Revista Continente Ed. Especial

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EDIÇÃO EXCLUSIVA PARA A FEIRA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PORTO DE GALINHAS – NOVEMBRO, 2009 – DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

especial

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fliporto ibero-americana e s p ec i a l f l i p o rto n ov e m b r o 2 0 0 9 | 1


vagando pela escuridão.

Seis contos duros e afiados, com a brevidade que a urgência impõe. Luiz Arraes alia a expressão minimalista ao vazio e à busca de sentido em A noite sem sol. O título dá uma ideia da condição turva à qual seus personagens estão condenados. Um livro de arranhar a consciência.

Lançamento: 6 de novembro, na Fliporto e s p ec i a l f l i p o rto n ov e m b r o 2 0 0 9 | 2 1


aos leitores reprodução

Um dos grandes objetivos da Fliporto — Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas — tem sido transformar em discussão pública questões que envolvem os elementos formadores da cultura brasileira. Tudo isso em meio a uma grande celebração, a celebração do diálogo e da palavra. O evento já se consolidou como um dos mais importantes no calendário cultural do país Em 2007, numa edição voltada à literatura latino-americana, a Fliporto buscou o que temos em comum com nossos “hermanos”, e que as barreiras linguísticas e históricas muitas vezes escondem. O momento foi ideal: Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, completava 40 anos do impacto da sua publicação. Em 2008, voltou-se para a África de Pepetela e de Ondjaki, para além dos clichês, alcançando a compreensão de onde o Brasil é mais africano – ou de onde a África é mais brasileira.

Este ano, a literatura ibero-americana mapeia a Fliporto. “Mas não como uma camisa de força. Nossa proposta é oferecer ao leitor o máximo possível de autores com uma vivência da literatura em relação muito viva com a música, o teatro, o cinema, a TV, as artes plásticas e também mostrar que história, jornalismo e literatura podem ir de mãos dadas, com excelentes resultados”, explica o jornalista Mario Hélio, curador literário desta edição. A Fliporto 2009 conta com nomes contemporâneos da literatura iberoamericana, como Inês Pedrosa, José Luís Peixoto e o premiado Gonçalo M. Tavares. Mas sem esquecer os nossos “vizinhos” célebres, Eduardo Galeano e Antonio Skármeta. Como num grande painel, os elementos da cultura ibero-americana serão discutidos e contextualizados dentro da sua relação com o Brasil.

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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE Redação, administração e parque gráfico Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700


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sumário

06 A rtigo

30 A rtigo

10 Antonio

32 Lêdo

11 Armando

33 Luiz

12 Caetano

Veloso

34 Marcelino

13 Eduardo

Subirats

35 Márcia

15 Fausto

36 A rtigo

16 A rtigo

38 Márcio

39 Pedro

40 A rtigo

41 Sábato

42 Santiago

44 Sebastião

45 A rtigo

46 Tomás

48 A rtigo

ngel-B.Espina Barrio A Culturas e identidades ibero-americanas

espanha

Maura

brasil brasil

espanha

Freitas Filho

Wolff

brasil

lexandre Costa A Eduardo Galeano: o cavaleiro andante contra os moinhos da globalização

19 Ferreira

20 F erréz

22 A rtigo

brasil

Gullar

brasil

mir Sader E Por que utopias?

24 Flávio

24 Gonçalo

25 Guillermo

26 João

brasil

Moreira da Costa Tavares

portugal méxico

Arriaga

Gilberto Noll

brasil

27 José

Saramago

portugal

28 Laënnec

haiti

Hurbon

aniel Piza D O labirinto de Octavio Paz

Ivo

brasil

Ruffato

brasil brasil

Freire

Denser

brasil

Fabrício Carpinejar Portugal e Brasil: melancolia em dois sotaques

brasil cuba

Souza

Juan Gutiérrez

uiz Carlos Monteiro L Lama na alma

brasil brasil brasil

Magaldi Nazarian Uchoa Leite

uy dos Santos Pereira R O moralizador Eça de Queiroz

brasil

Eloy Martínez

lberto da Cunha Melo A A oficina de Almanzor

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No site da revista Continente – www.revistacontinente.com.br –, você poderá acessar todo o conteúdo desta edição especial da Fliporto 2009.


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Para LER (E saber) quem somos Assim como a Fliporto, a Continente, durante seus nove anos de existência, investiga as diversas concepções do que seja a cultura brasileira, sem deixar de lado os elementos que a cercam e que a formaram. Para comemorar a quinta edição da festa, um apanhado do nosso acervo com trechos de artigos e entrevistas com pensadores, artistas e escritores que se relacionam com a cultura e o imaginário ibero-americano propostos pelo evento.

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Artigo

Angel-B. Espina Barrio Culturas e identidades iberoamericanas Edição nº00, Dez/2000

Delimitar identidades fortes é uma

tarefa impossível, inclusive quando nos referimos a um indivíduo ou ao nosso próprio eu. Com maior motivo, referirse univocamente a sinais de identidade dos povos é mais que problemático. Porém, reconhecendo a inconveniência de afirmações unívocas, fechadas ou fortes, neste tema da identidade cultural, não temos de descartar facilmente a reflexão sobre o mesmo. Saber quem somos, mesmo com traços difusos e cambiantes, fará com que nos relacionemos melhor com os outros, os que não são de nossa cultura, os que não são como nós. Eliminará, da mesma maneira, identificações falsas e compulsivas e, ao mesmo tempo, receios e reações negativas “fronteiriças”. Pois, agrade-nos ou não, somos parecidos com os nossos vizinhos, do Norte e do Sul, do Oeste e do Leste. Nesta época, fala-se com insistência de integração, de fusão dos países ibéricos com uma parte das nações vizinhas. Talvez estas linhas não sejam mais que uma pequena mostra do receio e das dúvidas que qualquer enlace forte suscita nas datas próximas ao mesmo; ainda assim, convém sublinhar uma série de aspectos que se deve ter em conta nesta questão da integração. Em primeiro lugar, tal conceito não é sequer similar ao de uniformização. A diferença incomoda, mas é imprescindível; custa dinheiro, mas enriquece; tenta-se diluí-la, mas ela sempre subsiste. Espanha e Portugal apresentam uma realidade histórico-cultural diferenciada, fruto, fundamentalmente, do longo processo de mestiçagem com a cultura árabe, que nos deveria orientar a uma relação de maior proximidade

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com os países do Magreb, se não fosse pelo também longo processo de repressão de nosso inconsciente judaico-muçulmano. A cultura ibérica é mudéjar (n.e.: o termo é relativo aos mouros remanescentes na Península Ibérica). Fusão do cristão-velho e do criptomuçulmano (e do criptojudeu) semirreprimido. Os processos de pureza e de limpeza étnica conduzidos pela Inquisição, a despeito de serem longos e sistemáticos, nada puderam contra a realidade popular, especialmente porque essa Ibéria heterodoxa e liberal teve uma via de subsistência na América Latina. E aí está, precisamente, outra de nossas notas distintivas histórico-culturais: a relação com a Ibero-América e,

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secundariamente, com a África. Só é necessário fazer uma rápida revisão histórica para reconhecer estas duas “diferenças” do ibérico, mas é difícil, às vezes, fazer um justo retrospecto histórico. Muitos autores atuais pensam, talvez exageradamente, que toda leitura histórica está distorcida. Como é possível, então, ignorar séculos de mescla cultural com o árabe, ou cinco centúrias de intercâmbio transatlântico?

identidades

Que mistura de tristeza e vergonha alheia nos invade quando observamos que alguém não reconhece sua identidade, sua mestiçagem! Coloquemos o caso de alguns


não são autogeradas. Juventude que se esquece do que lhe é próprio e só quer chegar a poder contemplar, ainda que seja na poltrona de segunda fila, a visão beatífica do sonho norte-americano. A verdade é que a proximidade vital da Península com os povos ibero-americanos, componente final da conexão cultural, linguística, religiosa etc., não pode ser esquecida sem graves prejuízos; e mais, não deve debilitar-se sob nenhuma hipótese, nem sequer pelas todo-poderosas razões econômicas. Não há dúvida de que Portugal e Espanha têm tanto ou mais a ver com a Ibero-América quanto com a Espanha do Leste ou a Central e não sei se isso deve, ou pode, mudar no futuro.

radicalismo

substratos da população do México, Guatemala, Paraguai etc., que mal imitam estilos falsos – ora estrangeiros, ora anacrônicos – ocultando de si mesmos sua integridade mestiça e adotando posturas que de fora nos parecem ridículas. Pois nessa posição está o espanhol que repudia parte de seu ser, que se crê alheio ao africano (berbere ou árabe) e ao afro-americano (crioulo ou mestiço). O mimetismo cultural imposto é a última forma de colonialismo e de extraordinária eficácia. Especialmente suscetíveis ao mesmo são os jovens. Juventude bombardeada por anúncios, produtos, seriados televisivos, problemas, desportos e, o mais grave, formas de relações que não são genuínas, que

Certamente, como o leitor deve ter percebido, a peculiaridade ibérica que delimitamos aqui e, neste caso, defendemos, não tem nada a ver com aqueles lemas turísticos das épocas salazarista ou franquista, que proclamavam a “diferença” de Portugal ou da Espanha. “Espanha é diferente”. Não conheço a efetividade de tal propaganda, que foi repudiada, com bastante razão, pelos progressistas da transição, já que a “diferença” que os europeus podiam encontrar – excluindo-se as praias, o sol e o benéfico câmbio monetário – eram nitidamente negativas: autoritarismo, penúrias cultural, política, sexual etc. Nem tudo nas ditaduras foram falsos orgulhos patrióticos, mas a identidade que defendo não tem nada a ver tampouco com o “Santiago y cierra Espanha”, de um patriotismo ou de um catolicismo extremistas muito próprios dessa época, e o mesmo poder-se-ia dizer do lusitanismo forçado. Da mesma maneira, não é a expressão de um nacionalismo exacerbado que, por outro lado, não existe nas atuais sociedades ibéricas. Não somente em séculos passados podia-se falar de Espanhas, mas tal plural continua existindo e pode ser empregado no momento presente e no atual estado. O conceito de iberismo como o de espanholidade (ou de hispanidade), é muito mais aberto do que muita gente pensa. Se já sabemos o que não deve ser, ou a que não deve levar-nos

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a proclamação de uma identidade a que não podemos nem devemos renunciar ou diluir, podemos passar imediatamente a ressaltar alguns aspectos distintivos positivos da mesma. À margem da estética e enigmática definição do ibérico como “o originário celtibérico” ou “o originário tartésico”, fórmulas que condensam, sem dúvida, herméticos conhecimentos de difícil acesso, podemos destacar que o ibérico é: a) Mediterraneidade, entendida como um componente muito antigo que amalgama elementos fenícios, hebraicos, greco-latinos etc. Em algumas áreas (Levante, Catalunha etc.) prevalece, e, em outras, se mistura com tradições posteriores

Como ignorar séculos de mescla cultural com o árabe ou cinco centúrias de intercâmbio transatlântico? sulistas. Tal mediterraneidade dá ao habitante da Península uma visão da vida mais relaxada, um tipo de relação mais aberta, uma consideração do tempo e do trabalho muito diferente da que possuem os países do norte da Europa. O clima, a orografia, os cultivos (parreira e oliveira, fundamentalmente), a dieta, a especial arquitetura popular, a proximidade a este mar interior, supuseram no passado umas relações históricas determinadas entre os povos do Mediterrâneo, e conformam hoje um caráter distintivo de que participa o espanhol e o português. Alguém poderia duvidar deste componente na área lusitana e, desde logo, na mesma prevalece a influência do Atlântico. Adiante, falarei da tensão ou distinção atlântico-mediterrânea, destacando que os traços apontados aqui são patrimônio também dos portugueses e não só dos que habitam o “interior”. b) Uma vivência aberta do catolicismo, talvez heterodoxa, que leve em conta o judaico e o árabe. Porque, a despeito do que nos pode parecer, à primeira vista,


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Página anterior 01 Cabeça de serpente

Detalhe do Templo da Serpente Emplumada, Teotihuacán (I a.C. 3 d.C.) Nesta Página 02 simbologia

Participante do jogo de bola cerimonial dos Maias faz o gesto de alguém cuja vida está na balança

após o nacional-catolicismo francosalazarista, não tem sido uma constante nas classes populares de nenhuma região ibérica o casticismo fechado, o ultra-tradicionalismo, o catolicismo inquisitorial. Não vale a pena dar exemplos disso, pois, sem recorrer aos heterodoxos de Menéndez y Pelayo, nossa história está cheia de católicos e não católicos tolerantes, cristãos e não cristãos universais, herdeiros da Hispânia romana e visigótica. Tampouco é necessário sublinhar a influência de outras nações de cultura cristã, do Norte ou não, que apoiaram essa liberalidade, especialmente da área ítalo-francesa ou inglesa. Outra coisa é a exacerbação do que eu chamaria a “marca”, a “fronteiridade” hispânica, que faz com que, desde o século 15, se pretenda impor a “grande mentira”: Espanha e Portugal devem ser, e são, absolutamente cristãs, e não têm nada a ver nem com judeus nem com mouriscos. Esta ideologia de “reconquista” é a que esteve por trás da limpeza étnica que supôs o Edito de expulsão, da Inquisição, e é a que a lenda negra se empenhou em perpetuar, especialmente como imagem da Espanha. c) Diante disso, deve-se declarar nitidamente a mestiçagem ibero-árabe da Península, mestiçagem étnica e cultural, não tanto religiosa. É certo que a religiosidade, mesmo a popular, segue

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marcadamente os símbolos cristãos, mas, em outros aspectos, a cultura de importantes extensões da Península se aculturou só superficialmente, e não fica claro quais formas de vida resultaram dominantes. Não são somente mais de 40 mil topônimos que nos restam da cultura árabe, mas uma multidão de práticas, estilos e pautas que, no fim das contas, supõem um passo intermediário na variedade existente entre Magreb e a Europa Central. Afirmei antes, e volto a repetilo, que Ibéria é fundamentalmente, em sua intra-história, mudéjar. Não só porque o estilo arquitetônico mudéjar seja exclusivo e o mais genuíno da Península, presente tanto nos minaretes torpemente transformados em campanários do Sul, como nas torres de Teruel ou nas da “velha” Castela, senão porque a simbiose mudéjar (cristã-mourisca) é a chave do ser ibérico. Síntese do Norte e do Sul, por

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mais cruzes que façamos, por mais “autos de fé” ou genealogias godas que pratiquemos, a Península não mudará seu ser interno. Poderia falar agora, para apoiar esta, tantas vezes reprimida, presença mourisca em Portugal e na Espanha, das contribuições advindas de tal mestiçagem, e a lista seria longa: desde os materiais de construção, como o tijolo, material de amplo uso ainda na atualidade; passando pelos avanços na irrigação e saneamento, o cultivo de muitas frutas novas nas hortas do Levante por eles organizadas; até aspectos tão ínfimos como o costume de organizar a comida em diversos pratos terminando em sobremesa, muitos seriam os extremos a considerar. Na atualidade e em aspectos mais comportamentais e de atitude, nota-se no peninsular essa mestiçagem e essa continuidade geocultural de que falamos: vida mais aberta ao público, “na rua”, concepção mais lúdica do negociar, maior restrição da mulher na vida pública, concepções e vivências diferentes da sexualidade. Mas, entre todas estas pautas socioculturais, gostaria de evidenciar uma, por sua grande importância na Ibéria e pela diferença que supõe com o mundo anglo-saxão, a que chamaria “cripticidade” cultural. Em países onde têm sido importantes, durante muito tempo, a limpeza de sangue, a pureza religiosa, o entroncamento (sempre fictício)


com as figuras míticas do passado, não é estranho que florescesse a cripticidade. Estas “dissimulações”, se assim podem ser chamadas, são tão antigas ou mais que a presença árabe em nossas terras. Lembre-se a este respeito a epístola de Maimônides a seus correligionários hebreus, Sobre a conversão forçada, na qual o autor recomenda e aceita eticamente a falsa “conversão” de seus concidadãos ao Islamismo. Séculos depois, seriam os próprios muçulmanos e de novo os judeus os que passariam a ser convertidos suspeitos e vítimas certas da intolerância religiosa-cultural. Contudo, na moral prática, começaram a separar-se, mais radicalmente que em outras culturas, as crenças e aspectos da vida privada, dos aspectos concernentes à vida pública. Sobreviveu tacitamente uma série de subculturas distintas das de ideologia dominante, que cometeu o erro de querer prevalecer isolada. Não podia prevalecer, pois era mestiça até a medula, mas pôde, sim, acabar com o ideal de convivência entre as três culturas de Toledo. d) Precisamente nesse momento, a Ibéria se lança à sua predestinada vocação atlântica. Muito clara e um pouco anterior para os lusos, descoberto o Novo Continente, passaria a ser patrimônio de quase todas as áreas ibéricas. Produz-se a fusão das raças, tão violenta como haviam sido as anteriores aculturações, e começa uma nova mestiçagem que recebe de ambas as partes, ibérica e indígena e depois africana, não só sangue, mas costumes e maneiras de viver. É claro que alguns americanos conservam e gostam mais das formas sociais peninsulares e europeias, e outros mantêm quase intactas suas ancestrais culturas autóctones, porém se vai solidificando, cada vez com mais intensidade, uma cultura que, independentemente da raça, é emergentemente híbrida. Tal identidade mestiça tardou muito tempo a formar-se e é a identidade iberoamericana, da que trataremos nas próximas partes. Naturalmente, essa identidade é plural, e também podemos falar aqui de muitas Américas. Na atualidade, a identidade ibérica integra a ibero-americana e participa da mesma como pode participar a

mexicana, a peruana, a brasileira, a argentina, com as peculiaridades que estamos mencionando. As imprescindíveis relações atlânticas começam cedo, porque Portugal termina muito antes sua “reconquista”, ainda que o espírito da mesma também prevaleça, talvez não tanto como em outras zonas peninsulares. Em direção ao Atlântico, primeiro ao Sul, pela África, em rota até a Ásia; ao Oeste, ocupando o Brasil; e ao Norte, o país aliado eleito, mais por desespero que por afeição, é a Inglaterra. Se o Leste se sente fechado ou ameaçador, só fica o Oeste, o Atlântico. Portugal se abre e recebe influências de suas colônias – lembrese de que as manteve muito mais tempo, especialmente as africanas – que desempenham um papel essencial em sua história e cultura. Talvez ainda estejam muito recentes as feridas, mas no futuro estas conexões deverão

A América é uma realidade apaixonante para qualquer estudioso do homem, da história, da cultura e do pensamento contribuir com muita riqueza. Especialmente importante é a relação com o Brasil, pois é o país de língua portuguesa com maior potencial e onde as afinidades podem traduzirse mais facilmente em convivências e em intercâmbios. E já não porque a fronteira espanhola seja fechada, mas porque na Península surge um fluxo que, transpassando o país luso, conduz à Ibero-América. Afortunadamente, hoje em dia, para muitos portugueses, a Espanha é, nada mais, nada menos, que o país europeu mais próximo em todos os sentidos. A América é uma realidade apaixonante para qualquer estudioso do homem, da história, da cultura ou do pensamento em geral. Se, além disso, quem se propõe ao estudo de tal realidade é um espanhol, um português ou um ibero-americano, está em jogo no mesmo o descobrimento de parte de seu próprio ser. Não é estranho

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que, com ajuda ou sem ela, um grande número de autores haja decidido dedicar seu trabalho intelectual a estudar o malchamado e pior ainda conhecido Novo Continente.

dificuldades

As relações entre Espanha, Portugal e os países ibero-americanos sempre estiveram mediadas por dificuldades muito árduas e também o estão na atualidade. Façamos uma breve análise de tais entraves e “incomunicações”. Neste primeiro momento, ressaltaria três posturas inadequadas que envenenaram a nossa comunicação e deram lugar cada uma a um tipo de identidade ou de identificação cultural falsa e preconceituosa. Não se trata de buscar culpados – veremos que as culpas estão repartidas entre peninsulares, ibero-americanos e anglo-saxões – mas desentranhar estas posturas negativas e procurar, assim, superá-las. A primeira corresponde aos espanhóis e se concretiza na equiparação e identificação da América hispânica com a Espanha. Foi a posição típica dos primeiros conquistadores e fundadores de cidades, quando planejavam a organização da administração copiando estritamente o estilo peninsular; quando queriam construir novas Espanhas, novas Castelas, novas Galícias; ou quando equiparavam mentalmente indígenas e camponeses castelhanos. Esta posição ainda perdura hoje em dia, com maiores ou menores modificações, na mente de alguns espanhóis. A Hispano-América seria, segundo isto, uma prolongação da Espanha. Uma Espanha agora cindida, separada. Nada mais distante da verdade. Esta postura é fruto de um daninho etnocentrismo. Etnocentrismo a que está propensa quase toda cultura, mas no que caíram, repetidamente, as culturas européias e, dentre elas, a espanhola. A ciência antropológica quer combater esses preconceitos etnocentristas que, como se sabe, defendem que a própria cultura e o próprio modo de comportamento, crenças e normas, são o melhor que se pode conceber e que as demais culturas são só uma caricatura imperfeita desse estilo de vida modelar.


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Espanha

não apenas sobre o futuro de seu país, como também sobre o de toda a América Latina.

