2ª Tertúlia - «Literaturas do Mundo Lusófono – Vida, Amor e Morte em Português»

Page 1

qwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwert yuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopa sdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghj 2ª Tertúlia - Literaturas klçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxc do Mundo Lusófono vbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmq «Povos, Culturas e Pontes» wertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwerty uiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopas dfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjkl çzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvb nmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqw ertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyui opasdfghjklçzxcvbnmqwert 20-03-2012

ESA – BE - CMS


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS

2ª Tertúlia Literária «Literaturas do Mundo Lusófono – Vida, Amor e Morte em Português» Uma iniciativa organizada pela Escola Secundária com 3º Ciclo de Amora e pela Câmara Municipal do Seixal, no âmbito do Projeto “Povos, Culturas e Pontes” com a participação especial de Bartolomeu Dutra, Horácio Santos, João Pedro Costa, Ladislau Albuquerque, Lídia Duarte, Luís Dionísio, Paula Teixeira, Paulo Chinopa, Pedro Mata, Natália Bailador e Simão Cadete. O homem compreende e olha o que o rodeia através de visões do mundo diversas marcadas não só pela língua que fala, pelas complexas heranças culturais que recebe, como, entre outras variáveis, pela geografia que habita. Que olhares sobre a vida, o amor e a morte nos trazem algumas das diferentes literaturas que se expressam em português? Este é o tema para a nossa 2ª Tertúlia Literária. Rosa Lobato de Faria, A Trança de Inês, Portugal Fernando Namora, Tinha chovido na véspera, in Retalhos da Vida de Um MédicoPortugal Daniel de Sá, Há-de chamar-se Manuel, in Sobre a verdade das coisas Açores, Portugal Germano Almeida, As Memórias de Um Espírito, Cabo Verde José Eduardo Agualusa, Passageiros em Trânsito: novos contos para viajar, Angola Mário Zambujal, Piela e Confidências, in Longe é um Bom Lugar, Portugal José Eduardo Agualusa, O ano em que zumbi tomou o rio, Angola Mia Couto, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros Moçambique

20 de março de 2012

contos,

2


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Dito por João Pedro Costa Estou no convento de Santa Clara onde, perante a recusa estupefacta das madres, mando quebrar a tua sepultura. É campo santo, Senhor, não podeis – dizemme O rei de Portugal pode tudo madre. E os meus homens cavam a terra sob as minhas ordens, levantam o caixão, abrem-no, sacodem as tuas vestes que se esfarrapam, prendem melhor ao corpo com faixas de seda a tua cabeça que as irmãs atabalhoadamente enterraram, deitam-te no palanquim forrado dos melhores veludos, reclinam-te nos coxins de damasco que nenhuma imperatriz desdenharia. Cubro-te o corpo com um manto riquíssimo, componho-te os cabelos longos, longos que, se perderam brilho, guardam o seu simbolismo de sedução. Estás viva. Por isso não trajo de luto. As minhas vestes são vermelhas, da cor do sangue derramado que as minhas mãos tocaram. Atravessaremos os dias e as noites, numa marcha lenta que o cortejo fúnebre, com vinte léguas de comprimento, irá aguentar. Significa que, quando chegares a Alcobaça, o final do cortejo ainda estará saindo de Coimbra. Assim se foi formando, lentamente, dia após dia, o préstito da tua última viagem. O povo, que tudo sabe, acorreu em massa à beira dos caminhos. Trouxeram archotes que transformaram a noite em dia. E o Reino de Portugal fica transfigurado de luzes porque a sua Rainha vai passar.

