viver cada dia como quem vive o último. Lembre-se: o saber é a maior evolução.


Um golpe de mestre Com a ajuda de professores dedicados, jovens têm a chance de traçar o destino longe da violência e das drogas, em uma das regiões mais violentas da cidade

POR Flávia Oliveira

CRÔNICA “Quero tirar meu filho do judô e do jiu jitsu”, disse certa vez a mãe de um aluno. Moisés Costa, professor da turma de jiu jitsu, remexeu o corpo dentro do quimono azul. “Mas por que, dona?”. “Tá gastando muito. Quase todo mês ele pede R$ 40 pra competir”, justificou a mulher. Moisés não se conteve: “A senhora gasta quanto por mês com as aulas dele aqui?”. “Nada”, respondeu. “E na última viagem que ele fez pra São Paulo, a senhora teve que desembolsar quanto com avião, hospedagem e alimentação?”, perguntou na sequência. “Não gastei nada, pagaram pra ele, né?”. “É, pagaram. E mandou bem no campeonato. O quimono novo que ele recebeu ontem, quanto custou? E olha que tem dois pra competir”. “Não sei”. “Pois custou uns R$ 300. É coisa boa. O que eu quero dizer com isso é que R$ 40 que ele pede para pagar uma inscrição que a gente não conseguiu de doação é muito pouco em benefício de um rapaz que tá conhecendo o Brasil todo pelo próprio esforço. É bem menos do que as carteiras desse cigarro que a senhora tá fumando”, arrematou. Silêncio. É assim, lutando pela permanência dos alunos, que os professores

do dojô Águia, onde funciona o projeto “Ação e Reação”, tentam manter o lugar longe do assédio dos traficantes de drogas, da falta de amor de muitas famílias e das dificuldades financeiras. “Nosso objetivo é mandar algum menino ou menina para treinar nos Estados Unidos, onde mora meu mestre. Eu poderia estar agora em casa com minhas duas filhas, as quais mal vejo durante a semana, mas tô aqui para retribuir o que um dia fizeram comigo. Eu era um menino que vivia procurando confusão, e foi um projeto como esse que me colocou no jiu jitsu”, fala. Do outro lado do tatame, o professor de judô Newton Rocha, dono da academia que cede o espaço para os treinos, confere as unhas e a higiene dos alunos. Quem está sujo, volta para casa. Quem fizer besteira na escola ou na rua, fica assistindo a aula no banco da calçada. “Tem que ter disciplina. Mas é tudo na base do diálogo. Às vezes, o abraço que o aluno ganha aqui é o único que ele vai ter na semana. Não é preciso ignorância, pois isso eles já veem demais. É cuidar, é se importar. Isto faz uma diferença danada”, diz, enfiando os polegares na faixa preta da cintura.

Enquanto Newton fala, o aluno Thalyson de Lima comanda o aquecimento da turma. Com 17 anos, há quatro no judô, ele é um adolescente tranquilo, daqueles com cara de bom moço. Mas nem sempre foi assim. Quando conheceu o projeto, teve que “selecionar as companhias”, como mesmo diz. Nesse tempo, perdeu amigos para o tráfico do Lagamar, uma das regiões historicamente marcadas pela violência na cidade. “A gente cresce aqui no meio da pobreza e de tudo o que é ruim. Como acreditar na gente? Daí as artes marciais são um tipo incentivo, sabe? Porque o pequeno derruba o grande. É tudo questão de jeito e não força”, diz. “Vai, vai, pega ele!”, interrompe para orientar um menino que enfrenta outro um pouco maior do que ele. “Viu?”, fala, apontando com ar de satisfação o garoto se levantando do chão. Dicionário: Dojô significa “local do caminho” e é o local onde se treinam artes marciais japonesas Serviço Dojô Águia - Projeto Ação e Reação - Rua Aspirante Mendes, 16 – Aerolândia. 2015.1 RETICÊNCIAS

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POR Ana Beatriz Leite Claryce Oliveira Diego Barbosa Ingrid Oliveira Nícolas Paulino Theyse Viana FOTOS Ingrid Oliveira Theyse Viana

PERFIL

Saberes alémfronteira A vida de uma africana que cruzou o oceano para estudar no Brasil – e enfrenta marés de saudade.

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.653 quilômetros são uma distância relativamente pequena em um país continental como o nosso. O Oceano Atlântico separa Brasil e Cabo Verde, mas não só uma língua nativa em comum faz com que a distância pareça ainda menor. Entre nações que partilham um mesmo colonizador, há diversos fatores que ajudam a diminuir essas fronteiras. E não é por acaso que o nosso país é um dos principais destinos para caboverdianos que desejam estudar fora. Nascida na cidade de Praia, capital de Cabo Verde, a estudante Carmen Fortes é uma dessas pessoas. Ela está em Fortaleza há um ano e meio e conta que cruzar o oceano para estudar em solos estrangeiros já é um fator cultural de seu país: “Em Cabo Verde existem, se eu não me engano, seis universidades. O país é pequeno, formado por ilhas, e o Cabo Verde tem muito essa cultura de estudar fora”, explica. A mudança do litoral da Ilha de Santiago para o litoral do Nordeste brasileiro, porém, não foi premeditada: Carmen já pensava em trilhar carreira acadêmica fora de Cabo Verde, mas nunca teve o Brasil como opção. A estudante desejava fazer sua graduação em Portugal, mas os pais foram contrários a esse plano. Não abrindo mão de seu sonho, Carmen decidiu ouvir os conselhos de uma amiga que veio estudar na Universidade de São Paulo (USP) e, aqui no Ceará, acabou encontrando vários outros jovens em situações parecidas com a sua: “Aqui é o estado que mais tem africanos no Brasil. Todo mundo pensa que na Bahia tem mais africanos, mas não é. A UFC é a universidade que dá mais vagas para os africanos, e ainda há os que estudam nas faculdades privadas”, conta. Após tomar a decisão de que gostaria de vir estudar em terras brasileiras, Carmen procurou a Embaixada do Brasil no seu país de origem para realizar o processo de admissão. Componentes como a nota de desempenho escolar da solicitante ao intercâmbio e suas condições financeiras e de aprendizagem a fizeram participar do PEC-G (Programa de Estudantes-Convênio de Graduação), um projeto federal que oferece oportunidades de ensino superior a


Carmen assistindo à aula da disciplina de Formação da Sociedade Brasileira

cidadãos de países em desenvolvimento com os quais o Brasil mantém acordos educacionais e culturais. “Tem algumas pessoas que veem como intercâmbio, mas só que o intercâmbio é quando você está na universidade do seu país e vem continuar seus estudos em outro país. Não, a gente já vem começando desde o início aqui e vai até terminar o curso”, relata Carmen ao explicar como funciona o programa que a faz estar atualmente cursando Jornalismo na Universidade Federal do Ceará. Falando em adaptação, Carmen revela que a sua ambientação à Terra da Luz foi fácil. O clima, alguns costumes locais e o tratamento das pessoas, sempre muito acolhedor, são semelhanças com o de seu país de origem – que ela faz questão de carregar junto à pele, em um pingente. A maior dificuldade mesmo foi quando optou por mudar de curso, de Psicologia para Jornalismo, pois a saída de um ambiente a que ela já havia se adaptado para outro completamente novo foi como um recomeço – tudo novo. De novo. Apesar disso, para ela, o acolhimento dos alunos dos cursos de Ciências Humanas é

O clima e a hospitalidade dos brasileiros foram fatores importantes para a adaptação de Carmen ao país.