Antonio Maura Embaixador da cultura e literatura brasileiras edição Nº 49, jan/2005

Antonio Maura Barandiaran,

espanhol nascido em Bilbao, em 1953, é um importante escritor de sua geração, com diversos livros publicados, um dos quais ganhador do Prêmio Castilla-La Man­cha. O trabalho que fez divulgando a arte e a literatura brasileiras valeu-lhe a medalha Ordem do Rio Branco (1997) e os prêmios Os melhores de 1996 (Associação de Críticos de Arte de São Paulo) e Machado de Assis (1993). continente Existe alguma peculiaridade que identifique a literatura brasileira? antonio maura A mais importante peculiaridade da literatura brasileira é, sem dúvida, a linguagem. “Minha pátria é minha língua”, diz Caetano. As peculiaridades do português falado no Brasil, os vocábulos de origem tupi ou africana, o sabor coloquial, a riqueza de povos e gentes, a extensão – zonas pratica­mente despovoadas e concentrações de cerca de 20 milhões de habitantes em megalópoles como São Paulo – fazem do Brasil uma síntese de diferentes histórias planetárias que falam todas, curiosamen­te, um mesmo idioma. Este Mundo que abarca mundos, sem dúvida, afetou sua literatura, porque literatura são também as histórias e anedotas da gente, as “estórias”, como diria Guimarães Rosa. continente Quais são os autores brasileiros pelos quais o senhor se interessa? antonio maura Tenho estudos sobre Jorge Amado, Euclides da Cunha, Machado de Assis, João Ubaldo Ribeiro e Clarice Lispector, entre outros clássicos brasileiros. Mas também apresentei outros autores publica­dos na Espanha, além de ter feito críticas dos livros brasileiros que foram publicados em espanhol. Evidentemente, entendo

Antonio Maura

a cultura como algo que não tem um limite no tempo nem na matéria. continente O senhor conhece a nova produção literária brasileira? antonio maura Pouco, porque chega muito pouco ao meu país. Recentemente, foram publicados os seguintes auto­res: Rubem Fonseca, Paulo Coelho, Clarice Lispector, Paulo Lins, Patrícia Melo. Há pouco tempo, apresentei em Madri dois romances, um de Antônio Torres e outro de Miguel Sanches Neto, que teve muito pouca repercussão na mídia. Mas isso não me surpreende, pois há a necessidade de uma boa e rigorosa informação sobre o que acontece no Brasil. continente O brasileiro é um povo com uma complicada autoestima. Certas horas, ele se sente o povo mais criativo e interessante do mundo. Logo depois, ele se acha o povo menos interessante do mundo, ao qual só é dado copiar modelos produzidos por outros países. Para o senhor, em que ponto nos encontramos entre esses extremos? antonio maura Creio que os povos, dentre os quais se inclui o espanhol, variam em suas percepções de si mesmos dependendo do momento histórico. Não acontece o mesmo conosco, como indivíduos? Para nós, europeus, o Brasil é um foco de atenção político e humano. O governo de Lula, o primeiro governo sério de centro-esquerda de um país latinoamericano que saiu de uma ditadura, é uma esperança e uma expectativa

eessppec eciia all fflliippo orto rto n nov oveem mbbr ro o 220 00 099 || 110 1

continente A Espanha viveu um longo período de autoritarismo e, desde a morte de Franco, na década de 1970, iniciou um processo de abertura política que serviu de norte para o processo de redemo­cratização brasileiro. De que forma a experiência autoritária comprometeu a produção artística espanhola e de que forma a reconquista da cidadania plena favoreceu a produção artística do país? antonio maura A Espanha viveu uma experiência que atualmente é a do Brasil: a passagem de uma ditadura de direita para uma social-democracia. Esses períodos começam a ser vistos do ponto de vista cultural e artístico de uma perspectiva que, lamentavelmente, ainda nos falta. Há romances e filmes tratando deste tema. O cinema de Almodóvar, por exemplo, é uma maneira de mostrar essa liberdade. De qualquer modo, a obra dos artistas só em certa medida depende de seu momento histórico. Nor­malmente, eles trabalham com o sentimento e a imaginação, e o político e o histórico afetam de um modo atmosférico e/ou temático. “Do povo vens e o povo é a tua raiz. Portanto, não menosprezes o povo”, escrevia um poeta espanhol. Se sou homem, tudo o que faça será humano, seria minha tradução para este lema. A liberdade é necessária como o é poder comer e como o é poder se formar. A criação pressupõe liberdade, capacidade de sobrevivência e formação intelectual. Tudo isso faz parte do programa político atualmente desenvolvido pelo Brasil. Como não terá repercussões em sua cultura? por júlio Ludemir

Brasil

Armando Freitas Filho Atrito entre a vida e a palavra edição Nº 62, fev/2006

Voz significativa na poesia

brasileira contemporânea, Armando


continente Como você definiria a sua poesia? armando freitas filho Muitos dos meus contemporâneos estritos são herdeiros dos poetas do Modernismo. Não sou dife­rente. É uma herança e tanto. Foi um momento muito rico para a literatura no Brasil. Afinal, Mário, Oswald, Luiz Aranha, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Raul Bopp, Augusto Meyer, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Schmidt, Cassiano, Cecília, Joaquim Cardozo poetavam juntos, cada um variando ou potencializando o outro na nossa leitura, 30 anos depois. A eles se juntou o “sangue bom” de Vinicius e João Cabral. Minha poesia nasce desse caldeirão e se orienta, desde o começo, por uma linha de inspiração mais construída que me acompanha até hoje. Costumo dizer que meus livros, Palavra, de 1963, Dual, de 1966 e Marca registrada, de 1970, são de formação e exercício. De corpo presente, de 1975, é livro de transição para a maturidade. continente Sua poética revela sempre algo de visceral, contundente e agressivo. Você é mais vísceras que cére­bro? De onde vem sua raiva? armando freitas filho Sim, mas tenho coração, que é uma víscera, por sinal. Gostaria também de saber de onde provém essa raiva. Drummond diz que a raiva é o melhor dele. Comigo, seguramente, não! Ela incomoda mais a mim do que a seus alvos; me faz mal, escurece o pensamento, me trava, ruminante. Não sou dado a escrever à toa, tudo o que escrevo visa publicação, mas nesses dias de revirar arquivos

revirados, para esse dossiê, encontrei uma página, típica de diário, se tivesse um, que fala dessa raiva original, furiosa. O texto é de novembro de 1978 e só falta espumar. Não me lembro mais do que me levou àquilo. Deveria me lembrar. Esquecendo o motivo, vejo que é uma raiva básica, fundamental, que vem do paraíso, mas não é amada. Às vezes, gostaria de ser um fortão desses que resolvem pendências no tapa. Descarregaria mais rápido, creio. continente Como o período da ditadura militar afetou sua poesia? Você acredita numa função política e social da poesia? armando freitas filho Diretamente, mutilou um livro meu, de 1970, Marca registrada. A censura prévia, então vigente, fez com que eu retirasse daquela coletânea alguns poemas que não foram incluídos agora, quando reuni minha poesia em Máquina de escrever. Por quê? Ficaram, irremediavelmente, datados. Então a censura, nesse caso, foi um bom crítico literário? Errado. Os poemas tinham sua função naquela época em que foram banidos. E por essa razão o foram: cumpriram o seu papel. E eram poemas de um semidesconhecido, quase clandestinos. Quem sofreu mesmo foi o pessoal do cinema, teatro, música, dos jornais e das

revistas. Mas, reconsiderando, quem sofreu mesmo fomos todos nós, em plena juventude, com aquele clima opressivo de fedorento verdeoliva. A função política, social e o engajamento da poesia, hoje, na minha alternativa, que obviamente não é a única, se dá, como escrevo em poema de cerca de 20 anos atrás, Na mesa morta: “Na idade mídia de todos os meios/ espremo o que escrevo/ e o que sobra, só/ é o nu sem nuvens/ tão no extremo terrível do trampolim/ que é expresso somente por si:/ o mínimo múltiplo comum/ sol, sinal, soul/ eu, íntimo/ exprimo o que escrevo/ ficou no fim, e não foi ao ar”. continente Sintetize os conceitos da Poesia-Práxis. Eles permanecem atuais? armando freitas filho Quando lancei meu primeiro livro, Palavra, em 1963, ainda não conhecia o autor de Lavra lavra, Mário Chamie, criador da Instauração Práxis. Fui convidado por ele para colaborar na revista Práxis, e tomei conhecimento do que se tratava. Dentre as vanguardas estabelecidas foi a que me pareceu mais conveniente: não abolia, senão o verso, a frase, a sintaxe. Tinha um acento político mais forte, até por isso mesmo. Afinal, os poemas falavam e não soletravam. José Guilherme Merquior, que me reprodução

Freitas Filho publicou seu primeiro livro, Palavra, em 1963. Em 1986 recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia, pelo livro 3x4. De lá para cá, cada novo livro seu desmente uma declaração que o próprio Armando fez numa entrevista recente: “Com a idade modifica-se tudo, geralmente para pior”. Longe da facilitação e da diluição em fórmulas testadas e aprovadas, a sua poesia continua sendo de atrito e risco. Uma poesia sem pontos finais, que nunca acaba nem se cansa de registrar flagrantes, acasos, ambiguidades e outros elementos de que é feito o cotidiano. Poesia de corpo presente, difícil e necessária como a vida.

Armando Freitas Filho

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continente O que acha do movimento concretista? armando freitas filho Sempre achei que a arte concreta tem melhor rendimento nas artes plásticas e na música; por isso nunca dei muita bola para o poema concreto em si, por entendê-lo como um expediente sem pos­sibilidade de desenvolvimento verdadeiro, repetitivo e pontual. A poesia concreta, nos seus anos de vigência maior, de 1958 a 1964, aproximadamente, afetou a poesia brasileira mais por atemorização, e consequente paralisia, do que por sedução produtiva. Afinal, seus cultores sempre funcionaram como uma microempresa familiar blindada, onde o fazer literário só interessa quando usado como poder, incompartilhável, pela própria lógica do empreendimento, com os de outro san­gue. O que não aprecio neles nem é sua teoria manipulada, nem são seus poemas, alguns curiosos, outros ginasianos e datados, nenhum esplêndido; o que não gosto, de verdade, nos dois Campos, cada qual no seu, é a mão fechada de pão-duro, a maneira dicotômica, simplista e excludente de ver o mundo da cultura, montando Fla x Flus arbitrários e infantis (Mário x Oswald, Drummond x Cabral, Chico x Caetano etc.), a falta de generosidade com seus contemporâneos, em geral, e com os seus poucos epígonos em particular. Espero que um bom crítico possa mostrar, tantos anos pas­sados, o que deu certo e o que não deu, no projeto deles. Muito dos críticos atuais não têm pruridos ao revisar a obra de Drummond, sem nenhuma cerimônia. Gostaria que acontecesse o mesmo, no que diz

respeito ao espólio concretista. Esperar que alguém possa fazer um balanço sensato e in­dependente sem ser domesticado ou pautado pelos próprios textos teóricos dos autores criticados, dizendo só o que já foi dito por eles. De uma outra forma, seria salutar e surpreendente. por uciano Trigo

Brasil

Caetano Veloso Discípulo de Nabuco edição nº 01, jan/2001

Nessa entrevista, o músico baiano toca em pontos fundamentais a respeito do significado de ser brasileiro. Sua leitura de Nabuco não é passaporte apenas para o deslumbre; é também veículo para Caetano criticar a identidade nacional. “É essa vontade louca de cada brasileiro se tornar um funcionário público que me indigna”, desabafa.

continente Joaquim Nabuco confessou, em Minha formação, que tinha um sentimento contraditório: ele, que tinha lutado com todas as forças contra a escravidão, confessou que sentia o que ele chamava de “singular nostalgia” – a saudade do escravo. O que deixou você fascinado com Joaquim Nabuco foi o sentimento ambíguo que ele teve em relação a esse tema? caetano veloso Eu já estava muito fascinado por ele antes de ele confessar essa sutileza do espírito individual dian­te da questão. É um momento complexo e ambíguo do Minha formação. Talvez seja o momento mais intimamente confessional de todo o livro. Depois dessa confissão é que vem o trecho que me levou a querer musicar. O assunto terminou dando o título a meu disco – que se chama Noites do Norte. Mas essa confissão permitiu que ele retomasse a ideia de que a escravidão tinha organizado – ou desorganizado! – a vida brasileira de tal maneira que o Brasil precisaria de muito tempo e muito esforço para desfazer o trabalho da escravidão. É um bordão do pensamento de Joaquim Nabuco, que, neste momento de Minha formação, aparece sob a luz do reprodução

tinha dado toda força, com sua leitura generosa dos meu originais, escrevia na revista e tudo foi natural e coerente. Os princípios teóricos praxistas, hoje, não têm validade, como de resto os das outras vanguardas: concreta, neoconcreta e poema-processo. Mas deixaram vestígios em to­dos aqueles que os praticaram. Dual, de 1966, e Marca registrada, de 1970, são os meus livros que seguiram, à minha maneira, os postulados da Práxis. Em De corpo presente, de 1975, já estava em mutação, firmando minha identidade, como deve ser.

Caetano Veloso

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reconhecimento de um sentimento contraditório: aquele que mais lutou pela abolição da escravatura confessa que sentia saudade do escravo. Para mim, essa reflexão pessoal de Joaquim Nabuco já é uma revelação de algo muito profundo que é o Brasil. Quando vi que, logo em seguida, ele expande esse sentimento para um retrato abrangente do Brasil, eu disse: “É mais do que poesia!” continente Que outro horror brasileiro, além da escravidão, seria capaz de despertar sentimentos ambíguos em você? caetano veloso Eu estou embebido dessa visão do Joaquim Nabuco. Venho lendo e relendo Minha formação. Já reli – muito! – O abolicionismo. Assim como fez Joaquim Nabuco, acho difícil, neste momento, não atribuir todos os horrores nacionais à escravidão – que ele descreve como tendo formado o Brasil. Joaquim Nabuco atribuía à escravidão a estrutura do pensamento do homem brasileiro como ser social: é a sensação paralisadora que o brasileiro tem de que tudo se deve às autoridades oficiais; toda queixa deve ser feita contra elas; todas as exigências devem ser feitas a elas; quase nenhuma responsabilidade resta para o cidadão. É essa vontade louca de cada brasileiro se tornar um funcionário público, uma estrutura que leva a coisas que me indignam. Sou, por exemplo, um obsessivo pela obediência às leis do trânsito. Sempre me pareceu absolutamente inaceitável que as pessoas no Brasil não considerem o sinal de trânsito um sinal nítido e simples, uma lei de convivência social paradigmática de todas as outras leis de convivência social. Mas vejo também a linguagem corporal, extremamente sensual e bonita dos brasileiros nas ruas. Estrangeiros – que às vezes trago ao Brasil – ficam fascinados com esse jeito de ser e de andar na rua dos brasileiros – que transmite uma impressão de felicidade física. O diretor do museu Gugenheim, que veio ao Brasil para escolher a cidade onde vão instalar uma filial do museu, disse, depois de um dia: “Quero morar aqui!” Pelo modo de as pessoas se moverem! Isso me parece misteriosamente vinculado à dificuldade brasileira de entender o aspecto abstrato de leis tão simples

quanto as de trânsito. Antes, muito antes de ler o que Joaquim Nabuco escreveu sobre a escravidão, eu pensava assim. continente O historiador Evaldo Cabral de Mello reclama de que a obsessão em procurar uma identidade na­cional é típica de países inseguros. Você acha que a música, no caso do Brasil, pode ajudar o país a achar essa tal identidade? Você tem essa pretensão? caetano veloso A obsessão em encontrar uma identidade nacional evidentemente é sintoma de uma insegurança do país. O Brasil tem todas as razões históricas para se sentir inseguro. O que falo não pode nem se contrapor à fala de um historiador – um sujeito que se dedica a estudar e a levantar dados. Eu, com­positor de música popular, tinha, pessoalmente, na época do tropicalismo, uma atitude de enfrentar e ao mesmo tempo “desconstruir”, como se diz hoje em dia, a questão da identidade nacional. Nós fizemos um grande escândalo antinacionalista, demonstramos ostensivo desprezo pela ideia de busca de raízes da autenticidade nacional. O primeiro apelido do tropicalismo foi “som universal”. O nome “tropicalismo” veio depois. Gil gostava da expressão “som universal”. Também gostava de “pop”. Eu não gostava tanto de que se chamasse tropicalismo porque achava que era um rótulo que ia prender a gente nos trópicos. Era o que não queríamos. Gostávamos do desrespeito a um estilo nacional-popular que era buscado então. A gente queria desrespeitar esse negócio. O filme Terra em transe tem um desespero em relação à identidade brasileira. Há uma grande agressividade em relação a esse tema. Vivia-se, ali, o auge da obsessão com a identidade nacional. Isso fez a questão da busca de identidade entrar em crise – ou em transe. Isso me interessou muito logo que vi o filme. Talvez a música popular propicie uma maior irresponsabilidade do que o cinema e a literatura. Fi­zemos coisas que eram um desrespeito à própria busca da identidade, embora tivessem a ambição de resolver o problema da identidade nacional. Era como se a gente quisesse passar por cima do tema, como se a gente dissesse: “Eu considero que, com o desespero da busca de identidade, a

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vontade louca de imitar os americanos, a falta de segurança, a incapacidade de organizar uma sociedade respeitável, com tudo isso, acho que já tenho identidade suficiente. Já estou falando diretamente para o mundo, como se dizia no Recife numa famosa emissão radiofônica: ‘Pernambuco falando para o mundo’”. por geneton Moraes Neto

Espanha

Eduardo Subirats “a Europa não tem projeto cultural” edição nº 06, jun/2001

Eduardo Subirats se considera exilado da Espanha. Exilado intelectual, não político, que fique claro. “Hoje não existe o exilado político porque a política nas sociedades chamadas desenvolvidas é a administração da cultura como espetáculo. Não existe o intelectual politicamente exilado. Existe o intelectual eliminado da vida pública através da administração do espetáculo”, diferencia. Nessa entrevista, presta homenagem à originalidade do pensamento de Oswald de Andrade e critica a teoria pós-moderna da América Latina. continente O que há de melhor no pensamento de Oswald de Andrade? eduardo subirats Ponto um: a originalidade e a radicalidade de Oswald de Andrade estão voltadas para uma crítica da civilização industrial, que parte de um paradigma muito profundo. É uma crítica que tem a ver com fundamentos religiosos da civilização ocidental e com os fundamentos epistemológicos da civilização industrial. Essa crítica não é comparável com as estratégias muito locais e conjunturais do pós-modernismo em geral. O pós-modernismo fala apenas da transformação do capitalismo nos últimos 20 anos, não problematiza nem a epistemologia tecnocientífica nem os fundamentos morais repressivos da sociedade cristã. Oswald de Andrade


reprodução

Ou seja, cruzaram-se os ideais modernos de liberdade, de soberania nacional, democracia e sociedade civil, com essa herança que não era moderna. Esse drama aconteceu mais ainda nos países hispano-americanos. A revolta foi rapidamente domi­nada por um novo sistema autoritário derivado das concepções de poder de raça e de colonização na época espanhola. E um terceiro ponto que deve ser estudado é a modernidade artística do século 20 na América Latina, que tem elementos que são radicalmente diferentes dos que pertecem à modernidade europeia. Eduardo Subirats

faz isso. Ainda que fragmentário e em muitos aspectos malformulado, o seu pensamento é de uma enorme importância. O outro aspecto central na obra dele é a crítica ao colonialismo. Que obviamente não se encontra em nenhum lugar da pós-modernidade, porque a pós-modernidade está situada no centro do poder colonial, pós-colonial ou neocolonial, como queiram. A crítica de Oswald de Andrade é também muito original: não é apenas a crítica à invasão, ao colonialismo como fato político, como é a teoria da dependência; não, tudo está incluído. O principal é que ele toma como ponto de partida, de uma forma que só havia aparecido no século 17 na história da América Latina, a forma de vida, de cultura, de concepção do corpo, de concepção artística, das culturas não industriais, não ociden­tais da América Latina, ou seja, particularmente dos índios e dos pretos. Esses dois elementos são os que dão ao pensamento de Oswald de Andrade uma profundidade imensa, uma grande originalidade e um enorme potencial renovador do pensamento contemporâ­neo. Nesse sentido, eu acho que o pensamento de Oswald de Andrade foi, para mim, de um enorme valor inspirador, pois me ajudou a formular uma teoria do presente que, acho, é muito mais articu­lada e crítica do que muitas análises conjunturais pós-modernas.

continente Você argumenta que a pós-modernidade na América Latina é uma construção teórica enquanto os autores do pós-moderno argumentam que ela é uma constatação. eduardo subirats Para se definir a condição histórica de um país como o Peru, Argentina, Brasil, ou da América Latina, em termos globais, há algumas premissas que têm que ser colocadas antes de se estudar shopping centers. O que foi a colonização? Essa pergunta tem sido desgraçada, reprimida. Mas é uma pergunta pertinente porque o processo de colonização na América Latina não é um processo acabado. A guerra na Colômbia é um modelo que segue basicamente os princípios da colonização espanhola, sob novas formas, novas retóricas. É uma guerra de colonização da selva, de genocídio, de deslocamento para a colonização e exploração dos recursos industriais e pós-industriais da selva. A guerra de Chiapas é uma guerra colonial, exatamente no sentido das guerras espanholas e com os mesmos objetivos básicos: exploração extrativista de produtos minerais, petróleo, biodiversidade e água. O segundo aspecto definidor da situação histórica da América Latina é a independência. A independência e a modernidade ligada à independência foram feitas sobre a base de um pensamento não moderno, que arrastava muitos elementos feudais. Aliás, no caso do Brasil, arrastava a direta herança do império português.

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continente Quais as principais diferenças? eduardo subirats Há duas, basicamente. A vanguarda, aqui, não parte de uma negação do passado, mas, sim, de uma recuperação do passado destruído. Um elemento que não existe nas vanguardas europeias. É por isso, por exemplo, que o planejamento de cultura popular e modernidade num país como o Brasil é radicalmente diferente do que analisa o pós-modernismo no contexto norteamericano, em que a cultura popular é idêntica ao junk, ao trash, produzido pela indústria de massas. E a outra diferença é que há um elemento na vanguarda latinoamericana, por exemplo, na Antropofagia, na pintura de Diego Rivera, ou no pensamento de Arguedas, que não existe nem na vanguarda europeia nem na norte-americana, que é o anticolonialismo. Porque a Europa não era uma colônia, era um sujeito colonizador. A vanguarda europeia está definida como um projeto de recolonização, o internacionalismo vanguardista é um internacionalismo de recolonização, que re­torna à visão dos universalismos imperialistas dos séculos 16, 17 e 18. continente Falando em vanguardas, você argumenta que a arte moderna se esvaziou justamente quando passou a repetir as fórmulas das vanguardas, sem o teor crítico que havia na origem. Como vê esse esvaziamento na arte brasileira? eduardo subirats Eu não sei onde está o esvaziamento na arte brasileira. Eu chego ao Recife, que


continente Qual é a participação da Espanha na América Latina? eduardo subirats Sou um exilado da Espanha. Exilado intelectual, não político, claro. Hoje não existe o exilado político porque a política nas sociedades chamadas desenvolvidas é a administração da cultura como espetáculo. Não existe o intelectual politicamente exilado. Existe o intelectual eliminado da vida pública através da administração do espetáculo. Acho que a Espanha ainda tem que repensar a sua origem a partir da

destruição das culturas e das línguas dos árabes e dos judeus da Península Ibérica. Poucos autores espanhóis aceitaram ou pensaram radicalmente esse problema. O segundo aspecto que formou a grandeza da Espanha foi o seu imperialismo cristão. Que foi um imperialismo antimoderno, foi um imperialismo feudal, como muito bem define Darcy Ribeiro. Hoje, a Espanha está embarcada num sonho financeiro e neoliberal, que acho muito legítimo, na medida em que está criando uma importante riqueza econômica para o país, só que culturalmente está criando umas ideologias, uns mapas intelectuais que eu acho sumamente reacionários. É um país onde a vida acadêmica está dominada por uma corrupção, por um monopólio, e onde as divergências com a opinião oficial desse monopólio da mídia são rejeitadas absolutamente. por alexandre Bandeira

Brasil

Fausto Wolff “Eu sou meus personagens” edição Nº 36, dez/2003

Listado por uma legião de críticos como autor de um clássico

contemporâneo da literatura brasileira,

reprodução

foi considerado o centro do mundo, e vejo no museu obras fantásticas de João Câmara. Isso não é esvaziamento, João Câmara é um artista de uma força, de uma crítica social, de uma intensidade... O esvaziamento está na Europa. Obviamente, a Europa só tem um objetivo: enriquecer, enriquecer, enriquecer... Nas costas dos pobres que não são da Europa. Isso não é um projeto cultural. A arte europeia nesse momento é reciclagem do que foi, é uma autoafirmação narcisística barata. Claro, a América Latina está vivendo uma situação muito dura, que exige dos intelectuais respostas muito mais intensas e universalistas, porque os problemas que vivem são problemas globais. Porque é o lixo do mundo que vem para cá, em todos os sentidos: os produtos mais degradados, os siste­mas de produção mais espoliadores da força humana e os processos de destruição da natureza mais violentos. Isso tudo cria necessariamente uma resposta dos intelectuais latino-americanos e brasileiros, mais conscientes e radicais do que dos professores da minha cidade, que não veem mais além da praça Washington Square. Estes definem a pós-modernidade a partir de algumas características do consumo de alto nível das grandes metrópoles pós-industriais norteamericanas. Países como os Estados Unidos vivem o êxtase de um consumo completamente irracional, com uma ligeira cons­ciência de que esse bem-estar é uma bolha de sabão, construída sobre bases militares e financeiras que são absolutamente precárias.

