CONTOS DE PERRAULT
Charles Perrault nasceu em Paris a 12 de janeiro de 1628, no seio de uma poderosa família burguesa. Tirou o Curso de Direito e exerceu advocacia durante algum tempo. Foi secretário pessoal do ministro Jean Baptiste Colbert. Em 1671 ingressou na Academia da Língua Francesa. Apesar de ter cultivado diversos géneros literários, Charles Perrault ficou conhecido pela sua obra “Contos da Mãe Gansa”, livro que inclui os contos que podes ler e ouvir neste site. Morreu em Paris a 16 de maio de 1703, com 75 anos.
A BELA ADORMECIDA
Era uma vez um Rei e uma Rainha que viviam muito tristes por não terem filhos. Fizeram tratamentos em termas de
todo
o
peregrinações
mundo, e
promessas,
devoções
Experimentaram
tudo,
especiais. mas
sem
resultado. Até que um dia a Rainha ficou grávida e deu à luz uma menina. Fizeram-lhe um batismo magnífico. Foram escolhidas como madrinhas da Princesinha possível
todas
as
encontrar
fadas no
que
foi
país
(e
encontraram-se sete), para que, com os dons que lhe concedessem, conforme era costume
das
Princesa
fadas
tivesse
naquele
todas
as
tempo,
a
perfeições
possíveis e imagináveis. Depois
da
cerimónia
do
batismo,
regressaram todos em cortejo ao palácio real,
onde
tinha
sido
preparado
um
grande banquete em honra das fadas. O lugar de cada uma tinha sido marcado com
um
estojo
de
ouro
maciço
que
continha uma colher, um garfo e uma faca de ouro, enfeitado com diamantes e rubis.
Enquanto cada qual se sentava no seu lugar, chegou uma fada velha, que ninguém se tinha lembrado de convidar, pois havia mais de cinquenta anos que não saía da sua torre e todos pensavam que já estivesse morta. O Rei arranjoulhe um lugar na mesa, mas não lhe foi possível dar-lhe um estojo de ouro maciço como o das outras, porque só haviam sido feitos sete, um para cada uma das sete fadas. A velha julgou que estavam a desprezá-la e resmungou entredentes palavras ameaçadoras. Uma das jovens fadas, a que estava sentada ao seu lado, ouviu-a e, temendo que pudesse dar à Princesinha algum presente maléfico, mal todos se levantaram da mesa, foi-se esconder por detrás de um cortinado, para ser a última a falar e, deste modo, poder reparar o mal que a velha lhe viesse a fazer. Entretanto, as fadas começaram a desfiar os dons que traziam à princesa. A mais jovem deu-lhe o condão de ser a mulher mais bonita do mundo; a segunda, o de ser boa como um anjo; a terceira, ter um encanto admirável em tudo o que fizesse; a quarta, dançar maravilhosamente; a quinta, cantar como um rouxinol; e a sexta, saber tocar qualquer instrumento musical com a máxima perfeição.
Chegada a sua vez, a velha fada disse, abanando a cabeça mais por despeito do que por velhice, que a Princesa espetaria o bico de um fuso na mão e, desse modo, morreria.
Um
estremecer quem
os
não
tão
terrível
presentes,
chorasse.
e
dom não
Nesse
fez
houve preciso
momento a jovem fada saiu de trás do cortinado
e
pronunciou
em
voz
clara
estas palavras: -
Rei
vossa
e
Rainha,
filha
Infelizmente,
tranquilizai-vos!
não não
morrerá tenho
A
assim.
poder
que
chegue para desfazer tudo o que fez uma fada
mais
velha
do
que
eu.
Sim,
a
Princesinha picar-se-á na mão com um fuso,
mas,
em
vez
de
morrer,
apenas
cairá num sono profundo que durará cem anos, findos os quais um príncipe virá acordá-la. O Rei, desejoso de evitar a desgraça anunciada
pela
velha,
mandou
logo
distribuir um edital em que se proibia, a quem quer que fosse, fiar com um fuso ou ter fusos em casa, sob pena de morte.
Passados
quinze
ou
dezasseis
anos,
numa altura em que o Rei e a Rainha tinham ido
para
uma
das
suas
casas
de
campo,
aconteceu que a jovem Princesa, passeando pelo castelo de quarto em quarto, chegou ao cimo de uma torre. Aí, num pequeno sótão, encontrou uma simpática velha que estava sozinha a fiar. - Que está a fazer, avozinha? - Perguntou a Princesa. - Estou a fiar, minha querida - respondeulhe a velha, que não a conhecia. - Ah... Que bonito! - Exclamou a Princesa. - Como se faz? Deixe-me experimentar, a ver se também sou capaz. No
seu
entusiasmo,
nem
sequer
teve
tempo de pegar no fuso. O que a fada tinha anunciado, cumpriu-se e a jovem Princesa espetou a mão e caiu sem sentidos. A boa velha pôs-se a gritar por socorro. Acorreu gente de todo o lado. Salpicaram de água o rosto
da
Princesa,
laços,
deram-lhe
esfregaram-lhe
as
desapertaram-lhe
pancadinhas têmporas
nas
com
colónia, mas nada a fez voltar a si.
os
mãos,
água-de-
Então o Rei, que tinha subido depois de ouvir todo aquele rebuliço, lembrou-se do presságio das fadas. Mandou transportar a Princesa para o mais belo quarto do palácio e deitá-la numa cama bordada a ouro e prata. Parecia um anjo, tão bonita era. O desmaio não lhe alterara as cores: as faces permaneceram rosadas e os lábios cor de coral. Tinha os olhos fechados, mas podia sentir-se a respiração suave, o que significava que não morrera. O Rei ordenou que a deixassem dormir tranquila, até que chegasse a sua hora de acordar. A fada boa que lhe salvara a vida, encontrava-se no reino de Mataquim, a doze mil léguas de distância, quando se verificou aquele incidente. Contudo, foi logo avisada por um anãozinho que calçava as botas das sete léguas. A fada partiu de imediato e, uma hora depois, viram-na chegar num carro de fogo, puxado por dragões. O Rei deu-lhe o braço para a ajudar a descer do carro e a fada aprovou tudo o que ele tinha feito, mas, porque era muito previdente, pensou que, quando a Princesa acordasse, se sentiria perdida, se ficasse completamente sozinha naquele velho castelo.