um dos melhores e mais abertos. O cotidiano do curso de Jornalismo é bem dinâmico, os professores socializam mais com os alunos e tentam manter um diálogo constante com eles, assim como os colegas de classe. Mas, ironicamente, ainda é difícil para ela falar a mesma língua – Carmen comentou, em um português ainda repleto de traços nativos, que uma das limitações encontradas é a questão da linguagem usada no ambiente da universidade. As diversas gírias e termos próprios dificultam a socialização e a integração dos alunos estrangeiros. “Foi um choque cultural”, afirma. Mesmo com essas limitações, a africana diz que ainda mantém

muitos costumes de sua terra natal. Frequenta a igreja de sua criação, a igreja Mórmon, e sai com seus amigos cabo-verdianos nos fins de semana. Segundo ela, em Cabo Verde, as pessoas têm o costume de interagir com os amigos e conhecer intimamente uns aos outros, então a visita à casa dos colegas é algo comum e uma tradição mantida. Conhecer a cidade de Fortaleza e alguns pontos turísticos foi parte da exploração do novo lar – atividade que não entrou na rotina da tímida e reservada estudante. A saudade de casa é o ponto mais doloroso citado por Carmen. A internet permite que ela fale com seus parentes e amigos de Cabo Verde diariamente, além de conseguir manter um relacionamento à distância com o namorado de longa data. Entretanto, apesar de dividir uma casa com outros cabo-verdianos, tentar preservar algumas tradições do seu país de origem e se identificar com o curso de Jornalismo, a fala de Carmen Fortes é marcada pelo desejo de voltar para casa. Agora, claro, com uma bagagem culturalmente mais diversificada e cheia de saberes. 2015.1 RETICÊNCIAS

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POR Carolina Melo

RESENHA

A Educação Proibida

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sta produção é resultado das somas de um bom aluno de colégio de classe média em Buenos Aires, auto-declarado “vítima da educação neoliberal da década de 90”, que viu seu país entrar em ebulição com os panelaços e com as frequentes crises econômicas, que posteriormente estudou cinema e educação. Aliado a todos essas premissas, resolveu, aos 21 anos, partir uma viagem pela América Latina pesquisando formas alternativas de educação durante três anos. “A Educação Proibida” é um documentário argentino dirigido e idealizado por German Doin, que une ativismo e cinema e questiona e problematiza o atual sistema educacional. Com uma mistura entre ficção e realidade, o diretor utiliza-se de uma linguagem didática e clara que gera questionamentos profundos e desestabiliza os espectadores com suas observações pertinentes,

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que são invisíveis aos absortos pela cultura sistemática da escola como a conhecemos hoje. Na película são posto em xeque as supostas premissas da educação latino-ocidentais, que pregam que a escola promove a comunidade, igualdade, inclusão e solidariedade. Mas que, na verdade, as escolas ensinam e promovem exatamente o contrário. O sistema baseado em exames, notas, castigos e recompensas tratam de formar cidadãos competitivos, individualistas e obedientes. Em outras palavras, o atual modelo escolar forma para e com o sistema dentro de um ambiente que simula prisões ou grandes fábricas. Na contramão desse modelo, a Educação Proibida mostra as possibilidades de uma nova escola, livre, que respeita o processo individual de aprendizagem, a integração, o ensino prático e a construção de uma concepção própria de

mundo desenvolvida pelos alunos, por meio da vontade natural de conhecer e aprender do ser humano. Essa nova escola deve apenas motivar e oferecer ferramentas para uma formação cidadã, ao invés de mão-de-obra. Todo esse novo modelo de educação deve ser baseado no respeito as diferenças e, principalmente, no amor. Apesar de em alguns momentos o filme ser redundante e ser muito longo, por volta de 2h e 30min de duração, é uma ótima opção para dar uma quebrada na rotina e também nos dogmas sociais que carregamos. O documentário pode ser assistido na integra com legendas em português no YouTube.


Epifania

POR Michel Miron

“Em minha mais pura existência simplista, jamais vou aprender a mensurar a totalidade do que são todas as coisas, todos os mundos, todas as vivências, dentro e fora de cada ser humano.”

CRÔNICA

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ocê pode dizer muitas coisas de um ônibus, menos dizer que vive, enquanto nele. Quente, abafado e barulhento, muitas vezes você mal tem espaço para sentar, apenas para se manter firme, existindo, até a sua parada. Ao meio dia, metade das cadeiras são banhadas pelo sol e as vezes você não tem a opção de onde sentar. Em suma, um pouco mais de meia hora de uma amostra grátis do inferno é o que eu posso esperar sempre que pego um transporte coletivo para a faculdade. Porém, nem tudo era difícil naquela gigante máquina de ferro e calor que se movia por explosões, eu ainda podia observar. Pessoas brancas, negras e amarelas. De chinelos, sapatos ou até mesmo salto. Carregavam mochilas, bolsas ou sacolas, trazendo livros, mais sacos ou até mesmo co-

mida. Alguns surpreendentemente liam, outros apenas ouviam música. A questão principal, de todo esse cenário, é que cada um deles tinham algo a ensinar. Não de maneira proposital, sempre instintivamente. Histórias por de trás de cabelos, roupas, preocupações visíveis. Mesmo no calor, na sensação de abafado e pouca mobilidade, criar histórias para aquela amálgama de pessoas me ensinava uma rara constatação. Todas elas tinham dores, bênçãos, alegrias, motivos e razões. Todas elas, em sua mais simples existência, cultivavam dentro de si universos que eu jamais vou conseguir um dia entender em sua totalidade, jamais vai senti-los, apenas imaginá-los. Em minha mais pura existência simplista, jamais vou aprender a mensurar a totalidade do que são todas as

coisas, todos os mundos, todas as vivências, dentro e fora de cada ser humano. E no final das contas realmente não importa o quão eu vá achar impossível viver em um ambiente tão inóspito quanto em uma máquina que reverbera o calor de uma cidade que já queima todo o meio dia, sempre vai haver alguém lendo um livro, sorrindo. Viver o mundo é entender o quão absurda é sua totalidade. Aprender que sua mais profunda dor, é um pingo no oceano. Que sua maior alegria, é um grão que pode reverberar outros. Sentado em um banco vago, sorri. Sereno, percebi que todos nós aprendemos e sofremos no mesmo pedaço de chão.

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ENSAIO

Histórias a Fio POR Marcelo Monteiro

Mais do que instruir teorias ou técnicas de passo a passo, ensinamentos, às vezes, trazem consigo apenas a fluidez de um cadenciado movimento que delineia um costume. No seu desenlace, saltam aos olhos as fibras de linhas tingidas e de enredos de um viver ardente, típico do sertão cearense. No rearranjo destas, vem à tona a rede: com meadas de vida em todas as suas urdiduras. Em Jaguaruana, cidade do interior do Ceará, sol escaldante e chão de fendas não inibem o viver de suas culturas. Vidas se mantêm férteis em dedos que caminham juntos num bordado que enfeita a paisagem descorada pela seca.

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Mãos armam a rede que recosta em seu leito corpos esgotados pelo calor do sertão. Corpos estes que são envoltos pelos saberes ensinados e ensaiados de geração para geração dentro dos lares atrás das cercas que sinalizam as más venturas.

Nas mãos atadas pelos punhos que erigem seu balançar, redes são criadas dia a dia num cenário que conserva um passado de tradições arraigadas à rotina. Entretanto, engana-se quem imagina que os ares jaguaranenses não trouxeram o porvir, que fez a pele ceder lugar às máquinas.

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Mas mesmo o homem moderno não abriu mão do artesanato em suas teceduras; o coser dos teares elétricos e suas ágeis agulhas ajudam a tecer a tradição que ainda hoje o circunda.

Vêm e vão-se os meios, mas o saber não se desvincula da tradição. Passado, presente e futuro têm suas bainhas unidas aos trançados que carregam sabedorias e sobrevivências. São traços e cores de redes de histórias. Todas escritas a fio.