Fausto Wolff

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À mão esquerda, Fausto Wolff continua desconhecido do grande público. Mesmo tendo militado em jornais e revistas de destaque, como Manchete, O Cruzeiro, Pasquim e Jornal do Brasil - além de passagens pela TV e duas tentativas frustradas de se eleger deputado federal. Foi roteirista e ator principal de um longa-metragem dinamarquês e traduziu Saroyan e Cortázar. continente Que Deus é esse tão presente nos seus escritos? Qual o espaço que Ele ocupa na vida do autor? fausto wolff Deus, como se sabe, desde que o roubaram dos pobres e o trancaram nos mais diversos palácios das mais diversas religiões, tornouse um sócio do mercado. Deus está presente em nossas vidas todos os dias - uma tradição pesada demais para ser descartada. Como a vida, para a maioria, se resume em vaidade e autopiedade, qualquer dor de dente nossa - ocasião em que apelamos para Ele - é muito mais importante do que a morte de centenas de milhares de crianças no Iraque. Jamais me preocupei muito com a existência de Deus, pois a sua existência, ou sua não existência, não muda nada. E se Deus existe, certamente não está preocupado com meus pecadinhos. Eu talvez venha a pedir explicação dos seus pecados. continente No seu livro O nome de Deus, o narrador afirma que houve um tempo em que acreditou na viabi­lidade do ser humano. O autor também perdeu essa crença? fausto wolff Existe uma minoria no mundo - ricos, poderosos e anônimos e mais seus palhaços, os políticos, que lutam contra a evolução humana. Daí a vulgarização da arte, a cultura não experimentada, a alienação. Deus deu ao homem um jogo maravilhoso, um enigma que, se decifrado, o colocaria na categoria dos deuses que Ele mesmo inventou. Os homens, porém, em vez de aprenderem o jogo, resolveram lutar com as peças e usá-las como armas; resolveram fazer do lucro, e não da felicidade, o fim que dá significado às nossas vidas. O narrador citado foi construído psicologicamente para pensar daquela forma. Creio na viabilidade do homem desde que o poder lhe dê uma chance, mas isso terá de acontecer já, agora, antes do fim do


joão lin/arquivo cepe

Artigo

alexandre costa eduardo galeano: o cavaleiro andante contra os moinhos da globalização Edição nº03, mar/2001

A história é um profeta com

olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será. Essa frase é do escritor uruguaio Eduardo Galeano e foi publicada na contracapa do livro As veias abertas da América Latina. À época – 1971 –, a maioria dos países latinoamericanos convivia com as mordaças das ditaduras militares. Galeano rompeu o silêncio e expôs suas denúncias contra os instrumentos de espoliação, as injustiças à sombra do poder e o saque ao continente. Fatos, como ele mesmo diz, que ainda hoje insistem em se apresentar como obra do destino e do acaso. O autor disse certa vez que escrever um livro é como colocar uma mensagem dentro de uma garrafa e atirá-la ao mar. “A possibilidade de que alguém a recolha e leia é sempre remota.” A obra que retirou Galeano do anonimato e abalou o continente latino-americano foi lançada em Montevidéu e logo aportou na Argentina. De lá, espalhou-se para a maioria dos países de fala espanhola e, em pouco tempo, atravessou o oceano e foi traduzida para mais de 20 línguas. Galeano assumia a condição de porta-voz dos excluídos e nela permanece, remando contra a maré da globalização, abertura econômica e uniformidade cultural. Na edição nº 0 de Continente Multicultural, um ensaio do pesquisador Lawrence Harrison, da Universidade de Havard, defendeu a tese de que os problemas da América Latina são eminentemente culturais. E criticou a posição de escritores e pensadores latino-americanos

de esquerda, especialmente os vinculados à chamada Teoria da Dependência. Entre esses, cita destacadamente Eduardo Galeano e o livro As veias abertas da América Latina como representantes de uma corrente de pensamento ultrapassada pelas novas realidades políticas mundiais. A revista recolheu opiniões de Galeano sobre temas atuais, nas quais ele reafirma enfaticamente sua visão de mundo.

Veias ainda mais abertas

“A América Latina foi empobrecendo, perdendo sua soberania e diminuindo a sua autonomia ao mesmo tempo em que este sistema global ia se articulando e tornando-se unânime,

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alimentando- se das desigualdades que são cada vez maiores. Por isso, a América Latina tem um imenso desafio e vamos ver como reage frente a ele. Poderá ser uma cópia do mundo desenvolvido e dos países que nos governam ou poderá seguir o seu próprio caminho, o caminho das suas próprias esperanças. Esse é o desafio que está diante de nós. E eu acredito que o melhor que temos no mundo é a quantidade de mundos existentes, as diferentes culturas e as mais variadas formas destas coletividades se expressarem. Ou nos afirmamos com nossos próprios ideais ou vamos nos converter em uma sociedade que aceita a história oficial ao invés de transformá-la.


dinheiro. A globalização, para além do comércio internacional, nos impõe uma cultura universal, que se apoia no medo. Este é um mundo paralisado pelo medo que impede de nos mover, até de tomar medidas que eventualmente não sejam aceitas pelo FMI. Nunca o mundo havia sido tão desigual nas oportunidades que oferece e tão igual nos costumes que impõe. E a igualdade se funda no respeito às diferenças. O símbolo perfeito é a McDonald’s, aconteceu a ‘mcdonaldização’ do mundo. De certa forma, os pobres comem melhor que os ricos que aceitam essa comida de plástico.”

Chiapas enlaça passado e presente

Uma caricatura dos países ricos, que roubam nossa memória e as nossas riquezas. Posso dizer que a situação da América Latina hoje piorou, desde a publicação de As veias abertas da América Latina.”

O mundo mcdonaldizado pela globalização

“O sistema de poder vende a si mesmo como eterno, o amanhã é outro nome de hoje, e nos convida à aceitação como modo de vida. Estamos paralisados por este sistema de poder. É assim porque assim será e nós estamos nos acostumando a esta eternidade e aceitamos tudo como se fosse inevitável. Estamos cada vez mais prisioneiros do

“O movimento de Chiapas é muito importante, ele alcançou a justa repercussão internacional. Começou como uma sublevação local de camponeses que se cansaram dos abusos e rapidamente se espalhou pelo país. A história do México está dividida em antes e depois de Chiapas e um dos motivos para isso é que o movimento faz um enlace entre o passado e o presente. Marcos não é indígena e havia ido a Chiapas para ensinar – uma dessas contradições da esquerda, influenciadas talvez pela ideia da ilustração. Humilde, percebeu que ele é quem tinha muito a aprender com a cultura maia, bastante misteriosa para nós e segundo a qual fomos criados pelo tempo e somos filhos dos dias. E ele foi capaz de projetar a reivindicação de Chiapas numa linguagem clara. Acima de tudo, ele tem senso de amor e de humor, coisa que em geral falta à esquerda.”

Cuba, o mercado e o Estado

“Cuba é um país com o qual eu tenho uma longa relação de amor. Cuba simboliza a dignidade. Mas isso não quer dizer que eu não tenha críticas e divergências ao sistema cubano. A minha relação com Cuba é muito verdadeira. E os amigos de verdade fazem críticas de frente. Eu penso que a onipotência do Estado não é a melhor resposta para a onipotência do mercado.”

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Mundo criminalmente organizado

“Os países que mais armas vendem ao mundo são os mesmos países que têm a seu cargo a paz mundial. Felizmente, para eles, a ameaça da paz está se debilitando e se distanciam as nuvens negras e o mercado de guerra se recupera e oferece promissoras perspectivas de rendas e de carnicerias ao sul do mundo. Este é um mundo criminalmente organizado. Mata-se muito à bala, vendem-se cada vez mais armas. De acordo com números de organismos internacionais é possível afirmar que, se o mundo dedicasse 12 dias, apenas 12 dias, do dinheiro que gasta em armamentos, para ajudar as crianças pobres do planeta, estas crianças pobres poderiam ter escola, assistência médica e comida. Portanto, não se mata apenas à bala. Mata-se também de fome e de doenças curáveis. E não se matam só os corpos, mas também a alma e há corpos a andar por aí sem vida. E matam o ar, a água e a terra. E matam o mundo.”

Narcotráfico é neoliberal

“Na edição da revista Time de outubro de 1998, publicou-se matéria sobre a lavagem de 100 milhões de narcodólares de Raul Salinas, chamado senhor 20%, porque é o que ele leva em cada operação do governo. Um relatório do Senado norte-americano mostrava que a operação havia sido feita pelo City Bank. A pergunta é: por acaso o City Bank foi preso? Quem vai preso são os negros e pobres, porque a luta contra as drogas é a máscara da guerra social. Trata-se de conter qualquer foco de rebelião e o grande exemplo é o Plano Colômbia. Os narcotraficantes são fiéis seguidores do neoliberalismo: onde há demanda, surge a oferta. E os grandes traficantes ou bancos que lavam dinheiro gozam da maior impunidade. Mas quem são os grandes traficantes dos Estados Unidos? Será que eles não existem? Só prendem grandes traficantes na Colômbia, na Bolívia, no México. E, nos Estados Unidos, não existem grandes traficantes? Por isso, esta é uma guerra contra os pobres e somente contra os pobres.”


mundo. No século 19, com H.G.Wells, Maupassant, Proust, Dostoievski, Lima Barreto (para não deixar um brasileiro de fora), Tolstoi, o homem era bem mais viável. continente Num país de iletrados, a literatura é capaz de promover mudanças reais? Ou você está pregando no deserto? fausto wolff Não acredito, pois as forças que lutam contra essas mudanças são muito poderosas. Por outro lado, o que sabemos de verdadeiro na História do Mundo foi contado por artistas, e não por militares. Vivemos num tempo em que tanto a religião como a imprensa tornaram-se sócias do poder, e o importante é fazer dinheiro. E para isso é preciso manter o público na ignorância. Desesperado, ele se volta para os duendes, os diabos, o Paulo

Coelho (que não tem culpa dessa idiotia), o tarô, a astrologia, o i ching. Não posso dizer que prego no deserto, pois está surgindo uma nova geração de leitores que se apercebeu da patifaria, da fraude e da mentira com que a alimentam desde o berço. Essa garotada vai ler Marx e perguntará, como uma vez Engels perguntou para a mãe, depois de passar um tempo na fábrica do pai vendo os operários, crianças inclusive, trabalharem 16 horas diárias: Não poderia ser diferente? continente Não fica mais difícil a tarefa quando se escreve para uma minoria crítica, negando-se a dar entre­vistas para grandes meios? Os intelectuais do país falam para as massas ou para as elites? fausto wolff Jamais pretendi conscientizar ninguém, politicamente, através da literatura. Isso eu tento

fazer através do meu jornalismo que, como todos sabem, é panfletário. Realmente, como todo sujeito que bebe muito, sou tímido e não gosto de dar entrevistas, mas, como escritor, não fujo da imprensa. Preciso dela para vender meus livros. A diferença entre Rubem Fonseca e eu, à parte o fato de ele escrever melhor, é que ele foge da imprensa e a imprensa foge de mim. Quanto aos intelectuais es­creverem para a elite, acho muito engraçado, quando vejo atores assassinando Brecht no palco para meia dúzia de pessoas, num espetáculo patrocinado, e aparecerem ao mesmo tempo na TV, fazendo propaganda do produto de alguma transnacional. Os atores emburreceram muito da minha época para cá, mas os que mostram a carinha nas novelas e dizem “Oi, bicho!” estão ricos.

reprodução

continente Você iniciou no jornalismo muito cedo, aprendendo no dia a dia da redação. Acredita que a im­prensa no Brasil melhorou após a obrigatoriedade do diploma? fausto wolff O diploma só deveria ser exigido para quem tem responsabilidades sobre a vida humana: médicos, químicos, físicos, engenheiros. O resto é ridículo. Daqui a pouco exigirão diplomas para músicos, pintores, poetas, escritores. Além do futebol e da música, o jornalismo era uma das poucas profis­sões acessíveis a um filho do proletariado. Se houvesse exigência de diploma, eu não poderia ser jornalista, pois só pude estudar até a segunda série ginasial. Aliás, nem eu, nem o Jaguar, o Millôr, o Paulo Francis… Hoje, qualquer idiota, que não serve para nada, se forma em jornalismo, e a im­prensa é esta que vocês têm aí. Vou responder da seguinte maneira: o diploma ajuda o candidato a jornalista, mas a obrigatoriedade é ridícula e cruel, pois parte do princípio de que só é capaz quem se formou nessas máquinas de ganhar dinheiro e excluir o povo. Einstein não se formou em nada, e o inventor do alfabeto era analfabeto. continente Temas como violência, miséria e crueldade têm sido encampados por diversos autores. Você acha que, também na literatura, o momento atual exige esse apego à realidade? fausto wolff O escritor só precisa de um lápis, ou uma caneta, ou uma máquina de escrever, ou um computa­

Ferreira Gullar

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dor. A partir daí, o mundo é dele. Se o que ele fizer humanizará as pessoas ou as tornará ainda mais imbecis, o problema nem é dele, mas do mercado que o utiliza. Joyce e Proust, na minha opinião, são os maiores escritores do século passado. Kafka entra nessa. Mas se você não tiver leitores para entendê-los, alguma coisa deu errada no mundo, e não foi com eles. por cristiano Ramos e Diogo Monteiro

Brasil

Ferreira Gullar A criação da vida pela poesia edição Nº 00, dez/2000

Nessa entrevista, Ferreira Gullar

fala de suas diferenças com João Cabral de Melo Neto, lembrando até de uma discussão em que ele lhe colocou contra a parede dizendo: “Por que essa coisa de você se opor aos concretistas de São Paulo porque eles queriam fazer poesia matemática? Eu, pessoalmente, faço poesia matemática”. continente Cada poema é uma nova história? ferreira gullar Cada poema é uma aventura, à busca dessa conciliação entre a espontaneidade, a descoberta, a surpresa e a forma rigorosa. Talvez por isso a minha poesia ao longo dos anos foi sofrendo permanentes mudanças em função dessa contradição fundamental que são os polos do meu trabalho de poeta. continente João Cabral exerceu alguma influência na sua formação e na formulação de sua poética? ferreira gullar A minha poesia é totalmente diferente da dele. Ele, sendo da Geração de 45, se destacou dela por haver feito uma poesia em que o rigor formal foi aliado de uma arte orgânica, e plena de emoção, e indicou novos caminhos. continente Você começou a publicar em 1949; não está, portanto, muito distante, cronologicamente, da geração dele.

ferreira gullar Pois é, mas a minha formação é exatamente contrária. Veja bem: a Geração de 45 chega ao formalismo como reação ao passado da moderna poesia brasileira, que vem de 22 e que é, na sua origem, antiacadêmica, meio anárquica. A Geração de 45 é um retorno à forma rimada e metrificada de poesia. Eu, que desconhecia o movimento de 1922 – morava em São Luís, e só tomei conhecimento dele em 1948, 1949 –, tive uma formação no verso rimado e metrificado. Quando a Geração de 45 aderia à metrificação, eu rompia, porque estava atrasado no processo literário brasileiro. continente A Geração de 45 era, então, retrógrada? ferreira gullar Não propriamente retrógrada. Isso é uma coisa até certo ponto natural, porque, as formas literárias tendem – quando há um movimento revolucionário renovador que desagrega as formas estabelecidas – a de novo se recompor, até chegarem ao equivalente às formas estabelecidas do passado, só que é como uma espiral, passa no mesmo ponto, mas não na mesma altura. A poesia de 45 é um retorno ao verso rimado e metrificado, mas não é uma repetição do Parnasianismo, é uma outra coisa, porque vem de um outro passado, de outra origem. Mas, de qualquer maneira, como era ri­mado e metrificado, eu – que tinha rompido com tudo aquilo – não queria nem ouvir falar. A minha norma era até uma frase que li numa revista e teria sido dita por Gauguin: “Quando eu aprender a pintar com a mão direita, passarei a pintar com a esquerda, e, quando eu aprender a pintar com a esquerda, vou pintar com os pés”. O que ele queria dizer com isso, na verdade, é que era contra toda a habilidade. A linguagem artística seria um recomeço permanente, um não saber permanente, um inventar da linguagem a cada momento, e isso era a posição que eu tinha, totalmente oposta à da Geração de 45.

quando diz que o difícil é que estimula, não há, de certa maneira, mesmo que não exista influência, uma comunhão de princípios entre você e esses autores? ferreira gullar Eu tive algumas discussões com o João. As nossas posições se tornaram opostas, porque ele se tor­nou uma espécie de patrono dos concretistas, que o incensavam sem parar e ele terminou achando que os concretistas estavam com a razão. Eu lhe dizia que ele era o contrário dos concretistas. Uma vez nós tivemos uma discussão em Barcelona, em que ele falava: “Por que essa coisa de você se opor aos concretistas de São Paulo porque eles queriam fazer poesia matemática? Eu, pessoalmente, faço poesia matemática”. Ele dava como exemplo o seu novo livro naquela ocasião, A educação pela pedra. “É tudo múltiplo de dois.” “Sim”, eu comentei, “esse dois veio de onde? A verdade é que eles não se estavam propondo a fazer o que você faz, porque isso equivale ao soneto, é uma forma externa dentro da qual você realiza a sua expressão”. O que os concretistas queriam era uma equa­ção matemática que determinasse que palavras caberiam no poema. Isso eu considerei um absurdo, uma coisa irrealizável e disse a ele inclusive por telefone: a linguagem matemática não tem uma relação causal com a linguagem poética, então não pode um cálculo matemático determinar que palavra o poema vai usar. Essa proposta dos concretistas é inclusive ignorante do ponto de vista teórico, e tola, porque basta ler Cassirer para saber que as linguagens simbólicas não se comunicam, elas são autônomas, independentes. O que eles querem não tem cabimento. Mas, eu dizia ao João, cuja poesia eu admiro, que a poesia dele é o contrário da poesia concretista, que era sem miolo e, na verdade, abstrata. O concreto, como diz Hegel, é a soma das determinações. O discurso é o que faz a concretude da poesia, porque ele é que torna possível você estabelecer as determinações. Então, uma poesia que não utiliza o discurso, é abstrata, ela não é concreta.

continente Mas, de certa maneira, João Cabral, quando faz uma poesia partindo de um princípio de realidade, de aspereza, de uma vida, digamos, meio suja, impura, o Valéry

continente Recentemente, o Décio Pignatari, numa entrevista, falou do atraso do Nordeste, e disse que o máximo que chegou à região foi uma vanguarda rural.

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Brasil

Ferréz Uma voz da periferia na literatura edição Nº 83, nov/2007

Reginaldo Ferreira da Silva, 31 anos, nasceu e vive em São Paulo,

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Você, que é do Nordeste também como João Cabral, que é citado na fala dele, concorda que o Nordeste histórica e esteticamente é mais atrasado do que São Paulo? ferreira gullar Eu acho que isso é uma besteira. Essa afirmação do Décio é típica da visão dele e do grupo dele, é como se o sentido da arte fosse fazer vanguardas. Vanguardismo não quer dizer nada, o que interes­sa é a obra de arte e a qualidade dela. O que importa do Cubismo não é o que foi Cubismo, porque o Picasso e o Braque nunca escreveram teoria nenhuma. O que importa é a qualidade do trabalho que o Braque e o Picasso fizeram. Se eles não tivessem feito nada, se aquelas obras tivessem sido lançadas debaixo de um manifesto e não valessem nada e não tivessem a criatividade, a expressivi­ dade, a qualidade estética que têm não valeriam de nada, não seriam nada. Não importa que nome se dê. Se João Cabral foi rural ou não foi rural, se João Cabral foi vanguarda ou não, o que importa é que O ovo de galinha e O cão sem plumas são obras-primas da poesia, isso é o que importa. Drummond, que nunca participou de nenhum movimento desse tipo, no entanto, é possivelmente o maior poeta da língua. O que importa é que as pessoas que vão ler hoje o Drummond ou o Bandeira não vão perguntar-se o que é que o Drummond foi, se foi vanguardista ou não. Leem o poema e se comovem, e aprendem com ele e veem que ele está revelando alguma coisa da vida que o cara ainda não tinha percebido, ou que tinha percebido e não tinha conseguido expressar. É isso o que interessa. É bobagem ficar com essas questões de vanguardismo. por mário Hélio

Ferréz

no Capão Redondo, distrito da região sudoeste da capital. Trabalhou como balconista, arquivista, vendedor de vassouras e hoje é escritor, empresário da periferia e, em determinadas ocasiões, porta-voz da favela. A trajetória literária junto ao grande público, que o conhece por Ferréz, teve início em 1997, com o lançamento de um livro de poesia concreta publicado de maneira independente. Ganhou no­toriedade, contudo, só em 2000, após colocar nas livrarias o romance Capão pecado. Tornou-se colaborador da revista Caros Amigos e o sucesso de vendas foi responsável pelo lançamento de O manual prático do ódio, o segundo romance, já pela editora Objetiva, uma das maiores do país. Também é autor do livro de contos Ninguém é inocente em São Paulo (Objetiva, 2006), da história em quadrinhos Os inimigos não mandam flores e da obra infanto-juvenil Amanhecer esmeralda.

