A função das cartas

Page 1

Sua função na obra A história de Clarice de Anna Cláudia Ramos


As cartas nos textos narrativos podem ter várias funções. O narrador pode servir-se delas para:

• servir de elo de ligação entre os dois interlocutores; • comunicar decisões tomadas; • persuadir o destinatário a adotar determinadas atitudes; • autojustificar os atos do destinador; • exprimir sentimentos; • acelerar o processo narrativo.


Análise das cartas da obra A partir de algumas questões, e de outras que surjam durante a análise, presta atenção aos seguintes aspetos durante a tua análise em grupo de uma das cartas da obra: 1) As cartas têm a mesma extensão? 2) As cartas são regulares? 3) As cartas têm o mesmo tom? 4) Qual é a linguagem das cartas? O que permite expressar essa linguagem? 5) À medida que a ação avança para o desenlace, as cartas mudam. Identifica essa mudança. 6) Nas cartas podemos encontrar algumas caraterísticas do género lírico? (expressão da interioridade do « eu »; tradução de uma forma de estar no mundo; linguagem conotativa e diversos recursos expressivos; função emotiva e poética; interjeições; pontuação expressiva) 7) …


1ª Carta Carta entre Clarice e Raquel (protagonista de A Bolsa Amarela) - pp. 36-40 (cap. 4) 1. Nesta carta há vários tons: a) um tom alegre pois a Clarice está contente, alegre pois encontrou uma nova amiga com quem falar e partilhar os seus sentimentos (p.38, 4§: “Ainda bem que concheci você...”); b) um tom de confissão pois Clarice confessa a Raquel as suas vontades (p.39 1§); c) um tom de reflexão em que Clarice medita sobre o irmão e sobre o que faz, nomeadamente a esse mesmo irmão André, sobre as suas vontades, sobre o comportamento da mãe (p. 38, 2§ e 3§, p.39 1§ e p.37 1§). 2.A linguagem utilizada na carta está muito próxima da oralidade. Esta linguagem permite expressar a alegria de Clarice, o que ela sente por Raquel. Raquel e a carta permitem a Clarice exprimir-se desde o abandono da mãe. Pela primeira vez a menina rompe o silêncio e sente-se isso na forma como redige a carta. Usa frases simplificadas, multiplicadas de perguntas (retóricas, frequência de repetição. Também mostra que é uma jovem que fala, Clarice. 3. Podemos encontrar algumas caraterísticas do género lírico. Clarice exprime os seus sentimentos mais profundos: As suas três vontades (p.39, 1 §): não ser invisível, ser independente e ter uma família feliz. Clarice exprime a vontade de estar no lugar do André e de ser amada( p.37, 1§) o que mostra que não se sente bem no lugar que ocupa, queria viver no lugar do irmão. O sentido conotativo da palavra “insensível” traduz com força a forma como ela sentiu e ainda sente a indiferença da mãe (p.39, 1§). As interjeições “Nossa!” (p.38, 1§), “Ufa” (p.39, 4 §) são igualmente marcas do discurso de Clarice que revela o que sente, sem hesitações, ao interlocutor (Raquel/ nós leitores). Também encontramos sinais de pontuação expressiva ao longo da carta os pontos de interrogação abundam; as reticências surgem uma vez e o ponto de exclamação também ocorre. 4. O narrador serve-se das cartas para lhes conferir funções diversas: - servir de elo de ligação entre os dois interlocutores (p. 37, 2§); - exprimir sentimentos ( p.37, 1§). (bubu, magalhães, ninguém, bvg, smile)


2ª Carta Carta entre Tia Lu / Raquel (protagonista de A Bolsa Amarela) e Clarice - pp. 41-42 (cap. 4) -

Esta carta permite à tia Lu dar continuidade ao faz-de-conta de Clarice e iniciar por escrito a comunicação com a sobrinha que até aí se refugiou no silêncio recusando a comunicação com quem quer que fosse. A função da carta é pois, neste caso específico da 2ª carta, quebrar o silêncio entre as duas personagens. A tia também aproveita a obra de Lygia Bojunga (a ideia do descosturar ideias) para tentar ajudar a sobrinha a pôr um ponto final no sofrimento causado pelo tratamento e abandono da mãe Andreia. A carta, tal como toda a obra, é atravessada pela intertextualidade anunciada pela autora no início da narrativa. (cf. postagem sobre Intertextualidade) O nível de língua é familiar. Podemos interpretar o facto da tia querer manter a proximidade da sobrinha servindo-se para isso do mesmo nível de língua (“Ah! Pode deixar…”, p. 42) Temos um tom dialogante e alegre ao longo da carta que serve a tal intenção de proximidade que a tia Lu procura criar com a sobrinha. A pontuação é expressiva e reflete a expressão dos sentimentos íntimos (pontos de interrogação e de exclamação)


