Cesário Verde e o Bucolismo

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Universidade do Algarve Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Mestrado em Literatura Especialização em Literatura Comparada

Cesário Verde e o Bucolismo

Docente: Prof. Dr. João Manuel Minhoto Marques Discente: Lúcia da Conceição Cruz

FARO JUNHO 2006



Cesário Verde e o Bucolismo Na poesia de Cesário Verde, poeta ligada ao Parnasianismo/ Realismo, a realidade social é alvo de um olhar atento e crítico, que o poeta tenta pintar «por letras, por sinais». Através da sua poesia podemos revisitar a Lisboa do século XIX e os campos que a circundam. Esta faceta da sua poesia, fez com que, no seio da crítica literária, a dicotomia cidade-campo se transformasse numa das suas principais linhas de leitura. Assim, ao longo deste ensaio, procuramos analisar a funcionalidade da dicotomia campocidade na poesia de Cesário Verde. Para tal, recorremos, num primeiro momento, às visões apresentadas por David Mourão-Ferreira, Helder Macedo e Joel Serrão a respeito desta temática, para que num segundo momento, à luz da tradição bucólica, possamos analisar a funcionalidade desta dicotomia na obra poética de Cesário. Para David Mourão-Ferreira, o contraste cidade – campo na poética de Cesário surge como o resultado de uma visão específica do mundo e de uma experiência «individual e inesperada», que levam o poeta a optar pelo espaço do campo, «porque a sua natureza particular, a sua época, a sua cultura, assim o determinaram.»1. O contraste cidade-campo está subjacente ao texto, é subconsciente, mas é suficiente para determinar a preferência por um desses espaços, que neste caso é o campo. O trajecto de Cesário é feito da cidade para o campo e é explícito nos poemas «Noite Fechada», «De Verão», «O Sentimento dum Ocidental» e «Nós». O campo começa por ser um agradável lugar de repouso, um antídoto às corrupções da cidade. No entanto, o desencanto pelo espaço citadino, expresso n’«O Sentimento dum Ocidental», resulta da associação que é feita entre cidade e Progresso. Por sua vez, os estudos críticos de Helder Macedo, à semelhança do que acontece com os de David Mourão-Ferreira, também apontam para um contraste cidade-campo. Cidade e campo funcionam como uma antinomia estruturante, como «duas séries semanticamente opostas: as negativas correspondendo à cidade e as positivas ao campo.»2. Ao recuperar as ideias de David 1 Mourão-Ferreira, David, «Notas sobre Cesário Verde», in Hospital das Letras. Ensaios, Lisboa, IN-CM, 1980. 2 Macedo, Helder, «O bucolista do Realismo», in Cesário Verde. O romântico e o feroz, Lisboa, & etc, 1988, p.38.

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Mourão-Ferreira, mais propriamente à ideia de que na poesia de Cesário o contraste cidade-campo é o resultado de uma visão condicionada pela época e pela cultura do próprio poeta, Helder Macedo acaba por completar a reflexão deste crítico literário, ao apontar para uma evolução tradição bucólica e para a possibilidade desta ser sujeita a várias interpretações conforme a época e a cultura em que o autor se integra3. Tendo em conta o género bucólico, Helder Macedo considera Cesário Verde um poeta bucólico moderno e um poeta realista da «era das ideologias», já que no seio da sua poesia se regista por um lado, uma condenação à estrutura social dominante, recorrendo à corrente ideológica de Proudhon, contemporânea da época da escola realista, e por outro lado, uma reformulação da tradição bucólica, ao prever uma alternativa Idade do Ouro em que não se colocasse o conflito de classes: «[...] a análise do género poético permitiu-me ver na sua obra uma reformulação do bucolismo tradicional, com a substituição do ideal retrospectivo de uma comunitária Idade do Ouro perdida pela visão prospectiva de uma sociedade igualitária futura trazendo uma dimensão ideológica moderna, de inspiração proudhoneana, à antiga crítica pastoril da cidade como a perversão intituída da ordem social natural.»4