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continente Ferréz, seu nome literário, é um híbrido de Virgulino Ferreira (Lampião) e Zumbi dos Palmares. Não é controverso prestar homenagem a um homem como Lampião? ferréz Se você pegar todos os mártires que a gente teve, é tudo vilão. Todo mártir que fez alguma e que veio da classe D, E, é vilão. Se você for pegar a história mesmo, de fato, ele é um cara do tempo dele, como o Osama Bin Laden é hoje. Quem é mais vilão: o Bush ou Osama Bin Laden? Quem era mais vilão na época: a volante ou o Virgulino? Então eu fico com o exemplo do cara mais destroçado, e que teve a família destroçada. continente Mas ele não destroçou mais famílias do que foi destroçado? ferréz Há estudiosos que divergem dessa opinião. Eu tenho Virgulino como herói, não o tenho como vilão. Meu pai era parente da família de Lampião, por isso eu sou Ferreira, também, embora


meu pai tenha vergonha de falar. Agora eu acho que a cultura nordestina não é muito valorizada. Lampião é um só cara no meio de toda uma geração que teve as indumentárias e uma cultura própria e a gente não para nem para ver. Na escola, a gente nem sabe quem é Lampião. É como Zumbi – nas escolas, é só um negro fujão. continente Seus dois romances (Capão pecado e O manual prático do ódio) estão ambientados no Capão Re­dondo, lugar onde você vive. Quais as semelhanças entre Ferréz e os seus personagens? ferréz Não tem diferença nenhuma, mano. Eu sou um moleque desses que estão dentro do livro. Tenho a mesma vida, os mesmos amigos, as mesmas mulheres (não tantas), as mesmas companhias, aventu­ras e desventuras, e é por isso que é verdadeiro. O livro e o autor, quando divergem muito, é sinal de algum problema. continente Os críticos têm refletido sobre sua literatura ou sempre enfatizam a sua origem social? ferréz A maioria da crítica me avalia muito pela minha condição; por ser uma pessoa que veio da peri­feria, eles querem mostrar que algumas pessoas da periferia conseguem: “Ó, tá vendo ali, o cara consegue, você é que não tá batalhando”. A classe média e a classe alta brasileira têm um discurso de que o pobre é pobre porque não está trabalhando. Isso passa de pai para filho, e, pra quebrar, é uma barreira muito grande, às vezes a gente é usado como esse exemplo também, o que é uma pena. continente Na epígrafe de Capão pecado, você diz: “Querido sistema, você pode até não ler, mas tudo bem, pelo menos viu a capa”. No entanto, a primeira edição esgotou em menos de três meses. O sistema, afinal, não foi tão adverso… ferréz Para você fazer literatura neste país tem que ser, primeiramente, chato, irritante. Vender livros nes­te país é pior que vender geladinho na rua, engraxar sapatos. Eu vi um menino na porta do hotel engraxando sapatos, uns três. Eu, ali, com livro, não vendia dois. Tanto que a gente é esquema das editoras. Hoje o autor é esquema. Eu sou esquema de editora. Vou pra tudo

que é lugar, a editora vende o livro, a gente passa a maior dificuldade e tem que levar livro na bolsa para ganhar 30%, já que a editora, quando vende, o autor ganha 10%. Eu já disse pro meu pai: “Isso não vai durar muito, eu não nasci pra ser esquema”. continente Em O manual prático do ódio, alguns personagens são classificados como “guerreiros justos”. E geralmente são sujeitos que roubam, matam por dinheiro, “atiram para ver a queda”. Que padrão de justiça seria esse? ferréz Ninguém tem ideia de quantas crianças o Maluf já matou. Quando ele roubou o dinheiro da merenda, quantas crianças, por não comerem na escola, ficaram com nanismo e acabaram não aprendendo a ler? Essas crianças já foram assassinadas, já foram excluídas socialmente. Então, quem é pior: o cara que mata o outro ali pelo relógio ou o político que mata 100, 200, 300, desviando verba? Eu chamo de guerreiros porque é uma guerra e os caras estão na batalha, estão sobrevivendo. É sem julgamento. Eu não faço literatura de julgamento. continente Mas nenhum dos dois é justo… ferréz Nada é justo, mano. Ninguém é inocente em São Paulo. continente Como você enquadraria a literatura marginal e quem estaria junto a você nessa literatura, hoje, no Brasil? ferréz Se eu enquadrasse a literatura marginal, eu ia ser polícia… (risos). Então, não posso enquadrar de jeito nenhum! Quando comecei a escrever, os críticos não me punham como escritor contemporâ­neo, nem na geração 90. Eu não me enquadrava nesses pontos. E aí eu vendo as entrevistas do Plínio Marcos, do João Antônio, matérias de jornal da época falavam “Ah, João Antônio é aquele autor da literatura marginal” e desdenhavam, assim como desdenham da favela hoje: “O cara é da favela, é da periferia”. Eu peguei o nome como forma de orgulho e comecei a assinar como litera­tura marginal. Depois a gente montou a revista (Literatura Marginal, projeto executado em parceria com a revista Caros Ami­gos que, posteriormente, se tornou livro), convidou vários autores e virou um movimento.

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continente O manual prático do ódio está, desde 2003, com os direitos vendidos para se tornar filme. Sua escrita se presta à linguagem do cinema? ferréz Eu acho que facilita, porque a gente acaba escrevendo também de uma forma bem cinematográfica. Mas eu nunca penso em outras mídias quando escrevo. Eu penso na minha satisfação como autor de estar escrevendo uma história de que tenho orgulho. Inclusive, eu fiz uma história que se chama Pensamentos de um correria (publicada na edição de 08/10/2007 e que provocou polêmicas entre vários setores; Ferréz foi acusado de fazer apologia ao crime), e é uma resposta ao Luciano Huck, que foi assaltado. Eu queria até pedir um minuto de silêncio pelo Rolex do Luciano Huck. É muito triste, neste país, mano, um cara culturalmente elevado ser assaltado assim… continente Qual a importância de Paulo Lins para sua literatura? ferréz Paulo Lins é para mim um exemplo de escritor. Quando eu perdi meu emprego, trabalhava no Bob’s fritando hambúrguer, catei o dinheiro, subi no Shopping Ibirapuera e comprei um livro dele. Aquilo mudou minha percepção do que era escrever. Eu estava escrevendo o Capão pecado e no meu livro era tudo perfeito, ninguém cheirava ou fumava, um não traía o outro. E, quando eu li o Paulo Lins, pensei “nossa, mano, a favela é isso, por que eu tô fazendo outra coisa?”. Aí eu entendi a problemática. continente Quais foram os autores que o decepcionaram? ferréz Os autores brasileiros são medrosos, já começa por aí. Noventa por cento é bundão. A gente tem que falar a verdade: “É bundão!”. Porque você chama o cara para ir pra sua quebrada, pra ir almoçar, tal, e o cara não vai. E quando eu vou, os caras nem me aceitam na portaria. Quando marca, toda vez o cara tá de saída. Eles confundem as coisas. Fala um monte na palestra, mas quando sai… Vai tomar o uísque dele, pegar o carro importado, é outra pegada. Tem que tomar cuidado com que a mídia vende e com o que de fato o cara é. O que passa no jornal, na televisão é um produto. A pessoa é outra coisa. por marcelo sandes


The Golden Age, Lucas Cranach/reprodução

Artigo

Emir Sader Por que utopias? Edição nº56, ago/2005

Se a utopia é o não lugar , por que utopia? Por que precisarmos de um não lugar? Em janeiro de 2005, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, deu-se entre tantos outros um debate entre José Saramago e Eduardo Galeano, justamente sobre este tema. O escritor português abriu o debate dando o que ele chamou de uma má notícia: as utopias tinham morrido. Ele não queria utopias, queria realidades. Queria que se pudesse mudar o mundo ainda no seu período de vida. Criticava a utopia, porque ela apareceria como o contraponto da realidade, o seu oposto, quando não o seu substituto. Sonharíamos com a utopia, por não podermos transformar a realidade conforme nossos sonhos. A utopia seria um escape, para não enfrentarmos o mundo na sua dura realidade, mas que é o ponto de partida incontornável para construir um mundo melhor. Não há dúvida de que os mecanismos religiosos do sofrimento no vale de lágrimas e da compensação na salvação eterna tiveram sempre um papel de consolo, desviando as energias transformadoras. As utopias, conforme são encaradas, podem ter esse papel. Desenhar sociedades perfeitas em um futuro longínquo, desviando o olhar da realidade imediata, pode ser negativo. Principalmente se esses modelos não contêm a forma pela qual é possível construir pontes entre as sociedades realmente existentes e os objetivos que se buscam. Se quisermos somente pão, de fato talvez a utopia não seja necessária. Mas se não quisermos apenas comida, então precisamos de pão e de fantasia, de comida e de beleza, de alimento e de utopia. A utopia assumiu, nos dois últimos séculos, a forma do socialismo, de uma sociedade pós-capitalista. Este século representa o mundo do

dinheiro, da riqueza, do consumo e, também, o das armas, do poderio da força. Qualquer utopia, desde então, assumiu a forma da negação do capitalismo e de seus valores. Foi assim com os chamados comunismos ou socialismos utópicos e com o anarquismo. A esquerda se definia como anticapitalista. A trajetória histórica concreta fez com que o capitalismo se consolidasse no centro e as possibilidades de ruptura com esse sistema se dessem na sua periferia: primeiro na Rússia, meio europeia, meio asiática, meio capitalista, meio feudal. Daí em diante, ao invés de se propagar na direção da Europa avançada economicamente, só conseguiu se difundir na direção da Ásia, com a revolução chinesa. A incorporação ao campo socialista dos países do leste europeu não mudou substantivamente essa dinâmica, inclusive porque

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esses países haviam sido em grande parte destruídos pela Segunda Guerra e não significavam uma contribuição decisiva para aliviar o atraso herdado pela Revolução Russa. A utopia emancipadora terminou se restringindo dado o atraso relativo de que partia para a conquista de direitos elementares básicos, que o capitalismo não havia propiciado, nem à Rússia, nem à China. Em comparação com a Turquia, no primeiro caso, e com a Índia, no segundo, a Rússia e a China representaram verdadeiros milagres de avanço material. Porém, o próprio modelo social e político, dando-se em um terreno de atraso material relativo e de cerco militar e econômico do Ocidente, ressentiu-se disso e não se revelou como um modelo democrático e emancipador. A utopia foi ganhando um caráter econômico, a capacidade de promover


o desenvolvimento de países atrasados, e social, a capacidade de afirmar direitos sociais da grande maioria da população, mas despojada dos seus outros elementos originais, democracia política, emancipação ideológica. E, posteriormente, nem sequer o desenvolvimento econômico foi garantido, levando à crise dos modelos de economias centralizadas, mas sem planejamento democrático.

destinos da utopia

A tese do fim da história se casa com a do fim das utopias. Se a história tivesse que se limitar ao marco da economia capitalista de mercado e do sistema político liberal, as utopias não teriam lugar, seríamos condenados a viver em sociedades de opressão política, de exploração econômica, de discriminação e de alienação. O paradoxal é que nunca como na atualidade a humanidade dispõe de

tantos recursos técnicos e científicos, para poder mudar o mundo conforme seus desejos e seus sonhos. E nunca como atualmente as pessoas sentem os destinos do mundo e de si mesmas tão fora do seu alcance, tão alheios, e nunca houve tanta impotência das pessoas diante de tudo o que as rodeia. Para nos perguntarmos sobre os destinos da utopia, temos que responder a que se deve isso. Se de fato os destinos do mundo e dos homens no mundo são determinados por leis inexoráveis, independentes da sua vontade e do seu controle, então as utopias morreram definitivamente, ficarão relegadas a livros de ficção científica, a filmes fantásticos e a sonhos delirantes de alguns. Essa impressão nos aparece como realidade, não porque seja inevitável, mas porque se fundamenta em um tipo determinado de sociedade. Uma sociedade construída pelos homens e

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que, se for entendida historicamente, pode ser desconstruída e reconstruída, livrando-nos do risco da sua perpetuação. Compreender esse mecanismo é condição da possibilidade de realização das utopias, do outro mundo possível que prega o Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Na luta por um outro mundo possível, no debate de janeiro de 2005, Eduardo Galeano reivindicou a atualidade e a perenidade das utopias. Diz que as utopias estão no horizonte, quanto mais achamos que nos aproximamos delas, então mais se distanciam. Então – pergunta-se ele —, para que servem as ideologias? E responde: servem para indicarnos a direção correta em que devemos andar. São iluminadoras dos projetos possíveis no presente, que nos permitem aproximar-nos dos ideais.


Brasil

Flávio Moreira da Costa Uma vida para a literatura edição Nº 88, abr/2008

Poucos escritores no Brasil

podem se dar ao luxo de viver apenas da literatura. Flávio Moreira da Costa é um deles. Com uma literatura marcada pelo humor, pela experimentação e pelo diálogo paródico com outros textos literários, a obra deste gaúcho, radicado no Rio de Janeiro, nos ajuda a entender as principais ten­dências da literatura neste novo século. Flávio Moreira da Costa conversou com a Continente sobre o papel do escritor e da literatura diante dos problemas sociais brasileiros, sobre algumas de suas antologias e ainda nos revelou sua paixão por futebol.

assim, lamento. Minha literatura está fora. O Realismo que respeito, e leio, é o do século 19, Stendhal, Flaubert, Eça etc. Acho uma banalidade literária, hoje, querer fazer um xerox do real. De­pois dos pesadelos de Joyce e Kafka? Não estou preocupado com os espelhos. Aliás, acho que todos os espelhos (que, para Borges, como as cópulas, têm o dom de reproduzir) só reproduzem o visível – e eu estou preocupado com o invisível. Quando se fala em literatura contemporânea, esquecemos que ela tem de ser, em primeiro lugar, contemporânea. E ela raramente o é. por cristhiano Aguiar

Portugal

Gonçalo Tavares “O meu modo de investigar é escrever romances”

continente José Castello escreveu recentemente que “O Realismo está na ordem do dia”. Ele disse ainda que, atualmente, existem, na literatura, duas vertentes: uma ligada ao best-seller, com um forte apelo de mercado; outra, a de novos realistas, que investem “energias numa literatura-espelho”. Como sua obra se posiciona diante dessas vertentes? flávio moreira da costa Se for

edição nº 75, mar/2007

reprodução

continente Você organizou e publicou, no ano passado, a antologia Os melhores contos que a história já escre­veu. Como vê a relação entre literatura e história?

flávio moreira da costa É um casamento perfeito. Ambas são narrativas, uma em cima do fato histórico (nem sempre ne­ cessariamente “objetivo”), outra na base da imaginação autoral (nem sempre só “subjetivo”). A história com H começou como literatura (veja Heródoto: ele anotava as histórias e “causos” que ouvia dos moradores dos países em que se aventurava) e às vezes se desenvolve como testemunho, ou mesmo complemento da História. Neste sentido, e só para dar um exemplo, veja os contos de Merimée e de Machado, que complementam, aprofundam mesmo (no sentido de dar uma contribuição humana ao frio relato histórico) o tema da escravidão. Em algum lugar História (fato) e literatura (ficção) se encontram. Os melhores contos que a História já escreveu mostra isso, acredito.

Gonçalo Tavares, 35 anos, 16 livros publicados, é um dos mais prolíficos escritores da nova geração de autores portugueses. Autor de ficção, ensaio, poesia e teatro, recebeu o Prêmio José Saramago por seu romance Jerusalém, publicado no Brasil pela Companhia das Letras (2005), e foi distin­guido com os prêmios Branquinho da Fonseca, da Fundação Calouste Gulbenkian, e do Jornal Expresso por O Senhor Valery (ed. Caminho), dentre outros. De sua residência, em Lisboa, ele nos concedeu, por telefone, esta entrevista. continente Como começou isso de ser escritor? gonçalo tavares Comecei a escrever desde muito cedo, como todo mundo, mas de uma forma séria, desde os 18 anos. E dos 18 aos 30 comecei a escrever com muita disciplina, levantando muito cedo, mais ou menos às 5h, e às 6h30 já estava começando a trabalhar. Fiz isso durante 12 anos, e só publiquei aos 31 anos.

Flávio Moreira da Costa

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México

chamado Biblioteca, composto de textos sobre mais de 200 autores, e muitos deles são algumas das minhas influências. São autores de literatura, são filósofos também – porque minhas leituras passaram muito pela filosofia – e, claro, tentei ler todos os escritores mais importantes.

Guillermo Arriaga “O que faço para o cinema é literatura”

continente E na literatura portuguesa? gonçalo tavares Um bom leitor não deve ser aquele que lê apenas ou principalmente os livros de sua época. Penso que nosso século é o século da tradução, e da boa tradução; e eu provavelmente fui mais influenciado pela literatura alemã, espanhola, francesa etc. Mas não deixei de ler, com muita atenção, os clássicos portugueses – e brasileiros também; eles são fundamentais para se perceber a língua em que se trabalha.

continente Como você encara o processo de escrita? É um dom ou é esforço? gonçalo tavares Há pessoas que têm mais “instinto” para escrever, como outras têm mais “instinto” para pintar ou serem atrizes. Agora, quando se fala, por exemplo, de escrever um romance, não é possível escrever um romance estando sempre à espera de inspiração. Para escrever um romance é preciso sentar. E isso é um ato de disciplina e esforço. continente Como é o seu processo de escrita? gonçalo tavares Quando começo a escrever um livro, tento manter o entusiasmo até o fim, sem largar ou começar outro enquanto não acabar. Mas depois que acabo, ponho de lado e vou fazer outra coisa. Depois de uns seis meses ou um ano, volto para ele e então posso eliminar, cortar páginas etc. continente Quais são as suas principais influências na literatura do mundo? gonçalo tavares É difícil responder a essa pergunta porque, felizmente, fui influenciado por muitos autores. Eu escre­vi um livro

Tensão e a linguagem crua dos seus filmes não têm nada a ver com a paciência e a voz suave de Guillermo Arriaga.O roteirista de Babel – vencedor do Oscar de melhor roteiro, Os três enterros de Melquíades Estrada –, Palma de Ouro de melhor roteiro em Cannes e Amores brutos – vencedor do Bafta de melhor filme estrangeiro e indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro,vêm atraindo os holofotes do cinema mundial para o cinema latinoamericano, mais especificamente, para o mexicano. O segredo, diz ele, é escrever para o cinema como se escreve para a literatura. continente O que seus livros têm a ver com o Brasil? guillermo arriaga O búfalo da noite poderia se passar em São Paulo, reprodução

Gonçalo Tavares

continente Qual o seu autor brasileiro predileto? gonçalo tavares Talvez a autora que me tenha mais marcado seja a Clarice Lispector. Apesar de eu ter um respeito enorme por Machado de Assis e por Guimarães Rosa, e também pelos poetas João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, penso que a Clarice consegue juntar uma mistura entre prosa e poesia e uma intensidade de linguagem que me faria apontá-la como uma das maiores escritoras do século 20 e do mundo. Há, no mundo, talvez apenas quatro ou cinco escritoras como Clarice Lispector.

edição nº 79, julho/2007

continente Como você avalia a produção dessa nova geração de autores portugueses, da qual você faz parte? gonçalo tavares Portugal teve uma tradição forte em termos de poesia. Há um poeta mais velho muito importante que se chama Herberto Helder, mas, falando da nova geração, há poetas que são pouco conhecidos aí no Brasil, como o Rui Pires Cabral, Manuel de Freitas, e há vários poetas portugueses, entre 30 e 40 anos, de grande qualidade. Falando de prosa, por exemplo, há um escritor como Pedro Rosa Mendes – então, é uma nova geração que está aparecendo, e isso é muito importante. por márcio Santana Sobrinho

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Guillermo Arriaga


continente Os seus filmes têm uma grande repercussão e uma linguagem muito singular. O que eles têm em comum? guillermo arriaga Eu tento escrever para o cinema como se escrevesse uma obra de literatura, coloco uma linguagem dedicada à literatura e sou muito cuidadoso. Quando escrevo, quero que meus filmes sejam envol­ ventes, que sejam entrelaçados, que tenham emoção, que envolvam quem os assiste. Tudo o que faço é muito cuidado. Cada página deste livro (O búfalo da noite) foi escrita umas 50 vezes. A pri­meira página, oitocentas vezes, e não estou mentindo. Levou cinco anos para ser escrito. Um doce aroma de morte, em quatro anos. Meu trabalho não é pura inspiração, é muito trabalho. continente Os temas abordados por seus livros e filmes também têm muito em comum. guillermo arriaga Sim. Cinema e livro têm uma veia de comunicação entrelaçada. Os assuntos, a importância, o amor, os personagens no limite, mortes, amantes… E na vida as histórias também se cruzam como nos meus livros e filmes. Não é uma coisa linear. A vida da gente vai passando sem acontecer nada e, de repente, acontece tudo. Quero que a linguagem dos meus livros e dos filmes seja a mesma da vida. continente Babel foi o seu filme com maior reconhecimento, com prêmios e indicações. Foi o de que você mais gostou? guillermo arriaga Teve um grande reconhecimento e tem muito a ver com sua equipe de apoio, além dos temas abordados e que tocavam a todos. Isso das vidas todas conectadas vem muito da globalização. Eu nunca estive no Japão ou no Marrocos nem fiz pesquisa sobre isso. Foi pura imaginação, o que é permitido pela globalização. No entanto, o filme agradou. Mas o de que mais gosto é Os três enterros de Melquíades Estrada, que ganhou em Cannes.

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por exemplo, e Um doce aroma de morte poderia se passar no Sertão. E, em ambos, os brasileiros vão encontrar um texto sem concessões. Acho que vão gostar. Aliás, faço uma aposta: quem não gostar pode devolver à editora e a editora dá outros dois livros. Tenho certeza de que vão gostar.