Assim, tocou com a sua varinha em tudo o que se encontrava no castelo (exceto no Rei e na Rainha): governantas, damas de honor, criadas
de
mordomos,
quarto,
cortesãos,
cozinheiros,
ajudantes,
oficiais, moços,
guardas, pajens, escudeiros. Tocou também em todos os cavalos que havia nas cavalariças, nos grandes mastins de guarda e, por fim, na pequena Pufi, a cadelinha da Princesa, que estava junto dela na cama. Mal lhes tocou, todos
adormeceram,
para
só
acordarem
quando a sua Princesa acordasse. Deste modo, todos estariam prontos a servi-la quando fosse necessário. lume
Até
cheios
os
de
espetos perdizes
que e
estavam de
ao
faisões
adormeceram; e o mesmo aconteceu com o lume. Tudo isto se passou num instante: as Fadas são desembaraçadas nas suas tarefas. Então o Rei e a Rainha, depois de terem beijado a sua querida filha sem a despertarem, saíram
do
castelo
e
decidiram
proibir
que
alguém se aproximasse dali. Esta proibição não era necessária, pois dentro de um quarto de hora cresceu a toda a volta do parque uma tal quantidade de árvores, grandes e pequenas, de silvas e de tojos, tão emaranhados uns nos outros que nem animal, nem homem algum poderia passar. Assim, só se conseguiam ver as ameias das torres do castelo e mesmo só de muito longe.
Passados cem anos, o filho do rei que então reinava,
e
que
pertencia
a
uma
família
diferente da da Princesa, passou por aqueles lugares à caça. Quis saber o que eram as torres que se avistavam sobre tão grande e tão densa floresta. Cada qual lhe repetia o que tinha ouvido dizer. Segundo uns, tratava-se de um velho castelo habitado por espíritos, segundo outros,
todos
os
bruxos
do
país
vinham
celebrar ali as suas cerimónias mágicas. De acordo com a maioria das pessoas, o edifício era habitado por um ogre que para ali levava todas as crianças que conseguia apanhar, a fim de as comer confortavelmente e sem ser incomodado, pois só ele possuía o condão de abrir
uma
passagem
através
do
bosque.
O
Príncipe não sabia em que havia de acreditar, até que um velho camponês lhe disse: - Meu bom Príncipe, há mais de cinquenta anos ouvi o meu pai dizer que naquele castelo há
uma
Deverá
Princesa, dormir
a
mais
durante
bela
cem
do
anos
mundo. e
será
acordada pelo filho de um Rei, ao qual está destinada. Ao ouvir estas palavras, o jovem Príncipe sentiu
uma
grande
emoção
e
decidiu
sem
hesitar que teria de ser ele a pôr fim a tão bela aventura.
Levado
resolveu
ir
pelo
amor
imediatamente
realmente se passava.
e
pela
saber
glória, o
que
Quando avançou em direção ao bosque, as grandes árvores, as silvas e os tojos afastaram-se
para
o
deixarem
passar.
Caminhou, sem dificuldade, em direção ao castelo
e,
nenhum
surpreendido,
dos
membros
verificou
da
sua
que
comitiva
tinha podido segui-lo, porque as árvores se voltavam a cerrar mal ele passava. Entrou num grande pátio e tudo o que aí viu
o
enregelou
de
medo:
um
silêncio
terrível, por todo o lado a imagem da morte. Corpos de homens e de animais, estendidos no chão, pareciam sem vida. Atravessou um grande pátio, subiu a escadaria, entrou na sala dos guardas que permaneciam
alinhados,
ressonando
ruidosamente. Passou por vários quartos cheios
de
fidalgos
e
de
damas,
todos
adormecidos, uns de pé, outros sentados. Entrou depois num quarto todo dourado, onde viu, sobre uma cama, uma Princesa muito
bela
que
parecia
ter
quinze
ou
dezasseis anos. Aproximou-se a tremer e ajoelhou-se a admirá-la. Então, chegado o fim do encantamento, a Princesa acordou e, olhando-o ternamente, disse-lhe: - Sois vós, meu Príncipe? Demorastes muito tempo!
O
Príncipe,
fascinado
com
estas
palavras, não sabia como demonstrar a sua alegria.
Declarou-lhe
simplesmente
que
a
amava mais do que a si próprio. Sentia-se mais tímido do que ela, o que não é para admirar:
a
linda
Princesa
tivera
muito
tempo para sonhar com o que havia de lhe dizer,
pois,
segundo
parece
a
boa
Fada,
durante tão longo sono, dera-lhe o prazer de ter bons sonhos. Havia quatro horas que conversavam
e
ainda
não
tinham
dito
metade das coisas que queriam dizer um ao outro. Entretanto, todo o palácio tinha acordado com a Princesa. Cada um tratava do que lhe dizia
respeito
apaixonados, dama
de
e,
como
estavam
honor
não
cheios
disse
à
de
estavam fome.
Princesa
que
A a
refeição estava servida. O Príncipe ajudou a Princesa
a
levantar-se.
Estava
magnificamente vestida e muito linda. Passaram jantaram,
ao
salão
servidos
dos pelos
espelhos
e
criados
aí da
Princesa. Os violinos e os oboés tocaram músicas antigas mas muito bonitas, embora tivessem
estado
quase
cem
anos
sem
se
fazerem ouvir. Terminada
a
refeição,
celebrou-se
o
casamento. Os príncipes abriram o baile e a festa durou uma semana.