20 de março de 2012

3


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Não quero tristezas nem cânticos nem rezas. Quero alegria. Por isso à noite pousamos, erguemos tendas, acendemos fogueiras, comemos, bebemos e folgamos. As damas lamentam-se de cansaço, desconforto, fadigas, incómodos de mulheres. Que não cheguem até mim esses queixumes, pois não sofrerei da corte o mais ténue descontentamento. Levamos Inês de Castro a passeio e se ela não se queixa é porque a jornada é aprazível. Murmura-se que haverá beija-mão em Alcobaça e há já quem pretexte males de estômago, culpando algum pedaço de perdiz mal salgada. Deixo-os sofrer deliberadamente por antecipação, deixo que se convençam que beijarão, um a um, a tua doce mão destruída pela escuridão e pelo tempo. Talvez o ordene. É a homenagem que exige a tua realeza. Até lá faço-me folgazão com o povo que acorre atraído pelo cheiro da carne de boi, de cervo, de javali a assar nos enormes braseiros. Baila-se e canta-se como numa festa. É uma festa. Inês está de novo comigo e o fogo omnipresente, simboliza a luz e o incêndio da nossa incomparável paixão. Guardo as lágrimas para as minhas horas secretas. Porque elas são a minha companhia, o meu refrigério, o meu vício. E avançamos como um cortejo de sombras, uma procissão de fantasmas e há nisto um não sei quê de feitiçaria arrepiante. Cada passo do meu cavalo me leva para longe de ti, para uma separação irreversível. Até ao fim dos tempos, até ao dia do juízo final. O povo com os seus archotes, depois de nos ver passar à beira do caminho, junta-se ao préstito. Já que o seu rei é louco não querem perder nenhum pormenor da sua loucura. E é como se todo o reino de Portugal tivesse endoidecido. Agora estamos prestes a chegar e ordeno que cantem. E ergue-se contra o céu estrelado um coro potentíssimo de vozes, desarticulado, desafinado, mais gritado que cantado, como um mar em fúria onde cada um coloca o barco da sua desesperança. Se Deus se dignar olhar-nos dirá, que povo é este, que entre o fogo e o grito leva a morte a passear. Rosa Lobato de Faria, A trança de Inês

20 de março de 2012

4


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Dito por Paulo Chinopa HISTÓRIA DE UM PARTO

Com vinte e quatro anos medroso e um diploma de médico, tinha começado a minha vida em Monsanto. Ali, a província bravia despede-se da campina, ergue-se nos degraus das fragas para olhar com altivez as serras de Espanha (…) Aquele povo soturno, endurecido a subir e descer abismos (…), pressentiu o perigo da minha inexperiência. (…) Essa gente granítica esperava de mim como esperara e exigira do antigo médico, antes de o aceitar, a prova indiscutível que decidisse da minha reputação: um parto por exemplo (…) O parto sempre representou aos olhos do povo uma hora solene: nele se apostam duas vidas e também as qualidades de arrojo, calma e saber de um profissional. (…) Deu-se por essa altura, na aldeia, um casamento pomposo e, como tal, estava indicada a presença ornamental do médico. Lá fui eu (…) Entretanto, a uma légua de estafa (…) uma camponesa gemia, havia quatro dias, as dores de parto: e desde que a comadre confessara a inutilidade dos seus préstimos, justificando-se com a criança atravessada no ventre, nada restava fazer, salvo a ciência do doutor. A família veio por aí acima, (…) sendo eu médico avençado (…) devia ser procurado para o trabalho e para o pago. (…) E ali fiquei, humilde, embrutecido, perante a comadre escura que me vigiava. (…) Esperei minutos, horas, para me dispor àquilo que desde logo me pareceu indicado: uma intervenção com os medonhos ferros que são o pesadelo das parturientes e das famílias aldeãs. Até que a comadre, não suportando já as minhas hesitações (…) disse, sem meias-tintas: – Se quer fazer alguma coisa, senhor Doutor, saiba que a criança está nas nalgas. Está presa no osso da robadilha. 20 de março de 2012

5


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Aquela frase ficou inteira nas minhas recordações, ainda hoje me assusta os ouvidos. (…) Dentro do quarto, sufocando a mulher, além de mim e da comadre, completavam o ambiente as vizinhas e conhecidas (…) O útero da mulher revigorara-se com os estimulantes, contorcia-se no esforço de se libertar. (…) A comadre, ao ver-me em jeitos de nova observação, tornou com os seus conselhos: – É nas nalgas, senhor Doutor. Quando voltei ao pátio, o velho espremia as mãos e falou-me como se tivesse as maxilas retesadas. – É a minha única filha. Salve-as, senhor Doutor. Somos pobres, não temos dinheiro, nunca o tivemos, mas eu vou trabalhar até ao fim da minha vida para lhe pagar. Mas salve-a! Dei-lhe um cigarro e disse com simplicidade: – Isto está a demorar. Mas vai. Espere que o seu genro me traga os ferros. – Vai raspá-la? - Que ideia! É uma ajuda. Custa um bocadinho, mas fica logo aliviada. (…) Quando os ferros foram dispostos para a intervenção, um rumor correu (…) a parturiente gemeu desconsolada, a comadre empertigou-se de gravidade. A mão da rapariga ainda tentou deter-me (…) – Será mesmo preciso, senhor Doutor? Não poderíamos esperar? – Não, já esperámos muito tempo, minha senhora.