Para Joel Serrão, a linha condutora da poesia de Cesário Verde também se centra na dialéctica das experiências campestre e citadina, facto que se pode comprovar através das composições «Setentrional», «O Sentimento dum Ocidental», «Nós» e «Provincianas»5. No entanto, ao contrário do que aponta David Mourão-Ferreira, Joel Serrão considera que o trajecto de Cesário Verde, se faz do campo para a cidade. A experiência urbana do autor constituiu «[...] um momento de um itinerário que, naturalmente, principiara nos campos e a estes reverteria, em busca da para sempre perdida harmonia das coisas.»6. A Lisboa de Cesário era uma cidade encarada como um local de profanação, de miséria, um espaço de onde teria desaparecido a «inocência» dos campos e a «naturalidade», o que constitui motivo para que se coloque o problema da adaptação a um novo meio urbano marcado pela industrialização e pela marginalização das realidades rurais. Assim, segundo este autor, a dialéctica campo-cidade opera-se em dois momentos: um primeiro momento que é realizado a partir do campo em busca da «regeneração» citadina e o segundo, após a desilusão urbana em que se regressa ao espaço rural, com a ressalva de que a visão 3 Macedo, Helder, Op. cit., p.42. 4 Macedo, Helder, «Bucolismo e Sexualidade», in Cesário Verde. O romântico e o feroz, Lisboa, & etc, 1988, p.57. 5 Serrão, Joel, O essencial sobre Cesário Verde, Lisboa, IN-CM, 1986, p.43. 6 Ibidem, p.43

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do campo em «Nós» é uma visão «realista» que não representa um retrocesso em relação a «O Sentimento dum Ocidental», mas que constitui um passo em frente para um novo percurso que se poderia ter iniciado em «Provincianas». As perspectivas apresentadas permitem-nos constatar que as grandes linhas de leitura da poética de Cesário Verde incidem na problematização da dicotomia cidade-campo, apontando para um contraste entre os dois espaços e para o retorno a um espaço campestre, fundamentado na leitura do poema «Nós», sendo que o desencanto pela cidade se encontra traduzido no poema «O Sentimento dum Ocidental». Tendo em conta as ideias expressas pela crítica literária e relembrando as convenções da tradição bucólica, na segunda parte deste ensaio propomo-nos revisitar a poesia de Cesário Verde e assumir um olhar mais atento às composições poéticas que consideramos ser as mais representativas do seu universo poético: «Num Bairro Moderno», «O sentimento dum Ocidental», «Nós» e «De Tarde». Com «Num Bairro Moderno» e «O Sentimento dum Ocidental» estamos perante duas composições poéticas, em que o sujeito-narrador deambula pela cidade, sozinho, emitindo um olhar atento sobre a realidade quotidiana da cidade de Lisboa, observando os hábitos da classe burguesa e a azáfama dos membros do Povo. Em «Num Bairro Moderno», o leitor depara-se com um sujeito poético que circula pela cidade e que vai a caminho do emprego, pelas dez horas da manhã. Logo desde o início da composição poética apercebemo-nos do mal estar psicológico que a cidade causa no narrador: ao observar os hábitos da classe burguesa: «Como é saudável ter o seu aconchego, /E a sua vida fácil!», o narrador não pode deixar de ficar «Com as tonturas duma apoplexia». No entanto, o seu olhar recai sobre a figura de uma rapariguita que transporta um enorme cesto de frutas e de vegetais, que ao sujeito poético se afigura «Como um retalho de horta aglomerada». Ao contemplar a cesta, e num rasgo de inspiração artística, o sujeito poético metamorfoseia o conteúdo da cesta numa figura humana: «Num ser humano que se mova e exista/ Cheio de belas proporções carnais?!». A representação antropomórfica de uma figura feminina, na perspectiva de Andrée Rocha é um «Adamastor vegetal» que representa «a fugaz e polimorfa presença da terra numa rua lisboeta»7. 7

Rocha, Andrée, «Cesário Verde, poeta barroco?», in Temas de Literatura Portuguesa, Coimbra, 1986,