A GATA BORRALHEIRA
Era uma vez um fidalgo que casara em segundas
núpcias
com
a
mulher
mais
arrogante e orgulhosa que alguma vez se viu, mãe de duas filhas como ela e iguais como duas gotas de água. O marido também tinha uma filha, mas esta era doce e boa como a sua mãe, que fora a melhor pessoa do mundo. Assim
que
se
casaram,
a
madrasta
mostrou logo que era muito má. Não podia suportar
as
rapariguinha,
boas pois,
ao
qualidades lado
dela,
as
da suas
filhas pareciam ainda mais antipáticas. Por isso, começou a obrigá-la a fazer os trabalhos domésticos
mais
humildes:
tratava
da
cozinha, limpava as escadas, arrumava os quartos da senhora e das suas filhas; dormia no sótão, num colchão de palha, enquanto as irmãs dormiam em quartos bonitos, com espelhos onde se podiam ver da cabeça aos pés. A pobre menina suportava tudo aquilo com
paciência e
não se
queixava
ao
pai,
porque sabia que ele lhe ralharia. Quando acabava de limpar a casa, a boa rapariga refugiava-se a um canto da lareira e sentava-se nas cinzas. Por isso chamavamlhe Gata Borralheira. Esta, porém, com os seus pobres vestidinhos, era cem vezes mais bonita do que as suas meias-irmãs que, no entanto, se vestiam como grandes senhoras.
Um dia o filho do rei organizou um baile e convidou todas as pessoas importantes. As duas irmãs foram convidadas, porque eram pessoas distintas no país. Começaram logo a escolher
os
vestidos
e
os
penteados
mais
bonitos, cheias de alegria. A Gata Borralheira, coitada,
teve
que
engomar
os
saiotes
e
os
punhos dos vestidos das irmãs. Em casa só se falava do modo como iriam vestidas na noite da festa. - Eu - decidiu a mais velha - vou levar o vestido de veludo vermelho com guarnição de renda da Inglaterra. - Eu - declarou a mais nova - vou vestir o meu vestido do costume mas com o manto de flores de ouro e o colar de diamantes. Ficará um fato invulgar! Chamaram as melhores cabeleireiras que lhes fizeram duas filas de caracóis. Por fim, chamaram muito
a
Gata
apreciavam,
Borralheira, para
que
cujo
desse
gosto a
sua
opinião. Ela deu-lhes ótimos conselhos, além de se oferecer para as ajudar a vestir, o que aceitaram imediatamente. Enquanto as vestia e penteava, as meias-irmãs perguntaram: - Ó Gata Borralheira, gostavas de ir ao baile? - Ah, meninas, estão a troçar! Essa festa não é para mim! - Tens razão! Até dava vontade de rir, ver uma Gata Borralheira como tu num baile!
Qualquer outra rapariga no lugar dela teria feito tudo para as vestir mal, mas como era boa, vestiu-as melhor do que ninguém. As meias-irmãs fizeram dieta, não comeram durante
dois
e
ficarem
com
cinturas
de
vespa. Chegou
finalmente
o
grande
dia
e
as
irmãs partiram. A Gata Borralheira seguiuas com os olhos enquanto pôde e, quando desapareceram, madrinha,
que
desatou tinha
a
vindo
chorar. visitá-la,
A
quis
saber o que se passava. -
Eu
queria...
eu
queria...
-
A
Gata
Borralheira chorava de tal maneira que nem conseguia falar. A madrinha, que era uma fada, consoloua: - Também querias ir ao baile, não é? - É isso mesmo - suspirou. - Bem, prometi a mim própria ajudar-te e vou fazer com que vás ao baile - garantiu a madrinha.
-
Vai
à
horta
e
traz-me
uma
abóbora. A Gata Borralheira foi a correr buscar a abóbora
mais
encontrar.
A
bonita
madrinha
que
conseguiu
esvaziou-a
muito
bem, até ficar só a casca, bateu-lhe com a varinha mágica e, de um momento para o outro,
ela
transformou-se
numa
carruagem completamente dourada.
linda
A seguir, foi ver a ratoeira onde encontrou seis
ratinhos
Borralheira
ainda
que
vivos.
levantasse
Pediu o
à
ferro
Gata
que
os
prendia e mal cada ratinho saía tocava-lhe com a varinha
mágica.
transformava conseguiu
Imediatamente
num
seis
belo
cavalos
ele
cavalo.
magníficos,
se
Assim
cinzentos
cor de rato. Mas como não soubesse de que havia de fazer o cocheiro, a Gata Borralheira lembrou: - Vou ver se na outra ratoeira há algum rato, para fazer o cocheiro. - Está bem - concordou a madrinha. - Vai ver. Daí a pouco regressou com a ratoeira onde havia
três
grandes
ratos.
Dos
três,
a
Fada
escolheu o que tinha os bigodes mais compridos e, ao tocar-lhe, transformou-o num belo cocheiro com o bigode mais bonito que alguma vez se viu. Depois, a fada mandou: -
Vai
ao
jardim.
Por
trás
do
regador,
encontrarás seis lagartos. Trá-los cá. A
Gata
imediatamente.
Borralheira Trouxe
os
obedeceu
lagartos
que
a
madrinha logo transformou em seis lacaios de librés magníficas. Estes subiram para a parte de trás da carruagem e ficaram lá, bem direitos como se nunca na vida tivessem feito outra coisa. Por fim, a fada perguntou: - Aqui tens tudo o que é preciso para ires ao baile. Estás contente? - Oh sim! Mas como hei de ir com este vestido tão feio?
Mal a fada lhe tocou com a sua varinha, o
pobre
vestido
transformou-se
completamente. A Gata Borralheira tinha agora um vestido de brocado de ouro e prata, todo salpicado de pedras preciosas. Nos
pés,
um
par
de
maravilhosos
sapatinhos de cristal. Assim vestida, subiu para a carruagem. A madrinha recomendou-lhe então que não
voltasse
depois
da
meia-noite,
avisando-a de que, se ficasse no baile mais um
minuto
que
fosse,
a
carruagem
transformar-se-ia de novo em abóbora, os cavalos em ratinhos, os lacaios em lagartos e
o
vestido
voltaria
a
ter
o
aspeto
esfarrapado que ela conhecia. A
Gata
madrinha
Borralheira
que
sairia
do
prometeu baile
antes
à da
meia-noite e partiu toda satisfeita. O filho do rei, a quem fora anunciada a chegada de uma
princesa
desconhecida,
correu
a
recebê-la, deu-lhe a sua mão para a ajudar a descer da carruagem e conduziu-a à sala. Fez-se um grande silêncio. Todos pararam de dançar. Os violinos deixaram de tocar. Todos ficaram espantados com a grande beleza da menina. Só se ouvia murmurar: - Oh! Como é linda!