20 de março de 2012

6


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS De memória, eu ia revendo precipitadamente as ilustrações dos tratados, as técnicas, enquanto vaselinava as colheres. (…) Gemidos, silêncio, o morno das respirações, uma luz vacilante e fúnebre de azeite, e depois de muitos esforços dos meus pulsos e dos meus nervos, de sentir que os ferros desentranhavam não só a criança mas também todo aquele ventre dorido, a cabeça do recém-nascido rompeu para o mundo. (…) A criança chegou às minhas mãos, mãos heroicamente ensanguentadas, sem uma beliscadura. Tirei-a depois com ostentação dos dedos engelhados da comadre, lavei-a com carinho, feliz, alvoroçado. Amava-a como se me pertencesse. (…) Fernando Namora, «Tinha Chovido na Véspera» in Retalhos da vida de um médico

20 de março de 2012

7


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Dito por Simão Cadete Há-de chamar-se Manuel A mãe de Manuel de Sousa esperara o momento de ele nascer sentada num capacho, e foi aí que ele veio à luz com a ajuda de uma velha parteira que já vira chegar a este mundo quase mais gente do que a Maia tinha então. Frequentemente, das mãos dela aos gadanhos do coveiro, ia apenas um ai de vida. O que estava para vir seria o seu quarto filho. Antes dele, duas Marias e outro Manuel tinham chegado e partido com a pressa de quem

não

se

sentira

seduzido pela Terra. Apesar disso, o pai teimava em que, a ser rapaz, seria Manuel também. Mau agoiro, preveniram-no, que isso de baptizar um anjinho de carne e osso com nome de irmão morto era fazê-lo correr o risco de que, em breve, os outros anjos o levassem para o Céu. Quando, com o seu choro de saudar o mundo, anunciou que chegara, foram chamar o pai para lhe dar o primeiro beijo – ritual de boa sorte que ele, a custo, cumpriu mais essa vez – e para enterrar a placenta numa cova feita no chão térreo aos pés da cama. E, enquanto o fazia, ia teimando: “Mas háde chamar-se Manuel.” Quando o cordão do umbigo secou e caiu, deitaram-no fora, como ao de todos os rapazes, porque de um homem se esperava que andasse aos sóis do trabalho e aos relentos da noite, sem medida no esforço nem limites

20 de março de 2012

8


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS apertados nos lazeres. O das raparigas, para que fossem senhoras da sua casa, guardava-se bem guardado numa gaveta da cómoda. Depois, em tempos de mais trabalho, uma avó velha e cansada ficava vigiando, sem cuidados de maior, o neto empanturrado de manhãzinha com pão de milho amarelo, escaldado em água simples, e uma mamada por cima. (Leite forçado a couve e muito chá.) E, às vezes, se o pão obrigado a engolir – amiúde regurgitado e devolvido por um empurrão com a ponta dos dedos até meia garganta – não bastava para deixar a criança numa modorra de

empacho durante

quase todo

o

dia, havia

o

recurso

adormentador de um vinho açucarado ou de licor caseiro. Se o levavam para a terra, o pai fazia uma pequena cova no chão onde ele ficava o dia todo, à sombra de um guarda-sol. De vez em aquando, a mãe acudia aos seus gritos, limpava-lhe um pouco a cara e a boca, dava-lhe o peito e voltava a deixá-lo sozinho, - Muitos foram tratados assim… … E os que não morriam agarravam à vida como os incensos ou as faias que, com as raízes de sede, se apegam à pedra-queimada e vivem como um mistério…

Daniel de Sá, Há-de chamar-se Manuel, in Sobre a verdade das coisas

20 de março de 2012

9


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Dito por Ladislau Albuquerque Memórias de um espírito Morri precisamente às cinco da tarde de um dia 30 de Setembro. Calhou que justamente nessa manhã eu tinha completado mais um ano de vida e a Alda estava numa grande azáfama nos retoques finais de um jantar que queríamos oferecer aos amigos próximos e também a mais uns quantos esfomeados da cidade do Mindelo. Mas de repente caí no chão. Redondo, sem um ai, como um desamparado saco de batatas mal cheio. Lembro-me perfeitamente: nada daquelas confusões de tonturas que fazem uma pessoa agarrar-se aos móveis mais próximos e levar na cambalhota tudo que estiver à mão. Não senhor! Foi uma queda limpa, elegante, como se estivesse preparando uma sessão de flexões de braços na alcatifa da sala. Felizmente! De contrário todo o nosso serviço de cristal, uma porradaria de copos de tamanhos variados que estava já sobre a mesa, teria tombado comigo, e agora é que se poderia dizer e com razão que por cima da queda, coice!, porque seria um prejuízo bastante considerável e eu mesmo ficaria cheio de pena, pois ainda que não seja particularmente bonito, está carregado de recordações pessoais e familiares, na medida em que há anos o tinha comprado na Casa Serradas, com pagamento a prestações, para oferecer à Alda como prenda de homenagem aos primeiros cem dias da nossa vivência. (…)[ A Alda] gritava o meu nome (…) olhando-me com o ar severo de quem se prepara para dizer, estas não são horas para brincadeiras de mau gosto! Fiquei, pois, à espera, só para ver como ela iria reagir àquela emergência inesperada, mas ainda se ria: Hoje não, disse enquanto me dava um leve pontapé na ilharga, hoje não está um bom dia para brincadeiras, estou cheia de trabalho, vem antes ajudar a Rosa a limpar os talheres. E baixou20 de março de 2012