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POR Ana Rute Ramires Flávia Oliveira Júlia Ionele Kamilla Karen Larissa Pereira FOTOS Flávia Oliveira Larissa Pereira Shutterstock

Juventude do lado de lá

REPORTAGEM

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eparados por poucos metros, os adolescentes do North Shopping e os do complexo que funciona na Rua Tabelião Fabião, no bairro Presidente Kennedy, vivem situações díspares. Enquanto aqueles aguardam animadamente pelas sessões de cinema com ingressos nas mãos, estes seguram papéis carimbados que podem determinar para sempre o enredo de suas vidas. Para ver de perto o drama que a juventude brasileira protagoniza, principalmente a mais pobre e desassistida pelo Estado, basta atravessar o estacionamento do centro de compras e passar pelo portão de grades verdes que guarda o Sistema Integrado de Atendimento. Funcionam no local a Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), o Juizado da Infância e da Juventude (JIJ), o Núcleo de Atendimento aos Jovens e Adolescentes em Conflito com a Lei (NUAJA) e a Unidade de Recepção Luís Barros Montenegro, porta de entrada no sistema de socioeducação de quase todos os adolescentes em conflito com a lei.

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Em tempos de discussões acaloradas sobre a possibilidade de redução da maioridade penal, vimos de perto a juventude posta à margem pela sociedade

Sem condições Após a apreensão, é aberto um inquérito na DCA. Em até 24 horas, o adolescente precisa ser ouvido, assim como as eventuais testemunhas. Se o promotor decidir formalizar uma representação, ė feito o encaminhamento para o JIJ, com acompanhamento da Defensoria Pública, por meio do NUAJA, ou com advogado próprio. “Em 95% dos processos, os casos são de roubo, furto, porte ilegal de armas e tráfico de drogas. Mas também vemos de tudo: estupro, homicídio, latrocínio”, enumera Aldemar Monteiro, defensor público na 5ª Defensoria da Infância e da Juventude. De acordo com o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), a apreensão só é efetuada se o ato infracional tiver sido praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, como roubo, homicídio e lesão corporal. Para os casos de furto ou tráfico, é permitida a internação se o adolescente for registrado três vezes.

“O problema é que a situação nos centros educacionais é muito pior do que no sistema carcerário adulto. Eles simplesmente não têm condições de recuperar os jovens que vão parar lá. Não é à toa que após as visitas que a Defensoria faz nesses lugares, há sempre as interdições”, afirma. “O que é cela deveria ser um dormitório, e o que deveria conter apenas quatro adolescentes, abriga 20. Eles não dormem uma noite inteira porque para descansar, só em sistema de revezamento. Deveriam sair dos ‘quartos’ durante o dia para participar de cursos, mas têm só 20 minutos fora do ambiente fechado, porque pode ter rebelião”, diz o defensor. “O Estado do Ceará não investe nada nos centros educacionais. E se a redução da maioridade passar, o que vai acontecer é o aumento do que já estamos vendo no dia a dia: jovens cada vez mais novos, alguns crianças ainda, com dez, doze anos, arregimentados pelo tráfico”, defende.


Procurada durante três dias pela reportagem, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) não quis se manifestar sobre o assunto. Bastidores Você já foi assaltado? Foi agredido, pelo simples fato de ter se assustado com a abordagem? Eu já passei por tudo isso. Pela lembrança do que já vivi andando pelas ruas de Fortaleza, foi um tanto desconfortável estar naquela área de espera da DCA, cercada de rapazes e moças vestindo calças de tactel com as iniciais dos centros de internação escritas com caneta preta. Na sede do NUAJA, um menino que não aparentava ter mais de 13 anos, visivelmente sob efeito de entorpecentes, aguardava ser atendido pelo defensor. A mãe procurou auxílio jurídico porque ele sofria ameaças de morte por parte de policiais. Os funcionários que guardam os portões vivem em constante tensão - em 2013, um adolescente foi assassinado a tiros

quando embarcava em um táxi logo em frente. No entanto, o que mais me desassossegou foi ouvir algumas conversas travadas no lugar, assim como as ligações de celular. Era possível identificar entre uma gíria e outra promessas de vingança e novas ações com as gangues de bairro. E pasmem, tudo falado diante dos pais ou das mães que acompanhavam os rapazes. (Flávia Oliveira) Entrevista Ailton Lopes (Frente Estadual Contra a Redução da Maioridade Penal - Ceará) Reticências - Tendo em vista o atual nível de violência, gostaríamos de saber o posicionamento político da Frente e em que se baseia a ideia de que a proposta da “redução da maioridade penal” não vai ser eficaz para reduzir a violência urbana. Ailton Lopes - É aumentando o

número de pessoas presas que nós reduzimos a violência? Os dados estatísticos apontam que de 1992 até 2013, houve um aumento de mais de 300% da nossa população carcerária. Hoje nós temos mais de 574 mil pessoas cumprindo pena em presídios, ou seja, mais de meio milhão. É a quarta população carcerária do mundo. Nos últimos oito anos, houve um aumento de 24% do número de homicídios, ou seja, não foi porque nós aumentamos o número da população carcerária que diminuiu a violência. Essa ideia de que “prender mais diminui a violência”, e de que na verdade está havendo impunidade, não é válida. É por isso que a violência está aí? Na verdade, as causas não foram combatidas. A nossa juventude tem uma vida sofrível, principalmente a juventude negra e pobre. Reticências - Reduzindo a maioridade penal, quais serão os maiores impactos? Ailton Lopes - Vivemos em uma tragédia social, porque todos os dias o que a gente vê é uma criminaliza2015.1 RETICÊNCIAS

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REPORTAGEM ção, uma perseguição das crianças e dos adolescentes, que são apresentados como monstros para a sociedade. E quem é a sociedade se não somos nós mesmos? Quem que é monstro? Que sociedade é essa que coloca uma arma na mão de uma criança? Por que somos nós que estamos colocando a arma na mão da criança, com tudo o que a gente está fazendo. E a tragédia social, ela se acumula ainda mais quando: onde é que essas crianças, onde é que esses adolescentes vão ficar? Aqui no Ceará temos um déficit de 5 mil vagas. Aí agora a gente vai colocar mais um grupamento entre 16 e 18 anos onde? Não há nem para quem está esperando vagas no sistema prisional. Reticências - E esse número de jovens que estão envolvidos com o tráfico, com coisas ilícitas na nossa cidade, será que isso é resultado do nosso sistema educacional que está falido? Ailton Lopes - Eu sou contra uma visão que responsabiliza e joga todo o peso na educação. Eu acho que a escola tem um papel fundamental, mas achar que só ela resolve é uma visão completamente equivocada. Não adianta você ter uma boa escola e ter todo o contexto social contrário. Então o conjunto de medidas políticas públicas como um todo: educação, saúde, lazer, esporte, cultura, saneamento, todas elas têm que estar integradas. Números O Estado do Ceará já supera a média nacional do índice de superlotação nos centros educacionais. São mais de 1 mil adolescentes cumprindo medidas socioeducativas Segundo dados da Secretaria da Justiça e Cidadania (Sejus), por mês, o Ceará gasta até R$ 1,5 mil um preso adulto, enquanto um adolescente interno de um centro educacional custa o dobro: R$ 2,9 mil.

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titulo d Aílton Lopes Frente Estadual Contra a Redução da Maioridade Penal Ceará

Veja três argumentos contra e a favor da redução Contra 1- A redução da maioridade penal fere uma das cláusulas pétreas (aquelas que não podem ser modificadas por congressistas) da Constituição de 1988. O artigo 228 é claro: “São penalmente inimputáveis os menores de 18 anos”

A favor

1- A mudança do artigo 228 da Constituição de 1988 não seria inconstitucional. O artigo 60 da Constituição, no seu inciso 4º, estabelece que as PECs não podem extinguir direitos e garantias individuais. Defensores da PEC 171 afirmam que ela não acaba com direitos, apenas impõe 2- Em vez de reduzir a maioridade novas regras. penal, o governo deveria investir em educação e em políticas públicas para 2- O Brasil precisa alinhar a sua proteger os jovens e diminuir a vul- legislação à de países desenvolvidos nerabilidade deles ao crime. No Bra- com os Estados Unidos, onde, na sil, segundo dados do IBGE, 486 mil maioria dos Estados, adolescentes crianças entre cinco e 13 anos eram acima de 12 anos de idade podem ser vítimas do trabalho infantil em todo submetidos a processos judiciais da o Brasil em 2013. No quesito educa- mesma forma que adultos; ção, o Brasil ainda tem 13 milhões de analfabetos com 15 anos de idade ou 3- A maioria da população brasimais. leira é a favor da redução da maioridade penal. Em 2013, pesquisa realizada 3- A redução da maioridade iria pelo instituto CNT/MDA indicou que afetar, principalmente, jovens negros, 92,7% dos brasileiros são a favor da pobres e moradores de áreas periféri- medida. No mesmo ano, pesquisa do cas do Brasil, na medida em que este instituto Datafolha indicou que 93% é o perfil de boa parte da população dos paulistanos são a favor da reducarcerária brasileira. ção.


