Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho 2020

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ENCONTRO DE INVESTIGADORES EDUM 2020

Escola de Direito da Universidade do Minho



ENCONTRO DE INVESTIGADORES Escola de Direito da Universidade do Minho

2021



FICHA TÉCNICA

TÍTULO DA PUBLICAÇÃO Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho 2020 COMISSÃO CIENTÍFICA Centro de Investigação em Justiça e Governação COMISSÃO ORGANIZADORA Anabela Gonçalves Larissa Coelho Maria João Lourenço José Vegar Velho Tiago Branco DATA DE PUBLICAÇÃO Julho de 2021 EDIÇÃO Escola de Direito da Universidade do Minho REVISÃO DE TEXTO Ana Rita Silva PAGINAÇÃO E DESIGN DE CAPA Pedro Rito ISBN 978-989-54587-8-3

Financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Financiamento UID/05749/2020

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SUMÁRIO

PREFÁCIO

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A relatividade da necessidade de reconhecimento da proteção de dados pessoais como um direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro Afonso Carvalho de Oliva

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Regimes de acesso e uso de recursos florestais no quadro da integração do desenvolvimento sustentável Eduardo Mendes Simba

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O uso de meios autocompositivos de solução de controvérsias: no brasil existe uma reserva de jurisdição em causas que envolvem a administração pública? Fernanda Karoline Oliveira Calixto

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Pandemia, demasia e dessincronia em matéria de sanções administrativas. A Hidra de Lerna no direito administrativo sancionatório da(s) excecionalidade(s) João Vilas Boas Pinto

53

Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no contexto da pandemia do COVID-19 Mariana Schafhauser Boçon

67

Legalidade versus Consequencialismo: os magistrados podem pautar suas decisões em fundamentos consequencialistas? Murilo Strätz

83

A lei de migração brasileira e as inconsistências de sua regulamentação como impedimento do exercício de direitos fundamentais dos imigrantes Olívia Maria Cardoso Gomes

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PREFÁCIO

As atas que agora se publicam correspondem aos trabalhos apresentados no Quarto Encontro de Investigadores em Ciências Jurídicas, que teve lugar no segundo semestre de 2020. Este encontro de investigadores decorreu em circunstâncias particularmente difíceis, em resultado da pandemia vivenciada, o que implicou que o evento fosse organizado em quatro webinars, sempre com a adesão entusiástica do público. Isto leva-nos a concluir que estes encontros anuais de investigadores doutorandos da Escola de Direito já estão sedimentados, o que é compensador para a organização. Estes encontros visam o diálogo e a discussão intensa entre os investigadores, que potenciam o aperfeiçoamento dos trabalhos científicos apresentados e a abertura de caminhos de investigação em direções ainda não exploradas pelos investigadores. Nesta edição, encontramos uma grande variedade de trabalhos que abrangem temáticas relativas à proteção de dados, regimes de acesso e uso de recursos florais, a fundamentação das decisões judiciais no direito brasileiro e a lei de migração brasileira. O contexto da pandemia que vivemos gerou também a reflexão sobre direitos sexuais e reprodutivos e a reflexão sobre as sanções administrativas em tempo de Covid-19. Apesar de o trabalho de investigação em Direito se manter maioritariamente solitário, estes encontros de investigação permitem partilhar conhecimentos e experiências que vão moldando o perfil do investigador, conferindo-lhe tolerância à diversidade de opiniões e capacidade de discussão das suas posições, duas qualidades essenciais para um jovem investigador. Nesta medida, a Escola de Investigadores do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov) reitera o seu compromisso em continuar a promover a organização destes encontros de investigadores e a criar e divulgar novas oportunidades de investigação para os seus membros. Uma última palavra de agradecimento para a Comissão Organizadora do Quarto Encontro de Investigadores em Ciências Jurídicas, na qual nos integramos, composta também pelas Mestres Larissa Coelho, Maria João Lourenço, José Ve-

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lho e Tiago Branco, que generosa e abnegadamente dinamizaram o evento e a publicação da obra que agora se apresenta. Anabela Gonçalves, Vice-Presidente da Escola de Direito para a área da investigação e

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Diretora da Escola de Investigação do Centro de Investigação JusGov


A RELATIVIDADE DA NECESSIDADE DE RECONHECIMENTO DA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Afonso Carvalho de Oliva1

1. Introdução A motivação para o presente estudo surge da constatação de uma efetiva mudança na posição ocupada pelo indivíduo diante do uso de serviços no contexto eletrônico e informatizado, que o transmuta de destinatário final do serviço ofertado para verdadeira fonte de renda dos mantenedores dos referidos serviços. De forma mais específica, a preocupação recai sobre o desconhecimento desta situação por parte dos indivíduos, que, muitas vezes, não são capazes de perceber referida transmutação, pois mantêm a certeza de que estão a se utilizar de serviços gratuitos, sem perceberem que, em troca do uso destes, estão a fornecer uma série de dados pessoais que serão utilizados em relações econômicas pelas mantenedoras dos serviços. Diante disso, percebe-se o interesse acadêmico em estudar-se a necessidade de reconhecimento dos dados pessoais como partes inseparáveis da própria 1 Advogado. Doutorando em Ciências Jurídicas Privatísticas na Universidade do Minho (Portugal). Mestre em Direito pela Universidade Tiradentes (Sergipe – Brasil). Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito 8 de Julho (Sergipe – Brasil). contato@afonsooliva.com.

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personalidade humana, o que leva à discussão a respeito da necessidade também do reconhecimento da proteção desses dados como um direito fundamental. Na análise que segue, será apresentado o desenvolvimento dos posicionamentos judicial e legislativo europeus sobre a questão, bem como as impressões jurídicas baseadas num sucinto estudo comparativo das realidades europeia e brasileira, considerando, especialmente, a iniciativa legislativa brasileira de disciplinar a matéria, frente ao estágio europeu, mais avançado. Apresenta-se uma crítica à proposta de emenda à Constituição Federal do Brasil que busca positivar a proteção de dados pessoais como um direito fundamental, além de dispor sobre a competência para legislar acerca do tratamento de dados pessoais. A crítica parte da aparente ausência de fundamentação fática e social capaz de embasar a referida proposta, a qual possui, como principal motivação, uma aparente tentativa de realização de um transplante legal2 da realidade legislativa existente na União Europeia. Importante registar, desde estas palavras preliminares, que não se trata de um olhar comparativo ingênuo. Dito de outra forma, não se quer fazer crer na supremacia do direito europeu ou em suposta inequívoca conscientização da população da União Europeia sobre a proteção à qual faz jus – a qual não pode ser tida como regra, aliás, em nenhuma sociedade. A inclusão da proteção dos dados pessoais como mais um direito fundamental e a concentração de competência legislativa sobre a matéria de forma indistinta podem levar à situação na qual se esteja, meramente, repetindo uma norma de outro Estado nacional, cuja efetividade restará prejudicada por ausência de pressuposto de subsunção. O ponto que merece destaque, na comparação empreitada, consiste, assim, na relatividade, isto sim, da referida necessidade e, a respeito de referido corte temático, no final, serão apresentadas as ideias conclusivas da pesquisa comparativa.

2. A transformação do cidadão em dados Não se pode questionar a importância do uso de dados pessoais para a economia moderna. A revista The Economist afirmou, em 2017, que “[d]ata are

2 GRAZIADEI, Michele – “Comparative Law as the Study of Transplants and Receptions”. In REIMANN, Mathias; ZIMMERMANN, Reinhard – The Oxford Handbook of Comparative Law Oxford Handbooks in Law Series. [em linha]. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2019. [13.01.2020]. Disponível em http://oxfordhandbooks.com/view/10.1093/oxfordhb/9780199296064.001.0001/oxfordhb-9780199296064-e-014. ISBN 978-0-19-929606-4.

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A relatividade da necessidade de reconhecimento da proteção de dados pessoais como um direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro

to this century what oil was to the last one: a driver of growth and change”3. Todavia, a assertiva não pode ser aceita sem que se levantem questionamentos acerca da fonte desses dados e de quais são os usos e os possíveis rumos dessa nova economia. Zygmunt Bauman4, já em 2008, alertava para o risco ao qual a sociedade estava exposta, ao vislumbrar a transformação das pessoas em mercadorias. Atualmente, fica cada vez mais claro que o alerta de 2008 ganhou contornos mais reais, que as mercadorias às quais se referia o sociólogo são, efetivamente, os nossos dados pessoais. Estes, como alhures destacado, consistem na matéria prima da nova economia, a todo momento, utilizada de novas maneiras, a exemplo do (hoje considerado simplório e corriqueiro) marketing direcionado – como o verificado no já clássico exemplo da rede de supermercados norte-americana Target, que, por meio da análise do histórico de consumo individual, foi capaz de inferir que uma cliente estava grávida5 –, e de casos mais graves, como aqueles que foram trazidos à tona com as denúncias do caso Cambridge Analytica6. Nesse contexto, percebe-se a evidente necessidade de reconhecimento dos dados pessoais como partes inseparáveis da própria personalidade humana. É o que a doutrina acadêmica vem reconhecendo, em conjunto com as decisões dos tribunais constitucionais europeus, mormente o Tribunal Constitucional Alemão7, como a autodeterminação informativa8, a partir do que se pode falar num interesse estatal na tutela protetiva dessas informações. No entanto, ao se tratar do conceito de autodeterminação informativa, da importância da proteção dos dados pessoais e, por fim, do reconhecimento dessa proteção como um direito fundamental do cidadão, colocando-os na “categoria” daqueles chamados “Direitos Humanos” declarados pelo Estado, é 3 “Data is giving rise to a new economy” – The Economist. [em linha] 2017. [03.01.2020]. Disponível em https://www.economist.com/briefing/2017/05/06/data-is-giving-rise-to-a-new-economy. ISSN 0013-0613. 4 BAUMAN, Zygmunt – Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. ISBN 978-85-3780-066-9. 5 GUTIERREZ, Horacio E.; KORN, Daniel – “Facilitando the Cloud: Data Protection Regulation as a Driver of National Competitiveness in Latin America”. University of Miami Inter-American Law Review. V. 45, N. 1 (2013), pp. 33-62, p. 54. ISSN 0884-1756. 6 MONTEIRO, Renato Leite – Tribuna | Cambridge Analytica e a nova era Snowden na proteção de dados pessoais [em linha], atual. 20 mar. 2018. [01.02.2020]. Disponível em https://brasil.elpais. com/brasil/2018/03/20/tecnologia/1521582374_496225.html. 7 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo; WOISCHNIK, Jan – Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer, 2005, p. 238. ISBN 978-9974-7942-1-4. 8 MURILLO DE LA CUEVA, Pablo Lucas – El derecho a la autodeterminación informativa. Madrid: Tecnos, 1990. ISBN 9788461334704.

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imperioso ressaltar a necessidade de se verificar, nas palavras de Konrad Hesse, “o substrato espiritual [...], isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas”9. Dito de outro modo, é necessário que os próprios titulares desses direitos e garantias fundamentais estejam cônscios dessa sua posição jurídica de sujeitos ativos desses mesmos direitos e garantias. Somente com esse reconhecimento de posição jurídica por cada titular se pode falar em efetividade desses direitos e garantias fundamentais. Sem isso, corre-se o risco de se chegar à situação que foi objeto de crítica por Jeremy Bentham, ao analisar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa de 1791, cujos direitos – na visão do estudioso, conforme demonstra Clara Calheiros, ao tratar das Objeções Legais apresentadas pelo utilitarista em face à supracitada Declaração10 –, previstos em termos tão genéricos, seriam impossíveis de ser exercidos, especialmente num contexto no qual cada indivíduo não tivesse consciência mínima sobre a importância de exigir seu cumprimento.

3. A proteção dos dados pessoais na União Europeia O reconhecimento da necessidade de proteção de dados pessoais é um tema caro para a história mais recente do continente europeu, verificada a preocupação nos estados nacionais antes mesmo da criação da União Europeia, o que resultou, em sua maior parte, da própria cobrança por parte de grupos de cidadãos. É bem verdade que não se pode falar num único motivo que levou os cidadãos do continente europeu a manifestarem referida preocupação e sequer se pode afirmar que essa preocupação seria unânime entre todos esses indivíduos, sequer entre todos os países do continente11. Cidadãos de alguns países europeus, por exemplo, os da Alemanha, por questões históricas, preocupam-se mais com o uso de seus dados pessoais, pois, no curso da Segunda Guerra Mundial, a população alemã vivenciou, in concreto e da pior forma, o que a coleta de dados pessoais – naquela época, por meio dos censos populacionais – e sua posterior

9 HESSE, Konrad – A força normativa da constituição. Porto Alegre: S.A. Fabris Editor, 1991, p. 15. ISBN 978-85-88278-18-9. 10 CALHEIROS, Maria Clara – “A crítica aos Direitos do Homem. Notas à luz das Anarchical Fallacies de Jeremy Bentham”. In HOMEM, António Pedro Barbas; BRANDÃO, Cláudio Mascarenhas – Do direito natural aos direitos humanos. Coimbra: Almedina, 2015, pp. 159-187. ISBN 978-97240-5869-6. 11 SCHWARTZ, Paul M. – “Global Data Privacy: The EU Way”. New York University Law Review. V. 94, N. 4 (2019), pp. 771-818. ISSN 0028-7881.

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classificação representaram para a perseguição de determinados grupos políticos ou religiosos12. Essa preocupação refletiu-se em alguns instrumentos multinacionais, dos quais os futuros Estados-Membros da União Europeia fizeram parte, a exemplo das Guidelines on the Protection of Privacy and Transborder Flows of Personal Data da OECD13, em 1980, e da Convention for the Protection of Individuals with regard to Automatic Processing of Personal Data do Conselho da Europa14, ratificada em 1985. Na União Europeia, o tema foi erigido à categoria de princípio fundamental, conforme se verifica no art. 16.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia15, segundo o qual “[t]odas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pessoal que lhes digam respeito”. Todavia, como alertou Bentham16, o uso de termos vagos para a “criação” de direitos fundamentais coloca em risco sua própria existência e efetividade. Por isso, foi editada, em 1995, a Diretiva sobre Proteção de Dados17, que possuía como principal objetivo a unificação da proteção de dados nos países-membros, garantindo não só um nível adequado de segurança em cada Estado-Membro, como também a possibilidade de livre circulação desses dados entre os diversos países da comunidade, num mesmo instrumento, implementando um princípio comunitário e melhorando também o mercado interno, no tocante aos dados pessoais. 12 EVANS, A. C. – “European Data Protection Law”. American Journal of Comparative Law. ISSN 0002-919X. V. 29, N. 4 (1981), pp. 571-582. SCHWABE; MARTINS; WOISCHNIK – op. cit. 13 OECD – OECD Guidelines on the Protection of Privacy and Transborder Flows of Personal Data [em linha]. [S.l.]: OECD, 2002 [01.12.2020]. Disponível em https://www.oecd-ilibrary.org/science-and-technology/oecd-guidelines-on-the-protection-of-privacy-and-transborder-flows-of-personal-data_9789264196391-en. ISBN 978-92-64-19719-0. 14 CONVENTION FOR THE PROTECTION OF INDIVIDUALS WITH REGARD TO AUTOMATIC PROCESSING OF PERSONAL DATA. [em linha]. Treaty No. 108 (81-01-28) [01.12.2020]. Disponível em https://www.coe.int/en/web/conventions/full-list. 15 TRATADO SOBRE O FUNCIONAMENTO DA UNIÃO EUROPEIA (VERSÃO CONSOLIDADA) – 2016/C 202/01. [em linha]. Jornal Oficial da União Europeia-C 202-7 de junho de 2016 (1606-07), pp. 47-199. [05.01.2020]. Disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/ HTML/?uri=OJ:C:2016:202:FULL&from=EN. 16 BENTHAM, Jeremy – “Anarchical Fallacies, being an examination of the declarations of rights issued during the French Revolution”. In BOWRING, John – Works of Jeremy Bentham [em linha]. Edinburgh: W. Tait; London, Simpkin, Marshall, & Co, 1843, V. II. p. 501 [06.01.2020]. Disponível em https://oll.libertyfund.org/title/bowring-the-works-of-jeremy-bentham-vol-2. 17 DIRECTIVA 95/46/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 24 DE OUTUBRO DE 1995, RELATIVA À PROTECÇÃO DAS PESSOAS SINGULARES NO QUE DIZ RESPEITO AO TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS E À LIVRE CIRCULAÇÃO DESSES DADOS. Jornal Oficial [em linha]. DIRECTIVA 95/46/CE (95-10-24) 0031–0050. [26.06.2015]. Disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex:31995L0046.

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Apesar disso, conforme destacado por Anabela Gonçalves18, o objetivo de unificação não foi alcançado, tendo, na realidade, fragmentado o cenário da proteção de dados, uma vez que cada Estado-Membro realizava a adequação da Diretiva ao seu ordenamento jurídico, desfigurando-a da sua ideia inicial. Ademais, destaca-se a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia19, em 2000, que trouxe, sob o Título das Liberdades, em seu art. 8.º, a Proteção de Dados Pessoais, reconhecendo, efetivamente, tal proteção como um direito fundamental a ser aplicado em toda a União Europeia, sem ressalvas. Assim, com o objetivo de dar efetividade ao previsto na Carta e buscando também corrigir os problemas que surgiram quando da implementação da Diretiva 95/46CE, foi elaborado o Regulamento (UE) 2016/67920, também conhecido como Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), que, ao contrário da Diretiva 95/46/CE, é de adoção obrigatória por todos os Estados-Membros, não deixando margem para alterações via legislação nacional. Assim, percebe-se que os objetivos de unidade e desenvolvimento econômico ficam mais perto de ser efetivamente alcançados. Entretanto, necessário destacar que, em conjunto com o desenvolvimento legal da matéria, verifica-se um crescente exercício dos direitos de proteção de dados pessoais pelos seus titulares, o que fica claro no resumo apresentado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no tocante à Proteção de Dados Pessoais21. Trata-se de coletânea de julgamentos que evidencia como os titulares dos direitos buscam exercer os direitos referentes à proteção de dados pessoais, ainda que com fundamento na Diretiva 95/46/EC – visto que, na época da ocorrência dos fatos então discutidos, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados ainda não existia –, servindo-se aqueles titulares da tutela jurisdicional para enten18 GONÇALVES, Anabela Susana de Sousa – “O tratamento de dados pessoais no Regulamento Geral de Proteção de Dados”. Scientia Iuridica. V. LXVIII. N. 350 (2019), pp. 165-190, p. 167. ISSN 0870-8185. 19 CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA – 2016/C 202/02. [em linha]. Jornal Oficial da União Europeia-C 202-7 de junho de 2016 (16-06-07), pp. 391-407. [05.01.2020]. Disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=OJ:C:2016:202:FULL&from=EN. 20 REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 27 DE ABRIL DE 2016, RELATIVO À PROTEÇÃO DAS PESSOAS SINGULARES NO QUE DIZ RESPEITO AO TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS E À LIVRE CIRCULAÇÃO DESSES DADOS E QUE REVOGA A DIRETIVA 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) (Texto relevante para efeitos do EEE). OJ L [em linha]. 32016R0679 (16-05-04). [05.01.2020]. Disponível em http://data.europa.eu/eli/reg/2016/679/oj/por. 21 DIREÇÃO DA INVESTIGAÇÃO E DOCUMENTAÇÃO – Proteção dos Dados Pessoais – Ficha Temática. [em linha]. Luxemburgo: Tribunal de Justiça da União Europeia, 29 Dez. 2017. [29.12.2019] Disponível em https://curia.europa.eu/jcms/jcms/p1_1382492/pt/.

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derem e expandirem os limites da referida proteção. Depreende-se disso que a noção acerca da importância da proteção de dados pessoais vem fazendo parte do ethos que se busca incutir no cidadão da União Europeia, em favor da efetividade desse direito fundamental.

4. A (possível) falha da proposta de positivação brasileira Ao se analisar a temática da Proteção de Dados Pessoais no Brasil, verifica-se uma ausência de implementação efetiva deste direito, muito embora existam a previsão da proteção à intimidade e à vida privada no texto constitucional22 e, também, a previsão da proteção de dados pessoais na legislação infraconstitucional, tais como o Código de Defesa do Consumidor e o Marco Civil da Internet23. Sob a alegação da inexistência de uma legislação específica, nunca se aprofundou a discussão acerca da proteção dos dados pessoais. Ocorre que, em 2018, foi aprovada a Lei n.º 13.709, chamada de Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais24, com o objetivo de, finalmente, regular a matéria, o que colocaria o Brasil no mesmo patamar da União Europeia em matéria de proteção de dados pessoais. Entretanto, ao contrário do que se verificou na União Europeia, a criação daquela lei não serviu como resposta a eventuais anseios da população, mas sim como uma resposta ao possível embargo econômico decorrente do não reconhecimento do país como um local adequado para tratar dados de cidadãos europeus, em razão do previsto no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. Isto porque, conforme previsto no art. 45.º do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, a transferência internacional de dados pessoais de cidadãos europeus só poderá ter como destino países que sejam reconhecidos pela Comissão como locais em que seja garantido um nível adequado de proteção dos dados pessoais. O referido reconhecimento exige, de forma sintética, a existência de legislação específica voltada à proteção dos dados pessoais; a existência de uma ou mais autoridades independentes de controlo; e a assunção de compromissos internacionais pelo país terceiro para a proteção de dados pessoais. Logo, a não conformidade de um país a esses requisitos acaba por impossibilitar a implantação de serviços que tenham por objeto o tratamento de dados pessoais oriundos de cidadãos europeus. 22 MORAES, Alexandre de – Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. ISBN 978-85-224-4069-6. 23 Para uma análise mais aprofundada desta proteção: OLIVA, Afonso Carvalho de – Direitos do Consumidor: proteção de dados pessoais. 1. ed. Aracaju: DireitoMais, 2016. ISBN 978-85-5960003-2. 24 LEI N.º 13.709. LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS (LGPD). [em linha]. Diário Oficial da União (18-08-14) [05.01.2020]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm.

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Ao se analisar o comportamento do cidadão brasileiro e os julgamentos proferidos pelas Cortes Superiores, percebe-se que a proteção de dados pessoais nunca foi uma matéria que inspirasse grandes preocupações no país. Como exemplo disso, cita-se a criação da “Lei do Cadastro Positivo de Crédito”, que trouxe para o Brasil o sistema conhecido internacionalmente como “Credit Score”, sem que antes a matéria tivesse sido abertamente discutida com a população25. Mesmo aquando da apreciação judicial do sistema “Credit Score”, percebeu-se, à época, que não houve um aprofundamento nas discussões travadas no Superior Tribunal de Justiça, inclusive, após a realização de Audiência Pública26 para discussão do tema, do que resultou uma decisão que retrocedeu na proteção jurídica de dados pessoais dos consumidores27. Desde sua elaboração, a Lei Geral de Proteção de Dados representa uma desconexão entre os valores sociais do cidadão brasileiro e a produção legislativa, pois se trata de uma lei que apresenta ao país um nível de exigência incompatível com o praticado por seus cidadãos, entidades públicas e privadas, o que, per si, é suficiente para nos indicar considerável probabilidade de não se alcançar a efetividade necessária da norma28. Após a aprovação da lei supramencionada, foi apresentada ao Senado Federal proposta de emenda à Constituição Federal Brasileira29, com o objetivo de incluir a Proteção de Dados Pessoais no rol de direitos fundamentais previstos em seu art. 5.º. A mesma proposta de emenda busca alterar também o art. 22 do texto constitucional, de modo a definir a competência exclusiva da União para legislar acerca da proteção e do tratamento de dados pessoais. Da proposta de emenda sobressaem dois problemas. O primeiro diz respeito ao reconhecimento de um direito fundamental sem qualquer tipo de respaldo social. Ao contrário do desenvolvimento da proteção de dados pessoais na União Europeia, onde se verifica o nascimento de um direito fundamental com base em uma exigência social – o que Joaquim Herrera Flores chamou de 25 CUNHA E CRUZ, Marco Aurélio Rodrigues da; OLIVA, Afonso Carvalho de – “A defesa constitucional do consumidor e a lei n.º 12.414/2011 (cadastro positivo): Banco de dados, proteção de dados pessoais e relações de consumo”. In MEIRELLES, Delton R. S.; PIMENTEL, Fernanda – Processo e Conexões Humanas. 1. ed. Petrópolis: Sermograf, 2014, pp. 130-158. 26 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - Notas da Audiência Pública: Sistema Scoring REsp 1.419.697/RS. Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 25 Ago. 2014 [16.10.2015]. 27 OLIVA – op. cit. 28 ALVES, Alaôr Caffé – “A função ideológica do Direito na Sociedade Moderna”. In CLÈVE, C. M.; BARROSO, Luís Roberto – Direito Constitucional: teoria geral do Estado: Coleção doutrinas essenciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, v. 2, pp. 25-34. ISBN 978-8520340219. 29 GOMES, Senador Eduardo – Proposta de Emenda à Constituição n.º 17, de 2019 [em linha] [2019]. [03.01.2020]. Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7925004&ts=1606766520897&disposition=inline.