João Gilberto Noll

continente O que você acha que atraiu as luzes de Hollywood e do cinema mais independente para Babel? guillermo arriaga O cinema que eu faço não faz concessão. É honesto e tem toda uma aposta. Então não é à toa que sou o primeiro escritor latinoamericano com dois filmes vencedores em Cannes, de forma consecu­tiva, e outros prêmios importantes. Porque são filmes completos em todos os caminhos. E o mara­vilhoso de Babel é ter ganho em Cannes e no Oscar Por Mariana Camarotti

Brasil

JOÃO GILBERTO NOLL “acesso insólitas figurações carnais” edição nº 71, nov/2006

Os personagens de Noll são essencialmente solitários, vivem a meio caminho en­tre o que é vivido de fato e o que é imaginado, sonhado ou fantasiado. Por isso não há limites para sua literatura: mesmo tabus como o incesto são explorados de uma forma radical, por trás da aparente banalidade dos enredos. e s p ec i a l f l i p o rto n ov e m b r o 2 0 0 9 | 2 6 7

continente Você teve uma breve experiência trabalhando em jornal, quando morou no Rio. Isso ajudou ou prejudicou a sua escrita? joão gilberto noll Trabalhei em jornais em meus primeiros anos de Rio. Com uma aguda sensação de que não era exatamente aquilo que eu queria da vida. Tinha uma obsessão exagerada com esse negócio de ser escritor. Dentro desse quadro, no entanto, tirei muito proveito da redação jornalística, proveito para a minha atividade de ficcionista. Aprendi que era preciso evitar qualquer palavra supérflua. Se bem que eu, pessoalmente, não tente nada contra os adjetivos, pois existem momentos, na prosa de ficção, que só conseguem dar conta do recado. Às vezes, num romance, você não consegue nomear seriamente o que quer que seja, sobrando assim apenas um naipe de atributos. Acho até que essa política do texto enquanto menos, do recato no uso do adjetivo, é uma coerção machista, cujo padrinho maior foi Hemingway. As plumas e ouropeis ficam para Lezama Lima. Pois é, toda essa consciência da administração da superfície do texto me veio do jornalismo. continente Que expectativas você tinha da vida e da literatura quando lançou seu primeiro livro, O cego e a dançarina? Em que medida essas expectativas se realizaram (ou se frustraram)? joão gilberto noll Tenho a impressão de que se deve relativizar essa história de realizações e frustrações. Até onde vai uma… onde inicia a outra? Como disse há pouco, sou um homem de ideias fixas. Tudo o que construí em termos literários veio da sensação obsedante de que eu só me sentiria inteiro com um trabalho nessa linha. Mas, ao mesmo tempo, depois de algumas décadas em que você persegue o seu objetivo ficcional, é obrigado a admitir que ficou paralisado em tantos outros campos da vida! E isso traz uma tristeza, mas traz também uma certeza de que tudo que é humano é assim mesmo conflitivo e provisório, e que é melhor seguir e assobiar… continente Existe hoje uma contracultura? Ou até a rebeldia, na vida e


na literatura, foi codificada e incorpo­rada à dinâmica do consumo? joão gilberto noll Acho que nessa pergunta já pulsa a resposta. Sim, a situação mudou. De onde vem então a justi­ficativa para o “sim”, pelo menos para alguns teimosos da minha geração? De um certo pendor para a experimentação, tanto na literatura como nos amores e convívios. É acreditar na força dos mistérios, e ainda suando frio, feito um colegial. É o espanto genuíno, enfim. É fazer jus à árdua diligência das válvulas cardíacas, e mandar ver, não é?

Portugal

José Saramago O dinossauro fala edição nº 08, ago/2001

José Saramago não é só bom de escrita. É bom de entrevista, com respostas curtas, mas sempre afiadas. Um dos pontos altos dessa conversa é quando Geneton pergunta como ele definiria o Brasil em três palavras, e a resposta foi bem direta: “Quando se decidem?” Além da definição sobre o Brasil, Saramago banca o escrivinhador da carta de Pero Vaz de Caminha e diz que é impossível alguém fugir da morte. Essa entrevista está sendo aqui reeditada no mês de lançamento no Brasil do seu novo romance, Caim, em que ataca um dos seus alvos favoritos, a religião. reprodução

continente O incesto está presente em alguns contos. Explique sua atração por esse tema. joão gilberto noll É a primeira vez que alguém me diz que tenho uma atração pelo tema do incesto. E, de fato, só em A máquina de ser lembro agora ter pelo menos dois contos com esse tema.O que que eu acho? Não sei. Sei que me sinto atraído de um modo geral por relações obscuras, completamente à parte do olhar de terceiros. Relações fora das matrizes familiares, domésticas, senhoris. Por exemplo, num dos contos de A máquina, irrompe um amor sensual numa irmandade religiosa primal. Os dois formam o casal que foge da ceia e se enfurna pelo Jardim das Oliveiras. Sim, tem o pai, em ou­ tro conto, que transa no escuro com alguém que mais tarde se revelará sendo a própria filha. Acho esses

continente O senhor é até hoje filiado ao Partido Comunista Português. Não tem medo de ser visto como um animal político em vias de extinção? josé saramago Há muitas coisas em vias de extinção que deveriam preocupá-lo mais: profissões que se acabam, culturas que desaparecem, línguas que perdem sentido porque já não têm ninguém que as fale, um planeta que estamos destruindo. Deixemos lá os dinossauros políticos. Porque acontece uma coisa curiosa: é preciso ter cuidado com a expressão “dinossauro político”. Pode chegar o momento em que, tal como acontece com os dinossauros autênticos, os estudiosos andem à procura dos ossos dos dinossauros políticos, para tentar reconstituí-los tal como eles teriam sido. Talvez um dia se venha a necessitar dos ossos dos dinossauros políticos que nós somos para que se entenda o que acontecia no mundo.

momentos, atávicos, belos, talvez pelo sentido transgressivo, certo? Agora, responder o que revelo de minha própria vida ao escolher cenas assim, confesso que não sei. Na minha literatura, meio sem querer, costumo acessar insólitas figurações carnais. Talvez esteja aí um dos meus últimos pendores para a juventude. Ou um dos primeiros pendores da velhice? Por luciano trigo

continente Se o senhor fosse fazer hoje o papel do escrivão Pero Vaz Caminha, 500 anos depois, qual seria a primeira frase que escreveria sobre o Brasil ? josé saramago Depende do lugar onde eu desembarcasse. Se eu desembarcasse em Copacabana, quando se arrebentaram os esgotos nas praias no Rio de Janeiro, eu diria ao rei Dom Manuel que aqui não poderia viver ninguém, porque o lugar cheira mal. Imagine se, pelo contrário, eu desembarcasse numa praia limpa, coberta não de índias despidas, mas de lindas moças quase despidas. Eu diria que aqui é um sítio para viver, uma terra linda. Se, no entanto, eu começasse a encontrar as favelas, eu diria: “Mas o que é que se passa aqui? Eu julgava que os índios viviam de outra maneira!” continente O senhor já disse que o Brasil é um país de luzes e sombras. Aos olhos do mais famoso escritor português de hoje, qual é a grande luz e qual é a grande sombra que o Brasil projeta? josé saramago Uma pergunta dessas não é fácil de responder. Países de luzes e sombras de uma maneira ou de outra todos o são. O que digo em relação ao Brasil é que o país poderia ser, por suas riquezas naturais e pelas características do seu povo, um país em que as luzes predominassem.

José Saramago

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Não digo que as sombras é que predominam. O que quero dizer é que as sombras poderiam ser menores e menos graves. continente Por que os escritores brasileiros são tão ausentes de Portugal e os escritores de Portugal tão ausentes do Brasil? josé saramago Pode-se pensar, por exemplo, que leitores de um país não deem atenção suficiente àquilo que se publica no outro. Pode-se pensar que os temas que tratam os escritores de um país não interessam aos leitores de outro. Mas, também se pode pensar que não há um trabalho de fundo para aproximar os dois. É certo que os escritores portugueses vêm aqui. É certo que os escritores brasileiros vão a Portugal. Mas, há algo que se passa que não sei explicar. Temos de pensar no seguinte: o leitor também tem suas razões para preferir ou não preferir. Quero crer, no entanto, que seria bom se houvesse um trabalho mais contínuo de ajuda à edição - evidentemente, é preciso ver até que ponto tal ajuda é economicamente viável. O que é lamentável é que seja assim. Eu sou uma exceção. Eu próprio me pergunto por quê. Não sou capaz de dar uma explicação. Talvez o que se devesse fazer seria pergun­tar aos leitores: por que não os interessa a literatura portuguesa? Por que não os interessa a literatura brasileira? Como é que poderiam se interessar? Por que os interessa um determinado autor - e não outro? Fernando Pessoa é muito lido no Brasil. Cem anos depois, Eça de Queiroz também o é. Já Machado de Assis não é tão lido em Portugal como Eça de Queiroz o é no Brasil. Faça-se um inquérito para que se chegue a alguma conclusão. continente Uma velha pergunta: o senhor escreve para fugir da morte? josé saramago Não, porque ninguém foge da morte. É uma ilusão. O que pode acontecer é pensarmos e devo ter pensado - que se escreve porque não se quer morrer. Partese do princípio de que a obra vai ficar, não se sabe por quanto tempo. Hoje, não sou tão ambicioso. Eu me limito a dizer que escrevo para tentar compreender as coisas.

continente Se o senhor fosse definir o Brasil numa só palavra, que palavra o senhor usaria? josé saramago Como é que se pode definir numa só palavra? Se pudesse usar nem que fossem duas palavras, talvez eu conseguisse. Dê-me três palavras… continente Quais seriam, então, as três palavras? josé saramago Eu definiria assim o Brasil: “Quando se decidem?” por geneton Moraes Neto

Haiti

Laënnec Hurbon O Brasil não é (e é) o Haiti edição nº 53, mai/2005

Dedicado à análise das relações

entre escravidão, religião e política, o sociólogo Laënnec Hurbon é considerado um dos mais influentes intelectuais haitianos de sua geração – doutor em teologia pelo Instituto Católico de Paris e em sociologia pela Sorbonne. Nesta entrevista exclusiva, Hurbon se dispôs a falar também de aspectos históricos e políticos que explicam uma identificação cultural forte, embo­ra pouco explorada, entre os povos haitiano e brasileiro. “Estive no Brasil pela última vez em 1992, durante um congresso de especialistas da história da Igreja da América Latina e do Caribe”, lembra, lamentando ter ficado tanto tempo sem voltar para um país onde diz se sentir completamente em casa. “Prometi a mim mesmo aceitar todas as propostas de cursos e seminários em universidades brasileiras”, comenta, cumprindo logo a palavra com a presença em eventos no Ceará, em Pernam­buco e na Bahia, em menos de sete dias, durante o mês de março.

continente Na aldeia global, como situar o Haiti? Laënnec Hurbon O Haiti é um microcosmo do mundo moderno: ali todos os grandes problemas não resolvidos e escondidos da

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modernidade aparecem de maneira inequívoca. Compreender o Haiti é compreender os horrores de um mundo que marginaliza a maioria da população enquanto celebramos a aldeia global. Uma igualdade efetiva entre indivíduos e povos não pode acontecer enquanto um império se instaura sem um contrapeso real. continente Então o senhor também acha que o Haiti é aqui? Laënnec Hurbon Existe uma certa ambiguidade nessa música de Gilberto Gil, que tenta provocar nos brasileiros uma solidariedade mais profunda com o Haiti. O Brasil não é o Haiti das ditaduras recorrentes e da miséria sem cabimento. Porém, o Brasil é o Haiti por causa de uma memória de escravidão e de despotismo que deveria suscitar uma maior solidariedade entre haitianos e brasileiros, além de uma tomada de consciência da situação do Brasil no que diz respeito às desigualdades sociais e às rela­ções interétnicas. Gil também vê no Haiti a terra da liberdade, o primeiro país a sair da escravidão por uma insurreição geral, embora ainda precise lutar contra o despotismo. continente Que brasileiros têm despertado sua atenção para a produção cultural daqui? Laënnec Hurbon Gostei muito dos filmes de Glauber Rocha e da obra de Jorge Amado. Há pouco tempo vi um filme, de cujo título esqueci-me, sobre um menino de rua adotado por uma mulher, interpretada por uma atriz famosa, e, contando sua história, o cineasta nos leva para uma peregrinação pelo interior rural e o mundo operário do Brasil, fazendonos descobrir a história real do país e os problemas do seu cotidiano. Achei esse filme (Central do Brasil, de Walter Salles) genial. continente Como o senhor avalia a evolução cultural dos dois países rumo a um futuro mais esperançoso para a América Latina? Laënnec Hurbon Os dois países partilham um futuro comum por terem, antes de tudo, uma memória comum. Essa memória não se orienta necessariamente para o culto do


passado ou para a retomada de fatos traumáticos. Tomo como exemplo o projeto da Unesco da Rota do Escravo. Trata-se de um proje­to que propôs uma volta crítica ao passado do tráfico e da escravidão para descobrir movimentos solidários entre os povos, novas culturas que emergiram nas lutas que os escravos travaram pela liberdade. Há semelhanças tão profundas entre os dois povos que, se eles conseguirem se ajudar mutuamente, poderão colaborar muito mais para a revalorização de toda a América Latina, tanto no âmbito cultural como no político. Porém, o Brasil deve saber que só pode acompanhar o Haiti no seu combate atual contra a ditadura e o subdesenvolvimento se buscar o máximo de informações sobre o que representava o regime criado por Aristide entre 2000 e 2004.

1805, que só poupou os farmacêuticos, os padres e os regimentos po­loneses e alemães que viraram a casaca contra a França de Bonaparte em 1802, durante a guerra da independência. continente O que o senhor acha do sistema de cotas para negros? Laënnec Hurbon Não simpatizo com essa ideia das cotas por achar que ela não corresponde aos princípios de um Estado republicano, mas a demanda de cotas para estudantes afro-brasileiros relaciona-se à ideia de igualdade e não apenas de justiça que pode ajudar a manter o status quo. A ideia de igualdade pressupõe que consideremos uma história de injustiça jamais reconhecida até então. De todo modo, a regra da competência deve ser observada onde o princípio de cotas for adotado.

continente Como comparar o racismo brasileiro com o haitiano? Laënnec Hurbon Por muito tempo, certas obras antropológicas apontaram o Brasil como um país em que a demo­cracia racial triunfara, mas a realidade é outra. Eu percebi isso em minhas viagens ao Brasil. No Haiti, o preconceito de uma parte de mulatos contra os negros é uma herança do escravagismo, pois não há mais brancos no país desde o extermínio organizado pelo primeiro chefe de Estado, Jean-Jacques Dessalines, em chico porto

continente Que elementos culturais brasileiros e haitianos o senhor destaca na construção da identidade desses dois países? Laënnec Hurbon Os haitianos dispõem de uma herança cultural e religiosa importante, que se enraíza no vodu, que equivale ao candomblé

brasileiro. O que a pintura, a música (com ritmos nacionais como o compas e o meringue), a dança, a literatura, enfim, as manifestações artísticas do Haiti devem ao vodu é incomensurável. Também acredito que o candomblé tenha essa mesma importância no Brasil. A identidade brasileira tem um vínculo muito forte com a memória da escravidão. Todos os outros grupos de migrantes deveriam reconhecer e assumir essa memória para que o Brasil se livre de preconceitos racistas que ainda habitam instituições e mentalidades.

Laënnec Hurbon

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continente No conjunto de sua obra, o senhor menciona que as respostas para as injustiças sociais podem ser encontradas no seio mesmo dos movimentos criados por escravos rebelados. Que iniciativas significativas nesse sentido podem ser percebidas na América Latina? Laënnec Hurbon O que caracteriza os movimentos de revolta desencadeados por escravos no Caribe e em toda a América Latina é a reivindicação clara da igualdade e da liberdade. Porém, atualmente, essa reivindi­cação espera ainda por ser honrada, pois a saída real da escravidão supõe o acesso à cidadania plena e integral. Ora, do século 19 até hoje os problemas de acesso à propriedade, de reconhecimento de culturas e religiões herdadas da escravidão, as possibilidades de se obter serviços de base como saúde, escola etc., tudo isso mostra que comunidades inteiras, sejam elas negras ou indígenas, são marginalizadas. Os movimentos sociais que lutam pela reforma agrária, os movimentos feministas, os sindicatos e as organizações que militam contra as políticas das instituições internacionais obce­cadas pela privatização dos bens públicos parecem se situar na linha das revoltas baseadas em uma demanda de igualdade e liberdade – ou seja, o que ficou incompleto no passado, para retomar a expressão do filósofo Ernst Bloch. Por Débora Pinheiro


arquivo cepe

Artigo

daniel piza o labirinto de octavio paz Edição nº39, mar/2004

Octavio Paz foi o maior intelectual

latino-americano do século 20. Suas contribuições para as mais diversas áreas — poesia, história, pintura, política — são tão variadas e consistentes que não têm igual. Para comparar com o Brasil, grandes homens de letras, como Sergio Buarque de Holanda e Otto Maria Carpeaux (austríaco de nascimento), não conseguiram demonstrar tanta propriedade e originalidade em tantos assuntos. E suas vozes não atingiram a dimensão internacional que a do ensaísta mexicano, ganhador do Nobel de Literatura de 1990, atingiu. Sua obra se destaca também por uma combinação entre um pensamento político que não é de esquerda ou direita, como o da maioria dos intelectuais latino-americanos do século 20, e uma defesa da arte que é inovadora, mas dialoga com a tradição, ao contrário do que sempre defenderam os escritores e artistas do continente. Em outras palavras, Paz não caiu nas dicotomias globais e locais do século passado: foi um liberal, um progressista consciente, tanto na política e na economia como na cultura e na moral. E foi um intelectual público, que não se fechou detrás dos muros da academia nem se rendeu às superficialidades do jornalismo. Ensaísta na grande linhagem de Montaigne e Samuel Johnson, Paz jamais deixava de mesclar informação e reflexão, embutindo perspectivas humanistas em tudo que escrevia. Por isso era capaz de tratar da história política e cultural de seu país e ressoar para os demais. Rompeu, assim, com a noção de que o intelectual periférico não pode dizer coisas novas ou pelo menos de formas novas para leitores inteligentes de qualquer parte do mundo. Antifascista desde que se deu por gente, criador de revistas de artes e ideias como Taller, Plural e Vuelta, Paz

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se dissociou do provincianismo mexicano e ainda soube falar do México para todo o planeta. Poeta e diplomata, morou nos EUA, na França e na Índia, participou de diversos movimentos estéticos e assim construiu uma obra que fala de Marcel Duchamp, do hinduísmo e de Fernando Pessoa com a mesma intensidade. Ao mesmo tempo, leu o México como ninguém: aos 36 anos, publicou um de seus melhores livros, O labirinto da solidão, que devassa o caudilhismo histórico do país, sua resistência oligárquica e burocrática à modernidade (no sentido amplo da palavra, que inclui a separação entre público e privado e entre Estado e religião), seu descaso com o controle populacional e a educação de qualidade, temas que retomaria em O ogro filantrópico, apelido que deu ao estado paternalista e corrupto. Soa familiar? Mas o ensaísta, por esse mesmo talento, também mostra as particularidades mexicanas, como a nostalgia de uma idade do ouro préeuropeia que, na verdade, ocupa mais o campo mítico que o real. A América hispânica não teve século 18, costumava se queixar. Não tivemos nenhum Kant, Voltaire, Diderot, Hume. Iluminista modernizado, que aprendeu a lição de Nietzsche de olhar atrás das máscaras das palavras, Paz combateu o atraso do continente em todas as frentes, a começar pela poética. Ao contrário de seus amigos brasileiros, os intelectuais do grupo concretista, por sinal socialistas, dizia que a linguagem deve ser para o criador um objeto ao mesmo tempo de veneração e transgressão. Em livros como O arco e a lira e Signos em rotação, leu como poucos a experiência da poesia modernista, que usa as elipses no tempo e os aspectos materiais da palavra sem abandonar o referencial da sintaxe e da semântica, sem cair no onanismo vanguardoide ou no efeito fácil. O mesmo tentou fazer em sua poesia, como em Blanco, embora fosse melhor ensaísta que poeta. Se bem que, quando o crítico de arte se

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expressava em forma de poemas, o resultado era memorável. Para ele, no entanto, não fazia sentido ser um defensor da arte ao mesmo tempo tradicional e transgressora e, na política, apoiar ideologias salvadoras, sistemas fechados, planos utópicos. Pelo contrário, sua consciência da modernidade é tão completa que Paz sabe que é dentro da moldura do capitalismo democrático que a justiça social pode se aproximar da realidade, que a civilização pode combater todas as modalidades de barbárie inclusive aquela que se veste de civilização. Num continente que sempre oscilou entre utopias e populismo, e onde até mesmo autointitulados liberais, como o brasileiro José Guilherme Merquior e o peruano Mario Vargas Llosa, cederam a artifícios conservadores, nada poderia ser mais desconcertante. Sua visão não era tão serena, no entanto; Paz via em Mallarmé, como em Duchamp, uma tentativa de convocar o vazio numa era em que a

Ensaísta da linhagem de humanistas como Montaigne e Samuel Johnson, Paz mesclava informação e reflexão presença divina já entrara em crise. Hoje ele veria que o que se busca, nos melhores artistas e pensadores, é esse meio-termo basculante entre o presente e o ausente, sem aposta definitiva em nenhum. Mas Paz, como dito, era um homem do século 20, embora mais inteligente que o século 20. União rara do intelecto com a sensibilidade, combinação impensável de Raymond Aron com Charles Baudelaire, permaneceu até o final da vida produzindo com uma lucidez única e um inconformismo sem o qual ela nada seria. Livrepensador, sabia que o labirinto é ainda mais interessante quando sabemos que, justamente por não ter saída, não podemos ficar parados.


Lêdo Ivo O mundo de uma varanda de Botafogo

reprodução

Brasil

edição nº 05, mai/2001

Nesta entrevista, Lêdo Ivo faz uma espécie de itinerário da história da literatura brasileira do século 20. Lembra o gênio complicado de Graciliano Ramos, que era intratável, mas ainda assim um dos seus maiores amigos, rememora os conselhos que um dia escutou de João Cabral e explica por que uma vida longa pode prejudicar a literatura. continente A imagem de Graciliano Ramos, como homem seco e intratável, corresponde à verdade? Lêdo ivo Graciliano Ramos era rústico e intratável. Nascemos no mesmo Estado. Quando menino, como primeiro da turma no grupo escolar, fui apresentado a ele, que na época era secretário de educação. Pousou a mão carinhosamente na minha cabeça. Quando publicou Vidas secas, eu, “menino prodígio” em Maceió, escrevi, em 1938, um artigo sobre o livro. Aquilo passou. Quando vim para o Rio, para fazer vestibular de Direito, minha mãe me disse: “Vá visitar Heloísa”. Ela era a mulher de Graciliano Ramos, que, àquela altura, aos 50 anos de idade, já figurava entre os grandes da literatura brasileira. Durante nossa conversa, ele abriu uma gaveta e disse: “Quando publiquei Vidas secas em Alagoas, só uma pessoa falou do meu livro: um menino de 14 anos…”. A relação de Graciliano Ramos com Alagoas era de amor e ódio, porque ele tinha saído do Estado de cabeça raspada, jogado no porão de um navio. É curiosíssimo como duas pessoas tão diferentes como eu e o velho Graça puderam se relacionar. Devo ter aprendido com ele muitas coisas, como, por exemplo, a correção linguística que, dizem, existe em minha prosa.Graciliano Ramos era, sim, uma pessoa rústica. Em toda a literatura

Lêdo Ivo

brasileira, ele só tinha três, quatro admirações, além de Machado de Assis, a quem considerava um negro metido a inglês: José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em poesia, admirava Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por ordem do Partido Comunista. Notei, na casa de Graciliano Ramos, um livro de poesia autografado, fechado e intocado. Toda vez que eu ia à casa dele, dizia-lhe: “Você deveria abrir esse livro!”. E ele: “Já falei com Heloísa várias vezes para abrir esse livro, mas essa mulher”... Era como se competisse à Heloísa Ramos a função de abrir o livro. Se não me engano, era um volume das poesias completas de Augusto Fre­ derico Schmidt. continente O senhor escreveu em suas memórias: “Vivo escrevendo, mas o trágico é que escrever não é viver”. Com que frequência, então, o senhor tem a sensação de estar substituindo a vida pela escrita? Lêdo ivo É um drama comum a todo e qualquer escritor esse sentimento de que estamos vivendo, sim, mas essa vida se destina somente a acumular experiências para a obra literária. Já a quase totalidade das pessoas se limita a viver, porque não dispõe de linguagem. Trago um mistério inicial em minha biografia: por que logo eu,

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numa família de 11, revelei a vocação e o destino para a escrita, numa família que não tinha pendores literários? Sempre tenho a impressão de que toda a vida de um es­critor é estuário onde se acumula a matéria que se transformará em obra literária. continente O escritor é, então, uma pessoa condenada não a viver, mas a escrever. Lêdo ivo Fausto Cunha, grande crítico que notou, em minha procedência literária, a influência de poetas malditos como Rimbaud, Verlaine e Baudelaire, me disse: “O grande erro de sua vida é que você não morreu aos 20 anos. Se tivesse morrido moço, teria deixado Ode e elegia, As imaginações e Acontecimento do soneto. Então, seria um poeta como Castro Alves ou Casimiro de Abreu! Vida longa atrapalha a biografia!”. João Cabral me disse a mesma coisa. Eu respondi: “Prefiro ser o Victor Hugo das Alagoas, o poeta que viveu até os 80 anos!”. Prefiro o mistério dos poetas que, como Drummond e Manuel Ban­deira, tiveram uma vida longa e uma obra igualmente longa. continente Por que diz que detesta escritores que consideram a criação poética “um suplício”? Lêdo ivo Tenho horror desses


camaradas que passam o tempo todo dizendo que gemem e suam na hora de escrever. A minha criação literária é uma felicidade. Quando escrevo, parece que as coisas já vêm prontas, organizadas subconscientemente. Pensa que “capino” o meu texto? Ele vem a mim espon­taneamente. Não tenho nenhuma simpatia por escritores que cortam. A minha simpatia maior é pelos escritores que acrescentam! João Cabral uma vez me disse que passava noites acordado, com angústia. Eu dizia: “Você só diz que passa noites acordado para ver se me causa inveja, mas não causa não!”