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Para Helder Macedo8 a vendedora de fruta e hortaliça é uma personificação metafórica do campo a invadir a cidade com «as forças, a alegria, a plenitude» que, por um lado curam o narrador das suas tonturas, e que por outro, trazem saúde à própria cidade. Eis um aspecto que merece a nossa reflexão. Concordamos que o conteúdo do cesto de frutas é uma representação do espaço campestre, no entanto não podemos ignorar as características da figura feminina que o transporta, pois trata-se de uma rapariga pobre e doente: ela está rota, é pequenina, é magra e enfezada e tem «bracinhos brancos», não tem a face rosada e não tem quadris: «Descolorida nas maçãs do rosto,/ E sem quadris na saia de ramagens». Se tivermos em conta a tradição bucólica, estamos perante uma desconstrução da representação do campo enquanto espaço de virtude, ócio e harmonia. Se as frutas representam a vitalidade e a plenitude do espaço campestre, então a sua representante, a vendedora de frutas, não o representa. Assim, estamos perante uma dupla representação do campo: por um lado, enquanto local que fornece alimento ao homem, mas não de forma gratuita, porque para a terra dar fruto, o homem teve de trabalhar nela; e por outro, enquanto local em que também existe a doença, que aqui surge representada pela figura da rapariga. Neste poema de Cesário estamos perante uma intersecção dos dois espaços, pois nenhum deles pode ser autónomo: o campo precisa da cidade para vender os seus produtos, e a cidade precisa de adquirir o que se produz no campo. Por sua vez, «O Sentimento dum Ocidental» é um dos poemas de Cesário Verde que traduz um desencanto pelo espaço da cidade, dado que a esta surgem associadas as ideias de sofrimento, de solidão e de opressão. Neste poema temos um poeta-narrador que empreende uma deambulação solitária pela cidade lisboeta, num espaço de tempo que compreende o final da tarde e as horas mortas da madrugada. O espaço citadino causa no narrador um mal-estar que se traduz «[n]um desejo absurdo de sofrer» provocado pela «soturnidade», pela «melancolia», pelas «sombras», pelo «bulício», pelo cheiro a maresia e pelo cheiro a gás que enjoa e perturba. A Lisboa por onde deambula o sujeito poético é uma cidade marcada pelo artificialismo das construções «rectas» e «iguais». N' «O sentimento dum Ocidental», a cidade é o reverso do Éden, pois neste espaço, a comunidade humana vive presa e sem qualquer esperança no futuro: «Mas se vivemos, os emparedados, / Sem árvores, no vale escuro das muralhas!», só resta lamentar o destino de uma comunidade condenada ao sofrimento. p. 122. 8 Macedo, Helder, «O bucolista do Realismo», in Cesário Verde. O romântico e o feroz, Lisboa, & etc, 1988, p.42-43.

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No decorrer da sua deambulação pela cidade, na secção «Ao gás», o cheiro «salutar e honesto» do pão que acaba de sair do forno, resultado de um trabalho artesanal e que transmite uma visão subjectiva de calor e honestidade, é o único elemento de que o poeta narrador dispõe para contrastar com o artificialismo e o cheiro mórbido a doença e a sofrimento que emana da cidade. O carácter deambulatório do percurso do narrador pela noite lisboeta, leva-o a uma divagação, em que se invocam momentos do Passado da História de Portugal. Num primeiro momento, na secção «Avé-Marias», a invocação às conquistas dos Mouros e a Camões: «Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!/ Luta Camões no Sul, salvando um livro, a nado/ Singram soberbas naus que eu não verei jamais!», que no plano do presente da enunciação vem contrastar com as condições de vida miseráveis das varinas, aqui associadas à ideia de doença: «E apinham-se num bairro aonde miam gatas, / E o peixe podre gera focos de infecção!». Num segundo momento, na secção «Noite Fechada», a referência a um passado mais recente, mas agora de carácter negativo, como a Inquisição e o terramoto de 1755: «lançam a nódoa negra e fúnebre do clero: / nelas esfumo um ermo inquisidor severo,», «Na parte que abateu no terremoto,», que contrastam, no plano do presente da enunciação, com o carácter artificial das construções da cidade, com a visão da estátua de Camões, aqui considerado «um épico doutrora», e com a referência às epidemias de cólera e de febre que assolaram a comunidade lisboeta. Até mesmo a referência que se faz a um geração do futuro «Ah! Como a raça do porvir,/ E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,/ Nós vamos explorar todos os continentes/ E pelas vastidões aquáticas seguir.» contrasta com a negatividade do plano presente, em que a comunidade humana vive prisioneira e está destinada ao sofrimento colectivo: «A dor humana busca os amplos horizontes/ E tem marés, de fel, como um sinistro mar». Perante este quadro, até mesmo a invocação ao campo, não passa de um projecto ilusório, pois as notas pastoris surgem «longínquas» e «infaustas»: «Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,/ As notas pastoris de uma longínqua flauta.». Assim, relativamente a este poema, podemos considerar que o espaço da cidade, à semelhança do que preconiza a tradição bucólica, é o espaço da corrupção e do sofrimento, no entanto, e ao contrário do que preconiza essa mesma tradição, neste poema, o campo não é a Arcádia e nem é o espaço alternativo à Babel, dado que as notas pastoris são infaustas, preconizam a infelicidade e a ilusão, e não um apelo à harmonia e à felicidade do homem. Nem mesmo o passado que se invoca confirma a Arcádia, pois ele esteve sempre marcado pela morte e pelo sofrimento. Segundo António Crespo Massieu, o poema «O Sentimento dum Ocidental» alcança uma dimensão épica, na medida em que representa uma metáfora de um sofrimento colectivo, que assola 5