O próprio rei, embora velho, segredou baixinho à rainha que há muitos anos não via mulher tão bonita e graciosa. Nenhuma dama tirava os olhos dela. Observavam atentamente o penteado e o vestido, para
o
poderem
imitar
no
dia
seguinte,
mal
descobrissem um tecido tão bonito e modista tão habilidosa.
O
príncipe
concedeu-lhe
um
lugar
de
honra e convidou-a para dançar. Ela dançou com tanta elegância que deixou todos maravilhados. Foi servido um magnífico refresco, que ele nem sequer provou, de tal modo estava encantado. Foi então que ela foi para junto das meias-irmãs. Falou-lhes com delicadeza e ofereceu-lhes as laranjas e os limões que o príncipe lhe tinha oferecido, o que as encantou, tanto mais que não a reconheceram. Enquanto
conversavam,
a
Gata
Borralheira
ouviu o relógio tocar um quarto para a meia-noite. Imediatamente se despediu e partiu, rápida como o vento. Mal chegou a casa, foi ter com a madrinha. Agradeceu-lhe e disse-lhe que gostaria muito de ir à festa do dia seguinte, já que o filho do rei tanto lho tinha pedido. Enquanto lhe contava os pormenores da festa, as duas irmãs tocaram à porta e a Gata Borralheira foi abrir. - Vieram tão tarde! - Disse ela, esfregando os olhos e espreguiçando-se, como se tivesse acabado de acordar. Mas na verdade não sentia sono nenhum. - Se tivesses ido ao baile - disse-lhe uma das irmãs - não te terias aborrecido. Estava lá a princesa mais bonita do mundo. Foi muito delicada connosco e ofereceu-nos laranjas e limões.
A
Gata
Borralheira
não
cabia
em
si
de
contente. Perguntou o nome da princesa, mas as irmãs não sabiam. Contaram-lhe,
porém,
que
o
filho
do
rei
queria muito saber quem ela era e que, para o saber,
daria
o
que
quer
que
fosse.
A
Gata
Borralheira sorriu e disse: - Então ela devia realmente ser muito bonita! Meu Deus, que sorte a vossa! Como gostava de a ver! Menina Julieta, empresta-me só por esta vez o seu vestido amarelo, o que usa todos os dias? - Aquele que eu também quero? - Perguntou Julieta. - Emprestar o meu vestido a uma Gata Borralheira como tu? Só se eu fosse maluca! A menina já esperava esta resposta e, por isso, ficou contente, pois estaria metida num grande
sarilho
se
a
meia-irmã
lhe
tivesse
emprestado o vestido. Na noite seguinte as duas irmãs foram de novo ao baile. A Gata Borralheira também foi, vestida de forma ainda mais luxuosa do que da primeira vez. O filho do rei não a deixou nem um momento e todo o serão lhe segredou frases apaixonadas estava
e
nada
galantes.
A
aborrecida,
menina,
que
esqueceu-se
não das
recomendações da madrinha de tal modo que, quando
ouviu
a
primeira
badalada
da
meia-
noite, pensou que ainda fossem onze horas. Mas, ao dar-se conta do que se passava, levantou-se e fugiu, ligeira como um gamo. O príncipe correu atrás dela, mas não a conseguiu apanhar. Ao fugir, a Gata Borralheira perdeu um sapatinho de cristal que ele guardou com o maior carinho.
A
Gata
Borralheira
chegou
a
casa
sem
fôlego, sem carruagem, nem lacaios. Trazia o vestido com que costumava andar e, de todo o luxo, apenas lhe restava um dos sapatinhos. Tinha perdido o outro no caminho. Tentaram saber se os porteiros do palácio real haviam visto sair alguma princesa, mas eles responderam que não saíra ninguém, a não ser
uma
rapariga
tão
mal
vestida
que
mais
parecia uma camponesa. Quando as irmãs regressaram do baile, logo a Gata Borralheira lhes perguntou se se tinham divertido e se lá estava também aquela linda senhora. Que sim, mas que fugira no momento em que batia a meia-noite, e tão depressa que deixara cair um dos seus sapatinhos de cristal, o sapatinho mais bonito do mundo. Que o filho do rei o tinha guardado e não fizera outra coisa senão olhar para ele enquanto durou o baile, o que
queria
dizer
perdidamente
pela
que
linda
se
apaixonara
senhora
a
quem
o
sapatinho pertencia. As poucos
irmãs
diziam
dias
a
verdade.
depois,
o
Com
príncipe
efeito,
mandou
proclamar ao som das trombetas que casaria com a menina em cujo pé o sapatinho servisse perfeitamente. Em
primeiro
lugar
experimentaram
as
princesas, depois as duquesas e todas as damas da corte, mas em vão. O sapatinho acabou por chegar a casa das duas irmãs, que fizeram o impossível conseguiram.
para
o
calçarem,
mas
não
A Gata Borralheira, que as observava e que reconhecera o sapatinho, acabou por sugerir: - Vejamos se me serve a mim! As irmãs desataram a rir e a fazer pouco dela. O cavalheiro encarregado de experimentar o sapatinho, encantado com a beleza da Gata Borralheira, achou que era justo, uma vez que tinha ordem para que todas as meninas do reino o experimentassem. Deixou-a sentar-se e tentou calçar-lhe
o
sapatinho.
Servia-lhe
como
uma
luva. Grande foi o espanto das irmãs. Porém, maior ficou quando a Gata Borralheira tirou do bolso o outro e o calçou no outro pé. Nesse
momento
chegou
a
madrinha
que
tocou com a varinha de condão nas roupas da Gata Borralheira, tornando-as mais luxuosas que
nunca.