Para mim, João Cabral de Melo Neto é o poeta da “antirrazão”, o poeta da obsessão, o poeta das coisas ocultas, o poeta das coisas sibilinas, herméticas. A poesia que ele deixou é complexa, mas se abre para o grande acesso popular, o que é curioso. Uma vez, João Cabral me disse: “Nós estamos fazendo uma obra literária. Procuramos fazer dela a maior que já existiu. De repente, lá em Nova Iguaçu, a essa hora, anonimamente, alguém pode estar fazendo a obra com que nós sonhamos”. por homero fonseca

continente O senhor tem uma certa sensação de deslocamento por ser um poeta em uma sociedade que não dá tanto valor aos poetas? Lêdo ivo Pelo contrário! Para mim, seria inconcebível ter aparecido antes ou ter aparecido depois. Como poeta, surgi no momento certo. Tenho um grande sentimento da minha contemporaneidade.

Luiz Ruffato “Dou voz aos anônimos”

Brasil

edição nº 63, mar/2006

O mineiro Luiz Ruffato é um

caso diferenciado entre os novos autores que estão fazendo a literatura contemporânea no Brasil. Enquanto a maioria, com maior ou menor grau de competên­cia, tem refletido, em seus escritos, o universo da classe média ou, no outro extremo, o mundo dos completamente marginalizados, ele optou por trazer para o centro de sua prosa um personagem historicamente pouco abordado: o homem comum, o brasileiro proletário ou de classe divulgação

continente Do que ouviu de João Cabral de Melo Neto, o que ficou como a grande lição? Lêdo ivo João Cabral me deu a lição da diferença entre os poetas. Cada poeta é diferente. As estéticas dos poetas são até inconcebíveis. Como são diferentes os caminhos para fazer a mesma coisa! O que mais me impressiona em João Cabral é ele ser saudado sempre como “o poeta da razão”, no Brasil.

média baixa, que forma a imensa maioria da população e que permanece quase invisível, inclusive na literatura. continente Você defende que a literatura é uma missão. Pode explicar melhor em que consiste essa missão e de onde vem sua outorga? Luiz ruffato Acho que a arte tem que transcender a realidade, tem que ser testemunha de uma época, de uma sociedade. Eu nasci no Brasil, falo português-brasileiro, venho de uma família de proletários… Ora, não dá para renunciar às minhas origens. A minha literatura é programática. Antes de começar a escrever, em 1996, eu me perguntei se valia a pena, porque não tenho vaidades mesquinhas de es­crever para aparecer em jornais e revistas, ser conhecido, essas coisas. Tanto que minha literatura é totalmente dependente das minhas experiências pessoais. A literatura brasileira, com honrosas e raras exceções, não tem uma tradição de representar a classe média baixa (não digo o marginal, pois esse está bem-retratado). Então, resolvi encarar esse problema. Dispus-me a dar voz e rosto e vida àquelas pessoas todas que participaram da minha vida e que se afundaram no mais profundo anonimato, aquele de que fala Manuel Bandeira, dos que sequer possuem um nome inscrito na lápide. É um compromisso político meu… Quem me outorgou essa missão? Penso que da mesma maneira que nas tribos mais distantes da nossa história, em que cada um tinha uma função, havia também o contador de histórias, que funcionava como uma memória viva das tradições do povo. Não tenho talento para nada a não ser escrever. Então, a mim foi dada a missão de contar a História do Brasil do ponto de vista de quem nunca participou da festa. continente O que expressa seu estilo fragmentado, não linear e multifacetado? Luiz ruffato O nascimento do romance moderno é o nascimento da ideologia burguesa. A burguesia ascendente precisava de um canal de expressão de seus pontos de vista e o romance serviu-a de maneira bri­

Luiz Ruffato

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divulgação

Marcelino Freire

lhante. Foi um grande salto formal, sem dúvida alguma. Mas, como eu queria expressar a História a partir do ponto de vista proletário, não poderia usar o gênero romance, tal qual foi concebido, porque estaria traindo a proposta em sua raiz. Daí, verifiquei que, junto com o romance, no século 18, nasceu o antirromance, com Sterne, Xavier de Maistre e outros. Hoje, em pleno século 21, é muito estranho tentarmos captar todas as mudanças espaciais e temporais, sem lançar mão de for­ mas alternativas. Foi assim que me dediquei a procurar uma forma que expressasse meu desconten­tamento – forma e conteúdo são a mesma coisa. A precariedade formal dos meus romances reflete a precariedade temática – a sociedade é que é precária… continente Da literatura que se faz contemporaneamente, no Brasil, quem você destacaria? E no mundo? Luiz ruffato No Brasil, hoje, temos uma literatura maravilhosa, uma ebulição de criatividade fantástica. Eu destacaria inúmeros, mas citarei alguns de minha predileção: Ronaldo Correia de Brito, Cíntia Moscovich, Marçal Aquino, Mário Araújo, João Anzanello Carrascoza, Adriana

Lisboa, Adriana Lunardi, Maria José Silveira, Ronaldo Cagiano… Na poesia, falaria de Donizete Galvão, Tarso de Melo, Iacyr Anderson Freitas, Claudia Roquette-Pinto, Fabrício Carpinejar… Gosto muito da lite­ ratura contemporânea portuguesa (Filipa Melo, Inês Pedrosa, Possidónio Cachapa), de uma autora cubana, Karla Suárez, do americano Paul Auster… Enfim, citar nomes é sempre complicado e difícil. Por Homero Fonseca

Brasil

Marcelino Freire Um escritor fora da redoma publicado no nº 95, 2008-10-30

Um dos principais credos de Marcelino Freire é que o escritor precisa circular: participar de feiras, bienais, organizar edições e festas literárias, além de dialogar com outras linguagens como as do teatro e cinema. Marcelino Freire é um escritor que gosta de mostrar os dentes. Cerrados, de preferência, pois es­creve e s p ec i a l f l i p o rto n ov e m b r o 2 0 0 9 | 3 4 5

uma literatura cheia de apocalipses sociais explosivos. Mas há, nos seus contos, delicadezas surpreendentes. Em sua figura também. Simpático e acessível, este pernambucano de Sertânia sabe a importância da leveza como passaporte para o convívio no mundo literário. continente O processo eleitoral foi chamado de “festa da democracia”. No conto Vovozona, você vê de forma irônica este momento (leia em http://eraodito. blogspot.com/). O que aconteceu foi uma festança mesmo? marcelino freire Esses assuntos sempre me deprimem. Falar de eleições, democracia, festa do voto. Por isso eu escrevi o miniconto Vovozona. A história é a de uma velha, daquelas que as TVs sempre mostram em dia de eleições. Elas se arrastando, debéis, até a zona eleitoral. Para servirem de cobaia à voz dramatizada de William Bonner, do Jornal Nacional. Tudo em prol do dever cívico, a serviço da beleza da democracia. Que saco! A minha velha aproveita a audiência para dar vexame. Ela arqui­teta um plano senil. Vai se borrar toda dentro da cabine, em frente às câmeras. E cansadíssima, um pó. Eu, com 41, já estou exausto. Com vontade de soltar umas bombas. Imagine essa eleitora quase centenária, coitada! continente A homocultura é um tema que possui muita relevância no seu trabalho. Aqui, no Recife, houve recentemente uma Parada da Diversidade. Este tipo de ação ajuda, ou só consolida os estereótipos? marcelino freire Outro assunto que me cansa! Homocultura, preconceito, parada, diversidade. Porque o assunto é primitivo, é óbvio. Em 2008, a gente ainda discute o respeito ao próximo, o respeito às diferen­ças. Reconheço a importância da mobilização, da causa coletiva, mas me dá preguiça. Eu sou um homossexual não-praticante. Salvo alguns amores baratos, não vou a paradas. Raramente piso em boates. Moro em São Paulo, como você bem sabe. Aqui, acontece a maior parada GLBTUVXZ do mundo. Mas eu nunca fui. Não gosto da manipulação que a TV faz disso. Um carnaval e só.


Acho que tratam, na maioria das vezes, o assunto com desrespeito. Isso me deprime. Prefiro ficar no meu cantinho. Há um conto meu, do livro BaléRalé, em que uma bicha nostálgica fala assim: “No meu tempo, o maior desfile gay que havia sabe qual era? O desfile militar, pela independência”. continente Você se considera um desenraizado por ter mudado tantas vezes de cidade. Como é ser sempre um pouco “estrangeiro”? marcelino freire Aqui, em São Paulo, eu sou pernambucano. Em Pernambuco, eu sou paulistano. Em Sertânia, onde eu nasci, eu não nasci. Eu deserdei. Fico eu nesse jogo esquizofrênico. Meus personagens carregam isso no sangue. Não estão no lugar que querem estar, estão deslocados no tempo, na geografia. Por isso eu escrevi o Rasif – Mar que arrebenta. Para tentar entender a língua que falo, o chão que piso, a terra em que flutuo. Rasif não tem nada a ver com o Recife. Virou um outro canto que eu escolhi para fazer morar os meus personagens perdidos. Lá eu não sou estrangeiro. Encontrei, enfim, o meu “não lugar”.

divulgação

continente Você já disse: “Eu escrevo porque dói”. O que isto significa? marcelino freire Se eu responder a verdade, vocês publicam mesmo? (risos). Eu peguei emprestada essa frase de Cláudio Assis (diretor do filme Baixio das bestas). Perguntaram

por que ele fazia os filmes que fazia. Ele respondeu: “Dói e eu faço”. Sintome irmão do Cláudio nesse sentido. “Dói e eu escrevo”. Sou movido por um aperreio, uma dor, um vexame. Podem dizer que a minha literatura é panfletária, acusá-la de verborrágica, de violenta. Podem me rotular de tudo, menos de que sou frígido, apático. Eu tenho urgência. Escrevo porque quero me vingar. Aí solto todos os bichos. continente De fato, seus contos são basicamente vozes corroídas… marcelino freire É a vontade de gritar que me faz chegar a essas vozes. Ou melhor: essas vozes é que chegam ao meu ouvido, todo dia. Eu escrevo porque eu escuto. Abro as orelhas para a rua. Personagens não faltam, gritos não faltam pelas esquinas. Sem contar que tenho em mim essa oralidade herdada de meus pais, da minha família, do Recife. Trabalho com uma memória musical. Meus personagens não têm tempo para nhenhenhém. Eu tenho sempre uma primeira frase e é com ela que vou costu­rando a história. Creio, também, que o teatro – que eu cheguei a fazer no Recife – muito me ajudou nesse “exorcismo”, nessa alma dos meus personagens, nesse monólogo incômodo, nessa ladainha. Costumo dizer que é a alma dos meus personagens que fala pelos cotovelos. por cristhiano Aguiar

Brasil

Márcia Denser Deusa da literatura contra o dragão da imprensa publicado no nº 101, mai/2009

Sobre ela, certa vez, Caio Fernando

Márcia Denser

Abreu escreveu: “Márcia Den­ ser é uma luluzinha querendo se fingir de Messalina”. Antes, Paulo Francis tinha dito que ela era a única escritora brasileira que sabia escrever.

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Polêmica, invejada, respeitada, autora de 11 livros, entre contos, novelas e romances, traduzida em diversas línguas, Márcia também organizou coletâneas de sucesso que sintetizaram quase à perfeição o universo feminino existente na literatura brasileira nas últimas décadas do século passado. continente Literatura serve para quê, mesmo? márcia denser Se o escritor for de primeira, a literatura será uma questão de vida ou morte, porque a literatura não é a segunda, mas sua primeira natureza. Encarando a literatura como a re­alização de um projeto de vida, o significado original não só permanece como também se esclarece quanto mais e mais vivemos e escrevemos. Se minha vida começou com a descoberta do universo literário, o que não existe para mim é um significado fora desse universo. Que não se encare isso como excentricidade ou alienação, mas como a necessidade de ser coerente com um projeto de vida. Um escritor é um ser superespecializado num único sentido, não é exatamente um sujeito eclético. Fazer literatura (porque um conto não é um texto, é uma obra de arte) implica profunda concen­tração, para ele a dispersão é fatal, por isso seu campo de ação não é diversificado. Escrever ficção é enxergar coisas além do espectro, como se o resto do mundo – todo o mundo – fosse daltônico. Quanto à literatura, em geral, indo ao centro da questão, o que mudou foi o espírito de época. Quer dizer, mudou tudo. E nada mudou. Contudo, existe a literatura enquanto arte, cujos valores permanecem inalterados porque esta ocorre no plano virtual, atemporal. Exemplos? Shakespeare, Homero, Guimarães Rosa, Drummond. Veja, é preciso olhar as coisas em perspectiva: existe o teu projeto poético que, se tudo correr bem, irá entrar para a trama que constitui o padrão do projeto poético brasileiro que, por sua vez, se enlaça ao projeto poético ocidental. Vendo as coisas nesse âmbito, coisas do tipo “novas mídias” ou “produção de mercado” se esclarecem, quer dizer, passam a ser encaradas pelo que são, e elas são apenas meios, instrumentos e outras coisas de somenos. por fred Navarro


sxc

Artigo

Fabrício Carpinejar Portugal e Brasil: melancolia em dois sotaques Edição nº39, mar/2004

Dois livros, dois destinos

complementares. Ambos são ensaios de fôlego, com bagagem enciclopédica. O primeiro é Mitologia da saudade (Companhia das Letras, 1999), de Eduardo Lourenço, grande crítico português, prêmio Camões de Literatura. O segundo é Saturno nos trópicos–A melancolia européia chega ao Brasil (Companhia das Letras, 2003), do médico e ficcionista Moacyr Scliar, agora integrante da Academia Brasileira de Letras. Impressiona o conteúdo contíguo dessas obras, uma interrogando a outra involuntariamente. Eduardo Lourenço apresenta as características do humor melancólico português, identificado em boa forma física nos versos de Camões, Almeida Garret, Teixeira Pascoaes e, posteriormente, em Fernando Pessoa. No autor de Tabacaria, encontra-se um riso saudosista, que não espera a resposta (tem a exata noção do que se passou), dono de uma lucidez resignada, um reconhecimento saciado. A melancolia lusitana não equivale ao antipensamento europeu, presente em Nietzsche. Diz mais respeito ao estado de desinteresse ativo, de conformidade entre o acontecido e o ideal. É feliz, apelidada de saudade. Enquanto a nostalgia representa uma ausência vivida e o sentimento de ruptura dos laços com a memória, a saudade é a consciência carnal da finitude, numa temporalidade apaziguada. O espanhol Miguel de Unamuno, filósofo do sentimento trágico da vida e um dos que melhor aproveitaram a culpa imposta ao desejo no catolicismo, explica: quando nada resta de nada, fica ainda o tudo desse nada. O tudo desse nada simboliza

a saudade. O nada desse tudo talvez seja a melancolia do brasileiro, altamente irônica, oferecendo um sentimento de perda, mas com uma total irresponsabilidade com o destino. É uma saudade insatisfeita, inconsequente, em que não se medem esforços em suplantála com a esperança. Existe uma maior troça do que o emplasto do defunto Brás Cubas, de Machado de Assis, para corrigir a melancólica humanidade do brasileiro? Ou a morte de Macabéia, personagem de A hora da estrela de Lispector, justamente quando a vidente lhe anuncia um amor generoso? Se a melancolia portuguesa é autossuficiente, de um passado fadista, glorioso e sebastianista, a do brasileiro se condiciona à espera de um futuro sempre atrasado ao seu compromisso. Poder-se-ia

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dizer de um futuro desprovido de antecedentes, desmemoriado.

melancolia

Decorre desse ponto a importância do que virá, da expectativa ardente e messiânica de uma mudança, articulada em narrativas de Lima Barreto, de Machado, de Euclides da Cunha e de Clarice. A melancolia no país não vem do espelho narcisista baudelariano, muito menos da náusea paralisante de Sartre (curiosamente, o pensador francês quase chamou sua obra Náusea de melancolia). Moacyr Scliar prepara um apanhado histórico minucioso, com um prelúdio dos primórdios de males que ajudam a esclarecer e fundamentar o destino da melancolia no Brasil. Suas hipóteses não são chutes de zagueiro, mas passes bem-encaminhados de volante. Aborda as doenças como fenômenos culturais,


não apenas biológicos, de transição entre eras e períodos. Exemplifica que a peste e a sífilis surgiram em momentos de transição, no fim da Idade Média e Renascimento, desencadeando um mal-estar definitivo na civilização, que se acostumou a enxergar a morte como companhia banal e irremediável e procurou abrir os horizontes com as ciências. Com cinco anos de pesquisa e erudição transmitidas em linguagem acessível, sem pedantismo, o autor gaúcho narra e mostra como a melancolia se popularizou, no rastro da evolução de costumes e do surgimento e combate das infecções. Trabalha na encruzilhada entre medicina e literatura. Se a peste favoreceu uma noção mais clara da melancolia com o clássico de Burton, na Inglaterra de 1621, no Brasil, o estopim ocorre em nome de outra

doença, a febre amarela, que provoca um surto em 1849, a partir da chegada de um navio norte-americano vindo

A depressão brasileira resultaria da tristeza lusa dos colonizadores; do índio, dizimado; e do negro, escravizado da escala Nova Orleans/ Havana. Como não poderia deixar de ser, toda a calamidade tem um portavoz. No século 16, havia sido Burton (seu clássico ainda é estranhamente inédito no Brasil). Em São Paulo, do início do século 20, marcando a transição para a modernidade, a figura teórica sustenta-se em Paulo

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Prado, com Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira, um sucesso editorial. A depressão brasileira, escondida pela malandragem, resultaria da fusão de três legados: a tristeza lusa dos colonizadores; a do índio, dizimado; e a do negro, escravizado. Entre os viventes de Saturno nos trópicos, o que se sobressai é Oswaldo Cruz, o médico pioneiro que briga com os cariocas durante a Revolta da Vacina. Movimentos, como a Revolta da Vacina, Muckers, Canudos e o Contestado, foram reações extremadas à vocação ao desespero. Do mesmo modo, o carnaval, o futebol, a tropicália, o humor e a cachaça encarnam ações radicais do otimismo. O comportamento bipolar do brasileiro ganhou um intérprete à altura. Uma consulta com Moacyr Scliar assegura longevidade intelectual.


reprodução

mandando suas roupas para serem lavadas em Portugal, os barões do látex acendendo seus charutos com libras esterlinas… E não é nada disso. O ciclo da borracha aconteceu já no século 20. O século 19 foi um período de tragédias para o Norte do Brasil. Na verdade, o que descobri é que não é possível construir uma série de romances sobre a construção do Norte, mas, sim, sobre a desconstrução de um projeto de civilização que existia, o Grão-Pará, perpetrada pelo Império do Brasil.