10


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS se para me apertar o nariz, uma coisa que fazia sempre que me dava na cabeça fingir-me de morto. Foi só então que deve ter reparado nos olhos do meu corpo, porque foi nesse momento que gritou, um grito que certamente me teria assustado se ainda estivesse vivo. (…) Agora na varanda da minha casa parei a ver um pôr do Sol ainda a formar-se, um belo sol como uma bola incandescente a baixar vagarosamente para o mar. Vou perder isto tudo, porra, pensei infeliz, e entrei no escritório para fugir aos gritos que vinham da casa. Porém, mesmo ali continuava a ouvi-los, tanto mais que todos os vizinhos já vinham a correr. (…) Quero ver se mais logo estes macacos vão dar cabo da minha garrafeira. Deus queira que a Alda não tenha a ideia de lhes oferecer o champanhe francês (…). Chega o caixão. Soube-o por algum rebuliço que ouço na sala, com aquelas ordens impacientemente semigritadas de levanta mais um pouco!, cuidado para não bater na parede!, vira mais de lado!... Para lá me dirijo e vejo que ainda estão a fazê-lo entrar em casa. Se ainda vazio está a dar esse trabalho todo, quero ver como será cheio comigo. (…) Está confirmado, o meu enterro será amanhã às quatro da tarde. Ouvi agora o delegado de saúde, exactamente o Maluquinho chamado de urgência pelo Vasco, a comunicar a hora. (…) Para mim é óptimo, tenho ainda cerca de mais 20 horas à minha frente, pode dar para muita coisa, inclusivamente escrever uma desenvolvida autobiografia se estivesse p’raí virado. (…) Eu sei que estou morto e bem morto. (…) . A minha boca está a abrir-se e uma mosca está pousada sobre o bigode. Um escândalo, sobretudo porque ninguém se lembra de a afastar. (…) Neste momento os presentes ainda estão silenciosos, todos com cara de caso, mas já sei que mais daqui a bocado vai ser o regabofe, aquele consumir de grogue e outras bebidas e um contar de anedotas e histórias que é um deus nos acuda. Felizmente que o meu barril está cheio, trinta e cinco litros de aguardente velha e de boa qualidade. Rosa vem avisar que quem estiver com fome pode ir comer na cozinha. Ouço e no imediato penso que é uma grande humilhação para os presentes, 20 de março de 2012

11


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS mandá-los comer ali. Porém, reparo no meu caixão estendido dentro da sala e reconsidero que não deve ser nada agradável comer leitão assado na presença de um defunto esticado no caixão. (…) Ah, se me fosse possível, encharcaria todas essas iguarias de malagueta só para os ver a sofrer enquanto comem… Mas que não se lembrem do champanhe! Sou capaz de fazer algum disparate se os vejo com uma garrafa na mão. Levantar-me do caixão inclusivamente! (…) Ai se [a Alda] adivinhasse com quantas das mulheres que estão neste momento nesta sala eu fui para a cama… (…). Mas se tentassem meter dentro desta sala todas as mulheres com quem andei, ninguém teria ar para respirar, de tão apertadas umas nas outras ficariam (…). (…) A Melly continua sem se mexer do lugar onde se deixou cair quando entrou, duvidosa sobre ir ou não apresentar vassalagem à Alda. Eu apostava em como ela está a pensar que também é uma espécie de viúva, que tal como a outra também merecia receber os pêsames. (…) Quanto à Alda estou convencido de que pouco se importaria de ter mais uma ou duas colegas na viuvez, mas a verdade é que ela é que foi a última, e depois da Melly, quantas passaram pela minha vida? Se a coisa tiver que ser estendida a esse ponto, então terei que reconhecer que deixo esta cidade com umas boas dezenas de viúvas. Entro na sala vindo do escritório e constato com orgulhosa satisfação que a minha corte, na verdade um esplêndido friso de belas mulheres, já está quase completa à volta do trono que é o catafalco onde repousa o belo caixão no qual vou estar fechado até ao dia do juízo final. Germano Almeida, As Memórias de um Espírito, Caminho