Foi
então
que
as
irmãs
reconheceram nela a linda senhora do baile e, ajoelhando-se
aos
seus
pés,
pediram-lhe
desculpa pelos maus tratos. A Gata Borralheira mandou-as levantarem-se e abraçou-as. Disselhes que lhes perdoava do fundo do coração e pediu-lhes que gostassem sempre dela. Depois, magnificamente vestida, foi levada à presença do príncipe, aos olhos de quem parecia ainda mais bonita, e casaram poucos dias depois. Como tinha tanto de bondosa como de bonita, convidou as duas meias-irmãs a irem ao palácio e, nesse mesmo dia, casou-as com dois fidalgos.
AS FADAS
Era
uma
vez
uma
viúva
que
tinha
duas
filhas. A mais velha era tal e qual a mãe, tanto na aparência como no mau feito. Eram ambas tão mal-humoradas podia
viver
e
com
orgulhosas elas.
A
que
mais
ninguém
nova,
pelo
contrário, era gentil, boa e muito linda. Era tal e qual o pai. Como cada um prefere o seu igual, a mãe gostava muito da mais velha e detestava a mais nova, obrigando-a a tomar as refeições na cozinha e a trabalhar o dia todo. Entre outras tarefas, a pobre menina tinha que ir duas vezes por dia buscar água a uma fonte que ficava a meia milha de distância. De regresso, vinha carregada com a bilha cheia de água. Certo dia, quando estava na fonte, acercouse dela uma pobre mulher que lhe implorou um pouco de água. -
Sim,
avozinha
–
respondeu
a
menina
delicadamente. Lavou cuidadosamente a bilha, encheu-a no sítio onde a água era mais límpida e ofereceu de beber à velhinha, segurando na bilha para que ela pudesse beber com calma. Depois de saciar a sede, a boa senhora disselhe: - És tão bela, tão boa e tão gentil que não resisto a conceder-te um dom. A velhinha era, afinal, uma fada que tinha tomado a forma de uma pobre mulher para ver até que ponto a menina era gentil e bondosa. - Concedo-te o dom – continuou a fada – de lançares
pela
boca
uma
flor
ou
uma
pedra
preciosa sempre que proferires uma palavra.
Quando a menina chegou a casa, a mãe ralhou-lhe muito porque se atrasara. -
Peço
perdão
por
ter
chegado
tão
tarde, mãe – disse a menina, ao mesmo tempo que lhe saíam da boca duas rosas, duas pérolas e dois diamantes enormes. - O que se passa? – Exclamou a mãe muito admirada. – Parece que te estão a sair da boca pérolas e diamantes. Como é possível, minha filha? (Foi a primeira vez que lhe chamou filha). A
pobre
menina
contou-lhe
o
que
acontecera, enquanto lhe saíam da boca uma infinidade de diamantes. - Tenho que lá mandar a minha filha. Olha, Joaquina, vê o que sai da boca da tua irmã
quando
fala.
Gostarias
de
ter
o
mesmo dom? Só tens que ir buscar água à fonte
e
dar
de
beber
a
uma
velhinha
quando ela te pedir. - Havia de ter graça, ir agora à fonte… – respondeu a malcriada. - Faz imediatamente o que te mando – repreendeu-a a mãe.
Ela assim fez, mas de muito mau modo. Pegou na jarra de prata mais bonita que havia em casa e partiu. Assim que chegou à fonte viu aproximar-se uma senhora que saíra
do
bosque.
Vinha
magnificamente
vestida e pediu-lhe de beber. Era a mesma fada que aparecera à sua irmã, mas que agora
tinha
o
aspeto
de
uma
princesa.
Pretendia averiguar até que ponto chegava a rudeza daquela rapariga. - Então julgas que vim aqui para te dar de
beber?
–
Perguntou
a
malcriada.
–
Trouxe um jarro de prata de propósito para dar de beber a sua excelência! Ora sirva-se sozinha, se tem sede! - Não és nada gentil – repreendeu-a a fada, sem se zangar. – Muito bem! Já que és tão pouco afável dou-te o dom de te saírem sapos ou serpentes pela boca, sempre que falares. Assim que a mãe a viu chegar a casa gritou-lhe: - Então, minha filha? - Então, minha mãe? – Respondeu-lhe a malcriada, cuspindo duas víboras e dois lagartos. - Céus! Que vejo eu? – Gritou a mãe, horrorizada. – A culpa é da tua irmã, mas ela paga-mas.
Como a mãe lhe queria bater, a menina fugiu para a floresta. O filho do rei, que voltava
da
caça,
deslumbrado
encontrou-a
com
a
sua
e
ficou
beleza.
Perguntou-lhe o que fazia ali sozinha e porque estava a chorar. - Ai de mim, senhor! Foi a minha mãe que me expulsou de casa… O filho do rei, que viu saírem-lhe da boca cinco ou seis pérolas e outros tantos diamantes, pediu-lhe que lhe dissesse de onde vinham aquelas riquezas. A menina contou-lhe a sua aventura. O príncipe, que
entretanto
se
apaixonara
por
ela,
achou que um dom assim valia muito mais do que qualquer dote. Então, levou-a consigo para o palácio do rei seu pai e casou com ela. Quanto
à
irmã,
tornou-se
tão
horrorosa que até a mãe a expulsou de casa. Como ninguém queria estar com ela, acabou por se esconder num canto do bosque onde morreu sozinha.
O GATO DAS BOTAS
Era uma vez um moleiro que tinha três filhos. Quando morreu deixou-lhes apenas um moinho, um burro e um Gato. Não foi preciso chamar o notário para dividir este património tão pequeno. O filho mais velho ficou com o moinho e o do meio ficou com o burro. Para o filho mais novo só sobrou o Gato. O rapaz ficou muito
desapontado
por
receber
uma
herança tão pequena. -
Meus
irmãos
–
disse
ele
–
conseguiríamos viver honestamente se juntássemos os nossos haveres; mas, pela parte que me toca, assim que comer o Gato e fizer um casaco com a sua pele, ficarei sem nada. O Gato entendeu perfeitamente estas palavras, mas fingiu não perceber e disse com um ar muito sério: - Não fiques preocupado, Senhor. Só tens que me dar um saco e um par de botas para poder andar na floresta. Verás que a tua parte da herança não é assim tão miserável. O rapaz não acreditou no Gato. No entanto,
como
truques
para
já
o
tinha
visto
usar
caçar
ratos,
ficou
com
esperança de que ele o pudesse ajudar.