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A relatividade da necessidade de reconhecimento da proteção de dados pessoais como um direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro

“produtos culturais” na criação de direitos humanos30 – no Brasil, tem-se a imposição de um “novo direito fundamental”, sem que seus titulares talvez sequer se reconheçam como efetivos sujeitos ativos do direito. Referida situação fática põe em risco, como já ressaltado, a própria efetividade deste direito, revelando, conforme leciona Eros Grau31, o descompasso entre o direito “posto” pelo Estado e o “pressuposto” pelos cidadãos. É de se destacar, ainda, que da própria análise da Proposta de Emenda à Constituição percebe-se a ausência de fundamentação para a inclusão da Proteção de Dados Pessoais no rol de Direitos Fundamentais, isto porque, da leitura da exposição de motivos32, fica clara a ausência de uma profunda fundamentação para a criação de um novo direito fundamental, capaz de apresentar embasamento social ou funcional para o direito que se busca positivar, não sendo capaz de demonstrar a razão que torna necessária a edição de uma emenda constitucional, já que o tema encontra-se devidamente tratado pela legislação ordinária vigente, através da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Toda a fundamentação apresentada na exposição de motivos da Proposta de Emenda Constitucional é desenvolvida ao longo de apenas três laudas, nas quais se busca apresentar os motivos para ser “assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais”33. Como se percebe, a proposta de emenda não cria um direito com plena eficácia, uma vez que o condiciona à existência de lei específica, o que pode levar à compreensão de que aludido direito efetiva-se apenas com a edição da Lei Geral de Proteção de Dados, e não de que se trata, efetivamente, de um princípio conformador do Estado brasileiro. Podemos resumir a fundamentação exposta no projeto de emenda constitucional em quatro principais eixos ou justificativas34, a saber, (i) o fato de diversos países já terem adotado leis e regras sobre privacidade; (ii) o avanço tecnológico; (iii) a recente edição do RGPD pela União Europeia; e (iv) o fato de diversos países, entre eles Portugal, já terem reconhecido a Proteção de Dados como um direito fundamental. Ressalta-se, mais uma vez, que ditos argumentos são extraídos de uma exposição de motivos de apenas três laudas, que carece de fundamentação social 30 HERRERA FLORES, Joaquin – Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos como produtos culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. ISBN 978-8537506479. 31 GRAU, Eros Roberto – “O direito pressuposto e o direito posto”. Revista dos Tribunais. V. 80, N. 673 (1991), pp. 21-26. ISSN: 0034-9275. 32 GOMES – op. cit. 33 Ibid. 34 Ibid.

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ou científica capaz de conferir substância aos pontos elencados num texto que revela o uso de falácias argumentativas, como o apelo à autoridade, por meio do qual se considera que o fato de outros países, mormente os europeus, terem optado por reconhecer a proteção de dados pessoais como direito fundamental seria suficiente para fundamentar a necessidade de se fazer o mesmo no Brasil. Percebe-se, outrossim, o uso de argumentação ad populum, segundo a qual a verificação de que grande número de países passou a reconhecer a proteção de dados pessoais como direito fundamental seria o suficiente para convencer o Estado brasileiro de que esse seria o caminho correto a seguir. É necessário frisar que não se nega a importância do reconhecimento da proteção de dados pessoais como um direito fundamental. Porém, questionam-se a forma e a fundamentação que se apresentam para a criação desse direito fundamental. Em outras oportunidades, já foi defendida a existência de uma garantia fundamental à proteção de dados pessoais no Brasil35. Todavia, da forma como se apresenta a proposta de emenda constitucional, verifica-se o reforço de uma visão patrimonial sobre os dados pessoais, que se alinha muito mais à visão da doutrina norte-americana, em contraponto a uma visão dos dados pessoais como parte da própria personalidade do cidadão, nos moldes do desenvolvimento doutrinário europeu. Destaca-se, ainda, que, das três laudas que formam a fundamentação da proposta de emenda à constituição, uma é ocupada apenas com a motivação para a alteração do art. 22 do texto constitucional, o qual trata da competência para legislar sobre a matéria – aspeto a ser abordado na sequência. Com isso, os quatro eixos apresentados são desenvolvidos em duas laudas, em forma de assertivas diretas, sem a apresentação de fontes para o que é ali apresentado. Sobrelevam dois pontos da referida proposta, que demonstram a falta de fontes. Na argumentação, o autor afirma que “países de todo o planeta já visualizaram a importância e a imprescindibilidade de se regular juridicamente o tratamento de dados dos cidadãos”36. Em outro ponto, afirma-se, genericamente, que “[n]a América do Sul, países vizinhos como Chile e Argentina, entre outros, já contam com leis próprias de proteção de dados”37, mas sequer se sabe quais são os países paradigmas para a fundamentação apresentada. Ademais, neste ponto, a proposta compara países que possuem uma legislação voltada para a proteção de dados pessoais, da mesma forma como já existente no Brasil por meio da Lei

35 OLIVA – op. cit. 36 GOMES – op. cit., p. 4. 37 Ibid.

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Geral de Proteção de Dados, não se tratando, efetivamente da constitucionalização desta proteção. Ao se debruçar sobre o tema da constitucionalização, a proposta apresenta a seguinte fundamentação38: “De fato, a privacidade tem sido o ponto de partida de discussões e regulações dessa natureza, mas já se vislumbra, dadas as suas peculiaridades, uma autonomia valorativa em torno da proteção de dados pessoais, de maneira, inclusive, a merecer tornar-se um direito constitucionalmente assegurado.”

Não se pode aduzir quais seriam as peculiaridades tratadas pelo legislador que tornam necessário o tratamento constitucional; também não é possível perceber qual é a “autonomia valorativa” a que ele se refere; não é possível inferir desta constatação qual o posicionamento adotado pelo legislador, fundamental para as futuras interpretações desse princípio quando o mesmo se encontrar em análise pelo Supremo Tribunal Federal, em razão de eventuais conflitos com outros direitos fundamentais. Em momento posterior, afirma o autor, ao discorrer sobre a necessidade de constitucionalização da proteção de dados pessoais, que39: “Foi o caso de Portugal: sua Constituição, adotada em 1976, assegura o direito e a garantia pessoal de utilização da informática, estabelecendo, também, normas específicas de acesso e tratamento de dados pessoais. Algo similar se vê na Estônia, Polônia e, mais recentemente, no Chile, que, em 5 de junho de 2018, editou a Ley no 27.096, constitucionalizando a proteção de dados pessoais.”

Mais uma vez, percebe-se a confusão entre iniciativas de constitucionalização do uso de dados pessoais com a efetiva criação de um “direito fundamental à proteção e dados”, uma vez que as proteções apresentadas pela Constituição de Portugal, citada na proposta de emenda constitucional do Brasil, são, em boa medida, similares ao que já existe positivado na Constituição brasileira, por exemplo, a garantia de acesso aos dados pessoais por meio do habeas data. Dito de outro modo, não se verifica qual a real fundamentação para a “criação” desse novo direito no Brasil, se decorre de uma efetiva preocupação com a forma como a matéria já é regulada pelas normas infraconstitucionais, por insuficiência dos princípios constitucionais para garantir a efetiva proteção dos dados pessoais, ou se decorre apenas de preocupação mediática, com o aparente transplante legal decorrente do prestígio dos países estrangeiros.

38 Ibid. 39 Ibid.

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Outro ponto de preocupação na análise da Proposta de Emenda Constitucional recai sobre a pretendida alteração do art. 22 do texto constitucional brasileiro, que versa a respeito da competência legislativa privativa da União. Propõe o autor do projeto que a competência legislativa para “proteção e tratamento de dados pessoais” seja fixada na União. Ocorre que, ao trazer o termo “tratamento de dados pessoais”, imperioso recorrer-se à legislação infraconstitucional em vigor, qual seja, a Lei Geral de Proteção de Dados e, nesse contexto, a definição conferida para “tratamento” é prevista no inciso X do art. 5.º da referida lei, segundo o qual se considera atividade de tratamento de dados pessoais qualquer atividade que envolva o uso de dados pessoais. Ademais, a Lei Geral de Proteção de Dados apresenta um rol de atividades que podem ser consideradas como “tratamento”40, são elas: “coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração”.

Com isso, a proposta de alteração da competência impossibilita a existência de qualquer lei não originada do Poder Legislativo Federal, que traga, ainda que indiretamente, hipóteses de tratamento de dados pessoais. Em outras palavras, não poderão os Estados e os Municípios editar leis cujas matérias estejam afeitas a suas competências legislativas, e que, eventualmente, apresentassem normas específicas sobre o tratamento de dados pessoais. Para melhor ilustrar o problema que a aprovação da proposta de emenda à Constituição pode acarretar, ilustra-se com a seguinte hipótese: no Brasil, a competência para legislar sobre assuntos de interesse local é do Município e, conforme previsão do art. 30, inciso VI, da Constituição Federal, cabe ao Poder Municipal manter a educação infantil. Dessa forma, uma norma municipal que organize o sistema de distribuição de vagas em creches municipais, invariavelmente, dispõe sobre a coleta e o tratamento de dados pessoais dos pais e das crianças, uma vez que é necessário coletar dados como nomes, documentos de identidade e endereços respetivos. A dita coleta de dados, nos termos da Lei Geral de Proteção de Dados, é considerada “tratamento de dados pessoais”. Caso aprovada a Proposta de Emenda Constitucional, a lei imaginada padecerá de inconstitucionalidade superveniente, porque passará a invadir a esfera legislativa da União, então ampliada em relação ao tema, privativamente.

40 Lei n.º 13.709. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), op. cit.

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Mais adequado seria que a Proposta de Emenda Constitucional, no tocante à competência legislativa, se limitasse a falar em “proteção de dados pessoais”, o que alinharia a vontade do legislador com a lei que se busca prestigiar e proteger de intervenções estaduais e municipais, qual seja, a Lei Geral de Proteção de Dados, evitando, assim, a interferência em seara que, necessariamente, será tratada pelos Estados e municípios brasileiros, bastando que estes estejam em conformidade com a Lei Geral.

5. Considerações finais A pesquisa comparativa empreendida permite-nos confirmar, no atual estado da economia de mercado informatizada realizada através da internet, a previsão doutrinária sobre a transformação dos indivíduos em mercadorias, especialmente, por meio da comercialização de seus dados pessoais, coletados para serem tratados de forma direcionada, conforme os interesses de fornecedores de produtos e serviços – sem que, necessariamente, disso tenham conhecimento, uma vez que não lhes é permitido exercer a autodeterminação informativa. Por essa razão, imperiosa a necessidade da tutela protetiva estatal das informações sobre os indivíduos que podem ser obtidas por meio da manipulação de seus dados pessoais, como desdobramento de direitos fundamentais decorrentes da dignidade humana, como os direitos à privacidade e à intimidade. Nesse contexto, eventual tutela estatal, mesmo através do reconhecimento dessa proteção de dados como um direito fundamental, só será efetiva se as pessoas tiverem consciência de que são titulares do direito e da própria importância de exigirem essa proteção. No atual contexto econômico, esse movimento de reconhecimento pode ser verificado, por exemplo, em alguns Estados-Membros da União Europeia. Especialmente, por exemplo, na Alemanha, a proteção de dados pessoais resultou da cobrança, por parte dos cidadãos, após as perseguições sofridas por grupos de indivíduos durante a Segunda Guerra Mundial. É evidente que não podemos tomar o presente exemplo como regra geral para o reconhecimento da necessidade de proteção de dados pessoais em todo o continente europeu, tendo em vista a miríade de diferenças fáticas, sociais e históricas dos países que o formam. Porém, no contexto de unificação representado pela União Europeia, percebe-se que a preocupação perpassou a união dos países. Nesse sentido, na União Europeia, foi elaborada a Diretiva sobre Proteção de Dados, em 1995, com o principal objetivo de unificação da proteção de dados nos países-membros, garantindo não só um nível adequado de segurança em cada país-membro, como também a possibilidade de livre circulação desses dados entre os diversos países da comunidade, num mesmo instrumento, implementando um princípio comunitário e melhorando o mercado interno, no to13


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cante aos dados pessoais. De modo semelhante, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000, reconheceu, efetivamente, a proteção dos dados pessoais como um direito fundamental a ser aplicado em toda a União Europeia, sem ressalvas, sendo, então, efetivado por meio da edição do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. Dessas referências, extrai-se que o exemplo europeu tem sido de tentativa de crescente conscientização, através de iniciativas legislativas e de posicionamentos judiciais, a respeito da importância da proteção dos dados pessoais – condição prévia para a efetividade do reconhecimento estatal desse direito fundamental, o que se vê repercutindo em outros países. No Brasil, apesar da existência de um arcabouço normativo suficiente para fundamentar a proteção de dados pessoais, sob a alegação de inexistência de lei específica, em 2018, foi aprovada a Lei n.º 13.709, chamada de Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, com o objetivo de, finalmente, regular a matéria, porém, não como resposta a eventuais anseios da população, mas sim como uma resposta ao possível embargo econômico decorrente do não reconhecimento ao país como um local adequado para tratar dados de cidadãos europeus, conforme exigido pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. Desde o início da elaboração da Lei Geral de Proteção de Dados, verifica-se desconexão entre os valores sociais do cidadão brasileiro e a produção legislativa, pois trata-se de uma lei que apresenta ao país um nível de exigência incompatível com o praticado por seus cidadãos e por suas entidades públicas e privadas, o que, per si, é suficiente para nos indicar considerável probabilidade de não ser alcançada a efetividade necessária da norma. Todavia, mais preocupante que a possível ineficácia da Lei Geral de Proteção de Dados é a existência de proposta de emenda constitucional, que busca incluir a proteção de dados pessoais no rol de direitos fundamentais positivados na Constituição da República Federativa do Brasil. Frisa-se que não se nega a importância do reconhecimento da proteção de dados pessoais como um direito fundamental. Questionam-se sim a forma e a fundamentação apresentadas para a criação deste direito fundamental. Não se pode aduzir quais seriam as peculiaridades tratadas pelo legislador que tornariam necessário o tratamento constitucional. Também não é possível perceber qual a “autonomia valorativa” a que ele se referiria, não sendo possível inferir desta constatação qual o posicionamento adotado pelo legislador, fundamental para as futuras interpretações deste princípio, quando sob a análise pelo Supremo Tribunal Federal, em razão de eventuais conflitos com outros direitos fundamentais. Não se verifica, portanto, qual a real fundamentação para a “criação” desse novo direito no Brasil, se decorre de uma efetiva preocupação com a forma como a matéria já é regulada pelas normas infraconstitucionais, por insuficiência dos

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princípios constitucionais para garantir a efetiva proteção dos dados pessoais ou se decorre apenas de preocupação mediática, com o aparente transplante legal decorrente do prestígio dos países estrangeiros. A proposta de emenda sob comento não cria um direito com plena eficácia. Ao contrário, condiciona-o à existência de lei específica, o que pode levar à compreensão de que dito direito efetiva-se apenas com a edição da Lei Geral de Proteção de Dados, e não que se trata, efetivamente, de um princípio conformador do ordenamento jurídico do Estado brasileiro.

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REGIMES DE ACESSO E USO DE RECURSOS FLORESTAIS NO QUADRO DA INTEGRAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Eduardo Mendes Simba1

1. A crise de sustentabilidade Dados de 2010, contidos na Política Nacional de Florestas, Fauna Selvagem e Áreas de Conservação aprovada pela Resolução n.º 1/10, de 14 de janeiro (PNFFSAC)2, indicam que Angola tem uma extensão florestal de cerca de 53 milhões de hectares, correspondente a 43% da superfície do território nacional. Mas o Relatório sobre a Avaliação Florestal de Angola (RAFA) produzido pela Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO)3, 1

Investigador da Escola de Investigadores do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação da Universidade do Minho; Coordenador do Núcleo de Recursos Naturais e Ambiente do Centro de Direito Público da Universidade Agostinho Neto; Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto; Doutorando em Ciências Jurídicas (UMINHO), Mestre em Direito do Ambiente (UFS) e Licenciado em Direito (FDUAN). Contato: eduardomsimba@gmail.com.

2 CONSELHO DE MINISTROS DA REPÚBLICA DE ANGOLA – “Política Nacional de Florestas, Fauna Selvagem e Áreas de Conservação”. Diário da República, I.ª Série, N.º 8, de 14 de janeiro de 2010. [03.11.2020]. Disponível em https://in.lexdata.co.ao/app?loadmodule=diarios-primeira-resul tados&ano=2010&diario=22616, p. 60. 3 FAO – Évaluation des ressources forestières mondiales 2020: Angola Rapport [em linha]. Rome: s.n. 2020. [03.11.2020]. Disponível em http://www.fao.org/3/cb0117fr/cb0117fr.pdf, pp. 10 e 54.

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em 2020, indica que Angola tinha, em 1990, uma extensão florestal de 79,2 milhões de hectares e, em 2020, de 66,6 milhões de hectares, correspondente a 53,4% da superfície do território nacional4. Vale a pena assinalar a inconsistência entre os dados da PNFFSAC e dos da FAO extraídos do RAFA. Os dados da FAO alertam sobre a crise de sustentabilidade das florestas angolanas, colocando Angola na quarta posição do ranking dos países que mais perdem a sua extensão florestal a seguir ao Brasil, República Democrática do Congo e Indonésia, na ordem de 555 mil hectares por ano, desde 2010, correspondente a uma taxa média anual de 0,80%5.

2. A floresta: enquadramento e delimitação da abordagem

Existem diferentes definições para o que seja "floresta". Por exemplo, a FAO considera que floresta é toda a parcela de terra com mais de 0,5 hectares coberta por árvores com mais de 5 metros e uma cobertura de copa de mais de 10% ou árvores capazes de atingir esses limites “in situ”6. Já a Lei de Bases de Florestas e Fauna Selvagem define floresta como “qualquer ecossistema terrestre contendo cobertura de árvores, ou de arbustos ou de outra vegetação espontânea, incluindo os animais selvagens e microrganismos nela existentes”7. Trata-se de um conceito que apela a uma abordagem integrada ou ecossistémica das florestas e que é mais amplo que o da FAO porque, por um lado, não está limitado pela área nem pela altura das árvores ou extensão da cobertura de copa e, por outro, não se limita aos recursos florestais, incluindo também os recursos faunísticos. As florestas que integram o património florestal nacional são classificadas como florestas de conservação, de produção ou de exploração ou florestas

4 Em 2000, de 77,7 milhões de hectares (62,3% da superfície do território nacional); em 2010, de 72,1 milhões de hectares (57,8% da superfície do território nacional); em 2015, de 69,3 milhões de hectares (55,6% da superfície do território nacional). 5 FAO – Global Forest Resources Assessment 2020: Main report [em linha]. Rome: s.n. 2020. [03.11.2020]. Disponível em https://doi.org/10.4060/ca9825en, p. 18. 6 FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FORESTRY DEPARTMENT) – Global Forest Resources Assessment 2010: Terms and Definitions [em linha]. Rome: s.n. 2010. [03.12.2020]. Disponível em http://www.fao.org/3/a-am665e.pdf. p. 6; FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS – Forest Resources Assessment Working Paper 180: terms and definitions [em linha]. Rome: s.n. 2012. [03.12.2020]. Disponível em http://www.fao.org/3/ap862e/ap862e00.pdf, p. 3. 7 Cf. art. 4.º, n.º 49, da Lei n.º 6/17, de 24 de janeiro (Lei de Bases de Florestas e Fauna Selvagem – LBFFS).

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Regimes de acesso e uso de recursos florestais no quadro da integração do desenvolvimento sustentável

para fins especiais8. As florestas de produção podem ser naturais ou plantadas9 e também podem ser florestas para a exploração madeireira, florestas de produção não madeireira, florestas energéticas ou florestas de usos múltiplos (arts. 7.º, n.º 1, e 57.º da LBFFS)10. Para efeitos do presente artigo, apenas são relevantes as florestas de produção naturais, independentemente da sua finalidade, porque é sobre estas que incidem os direitos sobre os recursos florestais propriedade do Estado. Enquanto propriedade do Estado, os recursos florestais integram o seu domínio público [arts. 16.º, 95.º, n.º 1, al. k), da Constituição da República de Angola (CRA) e 6.º, n.º 2, da LBFFS]. As atividades florestais são realizadas apenas em terrenos classificados como florestais, nos instrumentos de ordenamento territorial, rurais e florestais aplicáveis, sendo, na sua falta, substituídos pelo inventário florestal (art. 58.º da LBFFS).

3. Antecedentes Até 2017, os regimes de gestão, acesso e uso aos recursos faunísticos estavam previstos no Decreto n.º 40.040, de 9 de fevereiro de 1955 (sobre as bases legais para proteger e utilizar o solo, a flora e a fauna)11, e no Decreto n.º 44531, de 22 de agosto de 1962 (que aprovava o Regulamento Florestal, doravante designado por RF/1962), tendo sido revogados pelo art. 196.º da LBFFS. Nos termos do RF/1962, a exploração florestal em povoamentos naturais era feita mediante licença ou concessão, mas, tratando-se de exploração florestal em matas pertencentes a entidades oficiais ou particulares, bastaria uma simples comunicação es8 Vd. art. 7.º, n.os 2, 3 e 6, da LBFFS. As florestas de conservação são aquelas que se destinam a conservação, manutenção e regeneração, estando, por isso, sujeitas aos regimes especiais de gestão. Por outro lado, as florestas de produção são aquelas constituídas por formações vegetais de elevado potencial económico, localizadas fora das áreas de conservação, e destinadas à exploração. As florestas para fins especiais são aquelas que estão localizadas fora das áreas de conservação e se destinam aos fins especiais de defesa nacional, conservação ambiental, experimentação científica, protecção de paisagens, lazer e culturais. 9 Sobre esta classificação, vide também CAETANO, Tomás Pedro – “A importância das florestas na Manutenção dos Equilíbrios Ecológicos”, in Ministério das Pescas e Ambiente, 1.º Fórum Nacional do Ambiente realizado em Luanda, de 29 de novembro a 1 de dezembro de 1999, Luanda, 1999, p. 151. 10 As florestas de produção também podem ser, ou não, comunitárias, consoante estejam, ou não, integradas nos terrenos rurais comunitários. 11 O art. 41.º do Decreto n.º 40.040, de 9 de fevereiro de 1955, obrigava a que os regulamentos sobre a utilização dos recursos florestais tivessem em consideração a função económica da floresta e do revestimento vegetal e a observância dos princípios da criação de novos recursos florestais, reconstituição da floresta em áreas anteriormente arborizadas e a realização mínima de derrubas na ocupação de terrenos para quaisquer fins.

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crita12. A licença permitia a exploração para consumo próprio13 ou para venda14. O RF/1962 dispensava a licença ou certificados de exploração florestal no caso de explorações para consumo próprio ou artesanato feitas por rurais residentes fora das povoações comerciais ou classificadas (art. 100.º).

4. A integração do desenvolvimento sustentável e o seu enquadramento jurídico internacional Desde a sua introdução na política internacional pelo Relatório de Brundtland (1987) e no Direito Internacional pelos instrumentos da Conferência do Rio de Janeiro sobre o Ambiente e Desenvolvimento (1992), o desenvolvimento sustentável foi marcado por um elevado grau de indeterminação, o que motivou a Associação do Direito Internacional (International Law Association – ILA) a adotar a Declaração de Nova Deli sobre os Princípios de Direito Internacional referentes ao Desenvolvimento Sustentável15. Esses princípios já estavam previstos na Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano (1972)16. Nessa perspetiva, o desenvolvimento sustentável integra os princípios da equidade (intergeracional, equidade intrageracional, equidade inter-espécie) e da integração17/18. Estes princípios estão hoje reiterados em vários instrumentos internacionais quer vinculativos quer não vinculativos, dando corpo inclusive 12 Cf. arts. 72.º e 73.º do RF/1962. 13 As licenças para consumo próprio eram apenas permitidas aos serviços e organismos oficiais, autarquias locais e missões religiosas; proprietários com propriedades tituladas ou, pelo menos, reconhecidos notoriamente como tais pela autoridade; concessionários ou titulares de ocupações por licença, quando os terrenos estejam titulados ou, pelo menos, existam esboços devidamente aprovados pelos serviços geográficos e cadastrais (arts. 89.º, 90.º, 95.º a 99.º e 146.º do RF/1962). A licença para venda mostrava-se prevista nos arts. 101.º a 106.º do RF/1962. 14 Cf. arts. 101.º a 106.º do RF/1962. 15 INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION – New Delhi Declaration of principles of international law relating to sustainable development. New York, U.S.A: United Nations, 2002. [23.12.2020]. Disponível em http://www2.ecolex.org/server2neu.php/libcat/docs/LI/MON-070850.pdf. 16 SIMBA, Eduardo M. – Sustainable Development: From Stockolm Conference to Angolan and South African Oil and Mineral Legislation. Bloemfontein: University of Free State, 2011, p. 17. 17 A integração compreende a integração institucional e a coordenação institucional, bem como a integração jurídica no que toca a integração dos fatores económicos, social e ambiental nos instrumentos normativos e programáticos, como políticas, planos, programas, projetos e ações. 18 COELHO, Antonieta – Direito dos Recursos Naturais. Luanda: Edição de Autor, 2007, pp. 89 a 139, 272 a 318 e 421 a 445. ISBN 978-989-20-0759-5; SIMBA, Eduardo Mendes; SANTOS, Pedro Kinanga dos – Direito do Ambiente Angolano. Luanda: Ubi Uris, 2018, Volume 1, pp. 108 e 109. ISBN: 978-989-20-8745-0; KISS, Alexandre.; SHELTON, Dinah – International Environmental Law. 3rd. ed. Nairobi: UNEP, Division of Policy Development and Law, 2004. ISBN / ISSN 9280725580, p. 12.