POR Ana Rute Ramires FOTO Cena do filme “Sociedade dos Poetas Mortos”

RESENHA

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ducação, vocação, escolhas, paixão. Esses são alguns dos temas que permeiam “Sociedade dos Poetas Mortos” (titulo original: Deads Poets Society), filme estadunidense de 1989, do gênero drama, dirigido por Peter Weir. O enredo tem como plano de fundo a Academia Welton, escola de segundo grau na qual os valores tradicionais e conservadores predominam através de quatro pilares: tradição, honra, disciplina e excelência. Logo no início do filme, o professor de poesia John Keating (Robin Willins) começa a trabalhar na instituição, que adota uma concepção didática racionalizada com preparação para formação superior. No entanto, os métodos de aprendizagem e a filosofia de vida ensinada por Keating destoam dos métodos da escola. O professor, ousado e nada ortodoxo, inspira os seus alunos a perseguirem suas paixões individuais e a tornarem suas vidas extraordinárias por meio de reflexões sobre a fragilidade e temporalidade da existência. Leva-os para aulas ao ar livre, pede que façam poesias espontâneas, os incentiva a pensarem por si próprios

Carpe diem e a terem uma visão crítica, incutindo neles o desejo de viver cada momento intensamente. Através de citações de grandes nomes da literatura inglesa, como Henry David Thoreau, Walt Whitman e Lord Byron, ele fomenta a mensagem do Carpe Diem, expressão originária do latim que significa “colha o dia” ou “aproveite o momento”. Alguns de seus alunos começam a viver esses ideais e descobrem que na época que Keating estudara na Academia, ele fez parte da Sociedade dos Poetas Mortos, na qual seus membros se reuniam para declamar poesias e expressar suas ideias. Esse grupo de alunos resolve recriar a Sociedade nos moldes do passado, realizando seus encontros noturnos em uma caverna nas proximidades da Academia. Com o ressurgimento da Sociedade, os alunos envolvidos vivem uma verdadeira revolução em suas existências, encontram novos interesses e vocações. Neil Perry, um dos participantes, começa a viver um conflito entre o gosto pela dramatização e a vontade do pai em vê-lo formado em medicina. Desacordo que gera a problemática principal do filme.

A quebra dos estereótipos de ensino proposta pelo professor Keating apresenta aos alunos novas possibilidades e pretensões acerca do mundo em que vivem, ou que deveriam viver. O que desperta nos jovens novos sentimentos e inquietações, como a quebra de barreiras impostas pela sociedade, família e instituição. Barreiras que priorizam imposições profissionalizantes e capitalistas em detrimento dos anseios individuais. O filme faz uma crítica ao método de educação tradicional, no qual o aprendizado é desenvolvido de forma mecânica: o professor fala, o aluno ouve. O professor Keating quebra esse paradigma e mostra um novo ideal pedagógico no qual a relação entre professor e aluno é interativa, dinâmica e democrática. Também é importante perceber o quanto o papel do educador impacta a vida dos jovens, não se restringindo ao âmbito acadêmico. As relações entre professor e aluno, pais e filhos, e amigos entre si levam a uma reflexão sobre autoritarismo, liberdade e amizade. 2015.1 RETICÊNCIAS

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POR Claryce Oliveira FOTO Bigbirdz/Flickr

CRÔNICA

Olá, meu nome é...

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empre fui fã de sorrisos, sempre fui fã de abraços, mas nunca simpatizei com a ideia de compartilhar certas coisas com pessoas que não pertenciam ao meu mundo. Toda vez que entrei em uma sala de aula tive a sensação de andar em direção ao pelotão de fuzilamento e ficava esperando, com ansiedade, pelos tiros que me livrariam daqueles olhares, apresentações teatrais e expectativas elevadas. Desconfortável. Nunca vou esquecer a primeira vez que tive que dizer coisas sobre mim em voz alta, talvez venha daí meu trauma. Senti-me completamente fora da caixa e tive em diversos momentos o ímpeto de sair daquele lugar correndo e pegar o primeiro avião pro Alasca, mas o máximo que minhas pernas faziam eram tremer. Nos boatos que escuto das amigas experientes, toda primeira vez deve ter algo constrangedor, que te marcará para sempre. Queria eu viver de segundas vezes. Em uma bela tarde de sábado, fazia mais calor que o normal e eu

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deveria estar às 15h em ponto na igreja. Era o primeiro dia das aulas de catecismo. Eu, garota tímida de voz baixa, deveria me dirigir a uma sala cheia de desconhecidos. Logo na entrada fui recebida por uma professora sorridente que de prontidão me deu uma vela. Quando percebeu minha cara de incompreensão, disse “Usaremos logo logo, querida”. Peguei minha vela, sentei e fitei o chão, pouco depois tomei coragem e olhei ao redor. A sala era pequena, as cadeiras eram de uma madeira, que segundo minha vó, nem cupim estraga e em todas as paredes haviam colagens de orações e “sejam bem-vindos”. A professora se levantou, olhou para todos, o sorriso não saia daquele rosto por nada. “Crianças, essa vela em suas mãos representa a luz que vocês podem ter nesse mundo. Vou acendê-las pra vocês e depois cada um vai se apresentar, tá bom?” Eu seria uma das primeiras. Chegada a hora, comecei a gaguejar, mas no final todos sabiam que eu me chamava Larisse, Laris-

sa ou qualquer coisa por aí. Quando uma das crianças mais inquietas e chamativas começou a falar, a cera da vela começou a derreter e a cair nos meus dedos. Quando o menino disse “Eu estou aqui porque quero ir pro...” eu não consegui mais aguentar e soltei um “Inferno” levemente alto. Todos me olharam e eu sem entender nada só consegui dizer “Essa vela não é de Deus, não é?”. Depois desse dia e de me tocar o que eu tinha feito, durante minha caminhada de volta para casa, passei a guardar meus pensamentos para mim. Lembrei dessa história conversando com minha irmã outro dia. Também na sua estreia em aulas de catecismo, algo engraçado aconteceu, ela teve uma crise de espirros durante sua apresentação. “Parecia um rap feito com meu nome” ela disse. Acho que é coisa de família. Mas só para deixar registrado, meu nome é Claryce, faço jornalismo e não gosto de velas, apresentações e pessoas que não gostam de cachorros.


POR Kamylla Carvalho FOTO Cena do filme “Entre les Murs”

RESENHA

Para quem não viu...

Entre les Murs I

ndicado ao Oscar em 2009 na categoria de melhor filme estrangeiro e vencedor da Palma de Ouro em Cannes, o filme francês Entre Les Murs, baseado no livro homônimo escrito por François Bégaudeau e dirigido por Laurent Cantet, retrata a trajetória conflitante vivida pelo próprio François, autor e personagem da história, como docente em uma escola pública localizada na periferia de Paris. As cenas, que acontecem em sua maioria dentro da sala de aula, expressam uma variedade de problemas de ordem política e social enfrentada por alunos com idade entre treze e quinze anos, que estão inse-

ridos dentro de um contexto de diversidade étnica, gerando conflitos como o racismo, o sexismo, o preconceito, a disputa entre nacionalidades que acabam potencializando as diferenças existentes entre eles. É possível observar no filme a importância da prática pedagógica como instrumento de mediação desses conflitos, com base na didática adotada pelo professor François Marin, que se mostra comprometido e disposto a enfrentar os desafios propostos por sua turma, fazendo apenas o uso do diálogo. E através desse diálogo ele acaba incentivando os alunos a terem o hábito de refletir de forma mais crí-

tica a respeito dos fatos, promovendo mudanças na maneira de pensar e não apenas serem instrumentos de reprodução do senso comum. O mais interessante é que tal reflexão não está restrita apenas ao contexto cinematográfico, afinal, a obra é baseada em fatos reais que mostram como os valores podem ser construídos dentro de sala de aula, sendo tais valores reflexos das relações que acontecem dentro do âmbito familiar, social e também escolar.