Assim que recebeu as suas botas, o Gato calçou-as, pôs o saco ao ombro e dirigiu-se a um local onde havia muitos coelhos. Meteu no saco um pouco de farinha, umas folhas de alface e deitou-se no chão, fingindo-se morto. O seu plano era esperar que algum jovem coelho, ignorante das coisas do mundo, aparecesse e procurasse no saco a comida que ele aí havia guardado. Assim que se deitou, aconteceu o que ele queria e um coelho entrou na armadilha. O Mestre Gato puxou os cordões do saco e matou o coelho sem misericórdia. Satisfeito com a caçada, o Gato dirigiu-se ao palácio do rei e pediu uma audiência. Ao entrar nos aposentos reais, saudou o rei com uma grande vénia e disse: - Trago a Vossa Majestade um coelho bravo que o Marquês de Carabás (este foi o título que ele inventou para o seu amo), me ordenou que lhe oferecesse em seu nome. - Diz ao teu amo – respondeu o rei – que eu agradeço e aprecio a sua gentileza. Passados alguns dias, o Gato escondeu-se num campo de trigo. Assim que duas perdizes entraram no seu saco, fechou-o rapidamente. Foi então oferecê-las ao rei, como tinha feito com o coelho. Ele agradeceu e mandou servirlhe uma bebida. Durante os dois ou três meses seguintes o Gato continuou a oferecer ao rei algumas peças de caça em nome do seu amo.
Um dia, sabendo que o rei ia passear à beira rio com a sua filha, a mais bela princesa do mundo, disse ao amo: - Se quiseres seguir o meu conselho, ficarás rico. Só tens que te banhar no rio, no local que te indicar. Deixa o resto comigo. O Marquês de Carabás seguiu o conselho do Gato, sem imaginar o que iria acontecer. Quando o rei se aproximou do local, o Gato começou a gritar a plenos pulmões: - Socorro, socorro, o Marquês de Carabás está a afogar-se! Ao
ouvir
semelhante
alarido,
o
rei
espreitou pela janela da sua carruagem. Assim que reconheceu o Gato que lhe havia oferecido tantas peças de caça, ordenou aos seus guardas que socorressem o Marquês de Carabás. Enquanto retiravam o pobre Marquês do rio, o Gato aproximou-se da carruagem do rei e disse-lhe que uns ladrões tinham roubado a roupa do seu amo, apesar de ele ter gritado bem alto que o estavam a assaltar. O rei ordenou logo que fossem buscar um dos seus fatos mais elegantes para o Marquês de
Carabás
vestir.
Recebeu-o,
depois,
com
afeto. Como as belas roupas que o Marquês de Carabás vestia realçavam a sua boa figura, a princesa achou-o muito atraente e apaixonouse por ele. Em seguida, o rei convidou-o a subir para a carruagem para continuarem juntos o passeio.
Encantado por ver o seu plano a resultar, o Gato
correu
camponeses
à que
frente
e,
vendo
trabalhavam
alguns
num
prado,
disse-lhes: - Amigos, se não disserem ao rei que o campo
onde
Marquês
estão
de
a
trabalhar
Carabás,
pertence
ao
corto-vos
aos
bocadinhos. O
rei
perguntou
aos
ceifeiros
a
quem
pertenciam as terras em que trabalhavam. - São do Marquês de Carabás – responderam eles, com receio das ameaças do Gato. - Tem aqui uma grande propriedade - disse o rei ao Marquês. - Como pode ver, Senhor – respondeu o Marquês – é um campo que dá boas rendas todos os anos. O Gato continuou a correr à frente e voltou a ameaçar outros camponeses: - Amigos, se não disserem ao rei que o campo
onde
Marquês
estão
de
a
trabalhar
Carabás,
pertence
ao
corto-vos
aos
bocadinhos. O rei, que passou pouco depois, quis saber a quem pertenciam todas aquelas searas. -
São
do
Marquês
de
Carabás
–
responderam os ceifeiros. C
orrendo sempre à frente da carruagem, o
Gato
fez
a
mesma
ameaça
a
todos
os
que
encontrou, e o rei ficou maravilhado com a grande riqueza do Marquês de Carabás.
Finalmente, o Gato chegou a um belo castelo que pertencia a um gigante, o mais rico que alguma vez se viu, porque todas as terras por onde tinham passado lhe pertenciam. O Gato teve o cuidado de se informar sobre quem era este gigante e sobre o que sabia fazer. Pediu que o deixassem falar com ele, pois ficaria muito honrado em cumprimentá-lo. O
gigante
recebeu-o
tão
delicadamente
quanto um gigante sabe fazê-lo e convidou-o a sentar-se. - Disseram-me que podes transformar-te em qualquer animal, por exemplo num leão ou num elefante – disse o Gato. - Informaram-te acertadamente – respondeu o gigante. Para te provar que é verdade, vou transformar-me num leão. Quando viu um leão à sua frente, o Gato ficou muito assustado e saltou para o telhado, embora com alguma dificuldade porque as botas não o ajudaram nada. Assim
que
o
gigante
tomou
a
sua
forma
habitual, o Gato desceu do telhado e garantiu que se assustara muito. -
Também
acreditar,
que
transformares
me
disseram,
também nos
tens
animais
mas o
custa-me
poder
mais
de
a te
pequenos,
como por exemplo num ratinho. Confesso que acho isso impossível – afirmou o Gato. - Impossível? – Gritou o gigante. – Já vais ver. Nesse
preciso
momento
transformou-se
num ratinho que começou a correr pelo chão. Mal o viu, o Gato atirou-se a ele e comeu-o.
Entretanto,
o
rei
chegou
às
portas
do
castelo e pediu para o visitar. O Gato ouviu a carruagem a passar pela ponte levadiça e correu a receber o rei fazendo uma grande vénia: - Bem-vindo ao castelo do Marquês de Carabás. - O quê! – Exclamou o rei. – Este castelo também é vosso, Marquês?
Nunca vi um
pátio tão bonito. Se mo permitires, gostaria de visitar o seu interior. O
Marquês
juntos,
deu
seguiram
o
o
braço
Rei.