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aos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). O foco fundamental do presente artigo consiste em indagar alguns problemas referentes à integração do desenvolvimento sustentável nos regimes contidos na LBFFS e no respetivo regulamento florestal.

5. Acesso e uso aos recursos florestais: generalidades O acesso aos recursos florestais integrantes do património florestal nacional nos termos da LBFFS depende dos fins a que os respetivos usos se destinam. Tratando-se de direitos sobre recursos florestais destinados a realizar fins de subsistência, o seu acesso é livre e gratuito, não carecendo de licença ou concessão e de pagamento de taxas ou quaisquer prestações19, como são os casos do direito de uso de subsistência e do direito de uso e fruição comunitários (embora este último nos induza para a ideia da sua afetação na realização de inclusive fins comerciais20). Tratando-se de direitos sobre os recursos florestais destinados a realizar fins comerciais ou outros que não sejam enquadrados nos fins de subsistência, o seu acesso faz-se mediante licença ou contrato de concessão e está sujeito ao pagamento de respetivas taxas florestais, como são os casos do direito de uso para fins especiais e do direito de exploração florestal21.

6. A integração institucional 6.1. O sistema de governação dos recursos florestais O sistema de governação dos recursos florestais caracteriza-se, por um lado, pelos mecanismos de coordenação institucional, como os instrumentos de gestão sustentável das florestas (nomeadamente as medidas de ordenamento florestal)22 e o Conselho Nacional de Proteção das Florestas e Fauna Selvagem 19 Os recursos florestais cortados ou colhidos do exercício dos direitos sobre eles são propriedade do titular do direito (art. 12.º, al. a), da LBFFS). 20 Apesar de os arts. 62.º, n.º 1, als. a) e b), da LBFFS e 20.º, n.º 1, als. a) e b), do Regulamento Florestal aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 171/18, de 23 de julho (RF), estabelecerem que o direito de uso de subsistência e o direito de uso e fruição comunitários são concedidos pelo Estado, entendemos que o acesso aos mesmos faz-se por força da lei, por não estarem sujeitos à licença ou concessão. 21 Cf. art. 62.º, n.º 2, da LBFFS. 22 As medidas de ordenamento florestal são os inventários florestais, planos florestais, planos de gestão florestais pelos titulares de direitos de exploração florestal, programa de combate a desertificação e efeitos da seca, estratégia nacional de povoamento e repovoamento florestal, planos de prevenção e combate às queimadas e incêndios florestais, estatística florestal, relatórios sobre o estado das florestas e os certificados de gestão sustentável dos produtos florestais (art. 9.º, n.º 1, als. a) a j), da LBFFS).

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como órgão de consulta do Presidente da República, enquanto titular do poder executivo em matéria de coordenação das medidas de exploração e proteção da fauna e flora selvagem23. Por outro lado, caracteriza-se ainda por algum grau de concentração e centralização, já que a reserva maior parte das atribuições e competências em matéria de governação e gestão de recursos florestais, incluindo o licenciamento e a concessão de direitos sobre esses recursos, à administração central do Estado, particularmente ao departamento ministerial que superintende as florestas (Ministério da Agricultura e Pescas), por delegação do titular do poder executivo24. Nessas atribuições e competências, está incluída a faculdade de decisão sobre o licenciamento das plantações florestais25 e o dever de controlo da tendência de perda da sua extensão florestal, contribuindo para o alcance das metas 15.1 e 15.2 dos ODS26. A primeira atribuição mostra-se especialmente desafiante considerando a extensão do território angolano (1.246.700 km2), num contexto em que as plantações florestais são determinantes para a conservação das florestas naturais, implementação da estratégia nacional de povoamento e repovoamento florestal. A gestão sustentável e eficiente dos recursos florestais depende também em grande medida da participação dos vários níveis de governação, inclusive da comunidade27. Por essa razão, a LBFFS deveria assegurar uma melhor repartição de atribuições e competências entre a administração central do Estado28 e a sua administração local ou autónoma, assegurando-se a sua conformidade com a perspectiva constitucional da descentralização e desconcentração administrativa. A LBFFS refere-se apenas aos Governos Provinciais como responsáveis pela coordenação e execução (art. 139.º, n.º 2), sem indicar os seus níveis e modos de 23 Cf. art. 140.º da LBFFS. 24 Cf. arts. 10.º, 19.º, 27.º, 33.º, n.º 4, 43.º a 47.º, 56.º, 61.º, n.º 2, 66.º, n.º 7, 67.º, n.º 2, 76.º, n.º 4, 81.º, n.º 3, 83.º, 87.º, n.º 2, 141.º, 142.º, n.º 1, 149.º, 158.º, n.º 2, 159.º, n.º 1, e 172.º, todos da LBFFS. 25 Cf. art. 81.º, n.º 3, da LBFFS. 26 Procura-se, nos termos da meta 15.1, “até 2020, assegurar a conservação, recuperação e uso sustentável de ecossistemas terrestres e de água doce interiores e seus serviços, em especial florestas, zonas húmidas, montanhas e terras áridas, em conformidade com as obrigações decorrentes dos acordos internacionais.” Até essa mesma data, a meta 15.2 ambiciona “[…] promover a implementação da gestão sustentável de todos os tipos de florestas, deter o desmatamento, restaurar florestas degradadas e aumentar substancialmente o florestamento e o reflorestamento globalmente”. 27 As comunidades rurais e os particulares, diretamente ou através de associações profissionais ou outras de defesa dos seus interesses, têm o direito de participar no processo de elaboração e de aplicação das medidas de ordenamento florestal, em especial dos planos de combate à desertificação e mitigação da seca (arts. 13.º e 14.º da LBFFS). 28 A lei deveria também proceder à transferência de algumas das competências da administração central do Estado para a administração indireta, no caso, o Instituto de Desenvolvimento Florestal (IDF).

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intervenção em matéria de coordenação e execução da lei29. Nos termos do RF, a administração local do Estado, incluindo o Governador Provincial, limita-se a emitir pareceres e declarações30 no procedimento de licenciamento e concessão florestal31. Na nossa ótica, a administração central e a administração indireta do Estado deveriam limitar a sua intervenção na planificação florestal nacional, elaboração do inventário florestal nacional e definição da quota anual de exploração florestal32, partilhando as competências de conceder direitos sobre recursos florestais com a administração local, pois só assim a atual classificação dos direitos sobre recursos florestais faria sentido. Os direitos sobre recursos florestais constituídos por contrato de concessão deveriam ser concedidos pela administração central ou indireta do Estado e os adquiridos mediante licença de exploração florestal deveriam ser constituídos pela administração municipal, devendo, neste último caso, a administração central limitar-se a fazer o controlo e a monitorizar as concessões e licenciamentos feitos. Um outro mecanismo de repartição de competências deveria consistir na classificação das florestas em florestas nacionais, florestas provinciais e florestas municipais consoante o interesse adjacente seja nacional, provincial ou municipal33.

6.2. A titularidade dos direitos sobre recursos florestais e a intervenção do Estado na atividade florestal Os direitos sobre recursos florestais propriedade do Estado podem ser constituídos a favor de pessoas singulares e coletivas angolanas (arts. 59.º, n.º 2, 63.º, n.º 1, e 71.º, n.º 1, da LBFFS). O conceito de empresa angolana estabelecido no art. 19.º, n.º 1, da LFEPA34 é relevante para afirmar a possibilidade de as pessoas estrangeiras exercerem a atividade florestal nos casos em que se associem a 29 Entretanto, o art. 12.º, al. b), da Lei n.º 15/16, de 12 de setembro (Lei da Administração Local do Estado - LALE), deixou de considerar o Governo Provincial como órgão executivo e deliberativo, transferindo a maior parte das suas atribuições e competências para as administrações municipais, incluindo em matéria de concessão de terrenos. 30 Cf. arts. 66.º, n.os 5 e 6, 77.º, n.º 1, al. c), e n.º 5, 87.º, n.º 1, al. b), e 95.º, n.º 1, al. a), do RF. 31 Esse facto mostra-se redutor das funções da administração local, que se encontrará mais próxima da população, e, por isso, estará mais bem posicionada para garantir uma gestão mais eficaz e eficiente dos recursos florestais existentes nas respectivas circunscrições administrativas. 32 Cf. arts. 27.º, 51.º, 52.º, 56.º e 61.º da LBFFS e arts. 10.º, 35.º, 41.º e ss. do RF. 33 Assim, as competências de concessão no caso de florestas nacionais seriam da administração central, de florestas provinciais seriam do Governador Provincial e de florestas municipais seriam da administração municipal ou da autarquia (SIMBA, Eduardo Mendes – Direito dos Recursos Naturais. Luanda: Ubi Iuris, 2019, pp. 210-12, ISBN: 978-989-20-8742-9). 34 Lei do Fomento do Empresariado Privado Angolano (Lei n.º 14/03, de 18 de julho).

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pessoas angolanas, detendo nessa associação uma participação igual ou inferior a 49% do respetivo capital social35. O Estado também pode, através de empresas suas, participar no capital social das empresas titulares de direitos de exploração florestal, desde que não detenha menos do que 10% do respetivo capital social (arts. 63.º, n.º 2, e 71.º, n.º 3, da LBFFS)36. Por Decreto Presidencial n.º 196/17, de 31 de agosto, foi criada a Empresa Pública Florestal Madeiras de Angola (MADANG-EP), que tem por objeto a gestão de participações públicas nas atividades de exploração florestal37. A intervenção do Estado na economia como agente económico cria vários entraves ao desenvolvimento da iniciativa económica privada e agrava as falhas de mercado verificadas em vários setores de atividades económicas. Por esta razão, defendemos que a intervenção do Estado na economia deveria restringir-se à coordenação do processo de desenvolvimento económico, regulação mínima e cobrança de impostos. A intervenção da MADANG-EP em representação do Estado na parceria com as concessionárias de direitos de exploração florestal através da participação não inferior a 10%, nos termos do art. 71.º, n.º 3, da LBFFS, não levanta muita discussão, por estar legalmente prevista38. Mas é controversa a reserva de 30% da quota anual de corte de cada província à MADANG-EP, por constituir uma limitação feita por via regulamentar à iniciativa económica privada e à livre concorrência39. Para a exploração desta reserva, a MADANG-EP pode estabelecer parcerias público-privadas, nas quais, no caso de envolver pessoas estrangeiras, o capital social da nova sociedade comercial será repartido na seguinte proporção: a) participação de até 30% a favor da MADANG-EP; b) participação de 19% a favor de parceiros nacionais; c) participação de 51% a favor do investidor estrangeiro40. Essa repartição de participação do capital social imposta por via 35 Cf. art. 71.º, n.º 2, da LBFFS. 36 A previsão legal sobre a existência de uma empresa pública de exploração de recursos florestais levanta o problema da sua conformidade com o modelo de desenvolvimento económico perfilhado na CRA, especialmente com os seus princípios informadores previstos no art. 89.º, n.º 1, nomeadamente: a) papel do Estado de regulador da economia e coordenador do desenvolvimento económico; b) livre iniciativa económica e empresarial; c) economia de mercado assente na sã concorrência, moralidade e ética; d) garantia da propriedade e iniciativa privadas; e) função social da propriedade; f) redução das assimetrias regionais e desigualdades sociais; g) concertação social; h) defesa do consumidor e do ambiente. 37 Cf. arts. 1.º e 5.º, n.º 1, do Estatuto da MADANG-EP, aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 196/17, de 31 de agosto . 38 Cf. art. 6.º, n.º 2, do Estatuto Orgânico da MADANG-EP. 39 A propósito, podem ler-se o art. 2.º do Decreto Presidencial n.º 196/17, de 31 de agosto, e os arts. 14.º, 57.º, 89.º, n.º 1, als. b) a d), e 164.º, al. c), da CRA. 40 Cf. arts. 7.º, n.os 1 e 4, do Estatuto Orgânico da MADANG-EP.

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regulamentar encerra um problema de constitucionalidade e outro de legalidade. O primeiro prende-se com o facto de não se conformar com os princípios da igualdade formal e da igualdade material que estabelecem um tratamento igual ou preferencial a favor dos nacionais em caso de concorrência com estrangeiros, principalmente quando se trata de explorar os recursos naturais da nação41. O problema legal é da sua desconformidade com os arts. 63.º, n.º 1, 71.º, n.º 2, da LBFFS e 19.º, n.º 1, da LFEPA, que exigem uma participação de pessoas estrangeiras de até 49% do capital social da sociedade comercial para que esta preencha o requisito subjetivo de ser pessoa coletiva angolana, necessário para adquirir direito de exploração florestal.

7. A integração normativa Como forma de integrar o fator ambiental do desenvolvimento sustentável nas atividades florestais, a LBFFS obriga o Estado a fixar anualmente os contingentes (quantidades máximas) de cortes ou colheitas de produtos florestais, bem como o período anual de repouso vegetativo em que é proibida a exploração florestal.

7.1. Direitos de exploração florestal empresarial Quanto à integração normativa, a LBFFS assegura a sua articulação com a legislação ambiental, nomeadamente a Lei n.º 5/98, de 19 de junho (Lei de Bases do Ambiente, doravante LBA), e Decreto Presidencial n.º 117/20, de 22 de abril42, integrando o fator ambiental e social do desenvolvimento sustentável no exercício da atividade florestal, ao sujeitar a concessão do direito de exploração florestal empresarial apenas às pessoas que demonstrem idoneidade, capacidade técnica e financeira para o tipo de exploração que pretendem efetuar (art. 71.º, n.º 1, da LBFFS). Para aferir a idoneidade, o RF exige que os candidatos à concessão florestal apresentem no respetivo procedimento um plano de povoamento e repovoamento florestal, licença ambiental, estudo de impacte ambiental e o

41 Cf. arts. 21.º, al. g), 23.º, 89.º e 90.º da CRA. A igualdade formal não permite que a legislação ordinária e regulamentar estabeleça um tratamento mais favorável aos estrangeiros em detrimento dos nacionais. Pelo contrário, por aplicação da igualdade material, o tratamento dos nacionais na legislação ordinária e regulamentar deve sempre ser mais favorável, não sendo constitucionalmente admitida uma discriminação negativa dos nacionais. Ainda do ponto de vista constitucional, esta disposição parece ser susceptível de se confrontar com a soberania económica do Estado exercida pelos seus cidadãos. 42 O Decreto Presidencial n.º 117/20, de 22 de abril, aprova o Regulamento sobre a Avaliação de Impacte Ambiental e o Procedimento de Licenciamento Ambiental.

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plano de exploração florestal (arts. 65.º, n.º 5, al. b), 66.º, n.º 1, als. c) a e) e i), n.º 10, als. a), c), f) e h), e 77.º, als. d), f) e j), do RF)43. O direito de exploração florestal empresarial pode ser constituído mediante contrato de concessão ou licenças (art. 74.º, n.º 1, als. a) e c) a e), da LBFFS)44. A licença tem duração anual prorrogável por período igual e o contrato tem a duração de 25 anos prorrogáveis por períodos iguais ou menores45. Contrariamente à duração da licença, o prazo de duração do contrato assegura o uso sustentável dos recursos florestais, por garantir a manutenção da viabilidade da empresa a longo prazo. Situação que incentiva a gestão racional dos recursos florestais, por ser este o seu principal ativo, ao mesmo tempo para que garante a manutenção de empregos e da satisfação das necessidades. 43 Ainda quanto à idoneidade, exige-se o comprovativo de inscrição da repartição fiscal local, declaração de sujeição às leis vigentes e tribunais nacionais em caso de litígios, a declaração de não devedor fiscal, a declaração bancária e o estudo de viabilidade técnico-económico e financeira que ateste a capacidade técnica e financeira. 44 O direito de exploração florestal está consagrado nos arts. 68.º e ss. da LBFFS e 30.º e ss. do RF e confere ao seu titular o uso e fruição de recursos florestais para fins lucrativos, estando o seu conteúdo integrado pelas seguintes faculdades: a) exclusividade de exploração dos recursos florestais previstos no plano de gestão aprovado, na área e prazos estabelecidos no contrato de concessão ou licença; b) propriedade dos recursos florestais colhidos ou cortados no âmbito da concessão ou da licença. A LBFFS não estabelece critérios materiais objetivos que permitem distinguir o direito de exploração florestal empresarial constituído por contrato do direito de exploração florestal constituído mediante licença. Contudo, o Regulamento Florestal estabelece três critérios para definir os casos em que o direito de exploração empresarial é constituído por contrato e os casos em que é constituído mediante licença. De acordo com o critério das quantidades de produtos florestais a explorar, o direito de exploração florestal é constituído mediante licença, desde que aquelas não sejam superiores a: a) 500 m3 de madeira em toro; b) 1.000 esteres de lenha ou de materiais de construção rural; c) 25.000 kg de carvão vegetal; d) 100 feixes de varas, capim, estacas, cascas, bordão, fibras espontâneas e outros produtos florestais lenhosos, quando se destinem a fins comerciais; e) 500 unidades de bambu, postes, esteios e outros produtos florestais lenhosos e não lenhosos, quando se destinem a fins comerciais; f) 500 kg de produtos florestais não lenhosos (art. 74.º, n.º 2, do RF). Por exclusão de partes, a exploração florestal acima dessas quantidades é feita em sede do contrato de concessão florestal (art. 74.º, n.º 3, do RF). Quanto ao critério da dimensão da área de concessão, o direito de exploração florestal empresarial sujeito a licença não pode ser constituído sobre áreas superiores a 1.000 hectares (art. 75.º do RF). Já o direito de exploração florestal constituído por contrato não está sujeito a um limite máximo nem a um limite mínimo, devendo casuisticamente ser determinado em função da capacidade de exploração da empresa e das características da floresta (art. 63.º, n.º 3, do RF). Quanto ao critério do local da atividade de exploração florestal, o direito de exploração florestal empresarial sob contrato é exercido apenas em florestas de produção e reservas florestais extintas ou desativadas, enquanto o direito de exploração florestal empresarial sob licença pode ser exercido em florestas de produção e em florestas de anteriores concessões ou reservas florestais extintas ou desativadas, desde que, nestes dois últimos casos, a extração pretendida não afete significativamente a capacidade de recuperação do povoamento dessas concessões ou reservas florestais (arts. 63.º, n.º 1, e 75.º, als. a) e c), do RF). 45 Cf. arts. 77.º, n.º 2, da LBFFS, 58.º, al. a), 67.º, n.º 1, 73.º, n.º 1, e 74.º, n.º 1, do RF.

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7.2. Direitos de exploração florestal comunitário O direito de exploração florestal comunitário está regulado nos arts. 72.º e 76.º da LBFFS e arts. 83.º a 90.º do RF e tem por objeto os recursos florestais que se encontram nos terrenos rurais comunitários sobre os quais os respetivos titulares têm o direito do domínio útil consuetudinário46. São titulares desse direito as comunidades rurais, as suas famílias e os seus membros, titulares do direito do domínio útil consuetudinário sobre os terrenos rurais comunitários47. O acesso ao direito de exploração florestal comunitário não é livre porque está sujeito a licença emitida pelo Ministério responsável pelo setor florestal, o que, do ponto de vista da integração do desenvolvimento sustentável, representa um certo grau de concentração que dificulta a possibilidade de as comunidades ou seus membros adquirirem tal licença, embora a LBFFS se refira a um procedimento simplificado. A licença permite ao seu titular apenas o direito de colher ou cortar as seguintes quantidades de recursos florestais: a) 500m3 de madeira em toro; b) 1.000 esteres de lenha ou de materiais de construção rural; c) 25.000 kg de carvão vegetal; d) 100 feixes de varas, capim, estacas, cascas, bordão, fibras espontâneas e outros produtos florestais lenhosos; e) 500 unidades de bambu, postes, esteios e outros produtos florestais; f) 500 kg de produtos florestais não lenhosos (arts. 76.º, n.º 5, da LBFFS e 85.º, n.os 3 e 4, do RF). A licença de exploração florestal comunitária é anual (art. 76.º, n.º 5, da LBFFS), mas nem a lei nem o RF preveem as condições para a sua renovação. Do ponto de vista da sustentabilidade, da realização da justiça social e do direito de todos participarem do processo de desenvolvimento, a duração anual do direito de exploração florestal comunitário é bastante curta, na medida em que a lei estabelece um prazo de 25 anos para o direito de exploração empresarial, mas sujeita as comunidades rurais e os seus membros a adquirem anualmente licenças, 46 O direito de exploração florestal comunitário pode ser confundido com o direito de uso e fruição comunitário porque é também conferido às comunidades rurais, as suas famílias e membros, titulares do direito do domínio útil consuetudinário sobre os terrenos rurais comunitários. Deve, por isso, fazer-se uma distinção: o direito de uso e fruição adquire-se por força da lei e visa, por regra, assegurar a realização de fins de subsistência dos respectivos titulares e das suas famílias. Distintamente, o direito de exploração florestal comunitário adquire-se mediante licença de exploração comunitária anual e destina-se a realização de fins comerciais. Ou seja, o direito de exploração florestal comunitário permite ao seu titular a colheita e corte de recursos florestais para a sua comercialização. 47 O RF limita o acesso ao direito de exploração florestal comunitário às pessoas singulares que residam na comunidade por um período ininterrupto de mais de 10 anos (art. 84.º, n.º 2). Esta limitação não está prevista na LBFFS que, de certo modo, pode entrar em contradição com o regime do direito do domínio útil consuetudinário previsto no art. 37.º da Lei n.º 9/04, de 9 de novembro (Lei de Terras – LT) e com costume, que, nos termos do art. 7. da CRA, tem valor equiparado à lei. O conceito de família e membro de uma comunidade rural deve ser aferido em sede do costume, não cabendo ao regulamento definir quem pode ser considerado membro de uma comunidade rural.

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mesmo tendo um direito acessório – o designado domínio útil consuetudinário que, nos termos do art. 55.º, n.º 1, al. b), da LT, é perpétuo. Esse argumento aplica-se também à limitação de quantidades de recursos florestais permitidas pelo titular da licença da exploração florestal comunitária, na medida em que, no direito de exploração florestal empresarial constituído por contrato de concessão, permite-se a exploração de quantidades superiores a estas, o que pode traduzir a ideia de discriminação das comunidades rurais e dos seus membros que, por sinal, são detentores de direitos económicos e sociais iguais a todos.

7.3. Direito de uso de subsistência e direito de uso e fruição comunitário O RF unificou os regimes do direito de uso de subsistência e do direito de uso e fruição comunitário nos arts. 21.º a 28.º do referido regulamento, embora a LBFFS preveja tratamento diferenciado nos arts. 65.º e 66.º, respetivamente. A consequência dessa unificação de regimes traduz-se na restrição da titularidade do direito de uso de subsistência aos membros de uma comunidade rural, tal como acontece com o direito de uso e fruição comunitário. Entretanto, consideramos que, para ser titular do direito de uso de subsistência, a pessoa não necessita de ser membro ou residir numa comunidade rural, bastando ser pessoa singular e fazer a colheita ou corte de recursos florestais para o seu consumo e o da sua família. Os direitos de uso de subsistência e de uso e fruição comunitário, por estarem vinculados aos fins de subsistência48, são mecanismos jurídicos que garantem a materialização de equidade intrageracional, integrando o fator social na política florestal e realizando o direito ao mínimo de existência ligado ao direito à vida e à inerente dignidade da pessoa humana. Por isso, o acesso a esses

48 Os recursos adquiridos pelo exercício do direito de uso de subsistência não podem ser comercializados nem podem circular fora da comunidade de onde foram extraídos (arts. 65.º, n.º 3, 66.º, n.º 1, da LBFFS e 25.º do RF). Existe, porém, a exceção assente na possibilidade que a LBFFS confere aos respetivos titulares de comercializarem os recursos florestais não lenhosos e nos casos de artesanato. Nestes casos, o art. 26.º do RF permite a sua comercialização entre vizinhos, desde que seja feita no interior da comunidade a que pertence o vendedor e se respeite os usos e costumes locais. O art. 27.º, n.º 1, do RF permite a comercialização das peças de artesanato produzidas por membros da comunidade, mas não dos recursos florestais usados para a produção das peças do artesanato. Esta comercialização não se limita ao interior da comunidade, podendo ser feita fora desta. O RF também permite a comercialização dos produtos florestais resultantes de derrubas e desmatamento para agricultura de subsistência, desde que não exceda: a) 2 sacos de carvão; b) 1 estere de lenha, ou 1 estere de estacas, varas ou material de construção equivalente (art. 27.º, n.º 2, do RF). Neste caso, a comercialização pode ser intra e extracomunitária, dispensandose licença, guia de trânsito e certificado de origem (vide a mesma disposição legal).