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POR Caio Vítor Claryce Oliveira Diego Barbosa Nícolas Paulino Theyse Viana FOTOS Diego Barbosa Theyse Viana

REPORTAGEM

Incluir para educar, educar para incluir 44 RETICÊNCIAS

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abraão, uma síndrome rara e as ferramentas para construir um futuro

ão olhares e gestos que indicam uma natureza diferente, especial. A fala mais cadenciada, os movimentos ora mais lentos ora mais frenéticos, os sonhos e a determinação para conquistá-los são todos, de uma forma ou de outra, os ingredientes que revelam uma essência pura, mágica no falar, encantadora no sentir. Marvin Eduardo, Lívia Castro Silva e Abraão Saraiva fazem parte desse time dos especiais por natureza. Portadores do autismo, da síndrome de Down e da síndrome de Lennox-Gastaut, respectivamente, esses três jovens e suas famílias contaram à Reticências suas experiências estudantis em algumas escolas da capital cearense por onde já passaram. Os depoimentos foram uma forma de compreendermos melhor a situação educacional dos mais de 23% da população brasileira que possuem algum tipo de deficiência e outros transtornos de desenvolvimento, segundo dados do Censo Demográfico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro e Geografia e Estatística). Estudantes do Regina Pacis – um colégio privado de Fortaleza que adota o sistema de educação inclusiva, localizado no Montese –, Lívia Castro Silva, 26, e Marvin Eduardo, 17, já passaram por bons momentos em suas trajetórias de vida escolar. Ela, cursando o 2º ano do Ensino Médio, além do acompanhamento semanal de profissionais, tem a agenda lotada com práticas esportivas, como natação, karatê e zumba. Em meio a tudo isso, ainda há muito tempo para sonhar: “Meu sonho é ser advogada e dirigir, tirar minha carteira, e vou fazer curso para ser terapeuta”. Ele, atualmente cursando o 9ª ano do Ensino Fundamental, desde os 8 anos é acompanhado por fonoaudiólogos, psicólogos e psicopedagogos, o que facilitou o desenvolvimento de sua fala e escrita, além de potencializar o desejo pela prática de esportes. Marvin coleciona medalhas de competições até mesmo nacionais de karatê,

e afirma: “Eu gosto muito de karatê, eu vou lá, eu luto e eu ganho”. Diante da aspiração de ver Marvin realizando seus objetivos, seus pais, Francisco Silva e Maria Lúcia, lembram com pesar dos primeiros anos em que o filho estudou em uma escola onde havia desrespeito e despreparo por parte de alunos e professores com relação à sua deficiência. “O Marvin está bem melhor agora, mas no antigo colégio ele só passou um ano. Ele se sentiu com medo, acuado, não queria frequentar as aulas. Os professores não sabiam como lidar com ele e os outros alunos também não, o que fez a gente perceber a deficiência dos profissionais da educação no tratamento com as crianças e jovens especiais”, comenta dona Maria Lúcia. Deficiência profissional esta que Abraão Saraiva, 13, viveu na pele ao passar 3 meses em uma escola pública no bairro José Walter, onde mora. “Lá ele ficou ocupando só um lugar no espaço. Os professores davam uma caneta pra ele e ele ficava lá, riscando. Pronto, não fazia nada. As crianças não respeitavam ele e isso fez com que até medo ele sentisse de ir para o colégio”, conta dona Meuriceia Lima, mãe do Abraão. Sem condições de pôr o filho em uma escola particular, ela, através de uma reunião de pais na antiga escola de Abraão, descobriu que a EEFM Professora Diva Cabral, localizada na Maraponga, possuía uma sala própria para portadores de necessidades especiais, onde eles podiam interagir entre si e, nos intervalos, também com os outros alunos da base regular. “Ele brinca de bola normal com os meninos de lá. Está adorando e eu vejo isso nele”, constata. Ao ser questionada sobre a condição dos docentes para lidar com crianças e jovens especiais, dona Mauriceia é convicta: “Eles são despreparados. Quem tem condições até pode colocar em uma escola particular e ter um acompanhamento melhor, mas, na escola pública, a criança vai sofrer com o esquecimento, com a falta de cuidado. E não é por maldade dos professores: é porque eles não são preparados para isso. Graças a Deus, encontrei o Diva [Cabral, escola onde o Abraão estuda hoje] e ficou tudo bem. Mas foi uma sorte. Se eles fecharem, não sei o que eu faço”. 2015.1 RETICÊNCIAS

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REPORTAGEM Problemas como o enfrentado por Abraão são grandes obstáculos causados pelo desconhecimento do conceito de sistemas realmente inclusivos – é necessário distinguir educação inclusiva de educação especial. De acordo com o Decreto nº 6.949/2009, baseado na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, em 2006, a educação especial “deve garantir os serviços de apoio especializado voltado a eliminar as barreiras que possam obstruir o processo de escolarização de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”. A educação inclusiva, por sua vez, abrange a educação especial dentro da escola regular. Não há dúvidas de que incluir para educar é preciso, mas educar para incluir é algo ainda mais necessário. Pais, educadores e colegas de classe devem estar engajados em como acolher corretamente os portadores de necessidades especiais, ou abre-se um verdadeiro abismo entre a teoria e a prática da educação inclusiva e surge uma gama de desafios que, em alguns casos, começam dentro de casa. “Muitas vezes os pais não admitem que a criança pode ter tal especialidade. Sempre dizem que é normal, dificultando assim o trabalho dos especialistas”, explica Neusa Machado, psicopedagoga e educadora do sistema público de ensino. “Mesmo quando reconhece, a família vai ajudar ou só fazer da escola um depósito, para que a criança possa passar aqueles momentos na sala de aula como um alívio de casa?”. Segundo ela, não basta apenas aceitar a condição especial da pessoa: é preciso firmar uma parceria realmente concreta entre família e escola. Outro problema enfrentado pelas crianças, jovens ou adultos que possuem tais necessidades é o fator financeiro. “Quando os pais têm melhor recurso financeiro, eles podem bancar uma escola particular e os especialistas necessários para acompanhar essas pessoas. E quando não,

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A Síndrome de Down não é um empecilho para os sonhos de Lívia. Os estudos são um caminho trilhado constantemente pela futura advogada.

MARVIN E LÍVIA FAZEM PARTE DOS BRASILEIROS COM DEFICIÊNCIA QUE ESTUDAM EM ESCOLAS COMUNS

ficam à mercê das políticas públicas, que na prática não funcionam. São muito bonitas no papel, mas na realidade não funcionam”, comenta Neusa. Mesmo que consigam vagas no sistema público, os portadores de necessidades especiais ainda podem não encontrar condições ideais de aprendizado, que vão desde a falta de instalações com acessibilidade ao despreparo de muitos profissionais. A psicopedagoga revela que há uma grande defasagem na capacitação dos educadores para lidar com esse público. “Se você quer estudar e melhorar seu desempenho profissional, tem que batalhar e tirar do seu salário, que já é suado, porque o Governo não dá

esse suporte”. O que efetivamente é posto em prática é um atendimento diferenciado paralelo ao ensino regular: no chamado Atendimento Educacional Especializado (AEE), os portadores de necessidades especiais são orientados por um profissional especialista. Segundo Neusa, o problema é que em muitas escolas há apenas um desses profissionais para lidar com todos os alunos especiais não só daquelas instituições, mas também de áreas vizinhas. Para a educadora, no cenário ideal deve haver um especialista para cada especialidade. Os professores passam em média quatro horas por dia com as crianças