Márcio Souza

Brasil

Márcio Souza “Essa história de modernidade aqui no Brasil está malcolocada” edição nº 55, jul/2005

A literatura que busca nos fatos históricos o seu manancial sempre teve muita força no Brasil. Talvez pela imensidão destas terras e as diferenças que se podem encontrar dentro de um mesmo país – que às vezes parece vários “brasis” –, desperta curiosidade e instiga nossos escritores a nos relatar outras visões da nossa terra. Material dramático nós temos de sobra, e, como dizia Darcy Ribeiro, “Muita carne foi queimada para esse país chegar aonde chegou”. Autor de obras como Galvez imperador do Acre e Mad Maria, o escritor amazonense Márcio Souza tem se dedicado nos últimos anos a escrever uma saga que, à maneira de Érico Veríssimo em O tempo e o vento, resgata um período fundamental da história do Brasil. Enquanto Veríssimo tratou de traçar um painel da formação do Rio Grande do Sul, Márcio Souza fez o mesmo em relação à Região Norte. Trata-se de uma tetralogia de romances que compreendem o projeto de uma

moderna civilização (o Grão-Pará), baseado nos conceitos iluministas, e sua derrocada pelo Império Brasileiro. continente Como surgiu a ideia de construir essa tetralogia e qual foi a sua motivação para escrevê-la? márcio souza A ideia partiu da leitura do Érico Veríssimo com O tempo e o vento, que construiu a saga, o épico, da formação do Sul do Brasil. A partir dessa proposta, que foi um esforço de entender o Brasil a partir do Sul, eu pensei em fazer o mesmo a partir de outra perspectiva: construir um painel seme­lhante, tomando o Norte como referência. E eu acredito que o eixo Rio/ São Paulo desconheça mais a história do Norte do que a do Sul. continente De que forma a sequência da história está estruturada? márcio souza Eu dividi a história em quatro romances – que podem ser lidos separadamente, embora alguns personagens apareçam e reapareçam a cada volume. Eu traço um painel histórico que vai mais ou menos de 1790 a 1840. A pergunta que se faz é: o que de fato aconteceu no Norte do Brasil no sécu­lo 19? E os quatro romances, a partir da vida dos personagens e suas vicissitudes, tentam responder a esta pergunta. Primeiro porque para a maioria dos brasileiros, quando se fala em século 19, vem logo à mente o ciclo da borracha: as cantoras líricas no Teatro da Paz, as senhoras da sociedade

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continente Por que o Império Brasileiro não admitia o projeto de civilização que vinha sendo construído no Grão-Pará? márcio souza A história gravita em torno do fato de que o Império do Brasil, a partir do famoso grito do Ipiranga do príncipe português, decide anexar o resto dos territórios portugueses de qualquer maneira. O exemplo de tratamento com projetos, digamos, “paralelos” ao projeto imperial, já havia sido dado por D. João em relação à Confederação do Equador. Quer dizer, mesmo depois da Independência, quando se esperava um pouco mais de diálogo, viu-se que os métodos continuavam os mesmos. No caso do Grão-Pará, em 1823, o que aconteceu foi um verdadeiro massacre: o Império contratou mercenários ingleses para invadir o território e eliminar sistematicamente todas as lideranças locais. O fato é que os interesses políticos do Grão-Pará, a formação da elite, a economia e a cultura da­quela região jamais seriam conciliáveis com a economia e a cultura política do Império Brasileiro. continente Canudos, então, seria um caso bem diferente… márcio souza Completamente. A Revolta de Canudos é uma revolta do Brasil arcaico, primitivo e miserável con­tra uma república também miserável… O Grão-Pará, por outro lado, representava a modernidade. A proposta das lideranças independentistas era a criação de uma república democrática, representa­tiva e sem escravidão - em 1820! Tudo isso se pode ler no Paraense, o primeiro jornal impresso do Grão-Pará. Ali existia toda uma elite influenciada pela ilustração francesa. Não se pode esquecer


que os paraenses - os súditos dos portugueses no Grão-Pará - ocuparam a Guiana Francesa durante 9 anos e lá tiveram contato com uma biblioteca revolucionária completa em português (os franceses tinham traduzido para introduzir os ideais liberais na América Espanhola e portuguesa). Ou seja, os intelectuais em Belém eram familiarizados com Rousseau, Diderot e todos os pensadores radicais da Revolução Francesa e jamais se contentariam em ser parte de um império monárquico que era caudatário da decadente dinastia dos Bragança de Portugal. Daí, começa o conflito. A Cabanagem, que parece uma insurreição popular na década de 1930, é parte desse processo de destruição do Grão-Pará. POR Eduardo Cesar Maia

retratá-la. Não me interessam prêmios e cargos. Escrevo com muita fúria. Eu me irrito muito quando um escritor ganha um cargo diplomático, porque na verdade ele está sendo comprado, já que não poderá mais dizer coisas que incomodem o poder estabelecido. Não me interessa ganhar dinheiro nem prêmios, não quero me vender, prefiro ter poucos e bons leitores a vender milhões. continente Quais foram suas principais influências? pedro juan gutiérrez Eu tive meu insight literário quando li Breakfast at Tiffany’s (Bonequinha de luxo), de Truman Capote. Decidi que queria escrever como ele, sem nenhum intelectualismo, como se a própria vida estivesse sendo capturada pela linguagem. Mas sempre li bastante, em Matanzas havia boas biblio­tecas, e aos 14 anos já tinha lido Sartre. Aos 17 anos já tinha decidido me tornar escritor, e fazia uma verdadeira salada de leituras: Kafka, Dostoievski, Tolstoi, um poeta cubano chamado Eliseo Viejo, escritores americanos como John dos Passos, algo de Hemingway, sobretudo O velho e o mar… Lia muito, mas não queria me aproximar da literatura por uma via intelectual ou acadêmica, porque

Cuba

Pedro Juan Gutiérrez Realismo Sujo que vem de cuba Pedro Juan Gutiérrez é, talvez,

hoje, o nome for export da literatura cubana. No Recife, como convidado da Bienal do Livro de 2003, defendeu que é possível fazer uma arte “marginal” sob a sombra do ditador. Nesta entrevista para a Continente, ele fala de como Truman Capote foi fundamental para a sua concepção do que é literatura e dá sua definição da sexualidade, “Para mim não existe separação entre homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade. Somos todos mamíferos”. continente Você gosta de ser visto como um marginal? pedro juan gutiérrez Sim, no sentido americano que dão à expressão outsider, um tipo que vive a vida à sua maneira, um pouco liberal e anárquica, sem crenças políticas nem religiosas. Um tipo que vive à margem da sociedade para poder analisá-la melhor, explorá-la,

divulgação

edição nº 26, fev/2003

Pedro Juan Gutiérrez

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achava que isso podia influenciar de uma forma prejudicial o meu estilo. E também porque acredito que um escritor é ele mesmo somado à sua circunstância, que ele tem um dever em relação à situação que o cerca, isso é fundamental. Eu tive uma vida muito intensa e a matéria-prima que tenho à minha disposição é a vida do meu bairro, que é de pessoas fortes, violentas, agressivas. Hoje, Centro-Habana é uma das zonas mais marginais e violentas de Havana. Então não preciso alterar muito a realidade para produzir uma história. A literatura tem que ser verdadeira. É claro que mesclo elementos de ficção, mas um escritor não pode viver exclusivamente no mundo dos livros. Tem que ser autêntico, escrever sobre o que realmente o preocupa, molesta ou obceca. Eu me considero um escritor muito intuitivo, escrevo de forma inconsciente e dou muito valor às imagens. Talvez porque eu também tenha sido muito influenciado pelo cinema. Via de tudo, a minha forma­ção foi marcada basicamente por aqueles filmes. Talvez por isso eu também goste de pintar. continente Há fortes doses de sexo em seus livros. Que papel a sexualidade desempenha na sua obra?


reprodução

Lisboa, século 18

paço dos reis de O Portugal em 1754, três anos antes do terremoto que o destruiu

de uma pedra imensa mobiliza milhares de trabalhadores e bois, empurra a ação por muitas páginas e acidentes. Outra obra humana que se arma paralelamente é a “passarola” em forma de gaivota, engendrada secretamente para voar pelo padre brasileiro, com a ajuda do soldado maneta e da mulher que via os homens por dentro.

digressões

Numa ânsia de descoberta do que está oculto por trás das ações e da alma, das paixões e do pensar humanos, o relato de Saramago envolve digressões sobre a ciência, a filosofia, a história e a psicologia. Lança sérias dúvidas sobre a fé de religiosos sempre sedentos por mulheres e vinho e fustiga violentamente Lisboa que “cheira mal, cheira a podridão”. Se para o rei valem a soberania e o poder totais, diante do que não cabem as afrontas

Artigo

luiz carlos monteiro lama na alma Edição nº24, Dez/2002

O romance Memorial do convento permitiu uma virada

repentina e talvez inesperada na carreira literária de José de Sousa Saramago. Apareceu em Portugal em 1982, quando o autor já contava 60 anos, e no Brasil um ano após. Anteriormente, Saramago publicara outros livros de ficção, sendo o primeiro deles Terra do pecado (1947). Sem obter grande repercussão junto a um público mais ampliado, sua obra vinha incluindo, com maior ênfase a partir dos anos 60, poesia, crítica literária e peças teatrais. Em Memorial do convento Saramago tomou como suporte histórico a

plenitude da vida portuguesa no século 18. Acontecimentos revelantes da corte ou do cotidiano das ruas e vilas misturam-se ao mais inacreditável e fantástico sugerido pelo romancista. As indicações temporais irrompem quase sempre de surpresa ao leitor, não perfazendo propriamente uma sucessão histórica linear e organizada. Sabe-se que a narrativa inicia-se em 1711, quando o autor informa que “S. Francisco andava pelo mundo, precisamente há quinhentos anos, em mil duzentos e onze.” Quatro são os personagens principais: o rei D. João V, o padre Bartolomeu de Gusmão, o soldado Baltasar Sete Sóis e a vidente Blimunda Sete Luas. Mas, há personagens subalternos que têm um peso definidor, como o frade franciscano António de S. José, que promete desencavar a gravidez da rainha Maria Ana da Áustria em troca da construção de um convento na vila de Mafra. A obra do convento, que a partir da fundação e do transporte

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O romance Memorial do convento não é só uma parábola filosófica, é também uma crítica à sociedade atual ou as contestações, para o padre seu protegido se aplica, contrariando o Santo Ofício e a Inquisição, a junção profana de três figuras humanas numa só – ele mesmo, Baltasar e Blimunda –, movidos pelo desejo de voar. O cosmopolitismo de Saramago é descritivo de objetos, lugares e pessoas, como, entre outras coisas, a cama da Áustria da rainha, as putas inglesas, os espanhóis em guerra, o ouro, o diamante e os condenados do Brasil pela Inquisição, a miniatura da basílica que o rei manipula e que teimará em construir em tamanho natural no convento de Mafra. Tudo isso colocado com sabedoria e humor, como mapeamento possível do visto e do sentido, do intuído ou já sabido.


pedro juan gutiérrez No período mais grave da crise econômica, o sexo era uma válvula de escape para todos em Cuba. Por outro lado, para mim não existe separação entre homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade. Somos todos mamíferos. Entre os cachorros, pode haver relações sexuais entre dois ou até quatro machos. Somos seres sexuais e devemos encarar nossa sexualidade com serenidade. Cada um tem direito a desfrutar sua sexualidade da maneira que quiser, inclusive pela masturbação. O machismo tropical me incomoda muito. Eu não condeno nenhum comportamento sexual. Acho a tolerância fundamental, o respeito às diferenças é necessário para se criar uma sociedade forte.

imensa maioria daqueles que fazem a cena teatral brasileira, como também para o público realmente afeito às artes cênicas, Sábato é, sem dúvida, um dos nomes mais expressivos do nosso pensamento teatral. continente Como teve início seu interesse pelo teatro? Quais foram as princi­pais referências em sua formação teatral? sábato magaldi Não sei bem por quê, mas ainda jovem eu comecei a me interessar por teatro. Eu sou de Belo Hori­zonte, onde havia um pequeno movimento, que não chegou a pesar muito na minha escolha. Porém, como na adolescência todo mundo tem um interesse múltiplo, eu cheguei a cometer um pecado, que estou confessando agora, pela primeira vez: escrevi uma peça chamada Os solitários. Felizmente, passei a peça para Paulo Mendes Campos, que era meu amigo – na época ele era crítico do Diário Carioca, a quem eu viria substituir –, e ele sumiu com o texto. Eu acho que essa foi a crítica mais justa para a peça (risos). Dou graças aos céus que ele tenha feito isso, pelo menos não deixei, nesse campo, nenhum rastro negativo. Mas o fato é que nós fazíamos uma revista literária, lá em Belo Horizonte, e todo mundo pedia que eu desse opinião sobre os textos, então terminei como uma espécie de revisor de todas as matérias que saíam, e isso foi apurando o meu gosto pela crítica. Quando cheguei ao Rio de Janeiro, eu via muito teatro, e o Paulo

continente A Revolução de 1959 combatia a prostituição e a miséria. Não é frustrante ver que mais de 40 anos depois esses problemas acontecem? pedro juan gutiérrez Sim, e foi por isso mesmo que comecei a escrever Trilogia suja de Havana. Eu sentia raiva e fúria, um enorme sentimento de frustração com a situação do país. Mas hoje adoto um pensamento da filosofia chinesa, segundo o qual a História é circular, e tudo regressa ao começo. por luciano Trigo

Sábato Magaldi “Se não há qualidade, a crítica deve denunciar”

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Brasil

edição nº 58, out/2005

Personalidades como o professor Sábato Magaldi parecem

desmentir o famoso dito de Nelson Rodrigues: afinal, nem sempre “toda unanimidade é burra”. Dificilmente se encontrará alguém de teatro que não reconheça sua fundamental contribuição para o desenvolvimento dessa arte em nos­so país. Para a

Sábato Magaldi

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Mendes Cam­pos sofria em ter que sair de uma mesa de bar para assistir a um espetáculo às 9h da noite. Aí ele me perguntou: “Você não quer ficar no meu lugar, não?”. A essas alturas, Décio de Almeida Prado já estava escrevendo críticas teatrais em São Paulo, ele já era uma referência para mim. Aliás, não só para mim, mas para todos que vieram depois dele. Por todos os motivos, em primeiro lugar, pelo conhecimento; depois, pelo caráter, que é fundamental; e ainda por saber escrever – como escrevia bem! Nós fomos grandes amigos, e quando assumiu a direção do Suplemento Literário do jornal Estado de S. Paulo, ele me chamou para escrever a coluna de teatro. Eu acho que aquilo que fiz de mais interessante, do ponto de vista de opinião, foi lá no Suplemento Literário. No Diário Carioca, como o espaço era muito pequeno, eu fazia crítica à prestação: escrevia sobre o texto num dia, sobre a direção no outro, sobre a interpretação no outro etc., e isso atrapalhava muito o racio­cínio da crítica. Já no Jornal da Tarde, o espaço era variável, e às vezes ligavam para mim e pediam, de última hora, para eu diminuir a crítica, ou para aumentá-la em 10 ou 20 linhas, e eu achava isso um inferno. continente Em sua opinião, qual foi o momento mais expressivo da recente história do teatro nacional? Por quê? sábato magaldi Historicamente, foi fundamental a presença do grupo Os Comediantes, no Rio de Janeiro.


Eles deram um grande estímulo para a nova geração. Ao lado disso, houve o movimento do Teatro do Estudante, de Paschoal Carlos Magno, e tudo isso acabou influenciando muito um italiano, indus­trial em São Paulo, Franco Zampari, que adorava teatro. Então, ele reuniu pessoas de grupos ama­dores paulistas, o que ele julgava como mais importante, e fundou o TBC (Teatro Brasileiro de Co­média). Nessa ocasião, ele trouxe da Argentina um jovem diretor italiano, o Adolfo Celi, que depois acabou chamando outros italianos, como Luciano Salce, o Flamínio Bollini e, por fim, o próprio Ziembinski, polonês que tinha participado de Os comediantes, dirigindo a histórica montagem de Vestido de noiva, em 1943. Ele fez um núcleo enorme de diretores, algo quase impossível de se imaginar, além de trazer para o TBC os melhores atores do Brasil. Tivemos Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, Tônia Carrero e tanta gente de grande valor que não dá nem para listar. Mas, infelizmente, o Zampari achou de investir também em cinema, e isso acabou consumindo toda a fortuna dele, tornando inviável a continuidade do TBC. continente Qual tem sido o papel da crítica no desenvolvimento do teatro em nosso país? sábato magaldi Eu acho que a crítica, num certo momento, tomou consciência de que estava havendo uma revolu­ção teatral. Até então havia muitos críticos que eram, na verdade, publicistas das empresas teatrais. Quando alguns críticos começaram a tomar maior conhecimento do fenômeno teatral e passaram a criticar os espetáculos de forma mais severa, e com total liberdade, então a situação melhorou muito, a crítica pôde acompanhar a evolução do próprio teatro brasileiro. Hoje, um crítico que não seja preparado, que não tenha uma boa formação teatral, não tem condições de ocupar um posto na imprensa. Mas, agora, o problema maior é o espaço cada vez mais reduzido nos jornais e nas revistas, o que torna quase impraticável uma crítica de qualidade. Eu acho isso lamentável.

continente No seu exercício de crítico teatral, com quem o Sr. tentava dialogar prioritariamente: com a classe artística ou com o público? sábato magaldi Eu acho que sempre tentei falar com os dois. Claro que uma crítica é voltada prioritariamente para o leitor do jornal, mas a gente também espera ter uma repercussão junto da própria classe teatral. Se a crítica não tem um vínculo com os criadores, ela fica no ar, não tem uma real concreção. Por outro lado, eu acho que, se não há uma cena de qualidade, a crítica deve denunciar isso até que esse quadro se reverta. Mas não se pode negar que é muito melhor, até para própria evolução da crítica, quando há um teatro pulsante e de alto nível.

expressão para dizer que o teatro não engajado também é político porque ele termina fazendo uma propaganda reacionária. Mas eu acho que a gente pode ir ao teatro por um gosto, por um divertimento. Todo mundo tem o direito de se divertir, de fazer um passeio de bar­co, de passar uma bonita tarde num parque, e eu acho que também cabe perfeitamente um teatro mais ameno, digamos. Porém, prefiro um teatro mais engajado. Não somente um engajamento político, mas também um engajamento com a eterna tentativa de desvendar o que é o ser humano. E isso é fundamental.

continente Como o Sr. avaliaria a contribuição de Pernambuco para a consolidação do teatro moderno no país? sábato magaldi Não vamos nem falar da importância de Nelson Rodrigues, que, afinal de contas, era pernambucano. Mas lembro que a ida do Teatro de Amadores de Pernambuco ao sul do país foi algo extremamente importante. Todo mundo gostou muito, foi muito elogiado pela crítica, e se notava que havia ali possibilidade de um teatro, embora centrando numa família (os Oliveira), que tivesse uma grande unidade, uma grande responsabilidade e um grande resultado artístico também. Além disso, tive­mos Hermilo Borba Filho, meu colega de crítica teatral em São Paulo nos anos 1950, que juntamente com Ariano Suassuna, que é um dos maiores dramaturgos brasileiros de todos os tempos, e também com meu saudoso amigo Joel Pontes, fundaram o Teatro do Estudante de Pernambuco, que depois resultaria no Teatro Popular do Nordeste. Ou seja, são nomes que não deixam nenhuma dúvida em relação à qualidade do pensamento teatral de Pernambuco. É um Estado que possui uma grande tradição teatral, então isso tinha mesmo que se espalhar pelo resto do Brasil.

SANTIAGO NAZARIAN “Minha geração trouxe melhores prosadores do que a Geração 90”

continente Para o diretor Augusto Boal, “Todo teatro é político”. O Sr. concorda com essa afirmação? Qual o verdadeiro poder do teatro? sábato magaldi Boal talvez use essa

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Por Luís Augusto Reis

Brasil

edição nº 77, mai/2007

Apesar de jovem (nasceu em 1977), o paulistano Santiago Nazarian, autor dos romances Olívio (Talento, 2003), A morte sem nome (Planeta, 2004), Feriado de mim mesmo (Planeta, 2005) e Mastigando humanos (Nova Fronteira, 2006), é um dos mais destacados escritores da literatura brasileira contemporânea, com sucesso de crítica e de público. continente Várias matérias na imprensa destacam suas atividades anteriores: barman, redator de conteúdo erótico e de horóscopos, viagens pela Europa, entre outras. Além disso, nos seus três primeiros romances, todas as fotos das orelhas têm alguma referência a sangue e no seu último romance você está babando iogurte. Existe um personagem Santiago Nazarian? santiago nazarian Sim, acho que existe uma intenção em criar um personagem, ou ao menos controlar o personagem que inevitavelmente


continente Como você vê a relação entre arte e internet? santiago nazarian Bem, eu não faço arte pela internet, nunca fiz. Acho que é possível, mas eu não sei trabalhar muito bem assim. Meu trabalho principal é escrito, no papel. Eu uso a internet apenas como uma ferra­menta de divulgação, e levou um tempo para eu aprender a fazer isso. Blog, mesmo, eu só fui criar depois que já tinha dois romances publicados. Senti necessidade de ter um espaço em que eu pudesse divulgar meus lançamentos, os eventos de que eu participava, as entrevistas que dava. Acabei não só me acostumando, como gostando. E é gostoso também para exercitar algumas ideias, até algumas técnicas literárias. continente Existe uma literatura gay? santiago nazarian Não. A ideia da nossa antologia é apenas temática. Contos que narrem relações afetivas ou sexuais entre pessoas do mesmo sexo. É válido como tema por ainda estar presente em número infinita­ mente menor do que narrativas sobre relações heterossexuais. Mas os contos de nossa antologia são de estilos mais diferentes entre si, e não nos preocupamos de forma alguma com a sexualidade dos autores, não são apenas autores gays. O critério

divulgação

é criado pela mídia. Quem está apresentando um trabalho artístico e quer uma resposta, quer atrair a atenção, conquistar seu público, precisa procurar modos de embalar sua obra. Alguns conseguem por conexões acadêmicas – os títulos, os círculos em meios intelectuais –, vendem essa figura do “escritor-senhor de respeito”. Outros se sentam em bares para beber com jornalistas, são amigos dos resenhistas, fecham-se em grupos que organizam antologias, revistas, eventos literários, são os “escritoresboêmios-botequeiros”. Eu nunca tive vocação acadêmica, não sou uma pessoa integrada e não bebo cerveja, então tive de procurar outros caminhos de divulga­ção, usando minha biografia e minha imagem. São os meios que eu tenho. E acho que todos esses meios são válidos, quando há uma obra com densidade por trás.

novos desafios, novos caminhos. Não quero me tornar um desses escritores que escrevem sempre o mesmo livro. Interessa-me exercitar ao máximo meu talento como escritor. E eu tenho, pessoalmente, esse lado paródico, sarcástico, bem-humorado também, então queria encaixá-lo na minha escrita. Mas aquilo foi uma experiência, um momento, não é o que eu farei daqui para frente.