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direitos é livre e gratuito e não está sujeito ao período de repouso vegetativo49. Mais acresce que os direitos em análise autorizam aos seus titulares o abate ou a colheita de recursos florestais nos terrenos rurais50, independentemente de estes terrenos serem comunitários, do domínio público ou privado do Estado51. O direito também pode ser exercido em terreno sob regime de concessão florestal, desde que o respetivo titular resida na comunidade onde está localizada essa concessão52. Os referidos direitos incluem ainda o direito de derruba e desmatamento para a agricultura de subsistência53. O exercício deste direito de derruba está, porém, sujeito a algumas limitações, como sejam: a obrigação de o camponês comunicar a pretensão de derruba ou desmatamento ao agente de fiscalização ou ao técnico da Estação de Desenvolvimento Florestal mais próximo, depois de consulta interna entre o camponês, as autoridades tradicionais e o observador comunitário (art. 99.º, n.os 1 e 2, do RF); apenas se permite derruba ou desmatamento de área não superior a 1 hectares por família, estando os limites de áreas superiores sujeitos à autorização (art. 100.º, al. a), do RF); e as derrubas ou desmatamentos em novas áreas florestais estão sujeitos à autorização, caso não tenham passado 8 anos consecutivos de cultivo na parcela anteriormente utilizada (art. 100.º, al. b), do RF). Estas duas últimas limitações regulamentares não estão em consonância com o espírito da LT, que estabelece o limite mínimo de 2 hectares de acesso aos terrenos rurais54 como forma de garantir às famílias terra suficiente para produzirem bens necessários para o seu consumo e melhorarem a sua condição de vida. Com a concentração administrativa na autorização de derrubas e desmatamento e as barreiras burocráticas aliadas às dificuldades em termos de capacidade institucional da administração florestal em Angola, sem desprimor da necessidade de uma melhor gestão sustentável dos recursos florestais, entendemos que as disposições do RF não permitem a concretização da in49 O direito de uso e fruição comunitário tem duração correspondente ao domínio útil consuetudinário, isto é, duração perpétua, nos termos dos arts. 66.º, n.º 5, da LBFFS e 55.º, n.º 1, al. c), da LT. Este direito é intransmissível, impenhorável e imprescritível. 50 O direito destina-se à realização de fins alimentares, medicinais, de habitação, energéticos e culturais (arts. 65.º, n.º 2, e 66.º, n.º 1, da LBFFS e 21.º, n.º 1, al. a), do RF). O RF também permite a obtenção de matéria-prima florestal para a construção, mobiliário rural e peças de artesanato (art. 21.º, n.º 1, al. b)). Entretanto, o RF não explica o conceito de mobiliário rural e como distingui-lo do mobiliário urbano. A ideia de mobiliário rural confirma a restrição do exercício do direito de uso de subsistência às pessoas singulares residentes nas zonas rurais, operada pelo RF, o que pode não estar conforme a CRA e LBFFS. 51 Cf. art. 21.º, n.º 2, als. a) e b), do RF. 52 Cf. art. 21.º, n.º 2, al. c), do RF. 53 Cf. art. 21.º, n.º 1, al. c), do RF. 54 Art. 43.º, n.º 2, da LT.

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tegração do desenvolvimento sustentável, prejudicando também a possibilidade de as pessoas saírem do ciclo da pobreza.

8. Conclusões: os desafios da implementação da LBFFS e do RF A LBFFS apresenta um regime que, em geral, se ajusta ao sentido e conteúdo atual do desenvolvimento sustentável, assegurando a integração de fatores económicos, sociais e ambientais no exercício dos direitos sobre recursos florestais. Embora represente alguma evolução, subsiste na LBFFS e, principalmente, no RF uma construção filosófica ainda enraizada na matriz do RF/1962, estabelecendo um tratamento privilegiado às grandes concessões florestais e impondo fortes restrições ao exercício das pequenas explorações florestais. Dentro destas, destacamos em particular o direito de exploração florestal comunitário, afetando negativamente a integração dos fatores económicos e sociais do desenvolvimento sustentável. Apesar disso, como dissemos já, verificamos alguma evolução porque a legislação colonial apenas permitia às comunidades rurais a exploração florestal para consumo próprio e para artesanato. O conteúdo da LBFFS e do RF encerra grande complexidade técnica em áreas que constituem enormes desafios para a administração fundiária e florestal e para os operadores florestais. E não poderia ser de outra forma, sob pena de ineficácia e ineficiência da sua implementação. O RF, ao instituir procedimentos exigentes e sofisticados para uma melhor gestão sustentável dos recursos florestais, confirma a necessidade de uma melhor capacitação técnica, administrativa e organizacional dos serviços públicos responsáveis pela implementação da LBFFS. O sucesso da implementação das LBFFS e respetivos regulamentos passará necessariamente pela efetiva adoção e execução dos instrumentos de planificação territorial, florestal e faunística, pela formação e capacitação dos agentes administrativos do sistema de gestão e fiscalização florestal, bem como dos agentes económicos intervenientes no setor florestal. Nesta vertente, o Instituto de Desenvolvimento Florestal carece de uma urgente capacitação institucional, de modo a corresponder às exigências impostas pela LBFFS. Esta capacitação deve também ser extensiva à Administração Municipal e Comunal e às comunidades locais existentes nas áreas ricas em recursos florestais. Para prevenir eventuais conflitos de direitos e no uso dos recursos naturais, é importante a reorganização dos serviços de cadastro fundiário, que deve ser único e assegurar a integração dos vários usos das terras. Ou seja, o cadastro fundiário deve permitir não só a inscrição de direitos constituídos sobre a terra, mas também de direitos constituídos sobre os recursos naturais, maxime florestais existentes numa determinada área. 32


Regimes de acesso e uso de recursos florestais no quadro da integração do desenvolvimento sustentável

Finalmente, consideramos que a desconcentração e a descentralização administrativa através de uma adequada repartição de atribuições e competências entre os diversos níveis de administração constituem a chave para uma efetiva gestão sustentável dos recursos florestais e integração do desenvolvimento sustentável das atividades inerentes. A descentralização e a desconcentração também asseguram a efetiva partilha dos benefícios resultantes da exploração florestal entre o centro e o local de onde os recursos florestais são extraídos. Por isso, torna-se pertinente que algumas decisões referentes aos recursos florestais sejam tomadas localmente e, para o efeito, deve conferir-se à administração local meios para uma capacitação não só institucional, infraestrutural e humana.

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O USO DE MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS: NO BRASIL EXISTE UMA RESERVA DE JURISDIÇÃO EM CAUSAS QUE ENVOLVEM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA?

Fernanda Karoline Oliveira Calixto1

1. Introdução Versa o presente artigo acerca da existência ou não de uma reserva de jurisdição nas demandas em que é litigante a Administração Pública. A questão é suscitada no contexto do reconhecimento do poder da Administração Pública de contratar e do dever de promover o consenso e a pacificação das relações sociais. Este ponto se coloca como a primeira barreira no esforço de estabelecer o conteúdo do critério de mediabililidade que deve ser seguido pela Administração Pública brasileira, haja vista que a legislação sobre o tema aponta simploria1 Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas pela UMINHO (Portugal). Mestre em Direito Público pela UFAL. Pós-Graduada em Direito Administrativo e em Direito do Controle e Combate à Corrupção. Contato: fernanda.koc@gmail.com.

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mente que são passíveis do procedimento autocompositivo os direitos disponíveis e os indisponíveis passíveis de transação, sem aclarar o conteúdo sintético do dispositivo. Estas normas e as frequentes menções à indisponibilidade do interesse público nos fazem questionar: quais lides não podem ser solucionadas por meio de instrumentos consensuais de resolução de controvérsias em ambiente externo ao do Poder Judiciário? E, ao nos questionarmos sobre isso, indagamos se há uma reserva de jurisdição na ordem jurídica brasileira que admita a Administração como litigante. Daí que este artigo, objetiva, sucintamente, analisar o conceito de interesse público, debater como o uso de mecanismos consensuais se presta à consecução do interesse público e perquirir sobre a existência de reserva de jurisdição que tenha em conta tão-somente a participação estatal. Para tanto, o artigo utiliza o método jurídico dedutivo e se vale de pesquisa bibliográfica e documental, especialmente de normas jurídicas e jurisprudência. O trabalho está organizado em quatro partes, conforme os objetivos da investigação. Na primeira, se contextualiza o uso de meios consensuais de solução de controvérsias na Administração Pública brasileira e sua fundamentação legal. Na segunda parte, consta a definição de reserva de jurisdição em conformidade com o pensamento de Canotilho e de Paulo Rangel. Na terceira parte, discute-se o conceito de interesse público e o que significa adjetivá-lo de indisponível. Por fim, busca-se na última parte expor, a partir dos levantamentos realizados, a não existência de ações necessárias em que a Administração Pública precise figura no polo ativo, bem como a completa aplicabilidade do princípio dispositivo aos Entes Públicos.

2. Meios adequados de solução de controvérsia no âmbito da Administração Pública brasileira A solução pacífica de controvérsias encontra-se expressa na ordem jurídica brasileira desde a Constituição Federal de 1988, que afirma ser um dos objetivos de nossa República a solução pacífica de controvérsias2. Mas, somente a partir da constatação da crise do Poder Judiciário, e da consequente necessidade de oferecer resposta ao grande volume de demandas em que a Administração Pública é parte, é que a prática administrativa brasileira 2 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Art. 4.º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: [...] VII – solução pacífica dos conflitos;”

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O uso de meios autocompositivos de solução de controvérsias: no brasil existe uma reserva de jurisdição em causas que envolvem a administração pública?

tem colocado em ação as previsões normativas. Há de se ressaltar que estas, inclusive, têm-se multiplicado desde a década de 19903. O primeiro dos meios ditos alternativos de solução de controvérsia já consagrados (arbitragem, conciliação, mediação e negociação) a ser regulamentado na ordem jurídica brasileira pós-redemocratização de 1988 foi a arbitragem, cuja natureza é heterocompositiva4. Na arbitragem, as partes elegem um terceiro imparcial, que se substituirá à vontade das partes e proferirá uma decisão que colocará fim ao conflito. Se no passado já se discutiu a natureza jurisdicional da arbitragem no Brasil, hoje não se discute a natureza nem a eficácia para dirimir divergências relacionadas com direitos patrimoniais disponíveis, sem que se vislumbre, nessa hipótese, qualquer ofensa a uma pretensa reserva de jurisdição estatal5. Foi a Lei 9.307/1996, de 23 de setembro de 1996, que regulamentou o uso da arbitragem no Brasil, inclusive pela Administração Pública, desde que seja ela exclusivamente de direito (art. 1.º, §§ 1.º e 2.º, e art. 2º, § 3.º)6. A norma estabelece critérios de arbitralidade objetiva e subjetiva que se aplicam indubitavelmente à Administração Pública. Quando nos referimos à mediação e conciliação fora do ambiente judiciário estatal, nos deparamos com um incremento da autonomia das partes que costuma ser visto com ainda mais desconfiança do que a arbitragem. Embora tenham as suas particularidades, conciliação e mediação encontram semelhança por incluírem a participação de um terceiro que auxiliará na 3 Segundo levantamento realizado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) nomeado “O uso da Justiça e o Litígio No Brasil”, apontando que “em oito das onze Unidades da Federação pesquisadas, o Poder Público municipal, estadual e federal concentra a maior parte das ações iniciadas no Primeiro Grau (parte do polo ativo), no grupo dos 100 maiores litigantes” (BRASIL. AMB – O uso da Justiça e o Litígio No Brasil. 2018, p. 12. Disponível em: https://www.amb.com.br/ wp-content/uploads/2018/05/Pesquisa-AMB-10.pdf. Acesso em 05 de jan. 2020). 4 Importa ressaltar que já se mencionava em meados do século XIX, na doutrina brasileira, o uso de arbitragem pela Administração Pública, ainda que a posição fosse contrária, conforme BARROS, Henrique do Rego – Apontamentos sobre o contencioso administrativo e sobre os privilégios e prerrogativas da administração nos contractos e transacções que celebra como poder público. Rio de Janeiro: Laemmer, 1874, pp. 194-264. 5 Em Portugal, Pedro Gonçalves da Costa utiliza o termo “estadual”. GONÇALVES, Pedro Costa – “Administração Pública e arbitragem: em especial o princípio legal da irrecorribilidade de sentenças arbitrais”. In CORREIA, Fernando Alves; SILVA, João Calvão da; VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos; CANOTILHO, Joaquim José Gomes; CARDOSO A COSTA, José Manuel M. – Estudos em homenagem a António Barbosa de Melo. Coimbra: Almedina, 2013, pp. 777-801. 6 Importa ressaltar que, embora a jurisprudência já reconhecia desde antes da emissão da norma a Administração Pública como um ente capaz de ser parte em arbitragem, somente em 2015, com a Lei n.º 13.129, de 26 de maio, houve a inclusão expressa da Administração Pública nesta lei.

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condução de um processo autocompositivo de resolução das controvérsias instaladas. O conciliador ou o mediador não possuirão em sua atividade qualquer grau de vinculação quanto à decisão final adotada pelas partes, embora se possa reconhecer na atuação do conciliador um posicionamento mais direcionador de soluções, enquanto o mediador procurará fazer com que as soluções sejam alcançadas pelas partes mediadas. Costuma-se reconhecer à mediação especial adequação aos casos em que já há vínculo ou relação entre as partes e é do interesse destas preservar e/ou restaurar tais relacionamentos, apesar da controvérsia em que se inserirem. As técnicas de negociação fazem parte de ambos os processos, mas, principalmente, da mediação. Em termos normativos, a Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesse, materializada na Resolução n.º 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, se apresenta como relevante marco, dentro das instâncias judiciárias, de promoção de soluções consensuais de controvérsias7. No entanto, no que diz respeito ao uso de tais mecanismos pela Administração Pública, determinações legais assertivas quanto à aplicação à Administração Pública afloram no âmbito nacional somente a partir de 2015, com a Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015 (Novo Código de Processo Civil) e a Lei n.º 13.140, de 26 de julho de 2015 (Lei de Mediação)8. Em ambas as leis há previsões expressas quanto ao dever estatal de buscar as alternativas consensuais dentro e fora do Poder Judiciário. Neste último caso através da instalação de Câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública de cada um dos Entes da Federação (art. 32 da Lei de mediação).

7 Art. 1.º: “ Aos órgãos judiciários incumbe, nos termos do art. 334 do Novo Código de Processo Civil combinado com o art. 27 da Lei de Mediação, antes da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão” (redação dada pela Emenda n.º 2, de 08.03.16). Disponível em: http://www.cnj.jus.br/ busca-atos-adm? documento=2579. Acesso em: 28 nov. 2019. 8 Código de Processo Civil Brasileiro de 2015: Art. 3.º, § 2.º: “O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos” e § 3.º: “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”; Art. 175: “As disposições desta Seção não excluem outras formas de conciliação e mediação extrajudiciais vinculadas a órgãos institucionais ou realizadas por intermédio de profissionais independentes, que poderão ser regulamentadas por lei específica”; e Art. 344: “Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.”

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O uso de meios autocompositivos de solução de controvérsias: no brasil existe uma reserva de jurisdição em causas que envolvem a administração pública?

Os limites objetivos desta mediação estão dispostos para todos os Entes e pessoas, públicas ou privadas, no art. 3º da Lei de Mediação9. Já neste dispositivo encontramos importante direcionamento dos sujeitos ao Poder Judiciário, fazendo crer existir uma reserva de jurisdição, ao menos quanto à última palavra, sobre direitos que a lei nomeia serem indisponíveis, mas transigíveis. A segunda questão que a mesma norma suscita é a da definição dos mencionados direitos, especialmente quando se trata da Administração Pública e do famoso postulado da indisponibilidade do interesse público. Importa ressaltar que, a par das modalidades acima referidas, também se conhece e se utiliza com razoável frequência no Brasil o negócio jurídico bilateral denominado transação extrajudicial10, pelo qual “as partes interessadas, fazendo concessões mútuas, previnem ou extinguem obrigações litigiosas ou duvidosas”11. Esta parece ser a feição geral que civilistas e processualistas atribuem ao instituto. Neste sentido, Carnelutti resume bem: “a transação é a solução contratual da lide [...] equivalente contratual da sentença”12.

9 Art. 3.º: “Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação. § 1.º: A mediação pode versar sobre todo o conflito ou parte dele. § 2.º: O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público”. 10 Temos aqui um procedimento extrajudicial, que pode acontecer antes da instauração de um processo contencioso no Judiciário ou mesmo após a instauração do processo contencioso no Judiciário, mas sempre ocorre fora deste. É um procedimento que se faz administrativamente, seja como meio de prevenir litígios, seja como meio de pôr fim a litígios já instaurados e não se confunde com a conciliação ou mediação, uma vez que não há terceiro a conciliar ou mediar as partes. Há somente a Administração Pública e o particular atuando consensualmente. Nas palavras de Bruno Greco-Santos, in Transação extrajudicial na Administração Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 150, “Assim, demonstrada a vantajosidade para o Estado na firmatura de transação extrajudicial, não havendo derrogação do direito administrativo em relação a tal possibilidade, a Administração se nivela ao particular e como ele age. É de se considerar, pois, diante de todo o exposto, que ainda que a transação administrativa seja, em sua lógica e em seu procedimento, diversa da transação entabulada entre particulares, seus efeitos são correspondentes: visa-se, pela reparação pré-contenciosa, à terminação definitiva do litígio por extinguir o interesse prático no provimento jurisdicional, poupando-se assim o recurso aos tribunais”. 11 DINIZ, Maria Helena – Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 605. 12 CARNELUTTI, Francesco – “Sulla causa della transazione”. Rivista di Diritto Comerciale. Roma, 1914, p. 575.

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O destaque para a transação ocorre ao verificarmos que nela não há necessidade de participação de terceiros, além das próprias partes, o que destaca o seu caráter consensual de máximo protagonismo das partes. A sua admissão no Brasil gera debate, que tem como pano de fundo sempre o regime jurídico-administrativo e a indisponibilidade do interesse público face a tal instituto, mormente a partir do debate acerca de sua natureza, quando manejado pela Administração Pública13. Uma vez conhecidos, ainda que em termos vestibulares, os institutos aptos à resolução de controvérsias pela Administração Pública fora do Poder Judiciário, nos questionamos se haveria alguma reserva de jurisdição subjetiva ou objetiva para solução de lides que tenham como parte sujeitos assim identificados.

3. A reserva de jurisdição Cuidar da temática da reserva de jurisdição implica estudar a básica noção de separação dos poderes em estruturas institucionais organizadas para evitar o cometimento de excessos e abusos do poder que, em última instância, é uno e pertence ao povo, nos termos da Constituição Brasileira de 198814.

13 Questiona-se a doutrina quanto à natureza de contrato ou ato administrativo. E, sendo contrato, se seria administrativo ou contrato da Administração, distinções estas relevantes quando se trata de afirmar que se submete ou não ao regime jurídico-administrativo. Adotamos neste trabalho a concepção segundo a qual o fato de ter suas origens no direito privado não retira do instituto da transação extrajudicial pela Administração o caráter de contrato Administrativo, o que não quer significar que haverá em todos os casos cláusulas exorbitantes. Em qualquer caso (contrato administrativo ou contrato da Administração), sendo a Administração Pública parte da avença, sua finalidade há de ser sempre a busca pelo bem jurídico interesse público. Para aprofundar a análise do instituto, em comparação inclusive com outras ordens jurídicas, ver: GREGO-SANTOS – op. cit. 14 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Art. 1.º: [...] Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

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Diversos poderiam ser os enfoques desta abordagem15. Optou-se por perquirir em que consiste a reserva de jurisdição para, a partir de então, analisar se há lides que não podem, em primeira mão, ficar a cargo da própria Administração Pública, devendo obrigatoriamente ser delimitadas pelo Poder Judiciário. Nos interessa observar se a presença da Administração Pública numa lide é fator, por si só, decisivo, para impor a resolução do conflito no âmbito do Judiciário. Para tanto, nos servimos do critério das duas palavras, conforme delineado por Joaquim José Gomes Canotilho16 e por Paulo Castro Rangel17. Conforme Joaquim José Gomes Canotilho18, a Reserva de Jurisdição não está restrita às estruturas e disposições explícitas constitucionais, mas se encontra intimamente relacionada com a noção de Estado de Direito e à Separação Constitucional de Poderes que implicam um dever estatal de oportunizar o acesso dos cidadãos à justiça de modo imparcial. Para tanto, o Poder Público deteria, em certas circunstâncias, os monopólios da primeira e da última palavra. O monopólio da última palavra pode ser facilmente identificado no princípio da inafastabilidade de jurisdição do direito constitucional brasileiro19, segundo o qual nenhuma ameaça ou lesão a direito pode ser suprimido da apreciação judicial. Neste sentido, assevera o autor: “o ‘monopólio da última palavra’ ou ‘monopólio dos tribunais’ significa, em termos gerais, o direito de qualquer indivíduo a uma garantia de justiça, igual, efetiva e assegurada através de ‘processo justo’ para defesa das suas posições jurídico-subjetivas. Esta garantia de justiça tanto pode ser reclamada em casos de 15 Uma análise costumeira deste tema na ordem jurídica brasileira é cotejar o conjunto de atos e procedimentos constitucionalmente previstos que só podem ser praticados pelo Poder Judiciário, em cotejo com a disposição constitucional brasileira que atribui às Comissões Parlamentares de Inquérito Poderes equivalentes aos do Judiciário. Observe-se o que diz o Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a celeuma: “EMENTA: [...] POSTULADO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE JURISDIÇÃO: UM TEMA AINDA PENDENTE DE DEFINIÇÃO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. O postulado da reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se haja eventualmente atribuído o exercício de “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”. STF (Pleno), MS 23452-RJ, Relator: Min. CELSO DE MELLO. Julgamento em 16 de setembro de 1999, pub. DJ 12/5/2000 PP-00020. 16 CANOTILHO, J. J. Gomes – Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 668 17 RANGEL, Paulo Castro – Reserva de Jurisdição. Sentido Dogmático e Sentido Jurisdicional. Lisboa: Universidade Católica, 1997, p. 64 18 CANOTILHO – op. cit., p. 668. 19 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “art. 5º. [...] XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”

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lesão ou violação de direitos e interesses dos particulares por medidas e decisões de outros poderes e autoridades públicas (monopólio da última palavra contra atos do Estado) como em casos de litígios entre particulares e, por isso, carecidos de uma decisão definitiva e imparcial juridicamente vinculativa (monopólio da última palavra em litígios jurídico-privados)”20.

Considerando a unicidade jurisdicional brasileira, não se discorda que o resultado de processos alternativos de solução de controvérsias, assim como o próprio procedimento podem ser levados à apreciação judicial para exercício do controle de legalidade e legitimidade dos atos e contratos administrativos típicos do controle externo da Administração Pública e não é este o ponto desta análise (monopólio da última palavra). Já o monopólio da primeira palavra, por implicar na exclusão legítima de qualquer outro pronunciamento cujo objetivo seja sanar a lide, interessa a este estudo, posto que poderia significar interdição da possibilidade do uso de meios consensuais de solução de controvérsias fora do Judiciário. Nas palavras de Canotilho21, há um monopólio da primeira palavra quando “em certos litígios, compete ao juiz não só a última e decisiva palavra, mas também a primeira palavra referente à definição do direito aplicável a certas relações jurídicas”. O exemplo utilizado pelo autor, ao afirmar que estaríamos sempre diante de matéria de especial relevância jurídica, é o da decretação de uma prisão, posto que “não existe qualquer razão ou fundamento material para a opção por um procedimento não judicial de decisão de litígios” e “é sempre inadmissível qualquer procedimento administrativo prévio”22. Este monopólio da função de julgar implica uma reserva absoluta da função de julgar, ao passo que o monopólio da última palavra seria sempre uma reserva relativa. A consequência de uma decisão administrativa em matéria com reserva jurisdicional absoluta seria a sua inconstitucionalidade. Neste sentido, Canotilho23: “A independência judicial postula o reconhecimento de uma reserva de jurisdição entendida como reserva de um conteúdo material funcional típico da função jurisdicional. Esta reserva de jurisdição atua simultaneamente como limite de atos legislativos e de decisões administrativas, tornando-os inconstitucionais quando tenham um conteúdo materialmente jurisdicional.” 20 CANOTILHO – op. cit., p. 668. 21 Idem, ibidem, p. 669 22 Idem, ibidem, p. 669. 23 Idem, ibidem, p. 664.