UMA VIDA DEDICADA A INCLUIR Maria Adiléa é fundadora e diretora de uma escola referência em inclusão no Ceará. Ela tem uma formação inteira voltada à educação inclusiva.

e, quando percebem que há algo diferente com algum aluno, podem enviar relatórios para os profissionais da AEE diagnosticando algum tipo de necessidade. Porém, em alguns casos, o AEE simplesmente transcreve o que o educador expôs no relatório sem nem mesmo recomendar exames médicos. Neusa explica que a maioria dos profissionais tem receio de diagnosticar o aluno e ser responsabilizada por isso, porque muitas vezes os pais não querem acreditar que os filhos têm uma especialidade. Quanto mais cedo uma criança receber o diagnóstico de uma especialidade, tanto melhor será para sua formação. Sentir-se acolhida e ter prazer em frequentar a escola são

apenas os primeiros passos para que ela se desenvolva adequadamente. “Há toda uma sensibilidade do profissional para que aquela criança se sinta bem na sala de aula e para que os outros alunos possam acolhê-la; dependendo da necessidade, eles até ajudam, como no caso de uma dislexia, de um autismo leve. Os alunos acabam sendo parceiros do profissional para que o outro tenha uma melhor aceitação na sala”, comenta a psicopedagoga. “O papel do profissional de sala é fazer com que esse aluno adquira confiança e levantar sua autoestima para que ele se desenvolva naturalmente, e com o tempo consiga viver bem numa sociedade onde infelizmente se discrimina qualquer tipo de necessidade especial”, diz Neusa.

É com a necessidade de suprir essas demandas que surgem instituições particulares como o Colégio Regina Pacis. Assim como Lívia e Marvin, muitos outros alunos especiais fazem parte dessa instituição de ensino pioneira na educação inclusiva no Ceará. Fundada no ano de 1970 com o nome de Escola Mirim e apenas um estudante deficiente, ela surgiu em um cenário de negação às problemáticas relacionadas às pessoas com necessidades especiais, sobretudo quanto à integração delas no âmbito social. Todas as turmas contam com pelo menos um aluno especial matriculado entre os comuns. Eles são divididos em níveis que respeitam não só as limitações cognitivas como também os variados perfis dentro de sala de aula, eliminando possibilidades de segregações. Para a coordenadora pedagógica Madalena Lopes, essa dinâmica favorece a troca de conhecimento entre os estudantes comuns e os especiais, gerando uma relação em que todos aprendem, crescem e, é claro – em que ninguém se sente diferente. “Na nossa escola incluir não é só receber o aluno especial, incluir é se preparar para receber o outro, trabalhar de forma que aquele aluno não se sinta diferente.”, esclarece. Adaptação e cooperação são as palavras-guia para atingir o principal objetivo do sistema: a inclusão. Para obter êxito nesse processo, é preciso 2015.1 RETICÊNCIAS

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REPORTAGEM um trabalho conjunto entre comunidade, pais e escola – mas o preconceito e até o desconhecimento quanto às capacidades de um aluno especial ainda são desafios muitas vezes intransponíveis por várias famílias. É devido a variáveis como essas que a manutenção de um sistema de educação inclusiva torna-se difícil. A diretora Maria Adiléa Farias ressalta que a busca pela quebra de barreiras como as dif iculdades de locomoção até à escola e a própria resistência da sociedade à diferença é o principal objetivo no processo de construção de um ser i nclu sivo, aliando-o a um sistema escolar oferecido em ambiente favorável ao d e s e nvol vimento da socialização e da constante quebra de paradigmas entre escola e comunidade. A metodologia usada em sistema de educação inclusiva propicia um aprendizado que influencia no progresso de ambas as partes envolvidas, sendo assim um crescimento que flui em mão dupla. Tanto os alunos que não possuem necessidades especiais se tornam mais autônomos, críticos e pacientes com as dificuldades dos colegas de classe, como os que ne-

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cessitam de uma atenção a mais podem desenvolver suas capacidades e amadurecer o sentimento de inserção dentro de um cenário social. Além de que os profissionais envolvidos também estão em um constante processo de aprendizado bilateral. Por isso apenas aqueles que têm uma sensibilidade mais receptiva e um perfil mais humanístico, segundo Maria Adiléa, se demonstram aptos a atuar

no âmbito da educação inclusiva. A diretora também apontou problemas constantemente enfrentados pelos alunos para conseguir uma vaga no ingresso do ensino médio. Algumas escolas inclusivas como a Regina Pacis não possuem certificação de ensino médio, surgindo assim a necessidade de transferir os estudantes para outras instituições. A problemática é agravada porque, se-

gundo Adiléa, as grandes escolas não têm suporte para receber os alunos especiais, enfraquecendo as possibilidades de eles concluírem a formação escolar e fortalecendo a evasão. Na busca por vencer mais esse obstáculo, a diretora procurou apoio do CEJA (Centro de Educação de Jovens e Adultos) e conseguiu firmar uma parceria para que os concludentes do ensino fundamental pudessem garantir sua formação completa. As aulas acontecem no próprio espaço da escola, de modo a prepará-los para realização das provas do sistema básico seguindo os diferenciados ritmos e dinâmicas de aprendizado. Um sistema tão complexo e sensível às necessidades especiais de cada estudante não poderia render melhores resultados – o quadro de funcionários da escola conta, atualmente, com a atuação de ex-alunos. A inclusão vai muito além do ensino didático. “Para mim, educação inclusiva é um processo solidário de convivência fraterna, de promoção da condição humana em qualquer condição que ela seja. Acho que a educação inclusiva é esse processo de construção de uma sociedade, de retroalimentação da existência humana. Você nunca sai menor.”, concluiu Maria Adiléa.


POR Ávila Souza Daniel Duarte Filipe Pereira Michel Miron Rafael Bastos FOTOS Daniel Duarte

REPORTAGEM

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Métodos pedagógicos de avaliação

ortaleza é referência, no – que, por consequência, Brasil inteiro, de aprooferecem mais turmas a cada vações em vestibulares Como a competição de colégios por vagas no período – que outras instituide muito concorridos. A granvestibular está mudando o ensino ções não se aventuram em de presença de alunos cearenofertar classes para os anos ses em cadeiras de institutos versidade Federal do Ceará (UFC) pré-vestibulares de ensino escolar. como ITA (Instituto Tecnológico e Universidade Estadual do Ceará de Aeronáutica) e IME (Instituto (UECE). Visando um diferencial Esse domínio, contudo, transforMilitar de Engenharia) tornou-se na quantidade de aprovados, seus mou o ambiente escolar do estado. rotina. É comum que cearenses do- os alunos desses colégios cheA agenda dos colégios que comminem boa parte do percentual dos gam a ser divididos em “turmas petem vaga por vaga é completaalunos provenientes dos maiores especiais” por critério de desemmente dominada por conteúdos de vestibulares do país. No ano pas- penho e rendimento ou através sado, por exemplo, 71 alunos de de uma seleção interna,em que os vestibular, já a partir da formação Fortaleza foram aprovados no ITA, alunos com melhores notas terão no Ensino Fundamental. Cada num total de 170 vagas disponíveis. um programa de aulas diferenhora do período letivo é dedicada Parte desse resultado é consequ- ciado do restante da mesma série. exclusivamente ao ensino de maência da formação de um império O cenário de aprovações é dotérias que compõem as exigências de colégio competitivos aqui no minado pelos colégios competiCeará. Com estruturas imponen- tivos. A disparidade cresceu tandas provas para ensino superior tes, sedes em diferentes bairros, e to que, a cada ano, torna-se mais – das quais o ENEM se destaca alguns até mesmo com faculdades, difícil encontrar alternativas para como mais predominante -, soessas escolas disputam todo ano Ensino Médio fora desses granbrando pouco ou nenhum espaço pelo maior número de aprovação no des centros. A procura é tão conespaço para outros conhecimentos ENEM e, consequentemente, Uni- centrada nos grandes colégios 2015.1 RETICÊNCIAS