20 de março de 2012

12


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Dito por Lídia Duarte Os amores de Alminha Descobriram que Maria Alminha há mais de meses que não ia às aulas. A moça faltava por regime e sistema, enviuvando o banco da escola. A directora mandou chamar a mãe e lhe comunicou da filha, vítima de prolongada ausência. A mãe, face à notícia, não tinha buraco onde se amiudar. Assunto de menina diz respeito à mãe. Assunto de rapaz também. Assunto de mãe não diz respeito a ninguém. Assim, a senhora fez o percurso para casa como se aquilo não fosse um regresso. Como sequer não houvesse destino. Tinha sido assim a vida inteira: o marido sentia vergonha de ter gerado apenas um descendente. Ainda por cima uma filha. A menina se tornara incumbência de sua mãe. Noite e dia, ela sozinha se ocupava. Ganido de cachorro, gemido de filha? Tudo sendo igual, sem motivo para perturbação de pai. Só ela se levantava, atravessando a noite com cadência de estrela. Pelos escuros corredores, seus passos se cuidavam para não despertar nem marido, nem a filha já readormecida. Agora, regressando da escola a mãe parecia ainda nocturna. Os mesmos passos leves para não incomodar o mundo. Chegada à casa, segredou ao pai. Os dois ruminaram o pânico: anteviam Alminha metida em namoriscos. Mas que namoro, se nem rapaz se lhe via? Ou seria motivo pior? Nem ousaram mencionar a palavra. Mas droga era o receio mais escondido. Decidiram nada dizer, adiar a conversa. Urgia apanhar Alminha em flagrante. O pai logo invocou parecenças hereditárias com a mãe. Aquilo era doença de mulherido. Antes tivessem tido rapazes. Que esses são tratáveis, espécie da mesma espécie. O homem descarregava: tivera irmãos, tios, primos. Nenhum nunca desmandara.

20 de março de 2012

13


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS - Essa miúda não sabe a quantas desanda. E ordenou que fossem vasculhados a pasta e os materiais escolares. Procurava-se sinais de desvario. Nada. Livros e caderninhos todos ordenados. Apenas um caderno, feito à mão, causara estranheza na cabeceira. A mãe abriu, espreitou as linhas e leu, em voz de se ouvir: - Hoje lhe vi. Gosto de espreitar seu corpo, assim branco, no meio de tanto sujo deste mundo. Um branco? A miúda andava metida com um branco. O pai, então, se disparatou. Como é? Não lhe chega a raça? Quer andar por aí, usufrutífera, em trânsitos de pele? - Não quero cá dissos – rematou. (…) - Leia você que os meus olhos já estão todos a tremer, meu coração está num feixe nervoso. (…) Na página, já roída pelos dedos, a senhora leu, a lágrima resvalando na voz: - Hoje vi-o a nadar e me apeteceu atirar para a água, me banhar nua com ele. - Nua? Viu, mulher, como isso vem da sua parte? Porque você a mim nunca me viu nu nem muito menos a banhar-me em aquáticas companhias. Isso é mania de mulherido. Adiante, mais adiante! – ordenou. Queria que ela continuasse lendo mas não queria ouvir mais. Abanava a cabeça, pesaroso. Nua? Na água? A moça andava por aí, rapazeando-se com este e aquele? - Nunca pensei ser tristemunha de tanta vergonha. Antes de lhe descer mais pensamento, o pai já tomara decisão: expulsá-la de casa. E que nem conversa. Não valeu o pranto, não valeu nada nem ninguém. - E sai já hoje que amanhã pode nem haver dia. (…).