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O uso de meios autocompositivos de solução de controvérsias: no brasil existe uma reserva de jurisdição em causas que envolvem a administração pública?

A existência de reservas se coloca como técnica de organização política do Estado e não é neutra, como afirma Paulo Rangel24, para quem “a poucas matérias quadrará tão bem a ideia de reservas como à do desenvolvimento da atividade jurisdicional”25. Este reconhecimento nos leva a concluir que a fixação de reserva jurisdicional possui, mais do que uma caracterização que dependa da essencialidade da função, da pessoa em causa ou mesmo do objeto, um caráter de decisão política plasmada especialmente na Constituição.

4. O conceito de interesse público e sua indisponibilidade A supremacia e a indisponibilidade do interesse público são princípios comuns a diversos regimes jurídico-administrativos, com acepções, em alguma medida, próximas, mas que podem sofrer diferenciações a partir dos sistemas jurisdicionais que adotem. Ao se comparar com a lei portuguesa, por exemplo, devemos levar em conta o sistema de jurisdição dual, também adotado na França e na Itália, de onde o Brasil importou conceitos como o de interesse público primário e secundário, ao passo que o sistema constitucional brasileiro é inspirado no norte-americano e na sua unicidade jurisdicional. Assim, quaisquer comparações devem levar em consideração as múltiplas influências que estão na base do sistema jurídico brasileiro. Por certo que a definição do que seja este interesse público não é tarefa simplória26.

24 RANGEL – op. cit., pp. 30-31. 25 Idem, ibidem, p. 30-31. Ainda na acepção deste autor: “A consagração constitucional de reservas, nos termos expostos, vem a corresponder à necessidade de instituir poderes separados, num sentido que seja (de novo) simultaneamente ‘material’, ‘organizacional’ e ‘político’. Ou dito de outro modo, pela instituição de reservas constitucionais logra-se a realização do princípio da separação dos poderes, em sentido material, político e organizacional, a ponto de se poder afirmar, descontado que seja algum exagero, que a reserva é o novo nome da separação dos poderes”. 26 Só na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro, Letícia de Campos Velho Martel (“Indisponibilidade de Direitos Fundamentais: Conceito Lacônico, Consequências Duvidosas”. Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 11, n. 2, jul./dez. 2010, pp. 334-373, p. 352.) colheu os seguintes sentidos em que a expressão “direitos indisponíveis” é usada: “a) direitos que não podem sofrer ablações, mesmo que o titular coopere para tanto; b) direitos que não podem ser abdicados por manifestação pelo titular; c) direitos gravados pelo interesse público, sem que fique claro o significado de indisponível; d) direitos que não estão ao alcance de um indivíduo, por não ser ele o titular; direitos que devem ser pleiteados em juízo; e) direitos titularizados por pessoas que não possuem capacidade plena para abdicá-los”.

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A separação feita por certos autores27 em interesse público primário e interesse público secundário, a separar os interesses da Administração, notadamente os patrimoniais, dos “verdadeiros” interesses públicos primários28 acaba por encetar novas dúvidas, mas serve para reacender a noção de um direito administrativo constitucionalizado, cujas ações se voltam, ou deveriam se voltar, para a concretização da Constituição e de seus valores. Se este for o nosso raciocínio, poderíamos dizer que os interesses passíveis de negociação, transação, disposição são os interesses públicos secundários e não os primários, mas esta é uma afirmação complexa de se fazer, embora no Conflito de Competência 139.519 – RJ (Rio de Janeiro), envolvendo controvérsia entre a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e a Petrobrás (Petróleo Brasileiro S/A), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tenha afirmado ser arbitrável tudo que é contratualizável, seguindo a premissa da separação entre interesse público primário e interesse público secundário29. No mencionado caso, tem-se um Conflito Positivo de Competência30 suscitado pela Petróleo Brasileiro S/A – Petrobrás. Foram suscitados o Tribunal Arbitral da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional-CCI, o Tribunal Regional Federal da 2.ª Região e o Juízo Federal da 5.ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro. 27 Observar as acepções de MELLO, Celso Antônio Bandeira de – Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009. 28 Conforme Eros Roberto Grau (“Grau in Arbitragem e Contrato Administrativo”. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS. v. 21. março/2002, pp. 141-148, p. 146), “os interesses públicos, coletivos, cuja satisfação deve ser perseguida pela Administração, não são simplesmente o interesse da Administração enquanto aparato organizacional autônomo, porém aquele que é chamado interesse coletivo primário. Este é resultante do complexo dos interesses individuais prevalentes em determinada organização jurídica da coletividade, ao passo que o interesse do aparato organizacional que é a Administração, se pode ser concebido um interesse, desse aparato, unitariamente considerado, será simplesmente um dos interesses secundários que se fazem sentir no seio da coletividade e que podem ser realizados somente na medida em que coincidam, e nos limites dessa coincidência, com o interesse coletivo primário”. 29 STJ. Conflito de Competência n.º 139.519/RJ. Primeira Seção. Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Data de julgamento: 11 out. 2017. DJe: 10/11/2017. 30 O art. 66 do Código de Processo Civil Brasileiro afirma que há conflito de competência quando: “I – 2 (dois) ou mais juízes se declaram competentes; II – 2 (dois) ou mais juízes se consideram incompetentes, atribuindo um ao outro a competência; III – entre 2 (dois) ou mais juízes surge controvérsia acerca da reunião ou separação de processos”. Conforme se verá adiante neste artigo, várias autoridades jurisdicionais (estatais e arbitral) se consideraram competentes para resolver a lide entre a ANP e a Petrobrás. Nesta situação, temos um conflito positivo de competência. Se duas ou mais autoridades jurisdicionais houvessem se afirmado incompetentes, teríamos um conflito negativo de atribuição. Em ambas as hipóteses, surge a necessidade de definição de qual autoridade é competente para o caso. No processo mencionado, é o Superior Tribunal de Justiça que interpreta as normas de competência e aponta qual autoridade deverá julgar a lide.

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O uso de meios autocompositivos de solução de controvérsias: no brasil existe uma reserva de jurisdição em causas que envolvem a administração pública?

A casuística foi a seguinte: a ANP celebrou contrato de concessão com a Petrobrás para Exploração, Desenvolvimento e Produção de Petróleo e Gás Natural no Bloco BC-60. A Petrobrás afirmou ter sido surpreendida pela ANP em 14 de fevereiro de 2014, quando foi cientificada de que, após 16 anos de vigência do Contrato de Concessão, a Resolução RD 69/2014 da ANP alterava unilateralmente cláusulas contratuais com grande impacto financeiro para a Petrobrás. Após solicitar a reconsideração administrativa da decisão, sem sucesso, a Petrobrás instaurou procedimento arbitral em face da ANP na Corte Internacional de Arbitragem – ICC, com o fim de obter a declaração de nulidade da RD 69/2014. Em 24/04/2014, considerando que o Tribunal Arbitral ainda não havia sido instalado, a Petrobrás ajuizou Ação Cautelar na Justiça Federal do Rio de Janeiro, visando a suspensão dos efeitos da decisão da Diretoria da ANP. Em primeiro grau foi concedida a liminar pleiteada, mas em segundo grau foi cassada. Uma vez instalado o Tribunal Arbitral, tomando conhecimento da medida judicial em trâmite na Justiça Federal, este determinou que, enquanto não houvesse deliberação sobre o pedido cautelar, as partes deveriam se abster de praticar atos que afetassem os direitos uma da outra. Uma sucessão de medidas judiciais foi adotada pelos sujeitos que são partes neste conflito, chegando-se à necessidade de instauração deste conflito entre a jurisdição estatal e a arbitral no Supremo Tribunal de Justiça (STJ). O que mais interessa neste caso, ao escopo de nossa análise, porém, é a discussão acerca do que poderia ou não ser objeto da arbitragem – o enquadramento do objeto da celeuma como direito patrimonial disponível. O Ministro relator originário entendeu dos autos que a RD 69/2014, que alterou o Contrato entre a ANP e a Petrobrás, configuraria direito patrimonial indisponível. Porém, em seu voto, a Ministra Regina Helena divergiu, no que foi seguida, afirmando que a jurisdição arbitral antecede a jurisdição estatal e que seria lá que haveria a possibilidade primeva de definição pelo juízo arbitral de sua competência para o feito (princípio da competência-competência). A Ministra fez menção ao clássico caso Lage31 e outros precedentes para ressaltar que a disponibilidade do objeto contratual convive pacificamente com 31 Conforme Eros Roberto Grau (op. cit., p. 142): “os anais do Supremo Tribunal Federal dão conta de precedente muito expressivo, conhecido como ‘caso Lage’, no qual a própria União submeteu-se a um juízo arbitral para resolver questão pendente com a Organização Lage, constituída de empresas privadas que se dedicavam a navegação, estaleiros e portos. A decisão nesse caso unanimemente proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal é de extrema importância porque reconheceu especificamente ‘a legalidade do Juízo Arbitral’, que o nosso Direito sempre admitiu e consagrou, até mesmo nas causas contra a Fazenda’. Esse acórdão encampou a tese defendida em parecer da lavra de CASTRO NUNES e fez honra a acórdão anterior, relatado pelo Ministro AMARAL SANTOS”.

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o princípio da indisponibilidade do interesse público, chegando à conclusão de que “Em consequência, sempre que a Administração contrata há disponibilidade do direito patrimonial, podendo, desse modo, ser objeto de cláusula arbitral, sem que isso importe em disponibilidade do interesse público”32. Cita para supedanear sua compreensão, Maria Sylvia Zanella Di Pietro33: “Precisamente por não poder dispor dos interesses públicos cuja guarda lhes é atribuída por lei, os poderes atribuídos à Administração tem o caráter de poder-dever; são poderes que ela não pode deixar de exercer, sob pena de responder pela omissão. (...) Fica muito claro no dispositivo que o interesse público é irrenunciável pela autoridade administrativa. (...) O princípio da indisponibilidade do interesse público não se confunde com a ideia de direitos patrimoniais indisponíveis; o interesse público é sempre indisponível; os direitos patrimoniais podem ser disponíveis ou indisponíveis. (...) É possível nas empresas estatais que exercem atividade econômica, com fundamento no artigo 173, § 1º, inciso II, da Constituição Federal, já que o dispositivo prevê a sujeição dessas empresas ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive quanto ao direitos e obrigações civis, comercias, trabalhistas e tributárias. (...) Portanto, é correto afirmar que o interesse público é indisponível. Mas isto não significa que todos os direitos patrimoniais, no âmbito do direito público, sejam indisponíveis. Por vezes, a disponibilidade de um patrimônio público pode ser de mais interesse da coletividade do que a sua preservação.”

Partindo destas premissas, podemos asseverar que respeitada a finalidade pública, havemos de concluir que foi respeitado o parâmetro de indisponibilidade da coisa pública. Eventual disposição daquele interesse primário necessariamente precisaria por controles quanto a esta finalidade e, seja no ambiente Judiciário ou fora dele, seria rechaçado. Todo o resto, o que envolve interesses secundários, ao analisar a Constituição, não requereria mais que a expedita cautela e observação dos valores constitucionais pela Própria Administração. 32 STJ. Conflito de Competência n.º 139.519/RJ. Primeira Seção. Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Data de julgamento: 11 out. 2017. DJe: 10/11/2017, p. 51. 33 Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Forense. 29.ª ed. 2016. pp. 1019-1029. Ainda da mesma obra são elucidativas as palavras da autora: “O argumento de que a arbitragem nos contratos administrativos é inadmissível porque o interesse público é indisponível conduz a um impasse insuperável. Se o interesse público é indisponível ao ponto de excluir a arbitragem, então seria indisponível igualmente para o efeito de produzir contratação administrativa. Assim como a Administração Pública não disporia de competência para criar a obrigação vinculante relativamente ao modo de composição do litígio, também não seria investida do poder para criar qualquer obrigação vinculante por meio contratual. Ou seja, seriam inválidas não apenas as cláusulas de arbitragem, mas também e igualmente todos os contratos administrativos” (pp. 824/825).

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Importa ressaltar que partimos do pressuposto de que não há um único interesse público, mas vários interesses públicos, que não se contrapõem necessariamente aos interesses privados. Antes, podem ser harmonizados pelos meios adequados de resolução de controvérsias. Além disso, a bem da verdade, a separação do interesse público em primário e secundário só tem serventia se estivermos diante de um embate no qual haja um conflito entre estes34. Há casos, portanto, em que é a proteção de interesses e bens individuais que, com supremacia destes, vai concretizar o interesse público. Se se admite, no caso brasileiro, a disposição de aspectos patrimoniais de direitos da personalidade e mesmo da ação penal em certas circunstâncias, a partir de decisões tomadas pelos particulares ou por um único órgão público, a saber, o Ministério Público, por que a Administração, cumprindo um regular procedimento que legitime sua conduta, e expondo a totalidade de suas razões para permitir o controle interno e externo de seus atos, não poderia solucionar suas controvérsias?

5. Reserva de jurisdição na ordem jurídica brasileira para conflitos que envolvem a Administração Pública? Ao refletir sobre os meios extrajudiciais de resolução de controvérsia que envolvam a Administração Pública, a análise da juridicidade da adoção de arbitragem, mediação, conciliação ou negociação perpassa, obrigatoriamente, pela análise da existência ou não de uma Reserva de jurisdição na ordem jurídica brasileira. A resposta parece ser negativa quando se analisa o texto da Constituição Federal de 1988, mas a reatividade de parte relevante da doutrina ao uso de arbitragem, mediação, conciliação e mediação na Administração Pública, assim como a fixação nas leis de arbitragem e mediação de critérios como a patrimonialidade e disponibilidade dos interesses tornam interessante escamotear os caminhos que levam a esta resistência. Afinal, será que dizer que o interesse público é indisponível significa que a Administração Pública não pode transacionar? Não pode contratar? Não pode negociar? A resposta só pode ser negativa, haja vista que a Administração legitimamente participa de relações contratuais, as mais variadas, e negocia valores de contratos, visando, inclusive, o atingimento do interesse público. 34 Acerca da temática, ver: TONIN, Maurício Morais; MARCATO, Antonio Carlos – Solução de controvérsias e poder público: negociação e arbitragem. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

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Num cenário em que o Estado se afasta cada vez mais de tarefas outras que não sejam as essenciais, esta realidade se mostra ainda mais verdadeira, fazendo com que necessite, cada vez mais, de negociar e contratar, dispondo, portanto, das verbas públicas e do respectivo interesse. Poderíamos explorar quanto a isto que, no presente momento histórico, as atividades da Administração Pública são realizadas, principalmente, por meio de contratos. É a Administração contratual, na qual evita-se o uso de mecanismos de intervenção do Estado na propriedade (desapropriação, requisição administrativa, ocupação administrativa), por serem drásticos e excepcionais, e, por isso mesmo, atingirem a legítima confiança dos administrados na Administração Pública. Em Estados democráticos de direito, nos quais uma relação dialógica do Estado com os demais agentes sociais é um pressuposto, o Estado precisa de ir ao mercado e usar de ferramentas contratuais para obter bens e serviços. Observe-se, porém, que esta disposição de bens públicos não significa a abdicação de tais categorias jurídicas. Significa tão-somente a possibilidade de negociar e contratar quanto a bens materiais e interesses passíveis de transação. Os valores que devem reger o comportamento do administrador, por outro lado, não são disponíveis. A indisponibilidade que se menciona há de significar que qualquer disposição deve ocorrer em conformidade com certos parâmetros a serem obedecidos pela Administração, em especial o respeito à impessoalidade da Administração Pública no viés da finalidade. Por outro lado, o princípio dispositivo coloca a possibilidade de ação como direito, direito potestativo e, em raras circunstâncias, como uma condição para o exercício de um direito. O princípio dispositivo expressa, aliás, que ação é uma faculdade das partes, não seu dever. O dever encontra-se localizado, na verdade, nas autoridades públicas, tanto o legislador quanto o julgador, de não exercerem seus poderes em sentido que leve à abolição ou impedimento de exercício desta faculdade pelas partes. “No que se refere às ações de que o Estado é titular, verifica-se que a regra, no âmbito cível, é a facultatividade de seu ajuizamento. E até mesmo no âmbito penal, em que a regra é a necessidade de ajuizamento de ações para satisfazer a pretensão punitiva do Estado, verifica-se que não há obrigatoriedade de prosseguir na ação até o provimento final (e. g. suspensão condicional do processo) e que há hipóteses em que a iniciativa ou o próprio exercício do direito de ação penal é delegado ao particular (respectivamente, ações públicas condicionadas à

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iniciativa da vítima e ações penais privadas, ‘onde existe um resíduo de autocomposição e disponibilidade’)”35/36.

Isto porque, em muitas circunstâncias, pode atender melhor o interesse público não ingressar em contendas, não recorrer, reconhecer administrativamente pedidos ou desistir da ação, todas medidas facultadas à Administração Pública que prescindem da autorização ou anuência do Estado-Juiz. É neste contexto que devemos recordar que a ação é um meio entre outros para se alcançar um direito, ou o acesso à justiça. Havemos de lembrar também que sequer a jurisdição pode ser considerada um monopólio estatal, na medida em que o caráter jurisdicional da arbitragem é plenamente reconhecido pela ordem jurídica vigente. Em todo o caso, ao reconhecer a possibilidade de mediação, arbitragem e transação, mas principalmente de mediação, havemos de reconhecer que não há qualquer renúncia ao direito abstrato de manejar ação ou mesmo de a Administração bem exercer a defesa de seus interesses verdadeiramente indisponíveis.

6. Considerações finais A pergunta que orientou esta análise foi: “Há reserva de jurisdição quanto a causas em que a Administração Pública seja parte na ordem jurídica brasileira?”. O questionamento do qual partimos se insere num contexto em que os meios alternativos à jurisdição estatal para resolução de controvérsias se mostram em franco desenvolvimento, sendo incentivados pelo poder público, nas demandas privadas, especialmente as comerciais, consumeristas e familiares, mas, também, dentro de um movimento de justiça restaurativa nos juízos criminais. Se é certo que na seara privada institutos como a mediação, a transação, a conciliação e a arbitragem andam a passos largos, o mesmo não ocorre com as demandas que envolvem o poder público, litigante contumaz e o mais importante cliente da máquina judiciária brasileira. Apesar da existência de normas reguladoras do uso destes meios pelos sujeitos que corporificam a Administração Pública brasileira, a ausência de uma lista taxativa de litígios públicos submissíveis a estes mecanismos exorta a questão dos limites ou critérios a serem seguidos, e, por conseguinte, da existência ou 35 MEGNA, Bruno Lopes – Arbitragem e Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 48. 36 E mais: “Especificamente com relação ao Estado-Administração, não se verifica hipótese de ação necessária – ressalvada aquela pela qual se pretenda expedição de precatório, cuja única via dada pela lei (embora pudesse ter previsto outra) é a judicial”. Idem, Ibidem, p. 58.

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não de um núcleo de questões que, quando postas em litígio, estariam reservadas para decisão pelo Poder Judiciário. O critério de reserva de jurisdição relevante nesta análise é o do monopólio de primeira palavra, nos termos apontados por Canotilho, segundo o qual certas demandas, dada a sua relevância na ordem constitucional e jurídica imposta, só poderiam ser solucionadas pelo Poder Judiciário. Tais matérias, na acepção de Paulo Rangel, seriam politicamente selecionadas pelo constituinte. A análise da ordem jurídica brasileira nos aponta que estar a Administração enquanto partícipe de uma lide, por si só, não exorta a manifestação do monopólio da primeira palavra pelo Judiciário, abrindo espaço para o uso de mecanismos não jurisdicionais pelos Entes Administrativos. Assim ocorre em função do reconhecimento da capacidade de contratar da Administração Pública, da natureza facultativa do direito de ação nos termos do princípio dispositivo, de sua inserção num contexto de dialogicidade e democracia e por imposição do interesse público, valor que deve ser o fim de toda a atividade administrativa.

Referências ACÓRDÃO do Superior Tribunal de Justiça do Brasil no Conflito de Competência nº 139.519/RJ. Primeira Seção. Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Data de julgamento: 11 out. 2017. DJe: 10/11/2017. ACÓRDÃO do Supremo Tribunal Federal do Brasil no Mandado de Segurança 23452-RJ, Relator: Min. CELSO DE MELLO. Julgamento em 16 de setembro de 1999, pub. DJ 12/5/2000 PP-00020. BARROS, Henrique do Rego – Apontamentos sobre o contencioso administrativo e sobre os privilégios e prerrogativas da administração nos contractos e transacções que celebra como poder público. Rio de Janeiro: Laemmer, 1874. BRASIL. AMB – O uso da Justiça e o Litígio No Brasil. 2018. Disponível em: https://www.amb.com.br/wp-content/uploads/2018/05/Pesquisa-AMB-10.pdf. Acesso em 05 de jan. 2020. CANOTILHO, J. J. Gomes – Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003. CARNELUTTI, Francesco – “Sulla causa della transazione”. Rivista di Diritto Comerciale. Roma, 1914.

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DINIZ, Maria Helena – Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. São Paulo: Saraiva, 2010. DI PIETRO, Maria Silvia Zanella – Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2016. GONÇALVES, Pedro Costa – “Administração Pública e arbitragem: em especial o princípio legal da irrecorribilidade de sentenças arbitrais”. In CORREIA, Fernando Alves; SILVA, João Calvão da; VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos; CANOTILHO, Joaquim José Gomes; CARDOSO A COSTA, José Manuel M. – Estudos em homenagem a António Barbosa de Melo. Coimbra: Almedina, 2013. GRAU, Eros Roberto – “Arbitragem e Contrato Administrativo”. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 21. março/2002, pp. 141-148. GREGO-SANTOS, Bruno – Transação Extrajudicial na Administração Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. MARTEL, Letícia de Campos Velho – “Indisponibilidade de Direitos Fundamentais: Conceito Lacônico, Consequências Duvidosas”. Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 11, n. 2, jul./dez. 2010, pp. 334-373. MEGNA, Bruno Lopes – Arbitragem e Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2019. MELLO, Celso Antônio Bandeira de – Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009. RANGEL, Paulo Castro – Reserva de Jurisdição. Sentido Dogmático e Sentido Jurisdicional. Lisboa: Universidade Catolica, 1997. TONIN, Maurício Morais; MARCATO, Antonio Carlos – Solução de controvérsias e poder público: negociação e arbitragem. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

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PANDEMIA, DEMASIA E DESSINCRONIA EM MATÉRIA DE SANÇÕES ADMINISTRATIVAS. A HIDRA DE LERNA NO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONATÓRIO DA(S) EXCECIONALIDADE(S)1

João Vilas Boas Pinto2

1. Ponto de ordem Revelando inicialmente consequências fundamentalmente de ordem sanitária, a pandemia da COVID-19 não tardou a aproximar-se da mitológica – aqui tão real – Hidra de Lerna3, correspondendo cada uma das suas cabeças aos 1 O texto que se apresenta corresponde, no essencial, à comunicação proferida na Sessão II do 4.º Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho, que teve lugar, em modelo webinar, a 11 de novembro de 2020. A narrativa, fiel à exposição, não se divorcia, todavia, de alguns contributos que o debate de ideias naquela Sessão proporcionou. 2 Assistente Convidado da Escola de Direito da Universidade do Minho e Investigador do JusGov. Doutorando em Ciências Jurídicas Públicas e Bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). 3 Sobre esta, vd. GRIMAL, Pierre – Dictionnaire de la Mythologie Grecque et Romaine. PUF, 1999 (existe uma edição portuguesa da obra, coordenada por Victor Jabouille, pela Editora Antígona).

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diversos impactos que se vão fazendo sentir de forma crescente nas copiosas dimensões da vida em sociedade, aos quais o Direito não é – nem poderia ser – alheio. Na tentativa de, tal como Héracles (ou Hércules), aniquilar a criatura, os Estados, sob a veste da emergência e da calamidade, têm empreendido, quase diariamente e sem paralelo, um musculado conjunto de medidas. Com efeito, para além dos múltiplos impactos sociais, económicos, financeiros e culturais, a pandemia tem também fortes impactos ao nível jurídico: a densidade normativa, ou, em rigor, a hipertrofia normativa, é, no acerto de contas, mais uma das cabeças de Hidra. E, sendo os cenários de crise ideais para a demonstração ou manifestação dos poderes de autoridade, não pode deixar de registar-se o torrencial normativo que especialmente se regista no domínio administrativo e, em particular, no quadro das sanções administrativas. Em abono da verdade, a produção normativa pandémica é, pois, fundamentalmente de direito administrativo4. No que à nossa temática concerne, vários têm sido os diplomas que consagram indistintamente medidas de segurança, medidas de polícia e sanções administrativas, como se da mesma coisa se tratasse. A demasia e a dessincronia tornam, assim, pesarosamente mais difícil a correta compreensão do direito administrativo sancionatório. Em face de tais considerações, cumpre, portanto, proceder à aproximação a um conceito de sanção administrativa e, consequentemente, perscrutar, de entre algumas das medidas empreendidas, quais as que configuram verdadeiras sanções administrativas, por forma a equacionar-se o regime jurídico que lhes deve ser aplicável. Procuraremos, por conseguinte, problematizar tais questões a partir de alguns exemplos mediático-paradigmáticos. Em suma, o exercício que se pretende levar a cabo é reclamado pela própria conceção de Estado de Direito Democrático, sob pena de a pandemia, a demasia e a dessincronia destruírem a utilidade e eficácia do poder administrativo sancionatório, rectius a utilidade dos poderes públicos em geral.