3ª Carta Carta entre Clarice e Raquel (protagonista de A Bolsa Amarela) - pp. 48-50 (cap. 5) Para que serve esta carta? Esta carta serve de elo de ligação entre os dois interlocutores que são a Clarice e a Tia Lu : “ Sabe Raquel (...) “ (p.49, 2 °§) Serve igualmente para comunicar decisões tomadas: “ E prometo que vou arrumar logo um lugar para guardar minhas vontades” ( p.49, 3°§ ). Esta carta serve para, em tom confessional, agir sobre o destinatário que é a tia Lu levando-a a prestar atenção no amor de Fábio. Serve ainda para a protagonista exprimir sentimentos: “ Uma fofa “ (p.48, 6°§ ) A carta tem o mesmo tom do princípio ao fim? No principio, Clarice escreve num tom entusiasmado, "[…] adorei sua carta e tudo que veio junto com ela"(p.48,§). A pouco e pouco, a carta vai perdendo o seu entusiasmo, e ganha tristeza: “Fiquei até achando que tinha roubado mesmo a alegria dela […]” (p. 48, 2°§). No fim da carta, a Clarice volta à sua alegria inicial : “[…] quase na hora de realizar um sonho!” (p.50, 1° §). Qual é o nível de língua desta carta? Na carta, notamos um registo de língua familiar: “Querida Raquel” (p.48, 5°§). Essa linguagem permite criar uma relação próxima entre Clarice e o seu interlocutor (Raquel/Tia Lu/leitor): “Olha, tenho que contar um segredo […]” (p. 49, 3°§). Na carta podemos encontrar algumas características do género lírico? Podemos sim, por exemplo quando observamos a expressão dos sentimentos da Clarice: “[…] Adorei a sua carta […] (p.48, 5°§). (mimi, brazzzil, mata8, sailing, tété78)


4ª Carta Carta entre Raquel (protagonista de A Bolsa Amarela) e Clarice - p. 50 (cap. 5) -

• A partir desta quarta mensagem, as cartas tornam-se bilhetes. • O ritmo da narrativa acelera e as dimensões das mensagens encurtam, a mensagem reduz-se ao essencial, neste caso a explicação de como se faz para esquecer uma ideia que magoa (o “descosturar a ideia” que vem de Lygia Bojunga) • O nível de língua familiar mantém-se “é assim ó” (p. 50)


5ª Carta Carta entre Tia Lu/Raquel (protagonista de A Bolsa Amarela) e Clarice - p. 55 (cap. 5) -

• Estas duas linhas em que a tia, sob a identidade da Raquel, convida a sobrinha para irem só as duas ao circo é mais um bilhete. • O nível de língua familiar mantém-se assim como o faz-de-conta.


6ª Carta Carta entre Tia Lu/Raquel (protagonista de A Bolsa Amarela) e Clarice - p. 58 (cap. 5) -

• Esta é a última carta. O faz-de-conta começa a desaparecer, pois a tia Lu já não se esforça por se esconder atrás da Raquel. Pela primeira vez não assina “Raquel” e fala livremente sobre a chegada da Clarice e do irmão André ao sítio. Isso mesmo a Clarice indica, quando termina a leitura da carta (p. 58): “Que estranho! Pela primeira vez a carta da Raquel parece com a voz da tia Lu falando e não a da Raquel.”


Conclusões da análise das cartas : 1) 2) 3) 4) 5)

6) 7)

As cartas não têm a mesma extensão, vão sendo cada vez mais curtas à medida que a conversa epistolar se instala e aprofunda entre Clarice e a Tia Lu. O nível de língua é familiar em todas as cartas. É nas cartas que a voz de Clarice se faz ouvir, uma técnica usada para contornar a mudez da protagonista. As cartas cessam quando a mudez de Clarice cede lugar à comunicação oral. As cartas permitem a expressão dos sentimentos íntimos da protagonista. Quando a dor é forte, torna-se mais fácil despejar no papel os sentimentos. A dor de Clarice é enorme e o facto de só ser capaz de se exprimir, no início, através da carta e usando o faz-de-conta de se dirigir a uma personagem de livro permite acentuar essa dor. Dominam as funções emotiva e poética nas cartas trocadas entre a Clarice e a tia Lu/Raquel. As interjeições e a pontuação expressiva são algumas das marcas desse discurso íntimo desenvolvido nas cartas.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.