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alternativos, ou mesmo já conhecidos, e até pouco comuns, como disciplinas de Educação Física e Informática. Conhecimentos técnicos e outras formações como filosofia, sociologia e artes, muito comum nos últimos períodos letivos de outros países, foram deixados de lado e não existem mais na esfera de ensino cearense. Mesmo o ensino de línguas é bem restrito e as poucas horas dedicadas a esses são em favor do que é cobrado no ENEM: inglês e espanhol. Os estudante Leonardo Coelho, 16, é aluno da turma olímpica (o termo era, originalmente, “especial” – mas foi substituído por soar como estratificação) do 3º ano do ensino médio do Colégio Ari de Sá. Para ele, a metodologia do colégio é sim totalmente voltada para vestibulares, mas muitas vezes é isso mesmo que os pais procuram. “É o que a maioria quer, que seus filhos passem no ENEM. Esse é realmente o foco do Ari de Sá, e não tanto em valores, formação de humanidade, sociedade. Os professores são bem solícitos e até tocam nesses assuntos, mas o foco não é esse, e sim um bom resultado no vestibular”, conta Leonardo. Suas colegas de turma Tainá Pinho e Lara Fontenele tem o mesmo pensamento. “O colégio é todo voltado para o vestibular. A sistemática é muito boa e esse é meu objetivo mesmo, passar no vestibular”, diz Tainá. Lara, porém, admite sentir falta de conteúdo diferente no currículo do seu colégio. “Passamos muito tempo no colégio e, como tudo é para o vestibular, a gente acaba sentindo uma certa falta de outros tipos de formação, de valores, que são importantes para a vida”, confessa. Porém, explica: “Mas acho que não é obrigação do colégio, pra mim, esse tipo de formação. O que procuro mesmo é passar no vestibular.” Lucas Garcia acredita que a turma especial do Colégio Farias Brito para vestibulares no ITA e IME foi essencial para o sucesso que conseguiu alcançar. “O material que eles [falta algo aqui] é bem focado, abrangendo todos os pontos da matéria de maneira sistemática e eles estimulavam bastante a gente a trabalhar em grupo. Posso dizer que aprendi a trabalhar em grupo, diz

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Lucas. No caso das turmas ITA e IME, a modificação do currículo e especificação da agenda é bem mais aguda. Muitas matérias importantes no ensino médio, como Biologia e História, são retiradas por não estarem inclusas no programa de vestibular dos institutos pretendidos. “Isso prejudicou totalmente meu julgamento. E o ensino médio tem uma razão para existir, da maneira comum, ele está ali para construir o conhecimento de nível médio. Além disso, ele fecha a cabeça do aluno, ele só estuda, todos os dias, e isso pode acabar prejudicando a vida dele em outros pontos. Porque a vida não é só estudar”, diz.

como a importância de trabalhar pelo bem comum, de saber o que é sustentabilidade, conhecer o ambiente, o cuidado com o outro, com pessoas com necessidades especiais. Assim, você está formando um cidadão com a consciência muito mais ampliada e responsável. Educação deveria ser isso, e não competição”, pontua. O caso é ainda mais agravado no Brasil. Os pais brasileiros estão obrigados, por lei, a matricular os filhos em instituições de ensino público ou particular. Ao contrário de outros países, a educação domiciliar (ou homeschooling, termo pela qual é conhecida) é proibida, como descrito no artigo 246 Modelos tradicionais em do Código Penal. Grande parte da contraste responsabilidade de educação recai, Essa desvinculação da formação fatalmente, sobre as instituições de humana e social como parte da ensino que se preocupam cada vez responsabilidade das menos escolas é algo novo, e deixou de ser uma das preocupações dos pais e da sociedade aos poucos, quando resultados e competição ganharam mais espaço, de acordo com Fátima Limaverde, diretora da Escola Vila. Os alunos desse tempo se acostumaram a ligar mais as tarefas do colégio àa conteúdo para vestibular e menos àa outras formações técnicas e humanas. “Acredito, sim, que a escola tem esse papel, de formação mais completa. A escola que não exerce esse papel não está agindo com Passamos muito tempo no responsabilidade. Hoje, os pais colocam os filhos em colégio e, como tudo é para o vesuma escola que só geram tibular, a gente acaba sentindo uma competitividade, que certa falta de outros tipos de foranulam o conhecimento, mação, de valores, que são imporsabedoria, e não valorizam tantes para a vida. o indivíduo”, afirma Mas acho que não é obrigação do Fátima. Para a diretora, colégio, pra mim, esse tipo de foroutras áreas do saber e do mação. O que procuro mesmo é conhecimento precisam ser incentivados pelas passar no vestibular.” escolas para a formação de um cidadão, e não para a simples competição. “O que Tainá Pinho, 16, aluna do colégio Ari de vejo é que essa necessidade Sá de reconhecer os espaços, como a importância


menos com formação humana e mais com conteúdo e resultados, e poucas opções restam aos pais. A medida que crescem os colégios competitivos em resultados, cresce a procura. As escolas, pela demanda, aumentam a oferta. Mas nem sempre conseguem gerenciar bem a quantidade de alunos e dar atenção devida e dirigida a cada um em particular. “Existe uma certa atenção por parte do colégio. Eles disponibilizam pedagogas e psicólogas para conversar, mas muitas vezes tratam o aluno de maneira coletiva, e chegam a assustar. Recentemente, por exemplo, a coordenadora entrou em sala e falou, de repente, a todos, que quem não tivesse bem nas notas iria sair da turma olímpica. Isso assustou um pouco, não entendemos muito”, explica Lara Fontenele. Para Fátima Limaverde, essa é uma preocupação que muitas escolas não têem mais e que os pais deram espaço para deixar de ser importante. “O que a gente vê é que os colégios cuidam melhor de uma só turma, a ‘especial’,

possuindo setesete ou oito 8 turmas em cada série de ensino médio. Em turmas ‘regulares’, o professor não está tão preocupado em encantar e envolver o aluno como na ‘especial’. É necessário, porém, ir aonde o estudante está, acompanhar mais de perto. Se o aluno não está bem emocionalmente, ele não vai render, seja no âmbito humano ou nos estudos. Deve ser uma preocupação da escola”, alegadefende. Segundo a diretora, existem alternativas no Ceará, e a Escola Vila é uma delas. Há formação técnica desde os primeiros anos do ensino fundamental até o último, o 9º ano, bem como orientações humanas e artísticas. . Os alunos de colégios como o Vila, porém, não ficam para trás nos resultados ao passarem para o ensino médio. “Nossos alunos são sempre muito disputados pelas escolas. É muito comum que recebam bolsas e entrem no quadro de honra já no primeiro bimestre. Não encontram proO que blemas para en-

trentrar na universidade”, afirma a diretora. Outros métodos despontam na capital, em contrapartida dessa metodologia mais competitiva. É o caso da escola Waldorf Micael, que usa a Pedagofia Waldorf, fundada na Alemanha, que apresenta um programa mais personalista e dedicado a uma formação mais particular do aluno. O colégio Oliveira Lima utiliza o método psicogenético, criado pelo professor de mesmo nome, e se inspira na teoria da equilibração de Jean Piaget, famoso psicólogo que desenvolveu muitas pesquisas relacionadas à educação, no que ficou mais conhecidoa, posteriormente, como “Epistemologia Genética”. Para o colégio e o método, a inteligência deve ser desenvolvida e trabalhada para comportar a demanda de conhecimento, e não apenas o repasse do conteúdo.

a gente vê é que os colégios cuidam melhor de uma só turma, a ‘especial’, possuindo 7 ou 8 turmas em cada série de ensino médio. Em turmas ‘regulares’, o professor não está tão preocupado em encantar e envolver o aluno como na ‘especial’. É necessário, porém, ir aonde o estudante está, acompanhar mais de perto. Se o aluno não está bem emocionalmente, ele não vai render, seja no âmbito humano ou nos estudos. Deve ser uma preocupação da escola” Fátima Limaverde, diretora da Escola Vila