2. Alguns pressupostos conceptuais (medidas de segurança, medidas de polícia, sanções administrativas aren’t the same thing!) As sanções administrativas distinguem-se das medidas de segurança. Não obstante a profunda dificuldade na delimitação das fronteiras entre o direi-

4 Para maiores aprofundamentos, vd. GOMES, Carla Amado; PEDRO, Ricardo – Direito administrativo de necessidade e de excepção. Lisboa: AAFDL Editora, 2020.

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Pandemia, demasia e dessincronia em matéria de sanções administrativas. A Hidra de Lerna no direito administrativo sancionatório da(s) excecionalidade(s)

to penal e o direito administrativo sancionatório5, as medidas de segurança têm como pressuposto a prática de um crime, para além de as entidades competentes para a sua determinação serem os tribunais. Seguindo Costa Andrade6, “para a medida de segurança fazer sentido e ser legítima, exige-se a verificação cumulativa de um duplo requisito; a subsistência, no futuro, da perigosidade do agente; e a prática, no passado, de um facto que uma lei anterior defina como condição de aplicação de uma medida de segurança”. Nessa senda, não existem no nosso ordenamento jurídico medidas de segurança que tenham outra natureza que não penal7/8. No que concerne às medidas de polícia, postula o art. 272.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (a seguir, CRP) que a polícia tem por função defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos. Se bem entendemos, o legislador constitucional acolheu – ou, pelo menos, em certa medida, a tal induz – um critério misto, isto porque, se, a partir do n.º 1, a polícia pode ser definida como função, a partir do n.º 4 do mesmo preceito, parece poder extrair-se o seu entendimento como estrutura orgânica (“forças de segurança”). Nesse sentido, salvo melhor, a polícia administrativa deve ser encarada como atividade administrativa, sendo que essa atividade administrativa é de segurança interna, mas também atividade de prevenção de da-

5 Esta é precisamente uma questão transversal da nossa tese de doutoramento, que está a ser desenvolvida na Escola de Direito da Universidade do Minho, sob a orientação da Prof.ª Doutora Isabel Celeste M. Fonseca e do Professor Doutor Luís Filipe Colaço Antunes. Contudo, em jeito de declaração prévia de interesses, firmamos a nossa propensão para uma distinção ontológica entre ambos os ordenamentos sancionatórios. Para um primeiro contacto com tema, vd. FARIA, Margarida Ermelinda Lima de Morais de – O sistema das sanções administrativas e os princípios do direito administrativo sancionador. 2007. Dissertação de Mestrado. Aveiro, versão policopiada. 6 Apud FONSECA, Isabel Celeste – Direito administrativo sancionatório: texto de apoio aos alunos do Mestrado em Direito Administrativo. Braga, policopiado. 2020, pp. 41-42. 7 Por conseguinte, para além de a medida de segurança ser consagrada pelo legislador constitucional, no art. 29.º, n.º 4, da CRP, “ao lado” da pena, o legislador ordinário consagrou, no Código Penal (doravante CP), designadamente no art. 40.º, n.º 1, que uma e outra prosseguem as mesmas finalidades: proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. As medidas de segurança podem ser privativas de liberdade ou não privativas de liberdade. Constitui medida de segurança privativa de liberdade o internamento de inimputáveis (art. 91.º do CP), bem como o internamento de imputáveis portadores de anomalia psíquica (arts. 104.º e ss. do CP). Configuram medidas de segurança não privativas de liberdade: a suspensão da execução de internamento (art. 98.º do CP); a interdição de atividades (art. 100.º do CP); a cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor (art. 101.º do CP); e a aplicação de regras de conduta (art. 102.º do CP). 8 Em conexão com este assunto, vd. paradigmaticamente, neste singular contexto epidémico, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 424/2020, de 31.07.2020, proc. n.º 403/2020 (1.ª Secção), disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200424.html.

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nos ou minimização dos riscos, dispondo para isso de poderes de controlo e de fiscalização, implicando ou não recurso à coação. Não se pense com isto que reconduzimos todas as medidas de prevenção ao conceito: o nosso entendimento é o de que, para além da proteção da ordem, segurança e tranquilidade pública (polícia de segurança), a atividade de polícia administrativa não se alastra à prevenção de quaisquer danos ou riscos, mas apenas àqueles danos ou riscos que contendam com os direitos dos cidadãos e com interesses públicos (gerais ou específicos) legalmente previstos. Isto quer dizer que, para que a atividade de prevenção se reporte ao conceito de polícia administrativa, a sua natureza terá de ser administrativa9. Pendemos, por isso, a fazer coincidir o nosso entendimento com a definição avançada por João Raposo, segundo a qual a polícia administrativa “tem por objecto garantir a segurança de pessoas e bens, a ordem pública e os direitos dos cidadãos ou assegurar a proteção de outros interesses públicos específicos, definidos por lei”10. Consequentemente, partindo-se precisamente da combinação do critério da atividade com o critério da estrutura organizativa, entendemos que, em rigor, o conceito constitucional de Polícia – o Direito Policial lato sensu – abarca a polícia administrativa (polícia administrativa em sentido estrito e a polícia de ordem, segurança e tranquilidade pública), bem como a polícia judiciária. Nesse seguimento, acompanhando Manuel Guedes Valente, faz sentido proclamar-se um Direito Policial, como ramo do Direito Público que “compreende os princípios gerais, as normas regulares da atuação e da conduta policial na prossecução das suas atribuições e competências na defesa da legalidade democrática, na garantia da segurança interna e dos direitos dos cidadãos, cujos destinatários se encontram indeterminados e indefinidos no espaço do território nacional ou da União Europeia e, até mesmo, internacional”11. 9 Aproximamo-nos de GONÇALVES, Pedro Costa – Manual de direito administrativo. Vol. I. Coimbra: Almedina. 2020, p. 1055. Assim, consideram-se como medidas de defesa de perigos, por exemplo, a emissão de um regulamento administrativo relativamente ao ruído ou à proibição de acesso público a locais de risco, a emissão de autorizações administrativas e de controlo prévio de atividades privadas (v.g., licença ambiental). Tal significa que estas medidas podem ter por objeto imediato perigos e danos tanto coletivos como individuais, tendo sempre como objetivo ou missão principal a redução da probabilidade da produção de danos. Por seu turno, consideram-se medidas de polícia, tal como postula a Lei de Segurança Interna, por exemplo, a realização, em viatura, em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, de buscas e revistas para detetar armas ou engenhos explosivos ou, ainda, a identificação de pessoas suspeitas que se encontrem ou circulem em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial. Não obstante prosseguirem igualmente uma missão de prevenção de danos ou diminuição do risco, as medidas de polícia têm sempre por objeto bens jurídicos determinados. 10 Apud CAUPERS, João; EIRÓ, Vera – Introdução ao direito administrativo. 12.ª ed. Lisboa: Editora Âncora. 2016, p. 195. 11 VALENTE, Manuel Guedes – Teoria geral do direito de polícia. 5.ª ed. Coimbra: Almedina. 2017, p. 57.

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Por seu turno, a coação não se confunde com a repressão, esta é própria da atividade administrativa sancionatória. Embora as medidas de polícia possam assumir feições repressivas, o propósito principal é sempre o de prevenir, pelo que, mesmo que assuma algumas feições repressivas, a sua vocação não pode dizer-se sancionatória. Destarte, recorrendo às impressivas palavras de Isabel Celeste Fonseca, “Deve […] registar-se a diferença entre a coação administrativa e o poder sancionatório da Administração. Enquanto que a coação se orienta para o cumprimento de uma ordem contra a vontade daquele que a ela está obrigado (dentro dos respetivos limites), a sanção é um meio repressivo que funciona precisamente porque a obrigação não foi cumprida (não está orientada, a contrario, para o cumprimento da obrigação)”12. Um conceito de infração administrativa leva-nos, inevitavelmente, a questionar precisamente quais os pressupostos ou requisitos necessários para que se possa impor a um sujeito uma determinada sanção administrativa. Nesses moldes, poderá definir-se a infração administrativa, a priori, como a ação ou omissão antijurídica imputável a um sujeito que seja castigada por lei com uma sanção administrativa. Tais considerações, ainda que não absolutas, encaminham-nos a encarar a sanção administrativa como medida repressiva face a uma infração administrativa e, consequentemente, que a atuação administrativa sancionatória não pode deixar de ser fitada como atuação predominantemente repressiva ou punitiva13. Por outras palavras, a sanção administrativa é uma medida punitiva/aflitiva (de natureza não penal), imposta pela Administração no caso da violação de regras e normas jurídico-administrativas, isto é, aplicada por conta de uma infração administrativa. García de Enterría, entendendo por sanção administrativa o “mal infligido pela Administração a um administrado como consequência de uma conduta ilegal”14, distingue duas categorias: sanções administrativas de autoproteção e sanções administrativas de proteção da ordem geral. As primeiras têm por finalidade a proteção da própria Administração (autotutela), as segundas a proteção da ordem social no seu todo (heterotutela). Esta é, aliás, a posição continuada pela maioria dos autores. Este ilustre administrativista recorta quatro principais manifestações do poder sancionatório de autotutela: sanções disciplinares; sanções

12 FONSECA, Isabel Celeste – Direito administrativo sancionatório. op. cit., p. 44. 13 Seguimos de perto REBOLLO PUIG, Manuel; IZQUIERDO CARRASCO, Manuel; ALARCÓN SOTOMAYOR, Luíca; BUENO ARMIJO, António – Derecho administrativo sancionador. Valladolid: Lex Nova. 2010, p. 59. No sentido de que a prevenção também faz parte do universo do Direito Administrativo Sancionatório, NIETO, Alejandro – Derecho administrativo sancionador. 4.ª ed. Madrid: TECNOS. 2005, especialmente pp. 178 a 190. 14 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo – “El problema jurídico de las sanciones administrativas”. Revista Española de Derecho Administrativo. N.º 10 (1976), p. 399.

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rescisórias de atos administrativos favoráveis; sanções tributárias; e sanções da polícia dominial. Freitas do Amaral considera que o poder sancionatório da Administração Pública se manifesta em três principais grandes áreas: ilícito disciplinar; ilícito de mera ordenação social/contraordenacional; e controlo administrativo da ilicitude de certas atividades públicas e privadas15. Vital Moreira apresenta cinco principais categorias de sanções administrativas: sanções disciplinares; sanções corporativas; sanções contraordenacionais; sanções contratuais; e sanções inominadas16. De facto, ainda que entre as múltiplas posições seja possível recortar pontos de concordância, as divergências são assinaláveis e consideráveis, permanecendo a incerteza na delineação e delimitação do universo do poder sancionatório. Da incerteza resultam frequentes casos onde as fronteiras entre uma sanção administrativa e uma medida administrativa desfavorável (não sancionatória)17 se revelam bastante duvidosas.

3. Excecionalidade(s) e sanções administrativas: da pandemia ao pandemónio 3.1. Da(s) Excecionalidade(s) Desde março de 2020 que, em Portugal, como aliás um pouco por todo o mundo, vivemos sob o signo da excecionalidade, de tal modo que a nova normalidade por muitos proclamada parece convolar-se, em rigor, numa nova normal excecionalidade – qual paradoxo! –, num fluxo de transição entre o quadro constitucional e o quadro jurídico-administrativo. Assim, convém que se frise que a excecionalidade administrativa não se confunde com a excecionalidade constitucional. Com efeito, por um lado, são estados de exceção constitucional

15 FREITAS DO AMARAL, Diogo – “O poder sancionatório da Administração Pública”. Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Vol. I. Coimbra: Almedina. 2008, p. 225. 16 Apud FARIA – op. cit., p. 51. 17 Estas são definidas por Vieira de Andrade enquanto “(…) procedimentos e atos de reação à violação de disposições preceptivas, que não visam punir transgressões (factos ilícitos), mas responder a quaisquer tipos de atuações ou situações lesivas do interesse público com outras finalidades, designadamente a pura prevenção (neutralização do risco ou perigo) e a mera reintegração” (VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos – Lições de Direito Administrativo. 5.ª ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. 2017, p. 136).

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o estado de sítio e o estado de emergência18; por outro, são estados de exceção administrativa o estado de alerta, o estado de contingência e o estado de calamidade19. Esta distinção revela-se de suma importância, uma vez que a exceção constitucional permite a suspensão dos direitos, liberdades e garantias, ao passo que a exceção administrativa não dá permissão para tal suspensão, mas apenas para uma restrição ao seu exercício, alicerçada na verificação do princípio da proporcionalidade. Como reforça Jorge Alves Correia, “O estado de calamidade não permite «prolongar» os efeitos do estado de emergência constitucional, antes representa o regresso a uma situação de normalidade constitucional”20. Muitas são, portanto, as dúvidas acerca da constitucionalidade de diversas medidas tomadas pelas autoridades administrativas, ao abrigo dos estados de exceção administrativa, nomeadamente ao abrigo do estado de calamidade, em virtude de muitas delas implicarem autenticamente a suspensão de direitos, liberdades e garantias, que só a exceção constitucional permite.

3.2. Direito administrativo sancionatório em tempos de excecionalidade: breve diagnóstico de alguns casos (muito) patológicos Tal como já tivemos ocasião de mencionar, a pandemia trouxe consigo uma crise da normatividade: quase diariamente, produzem-se atos normativos para regular a emersão de específicas situações, de tal forma que o entrecruzamento das matérias é, na sua maioria, muito difícil de estabelecer e compreender. Daremos, pois, apenas nota de alguns exemplos que se concatenam com as sanções administrativas, por forma a evidenciar um quadro clínico do direito administrativo sancionatório muito reservado: 3.2.1. Um primeiro exemplo reporta-se ao Decreto-Lei n.º 28-B/2020, de 26 de junho, que estabelece o regime contraordenacional, no âmbito da situação de calamidade, contingência e alerta, portanto, o regime contraordenacional da excecionalidade administrativa. No preâmbulo do referido diploma estabelece-se que a criação deste quadro sancionatório tem por ímpeto principal assegurar “o escrupuloso cum18 Cfr. art. 19.º da CRP, em articulação com a Lei n.º 44/86, de 30 de setembro (na versão atual da Lei Orgânica n.º 1/2012, de 11 de maio), que regula o regime do estado de sítio e do estado de emergência. 19 Cfr. art. 8.º da Lei de Bases da Proteção Civil (Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, atualizada pela Lei n.º 80/2015, de 3 de agosto). 20 CORREIA, Jorge Alves – “As patologias da declaração do estado de calamidade e os limites constitucionais do direito administrativo da pós-emergência”. Revista de Direito Administrativo. N.º 9 (set./dez. 2020), p. 53.

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primento, pela população, das medidas que são indispensáveis à contenção da infeção (…)”. Perscruta-se, logo aqui, um primeiro sintoma patológico: a consagração de sanções administrativas com vista a assegurar o cumprimento de medidas, isto é, a assegurar o cumprimento de obrigações. Ora, recuperando o que anteriormente se disse acerca do conceito de sanção administrativa, o seu principal traço genético reside no facto de não servir para assegurar o cumprimento de uma obrigação ou dever, mas reprimir o não cumprimento desse dever ou obrigação, o que aliás o legislador reconhece, contraditoriamente, no mesmo preâmbulo: “é criado um quadro sancionatório aplicável às situações de incumprimento (…)”. A incoerência da técnica legística é, estamos em crer, flagrante, acarretando sérios problemas do ponto de vista garantístico, gerando incerteza e insegurança jurídicas, num tempo per si muito dúbio. Ademais, as medidas consagradas no art. 6.º do referido Decreto-Lei, sob a epígrafe “medidas de polícia”, parecem, com propriedade, constituir verdadeiras medidas administrativas sem carácter sancionatório, configurando medidas de fiscalização e, sobretudo, medidas cautelares e de remoção de perigos: veja-se o caso da provisoriedade do encerramento dos estabelecimentos e da cessação de atividades (n.º 1). Se, de facto, reconhecemos que a missão pública de defesa do ordenamento jurídico-administrativo não se esgota na figura das sanções administrativas21, não é menor a necessidade de se operar a destrinça entre as formas como tal missão é prosseguida. Tal quer significar que, embora medidas de polícia e de defesa de perigos coabitem naturalmente com sanções administrativas, umas e outras não se confundem. Ora, se o legislador pretendeu instituir um quadro sancionatório para a excecionalidade administrativa, tal como acusa nas considerações preambulares (“estabelece o regime contraordenacional”; “quadro sancionatório aplicável às situações de incumprimento”), acaba por redundar num conjunto de contradições, sintomáticas da produção legislativa em massa, sem a devida maturação legística. Parece-nos, nesses termos, que o legislador tem optado claramente pela transição de um quadro repressivo para um quadro preventivo. Todavia, seria preferível que se tivesse estabelecido uma moldura que, de forma evidente e clara, evidenciasse a distinção entre medidas administrativas sancionatórias e medidas administrativas não sancionatórias. 3.2.2. Um outro exemplo paradigmático reporta-se à proibição de circulação entre concelhos, no período compreendido entre 30 de outubro e 3 de novembro, determinada pela Resolução de Conselho de Ministros n.º 89-A/2020, designadamente no seu art. 1.º, n.º 15. 21 Vd. GONÇALVES – op. cit., pp. 1044 e ss.

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Para além de questões de duvidosa constitucionalidade que o diploma reveste, nele não se postula qualquer medida sancionatória como consequência do incumprimento das suas disposições. Legitimamente se interroga: salvo as devidas exceções, sendo proibido circular para fora do concelho de residência habitual no período referido, o que sucede com alguém que infringe tal norma, portanto, que passa a constituir-se infrator? Constituirá um qualquer incumprimento de uma norma geral e abstrata de conduta uma infração? E de que tipo? Tais interrogações não são despiciendas, uma vez que, não sendo possível extrair do diploma em causa uma resposta cabal, não parece que a solução caiba no âmbito da Lei de Bases da Proteção Civil (LBPC). Vejamos: se a Resolução é adotada ao abrigo do estado de calamidade, poderia deduzir-se que, em casos omissos, se aplicaria a LBPC, que ampara a excecionalidade administrativa. Se atentarmos no art. 6.º, n.º 4, da LBPC, que consagra que “a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de alerta, contingência ou calamidade, são sancionadas nos termos da lei penal”, a resposta às interrogações parecia fluir no sentido de que, em caso de incumprimento, haveria lugar a uma sanção penal (por crime de desobediência). Contudo, a desobediência e a resistência a que se refere o art. 6.º da LBPC não pode confundir-se com o incumprimento, isto porque aquelas constituirão infrações quando em causa esteja uma ordem ou mandato concreto, enquanto o incumprimento se reporta a uma norma geral e abstrata, como é aquela consagrada no art. 1.º, n.º 15, da Resolução22. Em extrema síntese, concluímos que nem a Resolução n.º 89-A/2020 nem a Lei de Bases da Proteção Civil permitiam escorar a aplicação de sanções, penais ou administrativas, sob pena da violação do princípio da tipicidade23. Nesse mesmo sentido, parece apontar o entendimento do Supremo Tribunal Administrativo (STA), que considerou que as disposições da Resolução do Conselho de Ministros não deviam ser encaradas como proibição, antes como

22 Embora com as devidas singularidades, também no ordenamento espanhol se suscitou tal problemática. Nesse sentido, CANO CAMPOS, Tomás – “Estado de alarma, sanciones administrativas y desobediência a la autoridade”. [texto em linha]. 2020. Disponível em https://seguridadpublicasite. wordpress.com/acerca-de/. 23 Convém que se reforce que o princípio da tipicidade, enquanto corolário do princípio da legalidade, é transversal a toda atividade sancionatória pública, indicando que “a previsão legal deverá ser a mais exacta, taxativa e inequívoca quanto possível, tanto quanto à descrição dos elementos fácticos da infração como em relação à previsão das sanções aplicáveis” (FARIA – op. cit., p. 85).

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recomendação agravada24. A figura sui generis, perfilhada pelo Presidente da República e, sucedaneamente, apadrinhada pelos juízes conselheiros do STA, lança por terra o entendimento de que que as disposições do Conselho de Ministros, constituindo proibições, dariam lugar à aplicação de sanções, fossem penais ou administrativas. Ao invés, advoga-se a atribuição de uma natureza preventiva ao diploma e, como tal, as medidas suscetíveis de aplicar-se seriam apenas medidas preventivas, mormente medidas de polícia. Novamente, estamos convictos de que a intenção das autoridades governamentais de operar a transição entre um quadro repressivo para um quadro preventivo não consegue deslaçar-se de um conjunto de contradições e ilegalidades (e, mesmo, inconstitucionalidades) que colocam em causa a eficácia da sua atuação, comprometendo seriamente a defesa da ordem jurídica e do interesse público: os sintomas agravam-se, num cenário em que os profissionais da saúde jurídica aparentam também padecer de graves patologias. 3.2.3. Mas o que acabámos de reportar não é exclusivo daqueles diplomas. Convoque-se aqui os Decretos do Conselho de Ministros que procedem à execução das declarações do estado de emergência, sejam as que se reportam à denominada primeira vaga, seja à atual segunda vaga. Com relativa admiração (ou talvez não), nelas não se plasma um regime sancionatório específico ou singular. Se, em rigor, no Decreto n.º 2-A/2020, designadamente no art. 32.º, n.º 3, se postulava que “As forças e serviços de segurança reportam permanentemente ao membro do Governo responsável pela área da administração interna o grau de acatamento pela população do disposto no presente decreto, com vista a que o Governo possa avaliar a todo o tempo a situação, designadamente a necessidade de aprovação de um quadro sancionatório por violação do dever especial de proteção ou do dever geral de recolhimento domiciliário”, no Decreto n.º 8/2020, de 8 de novembro, que dá execução ao primeiro estado emergência desta segunda vaga, não se encontra uma qualquer norma congénere.

24 Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 31.10.2020, proc. 0122/20.1BALSB, consultável a partir de https://crlisboa.org/wp/juris/processo-n-o-0122-20-1balsb. Transcreve-se um excerto do seu iter argumentativo: “Porém, se atentarmos no conteúdo da medida, e não obstante a mesma se enunciar como uma proibição – «os cidadãos não podem circular» –, a verdade é que os amplos termos em que vem enunciada a excepção – «salvo por motivos de urgência imperiosa» –, a que se soma um alargado e generoso leque de situações de não incidência da proibição e ainda a ausência de sanções expressas para o caso de incumprimento, pode questionar-se se estamos, efectivamente, ante uma medida proibitiva e restritiva daquele direito/liberdade ou antes perante uma norma imperfeita, que acolhe, em forma de recomendação agravada, o dever de permanência no concelho durante aquele período de tempo”.

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Naturalmente que caberá aqui o ressurgimento das muitas dúvidas e incertezas precedentemente expostas: o achatamento da curva jurídico-epidémica continua a afigurar-se árdua tarefa. 3.2.4. Internada nos cuidados intensivos, parece encontrar-se também a competência sancionatória, cabendo, nesta ala, auscultar fundamentalmente a sua enorme dispersão e, diríamos mesmo, autêntica sobreposição. Como sintetiza Carlos-Alberto Amoedo-Souto – que aqui citamos em virtude de comungarmos com o ordenamento vizinho problemas semelhantes em matéria sancionatória –, “el hecho de que no sepamos, ante esta situación tan grave, quién es la autoridad competente, también constituye una inquietante alegoría sobre cómo hemos reaccionado jurídicamente ante lo desconocido”25. Em vários dos diplomas evocados, entre tantos outros, por várias vezes o legislador, para além de atribuir competências a diversas entidades e organismos, apela à necessidade de cooperação e articulação entre diversos níveis decisórios: ministérios, direção-geral de saúde, polícia administrativa (forças e serviços de segurança e serviços e organismos administrativos com função de fiscalização e controlo) e autarquias locais. Não obstante, é inegável a tendência para a centralização das decisões relativas ao combate à pandemia, decisões essas que o Governo tem compartilhado sobretudo com a Direção-Geral de Saúde, o que nos leva a questionar quem é, de facto, o sujeito administrativo sancionador, o que acarreta, mais uma vez, desassossegos do ponto de vista da garantia dos sancionados.