Mia Couto, Os amores de Alminha, in Na berma de nenhuma estrada e outros contos, Caminho

20 de março de 2012

14


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Dito por Paula Teixeira Nada a declarar

Marina estudou o funcionário. - A moça é portuguesa?! Pode dizer-me em que se ocupa? E ela, num sopro: - Eu? Sou mulata! Ia acrescentar: «A tempo inteiro», mas então reparou no espanto do homem e percebeu que trocara as palavras, mulata ao invés de modelo, e não conseguiu dizer mais nada. O funcionário animou-se. Endireitou o tronco. O rosto ganhou um súbito fulgor: - Estou mesmo…

vendo,

muito

mulata

Murmurou isto com um olhar expressivo, avaliando-a desde os tacões dos sapatos à revolta cabeleira negra, um metro e setenta e sete da mais fina mistura de raças: - E o que vem a moça fazer ao Rio de Janeiro? (…) - Vim ver o Carnaval, claro. Você não gosta de Carnaval? O funcionário assentiu, feliz: - E quem não gosta? Seja então bem-vinda, Marina – disse, imitando o sotaque português. – Pelo que estou a ver a moça torce pela Mangueira. Marina trazia uma blusa cor-derosa, rendada nos pulsos, e umas calças de um verde-pálido, talvez demasiado justas. Noventa de peito. Sessenta de cintura. Cento e dois de 20 de março de 2012

15


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS quadris. Aqueles dois centímetros de arrogante desafio às leis da gravidade faziam a diferença em qualquer palco. Rodopiou uns segundos, ali mesmo diante do espanto divertido dos turistas, deu uns passos curtos, e Deus parou para ver. O funcionário sacudiu a cabeça perplexo: - Você é mesmo portuguesa? – O homem disse aquilo com admiração. Não era a dúvida metódica de um polícia de fronteira, era um elogio. – Tem a certeza?... Marina sorriu com orgulho: - Sou portuguesa, com certeza! Tão portuguesa quanto o fado, que antes de ser português foi brasileiro. Tão portuguesa quanto a Carmen Miranda, antes de ser brasileira. Tão portuguesa quanto o bacalhau da Noruega. Sou portuguesa do Alto da Cova da Moura! - Maravilha! – exclamou. – Deve ser bonito, lá… A rapariga hesitou. Bonito? Não podia negar esse consolo a um estrangeiro. Disse-lhe que sim. Acrescentou, para ser sincera, que o que havia de mais bonito no bairro eram as pessoas. O funcionário carimbou o passaporte e devolveu-o. Inspirou fundo a ganhar coragem: - Meu nome é Paulinho. Esta noite tem uma festa da Mangueira no Canecão. Você não quer ir comigo? Marina sorriu. Cantarolou: - Me leva que eu vou, (…) E assim, poucas horas depois de desembarcar no Rio de Janeiro, Marina estava no Canecão… (…) Os amigos de Paulinho cercaram-no com perguntas: - Onde você achou a mina? - É portuguesa… Os amigos riram: - Não brinca, cara, portuguesa onde? - Juro! Toda ela é portuguesa…

20 de março de 2012

16


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Então um deles, um jovem alto, com uma calvície precoce, suspirou profundamente, resumindo numa só frase a incredulidade geral: - Tá certo Paulinho, afinal foram eles quem inventou, eu não sabia é que tinham lançado um upgrade. Marina, alheia ao escândalo da sua própria beleza, levantou-se e foi sambar.

José Eduardo Agualusa, Nada a Declarar, in Passageiros em Trânsito: novos contos para viajar, Dom Quixote

20 de março de 2012

17


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Dito por Simão Cadete e Pedro Mata Piela e Confidências

Narrador - Há três horas que Bernardo e Bento Luís estão sentados à mesa do bar emborcando sucessivas doses de uísqui: Bento prefere o irlandês e Bernardo inclina-se para o escocês.

(…) Bernardo inclinando-se sobre a mesa, baixa a voz: (BERNARDO) - Vou confiar-te um segredo. Fica entre nós. (BENTO) - Claro, conta-me. (BERNARDO) - Estou com uma piela que te vejo a dobrar. (BENTO) - E a minha? Piela, bebedeira, pifo, carraspana, nem sei dizer. Mas olho para ti e é como se visse dois irmãos gémeos. Apertaram-se as mãos redobrando as risadas e Bento acrescenta:

20 de março de 2012

18


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS (BENTO) - Ainda bem que as nossas santas mulheres levaram os carros. Imagina que nos dava para conduzir e aparecia a Polícia com o balão. (BERNARDO) - Estoirava o balão! (BENTO) - Pum! Mas temos de reconhecer, elas foram queridas e despegaram para virmos aqui tomar o nosso copo. (…) (BENTO) - Eu é que tenho um segredo, mas calo-me bem calado. Pschiu! – manifestou-se Bento Luís. (BERNARDO) - Vá lá – incita Bernardo. – Descose-te. (BENTO) - Nem pensar. Este segredo é muito pessoal. (BERNARDO) - São os melhores. Desabafa, Bento, abrir a alma é uma libertação. (BENTO) - Queres mesmo? Então aí vai: ando louco pela tua mulher. (BERNARDO) - A Mafalda? (BENTO) - Tens outra? A Mafalda, sim, senhor. Acho-a deslumbrante. Pronto, está dito. (BERNARDO) - De verdade, Bento? Gostas mais da minha que da tua? (BENTO) - Exactamente. A Mafalda é fogo, pá. Espera aí. Senhor empregado, temos os copos vazios. É como te digo, Bernardo, não leves a mal, mas olho para a Mafalda e fico vidrado. Aquele olhar, a boca, o pernão, toda, todinha. (BERNARDO) - Não me faças rir – diz Bernardo rindo-se. – Se não estivesse tão bêbado como tu, revelava o meu segredo. (BENTO) - Tens um? Avança, não faças caixinha. (BERNARDO) - Bento, talvez tu não gostes de ouvir mas perco-me pela Clara. (BENTO) - A minha? (BERNARDO) - A tua. Adormeço e acordo com ela no pensamento.

20 de março de 2012

19


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS (BENTO) - E eu sonho com a Mafalda. Quem sabe se o destino se enganou e não devia ter eu casado com a Mafalda e tu com a Clara. (BERNARDO) - Isso é que era bom, Bento. (BENTO) - Agora é tarde, Bernardo. (BENTO) - Sei lá, a vida dá tantas voltas, quem nos garante que tu e a Mafalda não se cansam um do outro? (BERNARDO) - E que tu e a Clara não dizem já chega? Um momento, o que é isto? O homem nunca mais traz os uísquis que pedimos. (BENTO) - Suponho que os bebemos. Senhor empregado, mais dois, por favor. Pois muito me contas. Se pudéssemos trocar, trocavas? (BERNARDO) - O escocês e o irlandês? (BENTO) - As nossas mulheres. Bernardo, imagina-te marido da Clara e eu casado com a Mafalda. (BERNARDO) - E elas talvez preferissem… Riem-se (…) Mário Zambujal, Piela e Confidências, in Longe É Um Bom Lugar (o resto são histórias), Clube do Autor.

20 de março de 2012

20


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Dito por Natália Bailador

Rio de Janeiro, Jardim Botânico, apartamento de Anastácia Hadock Lobo, aproximadamente quatro horas da madrugada. (o princípio de uma história de amor) Anastácia não dorme desde O Acidente. Ela chama-lhe sempre assim: O Acidente. Fecha as janelas do quarto, cerra os estores e as cortinas, liga o ar condicionado e estende-se nua e de costas sobre a enorme cama verde. Escuta na escuridão (…) o ruído inanimado de um móvel dilatando por efeito do calor? Não, parece-lhe antes algo orgânico, alguma coisa viva esforçando-se por comunicar; Anastácia sorri: o que quer que seja escolheu a pessoa errada. «Anastácia Hadock Lobo já não mora aqui.» «Anastácia? Pelo amor de Deus fala comigo!...» Há doze dias que não sai de casa. Encomenda pizzas pela Internet. Enche uma chaleira com água, deixa-a ferver, e prepara ao longo do dia infusões de menta e tília, mais raramente erva-cidreira, com uma colher de mel; à noite, antes de se deitar, opta por um chá de pétalas de papoila – nem assim consegue adormecer. (…) Às vezes a campainha toca, um carro buzina lá em baixo, a campainha volta a tocar. Anastácia coloca os auscultadores nos ouvidos e por algumas horas esquece-se de tudo – isto é, d’O Acidente, enquanto ouve Gilberto Gil, Chico Buarque e Caetano Veloso. Está agora estendida na cama. Uma cama tão grande que parece um transatlântico. Anastácia deu-lhe um nome: Titanic. Toda aquela laboriosa estrutura em ferro delicado, num verde ingénuo, encimada por amplo dossel (seda levantina), veio de Java, na Indonésia; terá ido parar a Ambon duzentos anos antes numa caravela holandesa.