não só a cidade, mas também o país e todo o Ocidente: «Y es metáfora de un sufrimiento colectivo que abarca al yo y lo transciende: la ciudad, el país, esse enfermo casi moribundo que es todo Occidente, son alcanzados por esta reflexión en el que ningún lugar le está reservado a la esperanza.»9.

Se nas composições poéticas que analisámos, o espaço da cidade constitui uma Babel e é um espaço em que imperam o sofrimento da comunidade humana, resta-nos analisar os poemas em que a caracterização do espaço campestre é mais evidente. Revisitemos então o longo poema «Nós» e a composição «De Tarde». O poema «Nós» é um dos poemas da fase da maturidade da poética de Cesário, em que, do ponto de vista do Bucolismo, se apresenta uma visão problemática, mas realista, dos espaços campestre e citadino. Helder Macedo considera que neste poema a imagem arcádica do campo é gradualmente desmistificada aquando das referências aos trabalhos agrícolas e ao lucro comercial, «mudando o foco do poema da regeneração espontânea que o campo oferecera aos fugitivos da “capital maldita” para o valor regenerativo da posse da terra – uma “Terra” pós-lapsária que, “para parir, há-de ter dor”»10. Na verdade o que passa no poema «Nós» é uma caracterização realista de ambos os espaços, revelando os desencantos de cada um deles. A cidade para Cesário, já desde «O Sentimento dum Ocidental» é um espaço marcado pelo sofrimento e pela opressão, ideia que se retoma em «Nós», já que a cidade aqui é uma Babel, uma metáfora de Inferno, um espaço assolado pela doença e pela morte, onde por causa de uma epidemia de Febre e de Cólera, os habitantes são obrigados a procurar refúgio no campo. Na cidade ouve-se «o dobrar dos sinos», assiste-se à paralização dos cais e das alfândegas, ao encerramento das lojas, circulam «as seges dos enterros» e nela apenas permanecem os médicos, os padres, os coveiros e os enfermos. Se numa primeira leitura, o campo aqui surge como um espaço de refúgio, uma espécie de Arcádia imune à doença e à morte, a verdade é que o campo ganha força e vitalidade à custa da calamidade que assola a cidade, o campo ganha vida com o húmus que se produz com a decomposição dos corpos: «Enquanto acontecia esta calamidade,/ toda a vegetação, pletórica, potente,/ Ganhava imenso com a enorme mortandade!» e a Natureza floresce com toda a sua força: «Num ímpeto de seiva os arvoredos fartos, / Numa opulenta fúria as novidades todas». Estamos 9

Massieu, António Crespo, «Lisboa en la Poésia de Cesário Verde», Revista da Faculdade de Letras, nºs 16-17, 5ª série, 1994, p. 97. 10 Macedo, Helder, «O bucolista do Realismo», in Cesário Verde. O romântico e o feroz, Lisboa, & etc, 1988, p.45-46.