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POR Aline Medeiros Ávila Souza Carlos Eduardo Freitas Carolina Melo Filipe Pereira Michel Miron FOTOS Filipe Pereira

O sagrado é de todas as religiões Professor da Rede Municipal de Fortaleza revela detalhes sobre o ensino religioso e aponta os principais desafios na cidade

ENTREVISTA

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Reticências entrevista o professor Jonas Serafim de Sousa, 53. Graduado em Ciências da Religião pela Faculdade Católica de Fortaleza, Jonas Serafim é cristão ecumênico e ministra ensino religioso para o nível fundamental em uma escola pública da periferia de Fortaleza. A entrevista tem como base a sua função enquanto professor e a problemática que a envolve devido à laicidade do país e a quantidade majoritária de cristãos. Jonas Serafim conta que nasceu em uma família muito católica. Seu pai e tios chegaram a ser seminaristas, mas não concluíram os estudos, o que também aconteceu consigo ao fazer boa parte do ensino fundamental e médio no colégio seminarista Seráfico Nossa Senhora do Brasil. “Eu não tinha vocação, mas queria estudar, e o seminário foi bom para mim”, revela o professor. O aprendizado e a Lei Jonas Serafim procura trazer em suas aulas uma linguagem que faça o aluno refletir sobre religião e espiritualidade. “É um ensino aberto, é uma linguagem aberta e ecumênica, mais ecumênica ainda porque não ficamos apenas no ensino

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“Não existe

uma educação completa sem espiritualidade”

cristão, muçulmano, ortodoxo e judaico, nós nos abrimos para todas as religiões”, revela o docente ao afirmar que a escola é um laboratório do pensamento. “Se você quer seguir uma religião, eu digo: ‘vá lá para a igreja na sua comunidade, seu caminho de fé e salvação’, aqui na sala de aula, não é caminho de salvação de ninguém”, relata. Perguntado sobre os benefícios de que um ensino religioso e plural, que atenda às normas da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), traria a um jovem que inicia seus estudos, o educador relata que poderia mudar a maneira de compreender religiões diferentes “porque a gente não teve o estudo aprofundado sobre a religião indígena, sobre a umbanda, sobre

o candomblé, sobre o sincretismo religioso e as tradições afro-brasileiras aqui no Brasil”, comenta o professor. De acordo com a LDB, o ensino religioso é de matrícula facultativa, mas ao mesmo tempo parte integrante da formação básica do cidadão, assegurando o respeito à diversidade cultural sem a prática de proselitismo. Ao comentar sobre suas reflexões em sala de aula, o educador destaca como é o seu tratamento no que diz respeito ao fenômeno religioso, que diverge de acordo com as culturas e as subjetividades. “Tem gente que diz para mim que o Sagrado é um prato de comida, eu vou dizer que não é se o menino está com fome? Para ele, um prato de comida é sagrado”, este termo foi tema da pesquisa de sua especialização: O que é o Sagrado para você? “Esse é o termo que a gente trabalha, são saberes e fenômenos religiosos, unir a espiritualidade com a educação. Não existe uma educação completa sem espiritualidade”, afirma. Dificuldades no ensino religioso O docente coleciona ao longo de sua carreira inúmeras histórias sobre suas dificuldades em lecionar o


fenômeno religioso para estudantes que muitas vezes não possuem interesse necessário para as aulas. “Esses alunos têm um comportamento agressivo, assistem muita televisão, têm a internet na mão deles, não tem lei que tire isso da mão deles, você não pode mais voltar isso, principalmente em escola pública”. O problema não é apenas estudantil, mas tem maior força “pela ausência dos pais também”, relata. De acordo com o professor, tal comportamento não é atrelado somente ao ensino religioso, mas também às outras matérias, pois, segundo ele, o problema é generalizado e “não há disciplina que não sofra com tal falta de interesse”. Outro problema que se soma à questão do ensino religioso no Brasil é a falta de livros didáticos para os alunos, “a gente não tem livro, o governo não passa livro. Nós temos muitos, muitas fontes, mas no ensino religioso nunca teve livro para o aluno, os livros que chegam na biblioteca são para o professor consultar e os alunos consultarem”, lamenta o educador. Por fim, quando perguntado se as mudanças na lei em relação ao tratamento do ensino religioso nas escolas poderiam ser vistas como consequência da queda do número

“A gente não tem livro. Nós temos muitas fontes, mas no ensino religioso nunca teve livro para o aluno” de católicos no Brasil (de 73,6% da população em 2000 para 64,6% em 2010, de acordo com o Censo do IBGE de 2010), o professor afirma que vê o fenômeno de forma inversa. “A lei está se adaptando a uma realidade que forçou ela a fazer isso. Porque, hoje ninguém pode dizer como décadas atrás diziam, que o brasileiro é católico e que o Brasil é um país católico, isso não existe mais”, assume.

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Vida na igreja ENSAIO

POR Larissa Pereira

Força, segurança e vitória

Oração que alcança o céu

Marcas de amor

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Marcas na história Recanto do Sagrado Coração

Cruz Redentora

Caminhos da fé

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A história da salvação e a agonia de uma mãe

Simplicidade

Sentido e direção de um cristão

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POR Diego Barbosa

CRÔNICA

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Saberes coletivos

e ônibus sempre andei, desde pequeno. Filhos do asfalto sob quatro rodas, meus pais sempre tiveram um carro, mas o bendito só era usado para passeios em nossas saídas dominicais à casa de minha avó, em intervalos temporais regulares. A distância nos consumia, o relógio mais ainda. O domingo sempre representou, assim, a possibilidade de dar uma volta no possante, além da chance de conhecer o que havia mudado na cidade ao redor. Sem dúvida, era o melhor dia da semana para mim... Mas, talvez por viver constantemente dentro de um ônibus – 5 dias da semana durante todo o ano, para ser mais preciso, a transitar pela urbe em busca de uma ida ou de uma volta para o lugar desejado – nunca me imaginei fora daquele espaço. Não por muito tempo. Estranhamente, até hoje eu acho reconfortante estar em contato com outras pessoas, partilhando o mesmo lugar, o mesmo desejo de ir ou voltar para ali ou acolá, por onde o destino

nos levar. Dentro da rota prevista, claro. E foi em uma dessas vezes em que eu estava perdido em meus pensamentos de agradecimento por estar ali, naquele ônibus, são, salvo e em movimento, que eu presenciei um dos momentos mais sublimes e marcantes da minha vida, algo que eu nunca vou esquecer. Eu vinha voltando para casa, sendo eu o único que estava em pé no coletivo. Observava a paisagem, observava as pessoas que ali se encontravam e via que quase todas estavam fissuradas com o seu celular na mão, rindo com ele, jogando nele, tendo uma vida ali. De repente, quando o ônibus parou em um sinal, vi uma velhinha que estava encostada no muro de sua casa, protegida por um grosso portão de ferro. Levantando o olhar para as janelas do ônibus, ela olhou para mim e soltou um lindo e espontâneo sorriso. Sim, um sorriso sincero, tão materno, tão acolhedor... Rapidamente, no entanto, o ônibus soltou um ruído e partiu.

Ele partiu; eu não. Senti-me diferente, feliz. E concluí: acho que se as pessoas se desconectassem um pouco dos seus aparelhos eletrônicos e dessem uma chance às mais simples e belas manifestações de amor que às vezes encontramos nas ruas, o mundo seria diferente, mais humano, menos quase robótico. E assim caminha a vida de todos nós, dando voltas, acompanhando o movimento ora lento, ora frenético dos ônibus da existência, sabendo que em todo lugar há uma lição de aprendizado, um saber a ser desvendado. Como eu aprendi ali, naqueles trinta segundos que definitivamente mudaram o meu dia e que até hoje ressoam em minha mente como prova de que perceber e dar valor ao que se encontra fora da gente também pode ser um ótimo exercício de encontro conosco mesmos. Uma oportunidade ganha, mais um saber para a coleção.

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