à
princesa
Entraram
e,
numa
grande sala onde tinham à sua espera um magnífico
banquete
que
o
gigante
tinha
mandado preparar para os amigos. O
Rei
estava
qualidades
do
encantado
Marquês
e
com
a
as
sua
boas
filha,
a
Marquês
e
princesa, estava apaixonada por ele. Conhecendo
a
riqueza
do
depois de ter bebido algumas taças de vinho, o Rei propôs-lhe: -
Depende
apenas
de
si,
Marquês.
Se
desejar, poderá ser meu genro. Com
uma
grande
vénia,
o
Marquês
aceitou a honra que lhe fora concedida e nesse mesmo dia casou com a princesa. O Gato tornou-se um grande senhor e desistiu divertir.
de
caçar
ratos,
exceto
para
se
RIQUETE DO TOPETE
Era uma vez uma rainha que deu à luz um filho tão feio e tão deformado que, durante
muito
tempo,
se
duvidou
que
tivesse forma humana. Uma fada que estava
presente
assegurou seria
que,
amável
quando apesar e
do
ele
nasceu
seu
aspeto,
muito
inteligente.
Acrescentou ainda que, graças ao dom que
ela
lhe
concedera,
poderia
dar
à
pessoa que mais amasse uma inteligência igual à sua. Estas palavras consolaram um
pouco
a
pobre
mãe
que
estava
tristíssima por ter posto no mundo uma criança tão feia. Com efeito, mal começou a
falar,
o
engraçadas
menino e
disse
logo
inteligentes,
coisas
causando
grande admiração entre quem o escutava. Já me esquecia de dizer que o menino nasceu com uma pequena poupa de cabelo na
cabeça,
o
que
fez
com
que
lhe
chamassem Riquete do Topete, uma vez que Riquete era o seu nome de família.
Alguns anos mais tarde, a rainha de um reino vizinho deu à luz duas meninas. A primeira era mais bela do que o dia e a rainha ficou tão feliz que se temeu que tanta
alegria
lhe
fizesse
mal.
Estava
presente a mesma fada que assistira ao nascimento
do
pequeno
Riquete
do
Topete e, para moderar a alegria da mãe, disse-lhe
que
inteligência
e
a
princesa
que
seria
teria tão
pouca
estúpida
quanto era bonita. A rainha ficou muito triste mas, momentos depois, teve um desgosto ainda maior porque a segunda filha que deu à luz era muitíssimo feia. - Não se aflija, Majestade – disse a fada – a vossa filha será tão inteligente que a sua fealdade quase não será notada. - Deus o queira, – respondeu a rainha – mas não haverá meio de conceder um pouco de inteligência à mais velha que é tão bela? - Não posso valer-lhe no que toca à inteligência, – disse a fada – mas posso fazer tudo em relação à beleza. E como não há nada que eu não faça para vos satisfazer, concedo-lhe o dom de poder tornar bonita a pessoa que ela quiser.
À medida que as duas princesas foram crescendo,
cresceram
também
os
seus
dotes, e não se falava senão da beleza da mais nova.
velha
e
da
Também
é
inteligência verdade
que
da os
mais seus
defeitos aumentaram muito com a idade. A mais nova estava cada vez mais feia e a estupidez da mais velha crescia de dia para dia: ou não respondia ao que se lhe perguntava ou então dizia um disparate qualquer. Além disso, era tão desajeitada que
não
chávenas
conseguia na
borda
pousar da
quatro
chaminé
sem
partir uma, nem conseguia beber um copo de água sem entornar metade por cima do vestido. Ainda que a beleza seja uma grande vantagem numa jovem, o certo é que a mais nova suplantava quase sempre a mais velha quanto a companhias durante os
serões.
A
princípio,
as
pessoas
rodeavam a mais velha para a verem e admirarem mas, pouco depois, iam para junto da mais inteligente escutar as mil e uma coisas espirituosas que ela dizia. Em menos de um quarto de hora a mais velha ficava sozinha, enquanto que mais nova tinha toda a gente em seu redor.
A mais velha, apesar de ser muito estúpida, apercebia-se do que se passava e teria dado de bom
grado
metade
toda
da
a
sua
inteligência
beleza da
em
irmã.
troca
A
de
rainha,
ainda que ponderada, não conseguia deixar de a
repreender
pela
sua
estupidez,
o
que
entristecia ainda mais esta pobre princesa. Um
dia,
foi
para
o
bosque
para
poder
chorar à vontade. Nisto, aproximou-se dela um homenzinho muito feio e desajeitado, mas ricamente
vestido.
Era
o
jovem
príncipe
Riquete do Topete que se tinha apaixonado perdidamente por ela, depois de ver os seus retratos que circulavam por todo o mundo. Abandonara o reino do seu pai para ter o prazer de a ver e de falar com ela. Encantado por a ter encontrado sozinha, dirigiu-lhe a palavra com muita delicadeza. Notando a sua melancolia, disse-lhe: - Senhora, não compreendo como é que uma pessoa tão bela como vós pode estar tão triste.
Asseguro-vos
que
nunca
vi
beleza
semelhante à vossa. - Isso di-lo o senhor – respondeu a princesa. - A beleza constitui um tal privilégio que supera tudo o resto. Quando alguém a possui, não acredito que exista alguma coisa que a possa afligir muito – acrescentou Riquete do Topete.
-
Preferia
ser
feia
como
vós
e
ser
inteligente, em vez de ser tão bela como sou – confessou a princesa. - Se é só isso que vos apoquenta, posso facilmente pôr fim à vossa dor. - E como o farias? – Perguntou a princesa. - Tenho o dom de dar inteligência à pessoa que mais amar. E, como vos amo, dar-vos-ei o que pretendes se aceitares casar comigo. A princesa ficou sem palavras, tal foi o seu espanto. - Vejo que este pedido vos desagrada, o que não me admira nada – continuou Riquete do Topete.
–
Contudo,
dou-vos
um
ano
para
decidires. A princesa era tão pouco inteligente e ao mesmo
tempo
desejava
tanto
sê-lo
que
pensou que um ano seria demasiado tempo para
esperar.