20 de março de 2012

21


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Anastácia entusiasma-se. Imagina a quantidade de casais que se amaram na grande cama-navio. Divaga sobre isto quando de novo a sobressalta o ruído surdo de há pouco. Acende a luz. Uma pequena osga olha-a numa espécie de desafio. Incha o papo – croque! – e pela primeira vez desde há doze dias Anastácia ri. É um riso tão fresco que ela mesma se assusta. A osga permanece impávida à sua frente: croque! (…) Anastácia (..) Está disposta a não sair nunca mais daquela casa. (..) Anastácia volta a estender-se na cama. Lá fora há um tropel apressado, gritos. Ela levanta-se, sai do quarto, passa para a sala, espreita pela janela e vê um homem a correr. Atrás dele, dobrando a esquina, surgem dois outros sujeitos armados com pistolas. O fugitivo detém-se junto à porta de entrada do prédio. Anastácia precipita-se para o intercomunicador: «Entra!», grita. «Entra logo e fecha a porta. Pega o elevador e sobe até o quarto piso.» Só depois pensa: «Meu Deus! O que fiz?» Espreita outra vez pela janela e vê os dois homens que se aproximam. No silêncio de vidro das três da madrugada consegue distinguir a respiração ansiosa do que corre adiante. «Onde se meteu o filho da puta?» O filho da puta está no elevador e sobe. O elevador detém-se. Silêncio. Anastácia coloca a mão direita no pescoço e sente o coração aos saltos. Treme. «Você começou isto, mocinha», murmura, «agora tenha coragem e vá até ao fim.» Endireita-se, chega-se à porta e abre-a. O filho da puta parece mais assustado do que ela. Olha-a com estranheza: «Muito obrigado, moça.» Anastácia não sabe o que fazer. Estende-lhe a mão. Retira-a antes que o homem a segure. Afasta-se um pouco convidando-o a entrar. Ele entra. (…)

José Eduardo Agualusa, O ano em que zumbi tomou o rio, Dom Quixote

20 de março de 2012

22


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Dito por Ladislau Albuquerque Ezequiela, a humanidade

Um certo moço apaixonou-se por uma moça, de cujo nome Ezequiela. O jovem se designava de Jerónimo. Foi amor de anel e altar. Em prazo fulminante ajuntaram destinos, ele e ela, os dois e ambos. Até que certa manhã Jerónimo acordou e deparou com outra mulher em seu leito. Era uma branca, de longos cabelos loiros. Ele cismalhou: quem é esta? Onde está minha mulher? E chamou: - Ezequiela! A moça branca despertou, assustada com o grito, e respondeu: - Que foi, meu amor? E ele: que meu amor, que meio amor. Afinal, quem era ela e como se explicava ali, em pleno leito de outrens? - Mas eu sou Ezequiela. Sou a sua mulher, Jerónimo. Ele riu-se, incapaz de tudo. - Como, se você é branca retinta e minha mulher é negra? Como, se os cabelos… Se acalme, Jerónimo: eu lhe explico. E explicou. Que ela era assim mesmo, mudava de corpo de cada vez em quando. Ora de um tamanho, ora de uma cor. E ora bela, ora feia. Actualmente, branca e

20 de março de 2012

23


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS posteriormente, negra. Que ela se convertia, vice-versátil. - Você me ama, assim como sou? - Como você é, como? O problema sendo mesmo esse, o da identidade exacta dela, a autenticada Ezequiela. E ele, pesaroso, meneou a cabeça: - Não posso. Você não é aquela que eu casei. Ezequiela lhe propôs então que, simplesmente, eles se deixassem em vida de casal, por baixo de um igual tecto. E que deixassem vir o provir. E assim foi. De modos que ocorreu que, uma noite, Jerónimo tricotou seus dedos pela seda dos cabelos dela. E os dedos se deliberaram por mais corpo dela, até se atreverem por áreas recatadas. E se amaram e, de novo, recomeçaram o enlace. Já se habituara ao desbotado dela, à lisura de seus cabelos, quando uma noite Ezequiela acordou esquimó, peles amareladas, olhos repuxados em ângulo e esquina. E, numa outra vez, ela se indianizou, pele aperdizada, cabelos azevichados. Mas, estranhamente: ela sempre ela, sempre Ezequiela. E Jerónimo a foi aceitando, transitável mas intransmissível. No início, lhe custava esse acerto e reacerto. Mas depois até encontrou gosto nesse jogo de reencorpagem. E amava todas as formas, volumosas, translíneas, tamanhosas ou reduzidas. Até dava jeito: ele era o polígamo mais monógamo do universo. Até que certa vez despertou a seu lado um homem, barbalhudo e provido de músculo. Jerónimo sacudiu-se todo, como se se limpasse de contaminação: dormira com tal homem? Que mais partilhara com o intruso?

Mia Couto, Ezequiela, a humanidade, in Na beira de nenhuma estrada e outros contos, Caminho

20 de março de 2012

24


2ª Tertúlia - Literaturas do Mundo Lusófono «Povos, Culturas e Pontes» ESA – BE - CMS Acompanhamento musical

Bartolomeu Dutra

FIM

20 de março de 2012

25


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.