4. Alguns reptos, em jeito de balanço final: vacinas jurídicas precisam-se! Mais do que conclusões, e sem prejuízo de a narrativa deixar antever tais reptos, cremos que a pandemia, e a demasia normativa dela emergente que, por sua vez, tem contribuído para uma preocupante dessincronia, agudizando a insegurança e a incerteza jurídicas, decreta enormes desafios ao Direito e, de forma particular, ao Direito Administrativo, dos quais se destacam: Primo – Caberá uma luta incessante pela necessidade de sujeição, mesmo em tempos de excecionalidade e pós-excecionalidade, de toda a atuação pública à juridicidade. A excecionalidade não pode, bem assim, ser encarada como uma fuga ao Direito, mas precisamente como particular exigência de vinculação à juridicidade, sendo que os limites ao exercício de direitos e liberdades têm de 25 AMOEDO-SOUTO, Carlos-Alberto – “Vigilar y castigar em confinamento forzoso. Problemas de la potestad sancionadora al servicio del estado de alarma sanitária”. El Cronista del Estado Social y Democrático de Derecho. N. 86-87 (março-abril). Madrid: Portal Derecho/IUSTEL. 2020, p. 73.

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operar-se de acordo com parâmetros objetivos e normativos influídos a partir da própria lei fundamental. Diríamos assim, recorrendo à lição de Paulo Otero, que o bem comum “consubstancia as aspirações ou as necessidades de uma pluralidade de sujeitos que, consideradas como unidade que transcende a esfera de cada uma das suas componentes singulares, (…) [tendo] sempre de articular, num processo avaliativo de hierarquia de valores, uma «correta compreensão da dignidade e dos direitos da pessoa»”26. Esta é, no acerto de contas, a principal vacina jurídica, o principal meio para a imunidade face às preocupantes patologias normativas. Secundo – É igualmente necessário que se reequacione um novo quadro normativo e governativo, a começar pelo incremento de redes de cooperação dos poderes públicos, permitindo a partilha e articulação efetiva do poder decisório, isto é, de novos modelos de governação, passando ainda por uma reforma dos instrumentos jurídicos de resposta às situações de crise sanitária e, sobretudo, que se transite de um quadro de pensamento meramente lógico-quantitativo para um quadro de pensamento e de atuação ponderativo-qualitativo. Tertio – No que particularmente respeita ao direito administrativo sancionatório, se dúvidas ainda restassem acerca da necessidade de uma teoria geral, que permita distinguir solidamente medidas administrativas sancionatórias de outras medidas não sancionatórias, fixar os limites do poder sancionatório e consolidar um verdadeiro procedimento administrativo sancionatório, a pandemia veio certamente não só dissipá-las como destapar o véu da sua urgência. Não é apenas o Direito Administrativo Sancionatório que sai claudicado deste cenário, são também, e principalmente, os direitos fundamentais dos cidadãos (sancionados)27. Esperemos, pois, que a investigação que estamos a levar a cabo possa contribuir para o desenvolvimento desta também importante vacina jurídica.

Bibliografia AMARAL, Diogo Freitas do – “O poder sancionatório da Administração Pública”. Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Vol. I. Coimbra: Almedina. 2008.

26 OTERO, Paulo – Manual de direito administrativo. V. 1. Coimbra: Almedina. 2013, p. 67. 27 Alertando já para essas fragilidades, FONSECA, Isabel Celeste – “Incertezas em torno do poder sancionatório da Administração Pública: certezas em torno da fragilidade das garantias do sancionado”. Anuário Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho, Tomo I – Responsabilidade e Cidadania. Braga: EDUM. 2012, pp. 83-105.

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AMOEDO-SOUTO, Carlos-Alberto – “Vigilar y castigar em confinamento forzoso. Problemas de la potestad sancionadora al servicio del estado de alarma sanitária”. El Cronista del Estado Social y Democrático de Derecho. N. 86-87 (março-abril). Madrid: Portal Derecho/IUSTEL. 2020. ANDRADE, José Carlos Vieira de – Lições de Direito Administrativo. 5.ª ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. 2017. CANO CAMPOS, Tomás – “Estado de alarma, sanciones administrativas y desobediência a la autoridade”. [texto em linha]. 2020. Disponível em https:// seguridadpublicasite.wordpress.com/acerca-de/. CAUPERS, João; EIRÓ, Vera – Introdução ao direito administrativo. 12.ª ed. Lisboa: Editora Âncora. 2016. CORREIA, Jorge Alves – “As patologias da declaração do estado de calamidade e os limites constitucionais do direito administrativo da pós-emergência”. Revista de Direito Administrativo. N.º 9 (set./dez. 2020). FARIA, Margarida Ermelinda Lima de Morais de – O sistema das sanções administrativas e os princípios do direito administrativo sancionador. 2007. Dissertação de Mestrado. Aveiro, versão policopiada. FONSECA, Isabel Celeste – Direito administrativo sancionatório: texto de apoio aos alunos do Mestrado em Direito Administrativo. Braga, policopiado. 2020 (cedido pela autora). ________, “Incertezas em torno do poder sancionatório da Administração Pública: certezas em torno da fragilidade das garantias do sancionado”. Anuário Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho, Tomo I – Responsabilidade e Cidadania. Braga: EDUM. 2012. GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo – “El problema jurídico de las sanciones administrativas”. Revista Española de Derecho Administrativo. N.º 10 (1976). GOMES, Carla Amado; PEDRO, Ricardo – Direito administrativo de necessidade e de excepção. Lisboa: AAFDL Editora, 2020. GONÇALVES, Pedro Costa – Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra: Almedina. 2020. GRIMAL, Pierre – Dictionnaire de la Mythologie Grecque et Romaine. PUF, 1999.

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NIETO, Alejandro – Derecho administrativo sancionador. 4.ª ed. Madrid: TECNOS. 2005. OTERO, Paulo – Manual de direito administrativo. V. 1. Coimbra: Almedina. 2013. PUIG, Manuel Rebollo [et al.] – Derecho administrativo sancionador. Valladolid: Lex Nova. 2010. VALENTE, Manuel Guedes – Teoria geral do direito de polícia. 5.ª ed. Coimbra: Almedina. 2017.

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OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES NO CONTEXTO DA PANDEMIA DA COVID-19

Mariana Schafhauser Boçon1

1. O contexto da pandemia da COVID-19 e a priorização de cuidados de saúde O contexto da pandemia originada com o surgimento da COVID-192 tem sobrecarregado os mais diversos setores da sociedade ao redor do mundo. Nesse sentido, muitos governos tomaram como medida o isolamento social, com o objetivo de conter a disseminação do vírus na população, bem como para preparar os sistemas de saúde, que em muitos países já se encontravam debilitados na sua origem. No entanto, apesar das providências aplicadas e de algum êxito das mesmas no contexto de alguns países, os profissionais e os agentes de políticas públicas viram-se confrontados com a situação de escassez de recursos materiais e

1 Licenciada em Direito pela Universidade de Brasília, mestre em Direitos Humanos pela Universidade do Minho, investigadora colaboradora no Centro JusGov, membra Iberojur na área de Bioética e Direito Biomédico e advogada. 2 O nome nasce do acrónimo em inglês da expressão “doença por coronavírus” (coronavirus disease).

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profissionais em saúde e o dilema de, diante de tais limitações, ter de escolher que serviços teriam prioridade. Nesse sentido, quando analisamos o funcionamento geral do sistema de saúde, nomeadamente nos países que garantem um sistema público ou comparticipado, verificamos que o estabelecimento de prioridades de atendimento nas situações de urgência derivadas dos casos de COVID-19 faz com que sejam alteradas as prestações de outros serviços, sendo suspensa uma série de tratamentos, exames e procedimentos que fazem parte da estrutura cotidiana de cuidados em saúde dos cidadãos. No caso de Portugal, como em muitos outros países3, a fim de garantir a capacidade do Sistema Nacional de Saúde (a seguir, SNS) no combate à doença por COVID-19, foi implementada a regra do adiamento de atividade não urgente, suspendendo-se, com o cumprimento de determinadas regras, a atividade programada no período de 16 de março a 2 de maio4. Mais especificadamente, no que se refere à prestação de serviços relacionados à garantia dos denominados direitos reprodutivos, verifica-se que a priorização pelos serviços de tratamento dos pacientes com COVID-19 tem afetado consideravelmente também a disponibilização de serviços e medicamentos essenciais à promoção daqueles direitos, afetando principalmente a vida de muitas mulheres. Nesse âmbito, estudos recentes apresentados pelo Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) sugerem que, em muitos países, as respostas adotadas para o combate ao surto de COVID-19 têm acabado por gerar uma diminuição no atendimento e consultas médicas de rotina, dentre as quais se incluem também as de planeamento familiar, favorecendo uma redução no fornecimento de serviços e de materiais de contracepção e proteção. Consequentemente, veri-

3 Segundo a Organização Mundial de Saúde, praticamente todos os países suspenderam as atividades não urgentes, embora cada país tenha definido concretamente que tipos de atividades deveriam ser suspensas. WORLD HEALTH ORGANIZATION – “How are countries reorganizing non-covid-19 health care service delivery?”. [em linha]. [06.05.2020] [02.11.2020]. Disponível em https://analysis.covid19healthsystem.org/index.php/2020/05/06/how-are-countries-reorganizing-non-covid-19-health-care-service-delivery/. 4 Despacho da Ministra da Saúde, sem número, de 15 de março de 2020. [em linha]. [13.10.2020]. Disponível em https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4c31684a566b786c5a793944543030764f554e544c305276593356745a57353062334e4259335270646d6c6b5957526c5132397461584e7a 595738764e5759335a4451795a5755744d5751324e4330304d474e694c574a6c4e544d744e6d55774e6a49774e57526a4f5459324c6e426b5a673d3d&fich=5f7d42ee-1d64-40cb-be53-6e06205dc966.pdf&Inline=true; e o Despacho n.º 5314/2020. Diário da República. Série II. N.º 89/2020. [em linha]. [07.05.2020] [13.10.2020]. Disponível em https://dre.pt/home/-/ dre/133226622/details/maximized.

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Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no contexto da pandemia do COVID-19

fica-se um aumento do número de abortos inseguros e de infecções sexualmente transmitidas e um crescimento considerável da mortalidade materna e neonatal5. No caso de Portugal, embora o despacho da Ministra da Saúde tenha dado a indicação pela não suspensão dos serviços relacionados ao acompanhamento da gravidez, em virtude da recondução da prioridade na utilização dos recursos, ficaram em segundo lugar a prestação de serviços relacionados à garantia do acesso ao planeamento familiar e de saúde sexual e reprodutiva, nomeadamente as consultas de rotina. Por outro lado, quando analisamos a questão da procriação medicamente assistida (a seguir, PMA), em Portugal, durante mais de um mês, os Centros de PMA permaneceram com as suas atividades paralisadas, na sequência do comunicado datado de 20 de março de 20206, em que o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (a seguir, CNPMA) estabeleceu ser da total e exclusiva responsabilidade dos diretores dos centros a manutenção parcial ou total das atividades, atentas as recomendações oriundas das autoridades de saúde oficiais, bem como das sociedades científicas nacionais, como a Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, e internacionais (nomeadamente, a European Society of Human Reproduction and Embryology e a American Society for Reproductive Medicine)7. Tais indicações permaneceram nesses moldes até novo comunicado do CNPMA, em 24 de abril de 2020, quando foi apresentado o entendimento de que os diretores dos centros poderiam decidir pela retomada da atividade de forma progressiva e com planos de contingência a serem escrupulosamente cumpridos. Sucede que, segundo um inquérito realizado pelo CNPMA, no período de 27 de julho a 25 setembro de 2020, junto dos Centros de PMA, verifica-se que,

5 “47 million women in 114 low- and middle-income countries may not be able to access modern contraceptives and 7 million unintended pregnancies are expected to occur if lockdowns carry on for 6 months and there are major disruptions to health services.” Cfr. UNFPA – “Coronavirus Disease (COVID-19) Pandemic UNFPA Global Response Plan”. [em linha]. [June 2020]. [12.10.2020]. Disponível em https://www.unfpa.org/sites/default/files/resource-pdf/UNFPA_Global_Response_Plan_Revised_June_2020_.pdf. 6

CNPMA – “Comunicado CNPMA”. [em linha]. [20.03.2020]. Portugal. [20.10.2020]. Disponível em https://www.cnpma.org.pt/destaques/Documents/COMUNICADO_CNPMA%20 (20MAR2020).pdf.

7 As recomendações da European Society of Human Reproduction and Embryology (ESHRE) de 14.03.2020, da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (SPMR) de 16.03.2020 e da American Society of Reproductive Medicine (ASRM) de 17.03.2020, todas no sentido de serem suspensas as inseminações intra-uterinas, as transferências embrionárias (a fresco ou após criopreservação) e novos tratamentos de PMA, nomeadamente envolvendo punções ováricas.

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no período de 8 de março a 15 de agosto, houve uma suspensão quase generalizada dos serviços de PMA, com redução da atividade em 75% a 100%8. Tal suspensão gerou forte impacto na vida de muitas famílias que tinham processos de procriação já a decorrer ou programados para isso, fazendo com que muitas beneficiárias se possam ver agora impossibilitadas da utilização das técnicas, por terem ultrapassado o limite de idade para aceder às intervenções reprodutivas. Daqui resulta que as medidas de limitação no acesso à saúde que foram adotadas em muitos países, como é o caso de Portugal, embora possam ter contribuído para minimizar riscos e manter a capacidade de atendimento do sistema de saúde para os pacientes com COVID-19, acabaram por prejudicar a garantia do direito à saúde e dos direitos reprodutivos, uma vez que alterou a promoção dos serviços de cuidados primários e de planeamento familiar. Evidencia-se aqui que a situação pandêmica gerada pela COVID-19 agrava uma situação que já é enfrentada diariamente em muitos sistemas de saúde ao redor do mundo em menor ou maior escala: a priorização de certos cuidados de saúde em detrimento de outros. Com efeito, suscitam-se aqui questões éticas e jurídicas, nomeadamente por referência à discussão quanto à garantia da justiça na alocação dos recursos diante de uma situação de diminuição/precariedade dos serviços e materiais disponíveis. Deve destacar-se, no entanto, que a análise da alocação de recursos em saúde num contexto como o enfrentado no âmbito da pandemia da COVID-19 pressupõe uma importante discussão jurídica que envolve considerações a respeito do direito à saúde, dos princípios fundamentais e da concepção de justiça9.

2. A garantia dos direitos fundamentais face à alocação de recursos escassos Primeiramente, quando falamos do “direito à saúde”, verificamos que a sua afirmação nos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo é ainda recente, decorrendo a sua formulação base da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

8 Cfr. CNPMA – “Inquérito aos Centros de PMA: Impacto da pandemia de Covid-19 na atividade de PMA”. [em linha]. 2020. Portugal. [02.11.2020]. Disponível em https://www.cnpma.org.pt/destaques/Documents/Inquerito_COVID19_PMA.pdf. 9 SATOMI, Erika [et al.] – “Alocação justa de recursos de saúde escassos diante da pandemia de COVID-19: considerações éticas”. Publicação Oficial do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein. V. 18 (2020), p. 2. ISSN: 1679-4508 | e-ISSN: 2317-6385.

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Nos termos da Declaração dos Direitos Humanos, dispõe o seu art. 25.º que “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.”10. A ideia de saúde, portanto, não se configura apenas na eliminação da doença, mas prevê um bem-estar geral compreendido não apenas na sua vertente individual, mas também coletiva, uma vez que a promoção do direito à saúde está dependente da garantia e manutenção de outros bens de ordem social. Por outro lado, dentro da especificação do sistema de proteção dos direitos humanos11, foi importante o movimento que trouxe ao âmbito de discussão internacional demandas específicas da condição feminina, nomeadamente dentro da seara do direito à saúde. No decorrer deste processo, foi importante a conquista da proteção dos denominados direitos reprodutivos, que inicialmente estavam ligados à ideia de um direito ao planeamento familiar. Todavia, tais direitos envolvem também o direito à vida e à autonomia corporal, tendo o termo “direitos reprodutivos” ficado consagrado pela primeira vez no parágrafo 7.3 do Programa de Ação do Cairo, em 1994, como o direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o seu planeamento familiar, bem como o direito de gozar do mais alto padrão de saúde sexual e de reprodução, podendo tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência12. Portanto, a saúde como um todo constitui um bem essencial da pessoa humana e por esta razão tem sido objeto de tutela, seja na esfera do direito internacional, seja por parte do direito interno dos Estados, sendo também um direito reconhecido no sistema constitucional português. Deste modo, analisando-se no âmbito da Constituição da República Portuguesa (a seguir, CRP), o direito à saúde encontra-se delimitado no seu art. 64.º, sendo enquadrado dentro dos denominados “direitos económicos, sociais e culturais” e seguindo o enunciado geral característico desses direitos, isto é, após 10 Declaração Universal dos Direitos Humanos [em linha]. [10.12.1948]. [10.10.2020]. Disponível em https://dre.pt/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. 11 MATTAR, Laura Davis – “Reconhecimento jurídico dos direitos sexuais – Uma análise comparativa com os direitos reprodutivos”. SUR – Revista Internacional de direitos humanos. Ano 5, n. 8 (2008), pp. 60-83. ISSN 1806-6445, online version, ISSN 1983-3342. 12 UNFPA – “Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, Plataforma de Cairo”. [13.09.1994]. [17.10.2020]. Disponível em http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf.

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o enunciado do direito (“todos têm direito a...”), segue-se a enumeração das obrigações (ou “incumbências”) do Estado no sentido de realizar aquele direito13. Por sua vez, no que se refere aos direitos reprodutivos, para além de se enquadrarem no âmbito do direito à saúde na sua vertente de proteção da saúde sexual e reprodutiva, também encontram parte considerável da sua previsão constitucional no âmbito do direito à família, estando previsto nas als. d) e e) do art. 67.º, n.º 2, da CRP que incumbe ao Estado, para a proteção da família, garantir, no respeito da liberdade individual, o direito ao planeamento familiar, promovendo a informação e o acesso aos métodos e aos meios que o assegurem, e organizar as estruturas jurídicas e técnicas que permitam o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes, bem como regulamentar a procriação assistida, em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana14. Os direitos aqui elencados inserem-se, assim, nos chamados direitos a prestações que representam o direito de o indivíduo obter algo através do Estado15. E, assim como noutros “direitos económicos, sociais e culturais”, também o direito à proteção da saúde comporta uma vertente de natureza positiva, referente ao direito às medidas e prestações estaduais, visando a prevenção das doenças e o tratamento delas, bem como de natureza negativa, no sentido de se exigir do Estado ou de terceiros que se abstenham de qualquer ato que prejudique a saúde16. Por outro lado, quando tratamos do direito à proteção da saúde, este acaba por impor aos entes públicos a realização de determinadas tarefas como, no caso de Portugal, a primordial criação e manutenção do SNS, uma vez que o cumprimento dessas prestações é essencial para a própria realização do direito. Nesse sentido, reforça o disposto no art. 64.º, n.º 3, da CRP, quando refere que, para assegurar o direito à proteção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação, bem como garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde. Ora, nos termos preconizados pela CRP na sua redação atual, no âmbito da promoção e garantia do direito à proteção da saúde, a principal obrigação do 13 CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa Anotada. vol. I, 4.ª ed. Revista. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. pp. 314-315. ISBN 978-972-32-1462-8. 14 Idem, ibidem, p. 856. 15 CANOTILHO, J.J. Gomes – Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 408. ISBN 9789724021065. 16 CANOTILHO; MOREIRA – op. cit., p. 825.

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Estado consiste na criação de um serviço nacional de saúde [n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d)] que seja universal, geral e tendencialmente gratuito17. No entanto, embora a Constituição atribua a todos o direito à saúde, este é um direito que se encontra dependente da disponibilidade de recursos financeiros e estruturais por parte do Estado, e a lei não estipula previamente critérios de seleção a serem adotados na efetiva prestação diante de uma limitação de recursos. Deste modo, mesmo que haja o desenvolvimento de um propósito de se garantir um direito universal à saúde, face às contingências econômicas, políticas e sociais, o cumprimento dessa premissa universal e igualitária enfrenta desafios e limites, fazendo com que na realidade prática surja a necessidade de se estabelecerem prioridades e, consequentemente, de se fazer escolhas. Em decorrência dessa limitação, defende-se que os direitos a prestações e o seu mínimo existencial encontram-se condicionados pela chamada “reserva do possível”, a qual parte do princípio de que a efetividade dos direitos sociais depende de prestações materiais que, por sua vez, estão sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, consolidando que os direitos sociais estão dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos18. No entanto, essa mesma teoria trabalha a perspectiva de que, embora sejam direitos prestacionais, não se pode generalizar um dever, uma obrigação de o Estado prestar algo quando esta prestação fuja aos limites do razoável, mesmo que o Estado tenha recursos para isso. Portanto, a prestação reclamada deve corresponder àquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade19. A reserva do possível constitui, assim, uma espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais. No entanto, quando consideramos que o conteúdo do mínimo existencial dos direitos depende de cada contexto, não sendo o mesmo núcleo para todos os indivíduos e nem em relação aos diversos direitos sociais, a reserva do possível também poderá atuar, em determinadas circunstâncias, como garantia dos direitos fundamentais numa situação de conflitos de direitos. No entanto, importa recordar que essa vinculação a uma reserva do possível não pode reduzir a eficácia do direito ao limite posto pelo orçamento de um Estado, sob pena de se perder a vinculação jurídica e de não se promover o mínimo existencial. 17 Idem, ibidem, p. 827. 18 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner – Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. [em linha]. 2008. Brasil, Porto Alegre. [02.10.2020]. Disponível em https://core.ac.uk/download/pdf/16049457.pdf. p. 16. 19 Idem, ibidem, p. 17.

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Deste modo, diante de uma situação de escassez, é vital definir quem tem direito ao seu acesso, bem como em que medida e proporção terá esse acesso. Sendo certo que, ainda mais quando se trata de um sistema democrático, é primordial que a discussão quanto a esses critérios seja prévia, evitando-se soluções no calor do momento e que poderão suscitar dúvidas quanto ao seu teor democrático e à sua efetiva promoção da igualdade20. Por sua vez, não havendo uma definição direta baseada no parâmetro legal, torna-se necessário debater a questão a partir dos princípios fundamentais. Nesse sentido, a questão da alocação de recursos públicos em saúde suscita desde logo questões associadas aos princípios fundamentais estruturantes de uma sociedade democrática, tais como o princípio da dignidade humana, da igualdade e da equidade. Esse dever de escolha intensifica a responsabilidade moral e fundamenta-se em dois princípios éticos, o da “dignidade humana” e o da “participação”, delimitando as noções individuais e coletivas que o direito à saúde assume, no sentido que o primeiro princípio exige o igual respeito por todos os homens e o segundo pressupõe o esforço de cada um em prol de todos, fazendo com que os indivíduos sejam incentivados a ter consciência da finitude do homem, a realizar escolhas ponderadas e a adotar comportamentos que promovam a saúde. Por sua vez, o princípio da igualdade, previsto no art. 13.º da CRP, na sua vertente de igualdade formal (“igualdade jurídica”) prevê que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos, portanto, devem receber tratamento igual. Mas tal princípio condensa também uma ideia de igualdade material, no sentido de que, prevendo diferenciações, através da lei, deve tratar-se por “igual o que é igual e desigualmente o que é desigual”. A igualdade, portanto, designa uma relação entre diversas pessoas e coisas, demonstrando-se também por ser relacional21. Quando associamos essa noção à questão da efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, como é o caso do direito à saúde, verificamos que o principio da igualdade também deve ser considerado como um princípio de

20 “Quando se discute o uso de recursos públicos em um regime democrático, especialmente em casos de escassez, é inaceitável que o princípio ético da distribuição dos bens norteie-se por valores que não são reconhecidos como legítimos pela maioria das pessoas, o que pode ocorrer mais facilmente quando as decisões são tomadas individualmente. (...) Por isso, na gestão de recursos públicos, é fundamental que as diretrizes éticas referentes aos princípios de alocação sejam claras e, ao máximo possível, elaboradas com a participação coletiva”. Cf. MEDEIROS, Marcelo – Princípios de Justiça na alocação de recursos em saúde. [em linha]. 1999. Brasil, Rio de Janeiro. [04.10.2020]. Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=3976, p. 2. 21 CANOTILHO – op. cit., p. 426.

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justiça social, enquanto princípio de igualdade de oportunidades e de condições reais de vida. Essa ideia de igualdade associada à justiça social, por sua vez, leva-nos à questão do princípio da equidade, o qual reconhece que, sendo os indivíduos diferentes entre si, há necessidade de serem estabelecidos tratamentos diferenciados que eliminem ou reduzam a desigualdade de oportunidades22. A equidade acabou por se consolidar como uma noção basilar no âmbito problemático da alocação de recursos em saúde, sendo reconhecida como princípio que regula a ação humana e o procedimento das instituições para um comportamento que flexibiliza a ideia universal de justiça, buscando uma aplicação casuística na qual é sustentada a igual dignidade de todos os homens, garantindo-se a acessibilidade aos recursos de saúde em conformidade com critérios de redistribuição diferenciada de recursos23. Essa noção de justiça como equidade, a qual foi muito desenvolvida por John Rawls, resgata a função distributiva da justiça e demonstra-se bastante útil à discussão sobre a alocação de recursos em saúde. Nos termos defendidos por John Rawls, justiça e equidade não são a mesma coisa e não assumem o mesmo significado, mas a justiça se fará a partir de uma situação de equidade, se promoverá mediante a equidade24. Nesse aspecto, para uma verdadeira justiça, os seres humanos devem ser tratados como iguais, sem tratamentos preferenciais, exceto quando há motivos que o justifiquem, isto é, quando há uma diferença que precisa de uma eventual desigualdade de meios para que se veja aumentada a chance de uma verdadeira igualdade de oportunidades a final.