Por
isso,
aceitou
logo
a
proposta que lhe fora feita. Assim que ela prometeu que casaria com Riquete do Topete dentro de um ano naquele mesmo
lugar,
sentiu-se
uma
pessoa
diferente, sem dificuldade em dizer tudo o que lhe apetecia, de uma maneira elegante, clara e natural. Iniciou logo um diálogo de tal forma espirituoso, que Riquete pensou terlhe dado mais inteligência do que a que ele próprio possuía.
Quando regressou ao palácio, a corte nem sabia
o
que
pensar
da
sua
extraordinária
mudança. Em situações onde outrora ouviam um
chorrilho
de
disparates,
ouviam
agora
pensamentos claros e muito espirituosos. A única
pessoa
que
não
ficou
totalmente
satisfeita com esta mudança foi a irmã mais nova, porque havia perdido a única vantagem que tinha em relação a ela. O rei passou a ouvir as
suas
opiniões
conselhos.
Os
e,
por
vezes,
rumores
pedia-lhe
sobre
esta
transformação espalharam-se pelo reino e os jovens
príncipes
dos
reinos
vizinhos
esforçavam-se por conquistar a sua afeição. Muitos
pediram-na
princesa
não
os
em
casamento,
achou
mas
a
suficientemente
inteligentes e recusou todos os pedidos. Por fim, houve um príncipe tão poderoso, tão rico, tão inteligente e tão belo que a pediu em casamento, que a ela não pode deixar de pensar
no
seu
pedido.
O
pai
notou
o
seu
interesse pelo príncipe e disse-lhe que podia ser ela a escolher o noivo que entendesse. Só teria que dizer de quem gostava. Para poder decidir com calma, foi passear, por acaso, para o bosque onde tinha conhecido Riquete do Topete. Foi então que ouviu vozes em surdina, mesmo por baixo dos seus pés, como
se
aí
estivessem
muitas
pessoas
atarefadas, andando de um lado para o outro.
Prestou
mais
atenção
e
ouviu
alguém
pedir: - Traz-me essa panela. E logo a seguir: - Dá-me aquele pote. E outra pessoa: - Põe lenha no lume! Nesse preciso momento o chão abriu-se e ela
viu
lá
em
semelhante
baixo
a
um
uma
enorme
cozinha
espaço
cheia
de
cozinheiros, de criados e de todo o género de ingredientes
que
são
necessários
para
se
fazer um festim magnífico. Um grupo de vinte ou trinta salsicheiros dirigiu-se para uma alameda do bosque. Puseram-se à volta de uma mesa muito comprida e começaram a trabalhar ao ritmo de uma bela canção. A
princesa,
espantada
com
o
que
via,
perguntou-lhes para quem trabalhavam. - O nosso amo é o príncipe Riquete do Topete que se casa amanhã – respondeu-lhe o mais vistoso do grupo. Foi então que a princesa se lembrou que tinha prometido casar-se com Riquete do Topete naquele mesmo dia. Quase desmaiou! Porém,
havia
esquecimento:
uma
razão
naquela
para
altura,
era
o
seu
apenas
uma tonta. Assim que recebeu do príncipe uma nova inteligência, esqueceu todas as tolices que dizia.
Ainda não dera trinta passos quando Riquete do
Topete
surgiu
diante
de
si,
em
trajes
magníficos, conforme convém a um príncipe que se vai casar. - Aqui estou, Senhora, pronto a cumprir a minha palavra. Não duvido que também vieste cumprir a vossa e, assim, tornar-me o homem mais feliz do mundo. - Confesso, com toda a franqueza, que ainda não me decidi e penso que nunca poderei tomar a decisão que deseja – respondeu a princesa. - Muito me admiro, Senhora! – Respondeu Riquete do Topete. - Acredito que, se estivesse a falar com um homem grosseiro e bruto, estaria agora bastante embaraçada. «Uma princesa deve cumprir a sua palavra - dir-me-ia ele.» Mas como estou a falar com o homem mais inteligente do mundo, estou certa que me compreenderá. Sabe que, quando era tonta, nem ao menos pude decidir se queria casar consigo ou não. Se pretendia casar comigo não me devia ter livrado da minha estupidez. Agora vejo as coisas com mais clareza! -
Alteza,
quereis
que
me
contenha
no
momento em que a minha felicidade está em jogo? Será razoável que as pessoas inteligentes se encontrem em desvantagem em relação às que o não são? Mas vejamos os factos, se o permitis.
Além
da
minha
fealdade
há
mais
alguma coisa que não vos agrade? Desagradavos a minha origem, as minhas capacidades, o meu carácter ou as minhas maneiras?
-
Não,
pelo
características
contrário,
me
agradam
todas -
essas
respondeu
a
Princesa, sem hesitar. - Então, serei feliz – continuou Riquete do Topete – pois está na vossa mão tornar-me o mais atraente dos homens. Basta que me ames o suficiente. A mesma fada que me concedeu o dom de tornar inteligente a pessoa de quem mais gostasse, também vos concedeu, a vós, o dom de tornar bonito aquele a quem ames. - Se o que dizes é verdade, desejo do fundo do coração que vos torneis o príncipe mais bonito do mundo – declarou a princesa. Ainda a princesa não tinha acabado de falar e já Riquete do Topete parecia, aos seus olhos, o homem mais bonito e fascinante que alguma vez vira. Há quem diga que esta mudança do príncipe não aconteceu graças ao feitiço da Fada, mas que só por amor se pode obter uma metamorfose assim. Dizem que a Princesa, depois de pensar nas qualidades do seu namorado, deixou de ver o seu corpo deformado. A Princesa prometeu que casaria com ele de imediato, desde que o seu pai concordasse. O Rei, quando
soube
admiração muito
por
que
a
filha
Riquete
conhecido
pela
do
sua
sentia
Topete, grande
grande príncipe
sabedoria,
aceitou-o com prazer como genro. No dia seguinte, celebrou-se a boda, tal como Riquete
tinha
previsto
e
de
acordo
ordens que dera há já muito tempo.
com
as