Santiago Nazarian

era literário, boas narrativas, bons textos que tratem desse tema. Por que esse tema? Porque nós – eu e Marcelino – somos homossexuais, somos escritores e sabemos como é importante – e difícil – encontrar textos bons que se identifiquem com nosso universo afetivo e sexual. Então, é isso que estamos apresentando. Quanto ao Ruffato, nunca dissemos que ele nos plagiou. Apenas achamos estranho termos comentado nossa ideia de antologia com ele, ele não dizer nada e meses depois aparecer com um projeto semelhante. continente Os seus três primeiros romances compartilham uma mesma atmosfera sombria, meio gótica, meio romântica. Você se preocupa, no entanto, em encontrar a diferença na coerência, pois cada um deles possui uma estrutura diferente e variações sutis no estilo. Com Mastigando humanos, apareceu um lado mais pop, mais paródico, na história desse seu jacarénarrador, meio adolescente, meio blasé. Como ocorreu essa guinada? santiago nazarian Tem um pouco a ver com a questão do personagem que você colocou no começo da entrevista. O personagem não pode atrapalhar a evolução artística, e eu senti necessidade de romper mais incisi­vamente com o universo blasé, noir ou trevoso que eu estabeleci ao meu redor. Literariamente, eu me sinto confortável nele, como personagem também, por isso mesmo era importante romper, para buscar

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continente A literatura brasileira contemporânea fala muito de violência. Sangue e literatura são uma mistura inevitável numa sociedade violenta como a nossa? santiago nazarian Nossa sociedade não é mais violenta. Historicamente, você diria que somos mais violentos hoje do que na Idade Média, no Velho-Oeste, na Pré-História? A violência choca, hoje, em contraste com uma civilidade que aparentemente conquistamos, mas não é maior do que em outras épocas. Assim como também não acredito que apareça com mais força na literatura. Acha que não há sangue e violência em Romeu e Julieta? N’A divina comédia? N’As mil e uma noites? Em Oliver Twist? Em Noite na taverna? Em 120 dias de Sodoma? Na Bíblia? A questão apenas é que a literatura – e a arte em geral – se alimenta de conflitos. Então, é quase inevitável que a violência apareça. Contar uma história sem conflitos não tem graça. continente É possível viver de literatura, no Brasil? Você acha que o trabalho do escritor tem um retorno justo (falo em termos financeiros, inclusive)? santiago nazarian É possível viver de literatura. Editores vivem, não? Já viver de escrever só literatura é quase impos­sível, o escritor tem de se dedicar a outras atividades para complementar sua renda – mas se essas atividades são ligadas à escrita, como é meu caso, não acho negativo. Acho que meu trabalho de tradutor, por exemplo, é importante para minha evolução como escritor, além de me ajudar a pagar as contas. O problema é quando o escritor tem de trabalhar de garçom, publicitário, michê, o que muitas vezes acontece. Sua escrita pode ser contaminada negativamente. Quanto ao termo justo para se falar do trabalho do escritor, é


complicado responder, sabendo-se de todas as condições do povo brasileiro, do espaço que a cultura tem. Não é justo, mas está dentro da realidade. Às vezes, parece até mesmo superior à realidade. Por Cristhiano Aguiar

Brasil

Sebastião Uchoa Leite O império da imaginação e da fantasia edição nº 20, ago/2002

Falecido em 2003, durante um

continente Em 1980, você recebeu o Prêmio Jabuti, com o livro Antilogia. Em 2001, o Prêmio Murilo Mendes, com o livro À espreita. Foi também premiado pela tradução de Poésie, de François Villon. E publicou, na Espanha, uma pequena antologia “antilírica”, com o título de Contratextos, tradução de Adolfo Montejo Navas, pela Editora DVD, de Barcelona, que obteve uma boa crítica de El País, em Madri. Nesses 20 anos, a crítica, assim como os seus pares, tem afirmado a importância da sua obra no panorama da poesia contemporânea. Contrariando seu próprio verso, no poema Migração (A ficção vida, 1993), você não seria uma ave migratória que chegou a falcão? sebastião uchoa leite Esse poema a que você se refere, em

arquivo cepe

polêmico debate intelectual com o jornal Rascunho, Sebastião Uchoa Leite foi um dos poetas pernambucanos de maior destaque nas últimas décadas. Mas é claro que esse destaque não veio sem alguma polêmica. Nessa

entrevista para a Continente, ele teima em atacar as posições políticas de Gilberto Freyre, fala da divulgação da sua poesia e destaca ainda as comparações constantes que são feitas da sua obra com a de João Cabral. “Reconheço realmente a influência de João Cabral sobre mim, mas essa influência é muito relativa”, destacou.

Sebastião Uchoa Leite

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que falo de aves migratórias, não é necessariamente um poema biográfico. Não estou me referindo a mim mesmo como ave migratória (embora o falcão me pareça ave muito feroz para mim). Mas, enfim, já que você colocou a questão, quero dizer que não me considero totalmente migratório porque eu vim, é certo, do Recife para o Rio de Janeiro, mas não abandonei tudo por causa do Sul. De certa forma, mantenho minhas raízes, tenho parte da minha família no Recife (duas irmãs, Maria Antonieta e Selma; Célia Maria veio para o Rio) e continuo ligado lá. Não vou com frequência porque é muito caro e não tenho condições de gastar tanto. Não acho que fiz esse sucesso todo, foram só algumas pessoas que se interessaram pela minha obra, ou coisa que o valha. Pessoas de qualidade, modestamente, críticos conhecidos. Foram, sobretudo, críticos conhecidos ou amigos. Não posso dizer que sou um êxito de público geral porque não houve isso. Houve, sim, algo como um reconhecimento, sobretudo em São Paulo e em Minas, muito pouco no Rio e quase nada no Recife, infelizmente, embora quanto a este último, não só jamais o abandonei como o lembrei em vários textos. Não só o Recife, mas outros lugares, como, por exemplo, São José da Coroa Grande e suas praias maravilhosas. Não “cantei” coisa alguma, porque não sou cigarra e nem as amo poeticamente, desculpem-me. Houve, pois, um reconhecimento que considero relativo, embora algumas vezes significativo. Algumas críticas por À espreita me deixaram muito satisfeito, sobretudo os maravilhosos textos de João Alexandre Barbosa (incluídos depois pelo editor por terem aparecido antes do livro À espreita, quando o crítico João Alexandre analisou os originais do referido livro na revista Cult), Luiz Costa Lima e Davi Arrigucci Júnior. Essas críticas, para mim, superaram em muito a questão dos prêmios, que não significaram tanto quanto elas. Também me deixaram mais reconhecido. E bem mais conhecido também, sobretudo no sul do país, particularmente em São Paulo e Minas, como já foi dito.


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Artigo

Ruy dos Santos Pereira o moralizador eça de queiroz Edição nº 37, jan/2004

Minha afeição por Eça data

dos tempos de ginásio, quando, adolescente, comprei todos os volumes da Edição do Centenário, de 1946, e depois, num sebo, o seu desconhecido livro póstumo, inédito: Dicionário de milagres, editado em 1900. Posteriormente, a biografia escrita por João Gaspar Simões e o excelente Eça de Queiroz no centenário do seu nascimento. Concordo integralmente com Esther de Lemos, quando afirma que uma intenção de combate ditou grande parte da obra de Eça de aplicar a moralizadora Bengalada do Homem nas instituições, costumes e tipos humanos errados da vida portuguesa. Sem ódio ou brutalidade. Daí começa seu combate contra os defeitos e os vícioas da ordem moral, social e estética então adotadas pela sociedade. Como também combateu um falso patriotismo que só enxerga o que acha correto e procura justificar os erros de seu país, como denunciar a ignomíniada conduta portuguesa na Ásia, as vilezas e crimes cometidos pelos portugueses na época dos descobrimentos. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, abandonou a carreira de advogado pela antipatia aos métodos geralmente utilizados pelos mesmos, de argumentação astuta e calculada. Aliás, o advogado, desde a Idade Média, tinha, com as naturais exceções, uma forma nada honesta. Como Émile Mâle, em seu magnífico livro sobre o gótico, cita o assombro do povo quando um advogado foi declarado santo, cantando: Advocatus et non latro res miranda populo. Observa-se em Eça sua fé na missão da literatura de combater os defeitos e os pecados de ordem moral, social e estética que as

sociedades aceitam e praticam. É o que se constata em Farpas, no livro O crime do Padre Amaro e em O primo Basílio. Tudo isso com ironia, uma implacável análise crítica, numa arte moralizadora e revolucionária. Combateu também o falso, mentiroso e irracional patriotismo que tenta justificar todas as misérias e ignomínias cometidas em nome da colonização contra países e povos oprimidos. Como foi a colonização portuguesa em muitos aspectos no Brasil, jogando, através de navios repletos, os piores criminosos de Portugal. Tudo isso pode ser exuberantemente comprovado nas Cartas de Duarte Coelho a El Rei em Pernambuco e em Mem de Sá na Bahia. Duarte Coelho,

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em carta de 1546, pede pelo amor de Deus “que tal peçonha me não mande, porque é mais destruir o serviço de Deus e seu e o bem meu e de quantos estão comigo”. Eça denunciou, com uma coragem extremamente rara, que a colonização portuguesa na Ásia foi uma ignomínia. Como foi no Brasil, como se pode provar em cartas, já citadas de donatários. Duarte Coelho combatia, sem descanso, os trapaceiros ladrões, salteadores, porque os foragidos da justiça da metrópole ficaram livres da prisão pelos crimes que tivessem cometidos em Portugal. Em uma de suas cartas, Duarte Coelho chega a afirmar: “Não sei se lhes chame povoadores ou se lhes diga ou chame salteadores”.


continente Haroldo de Campos diz que você é um poeta “sempre vocacionado para a concretude matricial de pedra pernambucana”. Uma vez que você tem sido apontado como o sucessor de João Cabral de Melo Neto, esteta da pedra e pernambucano confesso, poderia esclarecer que fios tecem essa relação? sebastião uchoa leite Pra começo de conversa, reconheço realmente a influência de João Cabral sobre mim, mas essa influência é muito relativa, e não sou sequer de longe igual a João Cabral, quanto mais discípulo dele. É só ler os meus livros, ora essa, porque sou muito mais coloquial do que ele, por exemplo. Acho que segui mais uma pequena vértebra do que as características gerais da poesia dele propriamente. Agora, quanto às outras observações, quanto a Haroldo, acho que foi um gesto de amizade que ele teve comigo, de me fazer aquela orelha tão simpática em À espreita. Mas a questão da pedra matricial, acho bastante exagerada, com todo o respeito que tenho por ele. Acho que pode até existir isso, mas essa pedra não está só em João Cabral, está em Drummond também. Se você observar bem, nos poemas em que falo de Pernambuco não apelo tanto para a paisagem, embora tenha acontecido o fato de que sou muito ligado ao mar do Recife e às águas de Pernambuco em geral, e há muitas referências a praias pernambucanas, sobretudo à de São José da Coroa Grande. A questão da pedra matricial, a que Haroldo se refere, eu não consigo mesmo reconhecer em minha poesia, mas acho que há nela realmente a secura que é própria até da natureza das pessoas de outros estados não sulistas, sobretudo Pernambuco, mas isso não é uma questão de descendência desse fio matricial da pedra. Isso não é a minha poesia, e não vejo importância alguma dessa pedra matricial quanto a ela. Quer dizer, quanto à minha poesia (desculpem-me a ênfase nesse ponto pela insistência com que falam disso), e não quanto à de João Cabral. continente Quando foi publicada sua poesia pela primeira vez? sebastião uchoa leite Foi no Recife, no suplemento do Diario de Pernambuco, por interferência de Mauro Mota, poeta, estudioso da região

nordestina e editor de jornal. Era um homem muito importante… Levei uns poemas e uma apresentação de José Laurênio de Melo. Ele publicou cinco poemas numa página inteira. Foi uma surpresa e uma glória para um rapaz de 22 ou 23 anos, no máximo. E fiquei, de repente, conhecido. Mas nenhum dos poemas jamais foi publicado em livro. Eu era muito exigente. continente Ainda no Recife, em 1960, você publicou o seu primeiro livro de poesia, Dez sonetos sem matéria, pelo Gráfico Amador. Qual o elemento galvanizador da experiência do Gráfico? Como avalia o clima intelectual no Recife da época? sebastião uchoa leite A presença do Gráfico na minha vida foi muito boa, porque se desenvolveram em mim várias experiências. Coisas que eu não tinha ainda conseguido compreender, como, por exemplo, o gosto dos livros do ponto de vista da qualidade material, lição inesquecível dos gráficos. E tive a influência, sim, de várias pessoas que me cercavam. As duas influências mais agudas do Gráfico Amador foram, sobretudo, a de Orlando da Costa Ferreira, que foi, digamos assim, quem gerou em mim todas essas coisas, como, por exemplo, o gosto pela qualidade e modernidade em tudo (até então, eu era meio indiscriminado quanto ao lado material dos livros e objetos em geral. Orlando era um espírito empreendedor,era ele quem mais estudava as artes gráficas, e tudo girava em torno dele), e, segundo, a de Laurênio, como também a de Gastão, que entrou com outros amigos na jogada. A experiência que eu tive foi muito boa não só no sentido intelectual, mas também no sentido do enriquecimento humano, porque eu tive o conhecimento de pessoas notáveis que viveram perto de mim e que me deram lições importantes de vida. Entre elas, Laurênio, acima de tudo, que continua muito próximo a mim aqui, no Rio, e a quem julguei um mestre crítico em tudo e ainda como um poeta superior, que ele é ou foi, pois, estranhamente, desistiu de tudo. E também fiquei muito próximo de Orlando, não só um mestre nas artes, mas um mestre intelectual em geral. Ele era uma pessoa notável, que morreu cedo. E Gastão, que era

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uma personalidade muito esfuziante, pessoa de muita alegria, muito inventivo em tudo. À parte isso, tem outras pessoas que me levaram para lá. Jorge Wanderley foi um desses que me levaram para lá. E eu, depois, levei João Alexandre Barbosa. A participação de Luiz Costa Lima foi muito lateral, no Gráfico. Fiquei muito amigo dele também. Foi um grupo de amigos dessa ocasião que me influenciou muito. Fiz parte da revista Estudos universitários, que foi fundada por Luiz Costa Lima e que foi fechada por Gilberto Freyre. Não foi fechada propriamente por ele, mas acho que obedeceram a um pedido dele, na reitoria, quando fecharam. E depois chutaram Luiz e mudaram a direção. José Laurênio, que acho um grande homem, também foi chutado da Rádio Universitária e trocado por um mediocrão intervencionista a mando dos milicos. Algumas pessoas não gostavam de Gilberto, como era o meu caso, que era um caso pessoal. Não gostava dele como pessoa, pois, intelectualmente, o conheci muito pouco. O grupo não era contra ele. Quem me levou à casa dele para conhecê-lo foi Orlando da Costa Ferreira, mas o grupo nem se contrapunha nem muito menos estava a favor dele. Eu o vi apenas uma vez e não gostei dele. Luiz Costa Lima publicou uma crítica a Gilberto, e eu então disse: “Cuidado, que a revista pode ser fechada”. E foi. É o que eu gostaria de falar. E, finalmente, que Paulo Freire, o educador, foi preso e depois exilado. por suely cavendish

Argentina

Tomás Eloy Martínez Os pecados de uma nação edição nº 19, julho/2002

Autor do best-seller Santa Evita, do romance O vôo da rainha e do recente Purgatório, Tomás Eloy Martínez é um dos autores mais atuantes do seu país. Nessa entrevista para a Continente, o


divulgação

Tomás Eloy Martínez

escritor discute a crise que o seu país enfrentou durante a última década, fala da globalização e enfatiza: “A nossa literatura é vasta e não pode ser limitada ao realismo fantástico”. Autores como Borges, Cortázar, que se destacam nesse gênero, escreveram também obras que eram respostas às realidades políticas da Argentina”. continente Para os chineses, crise é também oportunidade. É verdade que, para os artistas, a crise é necessária para a criação? tomás eloy martínez Como a palavra chinesa indica, uma crise pode ir em duas direções. Uma direção positiva e uma negativa. Uma pode destruir você, a outra pode convertêlo numa pessoa melhor. Depende da força interna que se tenha, da harmonia interna e da vontade que se possua para desafiar a crise. A crise revela os homens, os países e as famílias, tal como são. Na crise você enxerga exatamente a sua iden­tidade. Se ela for positiva, forte, harmoniosa, você poderá sair bem da crise. Se estiver fragmentada, se você é muito pessimista, a crise o destruirá. Depende

da qualidade do ser humano, da família ou da nação que desafia a crise. continente Por muito tempo se disse que a Argentina era culturalmente superior aos demais países do continente. O senhor concorda com essa visão? tomás eloy martínez A cultura argentina é muito viva, forte, mas não acho que se possa colocá-la acima da cultura do Brasil, por exemplo, que é muito rica também. Aqui há cinema de enorme vitalidade, literatura, artes plásticas, música. Nenhum argentino sensato pode dizer que nossa cultura é mais importante que a do Brasil. Todavia, essa cultura está viva. Em plena adversidade, o cinema e a literatura argentinos seguem adiante – e esse é o único oxigênio que possui a sociedade, neste momento, para sentir-se viva. A vida cultural intensa também significava a integração do cidadão argentino com outras partes do mundo. continente Não chega a ser irônico que agora esse mesmo cidadão argentino, que se gabava de ser globalizado culturalmente, se

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veja vítima de uma globalização econômica? tomás eloy martínez É irônico. Na ordem cultural é algo curioso. Acabo de voltar da Espanha, e este é um momento em que a cultura argentina, os filmes e a literatura estão sendo procurados com muito interesse. A glo­balização está ajudando a cultura argentina. Mas a globalização econômica destruiu a Argentina. Há que separar um pouco as coisas. De um lado, a globalização econômica, e de outro, a globalização cultural. A globalização cultural é positiva, na medida em que nos permite ver, primeiro, muitos filmes de Hollywood, o que é péssimo, mas também o cinema brasileiro, que é ótimo, o cinema espanhol, o cinema francês, o cinema escandinavo. Também nos oferece uma forma de comunicação tecno­lógica, através da internet, que é positiva. O problema é quando os conglomerados culturais, jor­nalísticos e de grandes empresas oprimem o artista. Eles somente publicam o que vende milhares de exemplares, é rentável. Isso é pernicioso para a arte, porque a arte cresce e melhora através da experimentação e da busca de outras linguagens. continente O realismo fantástico, uma tradição na literatura argentina, está perdendo força? tomás eloy martínez A literatura argentina é vasta e não pode ser limitada ao que se chama de “realismo fantástico”. Autores como Borges, Cortázar ou Bioy Casares, que se destacam nesse gênero, escreveram também obras que eram respostas às realidades políticas da Argentina. No caso de Borges, contos como Emma Zunz, O evangelho segundo São Marcos, A intrusa, e quase toda a última parte de sua obra, inscrevem-se nessa linha. O mesmo se poderia dizer de todos os últimos contos de Cortázar, dos quatro últimos romances de Bioy Casares e da obra inteira de autores importantíssimos como Roberto Arlt, Manuel Puig, Ricardo Piglia. Portanto, dizer que o realismo fantástico prevalece na literatura argentina é empobrecer essa literatura. Seria o mesmo que dizer que toda a literatura brasileira é de tradição regional. por fábio lucas


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Artigo

alberto da cunha melo a oficina de almanzor Edição nº05, mai/2001

Conta-se que, durante o domínio árabe na Europa, um certo Almanzor, ministro do califa Hixe II, não só criou na Espanha uma oficina poética sob a direção de um crítico literário, onde os poetas eram pagos segundo o mérito de suas composições, como também costumava levar em suas expedições guerreiras uma penca de 40 poetas para registrar seus feitos. Isso foi entre os fins do século 10 e princípios do século 11. Em seu magnífico Curso de Literatura portuguesa (Lisboa, 1875), José Maria d’Andrade Ferreira procura descrever a influência da cultura árabe sobre a Europa, especialmente na Espanha, onde “floresceram com mais vívido esplendor os frutos de sua civilização prodigiosa: Córdoba, a científica; Granada, a poética; Sevilha, a monumental”. As teorias contrárias ou a favor da influência da poética árabe na Europa se vêm digladiando há sécu­ los. Eu não tenho tempo nem formação para entrar nessa briga. Mas sempre simpatizei com a teoria ara­bista, que afirma ser todo o trovadorismo medieval, o imprecisamente dito provençal e o galaico-português, esteticamente moldado pela poética muçulmana. E Andrade Ferreira vai mais além, ao afirmar que “o estilo oriental difundiu-se em todas as

línguas romanas”. Enquanto isso, os antiarabistas sempre filiaram os trovadores medievais à poesia romana da Antiguidade, à secularização da poesia religiosa do medievo ou a eles próprios, os poetas. M. Rodrigues Lapa, antiarabista possesso, no seu Das origens da poesia lírica de Lisboa (Lisboa, 1929), acha que só deve ser creditada aos árabes “a transmissão de certos motivos poéticos e musicais da civilização greco-latina”. Cita ele o erudito alemão Konrad Burdach, para quem o conceito do amor cortês, o culto à mulher e a vassalagem amorosa, na poesia trovadoresca, são uma mera “resultante da arabização da cultura grecolatina”. Arabizar tal cultura não seria influenciá-la? Rodrigues Lapa encerra o assunto dizendo simplesmente que “o fundo visível da poesia ro­mânica, dita popular, é a poesia litúrgica”. Uma invasão de quase 800 anos tende a cegar de ressentimento os historiadores europeus. As duas teorias também divergem sobre a origem da rima na poesia medieval. Não só os antiarabistas ressentidos atribuem o seu uso pelos trovadores à influência dos cânticos religiosos, a par­tir do século 4. O carrancudo crítico alemão Walang Kayser diz: “A rima final penetrou nas literaturas europeias procedente da lírica latina dos princípios da Idade Média”. Discordando, Andrade Ferreira lem­bra que a rima na poesia latina é encontrada “como circunstância puramente ocasional”, enquanto “a poesia árabe aparece quase toda rimada”, embora a rima “não passe às vezes de assonâncias, (...) as asso­nantes, como ainda hoje usam os espanhóis”.

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O livro de Andrade Ferreira fez-me lembrar de Luis Soler, outro arabista que passou desperce­bido por Pernambuco e deixou-nos seu precioso As raízes árabes na tradição poético-musical do sertão nordestino, no qual magistralmente descobre nos vio­leiros-repentistas do Nordeste uma forte sobrevivência da cultura árabe peninsular, especialmente no desafio poético. Soler bate forte nos historiadores antiarabistas, que fazem coro com a tradição oficial de “fazer de conta que tudo começou na Europa”, e passam por cima de uma influência que se estende “à tençó (tensão ou tenson) e aos jeux-partis pro­vençais, às desgarradas e desafios portugueses, aos contrasti italianos e às palhadas ou payadas de vários países hispano-americanos”. Impregnado de tais teorias, eis que me chega o poeta Alberto de Oliveira, com seu megaprojeto Pelas trilhas do repente e do improviso, que terá como abertura o subprojeto Noitada Brasil-Espanha, com a participação de glosadores espanhóis, violeirosrepentistas nor­destinos e declamadores dos dois países, que dirão poemas de João Cabral de Melo Neto e Federico García Lorca. Então me lembro de que a poesia árabe ibérica se ex­pressava não só em formas populares, mas parte dela apresentava uma dicção palaciana e erudita. Os ecos dessa poética nas formas cul­tas da poesia ocidental (tão orgulhosa de sua ascen­dência horaciano-aristotélica), eis mais um bom tema para pesquisa. Pergunto-me até que ponto há vestígios ára­bes em Lorca e Cabral. “O embrujo (feitiço) mouro, que persiste na Espanha Meridional”, segundo Oscar Mendes, “não podia deixar de fascinar esse poeta (Lorca)” e “a forma simplesmente modelada, simétrica, artística”, que Andrade Ferreira admirava na poe­sia árabe, certamente está presente nos poetas espa­nhóis que influenciaram Cabral, principalmente porque, como me disse Mário Hélio, ele foi mais atingi­do pelos poetas espanhóis “da tradição medieval”. O megaprojeto de Alberto de Oliveira envolverá várias artes, não se limitando, portanto, aos violeiros-re­pentistas, e já conta com o apoio do Centro Cultural Brasil-Espanha. Só espera, agora, contar com a colaboração de empresários com alma de Almanzor.


poesia de toda uma vida.

Garibaldi Otávio estreia na literatura com o livro O girassol, coletânea de textos de toda uma vida. Mauro Mota observava, já em 1950, que a poesia de Garibaldi Otávio tem “a imagística sem parentesco, o descritivo, mas penetrante, tirando sangue do íntimo das coisas”. O girassol confirma estas qualidades e reafirma outras mais.

Relançamento: 7 de novembro, na Fliporto e s p ec i a l f l i p o rto n ov e m b r o 2 0 0 9 | 4 9


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