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assim perante uma contaminação, afinal o campo ganha com a desgraça que acontece na cidade. Neste contexto, podemos dar razão a António Crespo Massieu11, quando este nos refere que elementos dominantes em «Nós» são a morte e a doença, pois nem com a força e a vitalidade do campo, o poeta se consegue libertar do fantasma da morte. O poema «Nós» coloca ainda outras questões relacionadas com a caracterização do espaço campestre: o campo não é um espaço idílico, pois a ele surgem associadas as ideias de comércio, de lucro, de trabalho, mas também do efeito destruidor da Natureza. Na segunda parte do poema, o sujeito poético elogia a vitalidade do campo, como se recriasse um ambiente idílico, um Jardim do Paraíso. O narrador refere-se à fartura de fruta: «Pela outonal maturação dos pomos,/ Com a carga, no chão pousam os ramos.»; à vitalidade da paisagem: «as montanhas, os vales, a vitalidade equatorial»; à utilidade das plantas: «Cada pé, mostra-se útil, é sensato». No entanto, e tal como nos refere Helder Macedo, esta visão arcádica vai sendo desconstruída. Esta desconstrução explicita-se com a referência às catástrofes naturais e às pragas que prejudicam as culturas: «É o pulgão, a lagarta, os caracóis», «As intempéries, o granizo, a queima»; com a referência aos interesses comerciais: «A exportação de frutas era um jogo: / Dependiam da sorte do mercado»; bem como à dureza do trabalho campestre: «Para a Terra parir há-de ter dor». Estes factores, como que a relembrar a Queda e a maldição de Adão e Eva, levam o narrador a negar a existência de uma Arcádia e a representar o campo, não como um local propício ao ócio, mas sim ao trabalho: «Ah! O campo não é um passatempo/ Com bucolismos, rouxinóis e luar». No poema «Nós», o sujeito de enunciação não se considera nem um citadino, nem um camponês, considera-se um provinciano: «Nós vamos para lá; somos provincianos/ Desde o calor de maio aos frios de novembro!». O sujeito poético não permanece no campo, não o escolhe para sua morada, pois no final do poema ele regressa à cidade, à «capital maldita». Se no poema «Nós» o campo é negado como um espaço edénico, em «De Tarde», ele representa um espaço fortemente idealizado, que aqui só existe para representar os prazeres da vida burguesa. Neste poema, que se assemelha a um quadro impressionista, o espaço natural é um cenário que «Em todo o caso dava uma aguarela». Nele cria-se um atmosfera de erotismo e de sensualidade, pois as figuras principais deste quadro são os seios da burguesinha e o ramalhete das papoulas: «Dos teus dois seios como duas rolas,/ Era o supremo encanto da merenda/ O ramalhete 11 Massieu, António Crespo, Op. cit, p. 89.

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rubro das papoulas». A tradição bucólica, fundada por Teócrito e Virgílio, aponta para uma visão da simplicidade da vida no espaço do campo e para a criação de uma Arcádia. No entanto, tal não se verifica em Cesário, pois na sua poética, esta tradição é desconstruída. O espaço campestre, tal como nos foi possível verificar em «Nós», não representa nenhuma Arcádia, antes surge como um local ao qual estão associados os interesses comerciais e a dureza do trabalho. O espaço citadino, tal como nos foi possível verificar com «O Sentimento dum Ocidental», é o espaço da corrupção e do sofrimento, no entanto, o sujeito poético não se liberta dela, dado que no final do poema «Nós», ficamos a saber que ele regressa à «capital maldita», embora opte por se denominar um provinciano. Na poética de Cesário Verde, campo e cidade são duas realidades que se intersectam, como podemos comprovar em «Num Bairro Moderno» e «Nós». «Num Bairro Moderno» temos a cesta de frutas que é carregada pela rapariga do povo, e embora o conteúdo da cesta represente vitalidade e saúde, a rapariga magra e enfezada que o transporta acaba por representar a doença. Por outro lado, no poema «Nós», temos um espaço natural que ganha força e vitalidade à custa da mortandade que ocorre na cidade. Na perspectiva de Terry Gifford12, quando no seio do texto literário se opera uma desconstrução da tradição bucólica tradicional e se acaba por revelar o oposto do que ela propunha, isso significa que estamos perante um anti-bucolismo. É tendo em conta a teoria deste autor, que nós podemos concluir que Cesário Verde, pelas ideias anteriormente apresentadas, é um poeta antibucólico.

12 Gifford, Terry, «The anti-pastoral tradition», in Pastoral, London, Routledge, 1999, pp. 116-145. 8


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