22 O princípio da igualdade, por exemplo, pode reproduzir a estrutura de desigualdades de uma sociedade. Um programa internacional de distribuição de alimentos norteado pela igualdade forneceria a mesma quantidade de comida a países pobres e ricos. O princípio da eqüidade, por sua vez, tem como um de seus obstáculos a dificuldade de se medir o grau de “desvantagem” dos indivíduos para assim realizar a distribuição dos benefícios. Cf. MEDEIROS – op. cit., p. 5. 23 CARVALHO, Carla – A “escolha de Sofia”: reflexões bioéticas sobre a alocação de recursos na Covid19. [em Linha]. 2020. Brasil. [18.10.2020]. Disponível em https://migalhas.uol.com.br/coluna/ direito-e-bioetica/331806/a--escolha-de-sofia----reflexoes-bioeticas-sobre-a-alocacao-de-recursos-na-covid19. 24

Embora possa ser defendido que a visão de justiça de Rawls seria muito mais uma indicação procedimental de busca à justiça do que uma definição material dela, a teoria parte da premissa de que, numa situação hipotética de liberdade e igualdade, as pessoas estariam cobertas pelo chamado “véu da ignorância” que as impediria de ver a sua posição na sociedade, as suas condições prévias, e assim poderiam optar com maior racionalidade os princípios de justiça que norteiam uma atribuição plenamente justa de direitos e benefícios sociais, bem como dos deveres básicos. VILLAS-BÔAS, Maria Elisa – “Justiça, igualdade e equidade na alocação de recursos em saúde”. Revista Brasileira De Bioética. v. 6, n. 1-4 (2010), pp. 29-52. e-ISSN: 1808-6020.

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Busca-se com essa diferenciação, com essa discriminação positiva, compensar as desvantagens naturais ou sociais, às quais o indivíduo não deu causa, mas que na sua realidade acabam por comprometer o seu efetivo acesso aos bens e condições favoráveis socialmente disponíveis. Por sua vez, no caso da alocação dos recursos escassos, a ideia de justiça, para além de lidar com as diferenças existentes entre os indivíduos, tem de assumir um pressuposto de finitude de recursos, de modo que a distribuição não será exatamente igual para todos, pois alguns terão de renunciar a uma parte para que outros possam obter em nome de um equilíbrio. Nisso, a ideia de justiça pela equidade demonstra-se como uma grande ajuda a fim de serem detectadas as desigualdades existentes e que devem ser compensadas, para que a distribuição seja o mais igualitária possível, mesmo que para tanto seja necessário adotar medidas de discriminação positiva.

3. Medidas de justiça distributiva na promoção dos direitos sexuais e reprodutivos No âmbito do tema da alocação de recursos em saúde em tempos da pandemia da COVID-19, entendemos que, a fim de se garantir a justiça na promoção do direito à saúde e dos direitos reprodutivos, importa ter em conta a noção de justiça distributiva, na qual o princípio da equidade se consolidou como uma noção basilar ao buscar uma aplicação caso a caso, garantindo-se a acessibilidade aos recursos de saúde em conformidade com a necessidade diferenciada de cada um. Dessa forma, é dentro dessa perspectiva que temos de analisar as medidas que têm sido adotadas por muitos dos países ao redor do mundo, dentre os quais Portugal, que, em decorrência de uma escalada exponencial do número de infectados por COVID-19, tiveram de adotar a suspensão do fornecimento de determinados serviços de saúde, a fim de alocar o máximo para os cuidados da nova doença. É evidente que a atual situação pandêmica se enquadra num contexto de medicina de calamidade, em que se torna ainda mais premente pesar os valores individuais face às necessidades coletivas da população, principalmente neste caso em que envolve uma coletividade de espectro internacional. Com efeito, os Estados têm uma disponibilidade jurídica de recursos materiais e humanos limitada, em virtude da sua relação direta com a distribuição de receitas orçamentárias, legislativas e administrativas. Essa limitação torna-se ainda mais clara num contexto pandêmico em que a componente “tempo” adentra a equação, fazendo com que haja uma efetiva limitação da disponibilidade

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fática dos recursos e inevitavelmente tenham de ser feitas escolhas a fim de se melhor garantir a efetivação dos núcleos essenciais dos direitos fundamentais. Deste modo, dentro dos limites da proporcionalidade e adstritos ao princípio da equidade, no contexto da pandemia, face à escassez de recursos, muitos Estados adotaram o entendimento de que a garantia do mínimo existencial dos direitos dos pacientes com COVID-19 deveria ser priorizada face ao direito à saúde de outros pacientes. Nesse sentido, foi o entendimento adotado pelo Estado Português, que considerou a necessidade de serem reorganizados os recursos humanos e materiais e, na medida do necessário, suspender a atividade assistencial não urgente que, pela sua natureza ou prioridade clínica, não implicasse risco de vida para os utentes. Nesse aspecto, no que se refere aos direitos reprodutivos, embora nem a Direção-Geral de Saúde, nem o Ministério da Saúde Português tenham determinado o encerramento dos Centros de PMA, por indicação do CNPMA, a maior parte dos centros decidiu suspender os seus serviços entre o período de 20 de março a 27 de abril de 2020. Ora, face à situação de emergência de saúde pública de âmbito internacional, o entendimento do CNPMA pela suspensão dos serviços de saúde reprodutiva teve por base o desconhecimento quanto ao impacto da infeção pela COVID-19 sobre os embriões, gametas, a grávida e o feto, mas também teve como prioridade cumprir as medidas de segurança e higiene adotadas no país, com o objetivo de diminuir o número de novos casos e, por consequência, evitar que o SNS pudesse entrar em colapso25. Portanto, a decisão pela suspensão dos serviços de saúde reprodutiva, isto é, pela não promoção desse direito aos seus beneficiários, visou garantir em prioridade, face aos recursos escassos, o mínimo existencial do direito fundamental à saúde dos infectados por COVID-19 e, consequentemente, de uma coletividade. No entanto, conforme se pode constatar do inquérito realizado pelo CNPMA, foi significativo e prejudicial o impacto da pandemia de COVID-19 na atividade de PMA, nomeadamente no que concerne aos tratamentos de fertilidade, à colheita de gametas de dadores terceiros e à atividade de preservação do potencial reprodutivo, com particular impacto na capacidade de resposta do sector público, o que pode ser ilustrado pelos seguintes indicadores:

25 Comunicado da SPMR de 23 de abril de 2020. [02.11.2020]. Disponível em https://www.spmr.pt/ noticias/11-novidades/557-recomendacoes-da-spmr-decorrentes-da-pandemia-covid-19-actualizacao-2.

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A maioria dos Centros de PMA reduziu a atividade, estimando-se que possam ter sido cancelados/adiados aproximadamente 2900 ciclos; No caso dos centros públicos, a estimativa é de que a suspensão ou redução da atividade em PMA se repercuta em 8 meses adicionais de tempo de espera; Quando comparada a atividade registada pelos Centros de PMA em 2020 com os últimos anos no período homólogo (de março a agosto), verifica-se uma quebra brutal da atividade assistencial, com uma variação no último ano de menos 48% no sector público e de menos 33% no sector privado.

Consequentemente, não obstante tenha sido concedida uma moratória de 6 meses para garantir o direito de acesso aos tratamentos programados a todas as beneficiárias que, por força da perturbação da atividade dos Centros, ultrapassaram o limite de idade para acesso aos tratamentos de PMA, diante da situação atual esse acréscimo de tempo parece revelar-se insuficiente para garantir a demanda que sempre foi elevada. Ora, é evidente que diante do contexto gerado pela COVID-19, se tornou inevitável aos sistemas de saúde ao redor do mundo a escolha por determinados serviços em detrimento de outros, em prol da garantia do mínimo existencial do direito à saúde da coletividade, nomeadamente tendo em consideração uma doença que ganhou repercussões internacionais. No entanto, como aqui visto, nomeadamente quando falamos da suspensão de serviços relacionados aos direitos reprodutivos, verificamos que tal decisão acabou por intensificar uma insuficiência que já era grave no âmbito da garantia desses direitos. Afinal, se a componente temporal de uma crise como a causada pela pandemia da COVID-19 faz com que, diante da urgência e crescimento exponencial do número de infectados e mortos, seja necessário realocar os recursos disponíveis, o tempo também se torna fator crucial na garantia dos direitos cuja promoção tem ficado em suspenso. Deste modo, não obstante, pelas indicações atuais, já se tenha retomado a atividade clínica não programada, bem como os centros de PMA já tenham reiniciado gradualmente os seus serviços, o período em que tais atividades estiveram paradas propiciou um agravamento das diferenças e desigualdades que já permeavam o sistema de saúde.

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Nas prestações de cuidados de saúde, a diminuição considerável no número de consultas, exames e cirurgias faz com que seja preocupante o aumento do tempo de espera para a realização dos procedimentos, prolongando no tempo a garantia ao direito à saúde de muitos cidadãos26. Por sua vez, nos cuidados de saúde relativos à reprodução, verifica-se um atraso prejudicial no acesso aos serviços já programados, que é ainda mais preocupante para aquelas beneficiárias cuja idade já está no limite ou ultrapassada para a realização dos procedimentos nos termos da lei. Demonstra-se, deste modo, que o tratamento diferenciado que foi adotado no início da pandemia a fim de garantir resposta mais imediata e equitativa ao tratamento dos doentes com COVID-19 acabou por gerar agora uma outra desigualdade de tratamento para os serviços que estiveram temporariamente suspensos. Com efeito, embora a situação atual dos outros serviços de saúde, assim como os referentes à saúde reprodutiva, tenha a sua origem explicada e até mesmo justificada pela adoção de mecanismos de justiça distributiva que tiveram de escolher onde alocar os recursos disponíveis, somos do entendimento de que a sua manutenção não pode ter o mesmo fundamento, sob pena de violação do direito à saúde e dos direitos reprodutivos. Ou seja, apesar de se compreender terem sido adotadas, com base no princípio da equidade, medidas de discriminação positiva para fazer face à situação emergencial dos pacientes infectados por COVID-19, as mesmas tiveram como resultado um agravamento de outras desigualdades que também necessitam de uma resposta em conformidade. Assim, o desafio que se coloca agora é, no cumprimento de uma retomada dos serviços de saúde, a qual se vê novamente ameaçada pelo crescimento acelerado do número de infectados pela COVID-19 em Portugal, propiciar os recursos de modo a diminuir essa desigualdade que se viu agravada pela suspensão dos serviços não urgentes. 26 A atividade dos prestadores do SNS nos meses de março a maio de 2020 foi assim inferior à registada no mesmo período de 2019, sendo de destacar a redução da atividade cirúrgica programada (menos 58%, 93.300 cirurgias), da atividade dos serviços de urgência hospitalares (menos 44%, 683.389 atendimentos) e das primeiras consultas externas médicas hospitalares (menos 40%, 364.535 consultas). No entanto, as medianas dos tempos de espera dos utentes em lista agravaram-se entre 31 de dezembro de 2019 e 31 de maio de 2020: i) nas consultas externas, de 100 para 171 dias, com cerca de 69% dos inscritos em 31.05.2020 a aguardar para além dos Tempos Máximos de Resposta Garantidos (TMRG); ii) nos inscritos para cirurgia, de 106 para 147 dias, com cerca de 43% dos inscritos em 31.05.2020 a ultrapassar os TMRG. Cf. RELATÓRIO N.º 5/2020 – OAC 2.ª SECÇÃO, Tribunal de Contas – COVID-19 – Impacto na atividade e no acesso ao SNS. outubro 2020. [05.11.2020]. Disponível em https://www.tcontas.pt/pt-pt/ProdutosTC/Relatorios/relatorios-oac/Documents/2020/relatorio-oac-2020-05.pdf.

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Para tanto, é crucial a definição de novas políticas de saúde que tomem em consideração as limitações atuais do sistema de saúde e visem garantir as prestações tanto para o tratamento da COVID-19, como para os outros serviços de saúde. Afinal, no âmbito de uma reserva do possível do Estado, se não se pode exigir do mesmo aquilo que se afigura para além do razoável, no entanto, também em contrapartida, essa limitação de recursos não pode ser utilizada como escusa para a promoção adequada e equitativa dos direitos fundamentais. Portanto, dentro de uma mesma lógica de justiça distributiva, torna-se importante a adoção de medidas de discriminação positiva27 que visem compensar as desvantagens criadas com a suspensão de alguns serviços de saúde, a fim de que a pandemia causada pela COVID-19 não se consolide como elemento ainda mais propulsor das desigualdades já existentes.

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27 Como é o exemplo de se adotar execionalmente uma prorrogação ainda maior no tempo para o acesso aos tratamentos de reprodução para beneficiárias que nesse intervalo de tempo da pandemia tenham atingido o limite de idade estabelecido na Deliberação n.º 15/II, de 20 de outubro de 2017.

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Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no contexto da pandemia do COVID-19

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LEGALIDADE VERSUS CONSEQUENCIALISMO: OS MAGISTRADOS PODEM PAUTAR SUAS DECISÕES EM FUNDAMENTOS CONSEQUENCIALISTAS?

Murilo Strätz1

1. Introdução A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com a redação da Lei n.º 13.655/2018, entre outras disposições de direito federal, passou a estabelecer a obrigatoriedade de as decisões administrativas, judiciais e controladoras (oriundas das instâncias de controle em geral, como tribunais de contas, agências reguladoras e Ministério Público) considerarem: a) as consequências práticas de suas decisões, quando interpretarem “valores jurídicos abstratos” (art. 20); b) as condições para que a regularização do ato/contrato declarado inválido “ocorra de modo proporcional e equânime”, “não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos” (art. 21, parágrafo único); e c) a necessidade de “regime de transição”, sempre que fixarem interpretação ou orientação que inove ou modifique a(s) anterior(es), conforme dispõe o art. 23.

1 Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade do Minho, Ciência ID A81D-E2C4-932B e ORCID ID 0000-0002-8426-2424. E-mails: murilo.stratz@agu.gov.br e murilostratz@uol.com.br.

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Muitas questões passaram a ser suscitadas desde a promulgação dessa inovação legislativa que vão para além do debate semântico acerca dos termos vagos ali utilizados, tais como “valores jurídicos abstratos” (art. 20)2, “regularização proporcional e equânime” (art. 21)3 ou “norma de conteúdo indeterminado” (art. 23)4. O debate que o presente ensaio suscita tem uma natureza muito mais jusfilosófica do que propriamente semântica sobre as disposições positivadas na nova norma, pois o que subjaz filosoficamente a tais inovações legais – a despeito de eventuais especificidades de cada dispositivo incluído pela nova Lei – é precisamente um embate entre o ortodoxo princípio da legalidade e um requentado consequencialismo de matriz utilitarista. O texto a seguir principia situando sinteticamente as fases, ou fenômenos, que conduziram à positivação do paradigma consequencialista trazido pela Lei Federal Brasileira n.º 13.655/2018, segundo o qual as decisões judiciais deixam de ser programadas e passam a ser “programantes”. Na sequência, o trabalho aborda a relação entre universalismo e consequencialismo. E, no terceiro e último tópico, preparando-se para a conclusão, o artigo procura responder à questão sobre se cabe ao legislador infraconstitucional, na elaboração de normas ordinárias de interpretação e adjudicação, eximir os juízes de aplicarem leis juridicamente válidas (previsões legais que estão de pleno acordo com a Constituição e os Tratados e Convenções Internacionais) e incidentes no caso concreto (adequadas à espécie, cujos contornos fáticos subsomem-se à moldura legal).

2 “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.” 3 “Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.” 4 “Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais. Parágrafo único. (VETADO).”

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Legalidade versus Consequencialismo: os magistrados podem pautar suas decisões em fundamentos consequencialistas?

2. De decisões programadas a decisões programantes Segundo o catedrático professor brasileiro Tércio Sampaio Ferraz Jr.5, até o século XX, a interpretação vinha antes da aplicação, de modo que as decisões daí decorrentes eram “programadas”, e não “programantes”, já que, sobretudo para as concepções mais legalistas, cabia ao aplicador do Direito interpretar a legislação e aplicá-la fielmente ao caso concreto, sem qualquer tipo de inovação ou criação paralela ao ordenamento jurídico. Cabia à lei “programar” a aplicação do Direito, de sorte que a decisão que o aplicava era apenas uma decisão “programada”, e não programante. Porém, fazendo referência ao jurista alemão Gunther Teubner, Tércio Sampaio Ferraz Jr. chama a atenção, ao tratar das origens do ativismo judicial, para quatro fenômenos relevantes no declínio da força normativa da lei, quais sejam: 1) o fato de o Estado estar deixando, cada vez mais, de ser o centro das atenções, passando a ser substituído pelo mercado global; 2) o advento da segunda onda de jusnaturalismo, agora sob o formato de Teoria da Argumentação Jurídica, a gerar diminuição do prestígio que costumava ser atribuído à legalidade; 3) a perda da hegemonia institucional da Constituição política, diante dos novos arranjos internacionais e regionais de organização do poder; e, por fim, 4) o ativismo judicial, a crescer exponencialmente, em detrimento da importância dos códigos, cada vez mais mitigada. Nessa ordem de ideias, a validade jurídica dos atos objeto de glosa pelos juízes cede lugar à eficácia material desses atos, vale dizer, à sua aptidão para produzir determinados efeitos ou consequências, desde que positivas na visão individual do censor. A legitimidade da decisão passa a repousar numa relação funcional entre fins e meios, que é capaz de fazer convalescer até mesmo uma eventual invalidade jurídica, se os “ônus ou perdas” decorrentes da anulação do ato forem, “em função das peculiaridades do caso”, “anormais ou excessivos”. Isso pode significar a mantença de um ato ou contrato administrativo manifestamente ilegal, caso a autoridade controladora repute, a partir de sua própria subjetividade (e não a partir da legislação que rege o tema), que o prejuízo a ser suportado pelos envolvidos na ilegalidade revela-se “anormal ou excessivo”. A modulação ganha destaque nesse consequencialismo, pois o magistrado pode determinar que o ato é ilegal apenas para o futuro (invalidade ex nunc), de modo que os efeitos já produzidos seriam resguardados. A decisão, portanto, 5 FERRAZ JR., Tércio Sampaio – Palestra proferida no evento online intitulado “Olhares da Filosofia e Sociologia do Direito sobre o Ativismo Judicial”, organizado pelo FONACE e ocorrido em 12.11.2020. Disponível em https://m.youtube.com/watch?fbclid=IwAR07DIrzI-0ffO-3sOCiV GNhdvJu38tCqDFyShFASZYVA7stBz7gCIikFaI&feature=youtu.be&v=AY8GuMWOgvw. Acesso em 20.11.2020.

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ao invés de voltar-se ao passado (efeitos ex tunc) e proteger o padrão normativo que é prévio ao controle judicial (decisão programada), passa apenas a visar o futuro, constituindo-se numa verdadeira decisão programante. Ao assim proceder, a decisão prioriza a justiça material da espécie, dando à causa um enfoque particularista, para deixar em segundo plano a estabilidade do sistema e a segurança jurídica, apartando-se, assim, de uma abordagem universalista. Enfim, as decisões passam a ser, elas mesmas, os seus próprios fundamentos de validade (daí por que programantes, e não programadas), de modo que se arvoram, ainda que de modo oblíquo e escamoteado, a indisfarçáveis atos políticos, não sendo mais a mera concretização de opções políticas anteriores engendradas pelos órgãos democráticos para tanto eleitos. Raffaele de Giorgi6, ao também tratar do tema, discorre sobre a pulverização dos centros de poder decisório e sobre a volatilidade do Direito, chamando a atenção para a “perda de memória” do sistema jurídico, cujas referências acabam sendo criadas episodicamente, e não a partir de marcos anteriores positivamente estabelecidos.

3. O universalismo contempla o consequencialismo? Para que um Estado seja considerado Estado de Direito (Rule of Law), não basta que este contenha regras jurídicas. Estas devem fazer parte de um sistema, no qual haja consistência (ausência de contradição entre elas) e coerência (os princípios mais específicos devem derivar de princípios mais gerais), pois regras soltas de nada valem. E, na aplicação dessas regras − que são consistentes e coerentes −, o aplicador deve verificar se elas são universalizáveis (aptas a serem

6 GIORGI, Raffaele de – Palestra proferida no evento online intitulado “Olhares da Filosofia e Sociologia do Direito sobre o Ativismo Judicial”, organizado pelo FONACE e ocorrido em 12.11.2020. Disponível em https://m.youtube.com/watch?fbclid=IwAR07DIrzI-0ffO-3sOCiVGNh dvJu38tCqDFyShFASZYVA7stBz7gCIikFaI&feature=youtu.be&v=AY8GuMWOgvw. Acesso em 20.11.2020.

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aplicadas a outras situações idênticas, sem causar injustiça)7, bem como se da sua concretização não advirão consequências irresponsáveis (o que se chama de “consequencialismo não extremado”). Segundo Neil MacCormick, o consequencialismo é um princípio utilitarista. MacCormick vê como um desafio a árdua tarefa de se encontrar uma versão satisfatória do consequencialismo jurídico, que, de um lado, não subverta o universalismo, e, de outro, não dê azo a uma flagrante injustiça no caso concreto8. O pensamento utilitarista é bem condensado nesta clássica fórmula benthamiana: “the greatest happiness of the greatest number”9. Sendo decorrência do utilitarismo, o consequencialismo afere o valor moral de cada conduta a partir dos efeitos que ela gera, e não a partir de sua correspondência a uma prévia deontologia que a normatize. Por isso sua visão é voltada apenas para o futuro10.

7 Para KANT, a “universalidade” é a condição formal de todas as máximas: “Todas as máximas têm, com efeito: 1) uma forma, que consiste na universalidade, e sob este ponto de vista a fórmula do imperativo moral exprime-se de maneira que as máximas têm de ser escolhidas como se devessem valer como leis universais da natureza; 2) uma matéria, isto é, um fim, e então a fórmula diz: o ser racional, como fim segundo a sua- natureza, portanto como fim em si mesmo, tem de servir a toda a máxima de condição restritiva de todos os fins meramente relativos e arbitrários; 3) uma determinação completa de todas as máximas por meio daquela fórmula, a saber: que todas as máximas por legislação própria, devem concordar com a ideia de um reino possível dos fins como um reino da natureza. O progresso aqui efectua-se como que pelas categorias da unidade da forma da vontade (universalidade dessa vontade), da pluralidade da matéria (dos objectos, i. é dos fins), e da totalidade do sistema dos mesmos. Mas é melhor, no juízo moral, proceder sempre segundo o método rigoroso e basear-se sempre na fórmula universal do imperativo categórico: Age segundo a máxima que possa simultaneamente fazer-se a si mesma lei universal. Mas se se quiser ao mesmo tempo dar à lei moral acesso às almas, então é muito útil fazer passar uma e a mesma acção pelos três citados conceitos e aproximá-la assim, tanto quanto possível, da intuição” (KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Manuel Pires Quintela. Lisboa: Edições 70. 2007, pp. 79-80). 8 MAcCORMICK, Donald Neil – Retórica e o Estado de Direito. Tradução de Conrado Hübner. Rio de Janeiro: Elsevier. 2008, nota de rodapé, p. 143. 9 “The end or object in view, to which every political measure, whether established or proposed, ought according to the extent of it to be directed, is the greatest happiness of the greatest number of persons interested in it, and that for the greatest length of time” (BENTHAM, Jeremy – Anarchical Fallacies. The works of Jeremy Bentham. Edimburgh: John Bowring ed. 1843, p. 482). 10 “O consequencialismo é uma doutrina do âmbito da filosofia moral e da ética que afirma que o valor moral de um ato é determinado exclusivamente por suas consequências. Sua visão é que não se deve preocupar com as ações e seus valores no passado, tendo em vista que nada se pode fazer a respeito do que já passou, mas que se deve, antes, buscar olhar para frente, para o futuro, tomando como motivação a escolha de ações que maximizem suas boas consequências e que reduzam ao máximo suas más consequências” (SCHMELTER, Matheus Maia – “Consequencialismo”. InfoEscola. Artigo publicado em 22.01.2020. Disponível em https://www.infoescola.com/filosofia/ consequencialismo. Acesso em 24.11.2020).

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Há pelo menos dois tipos de razão substantiva que podem ser apresentados na justificação das decisões judiciais: as “razões de persecução de objetivos (goal reasons)” e as “razões de correção”. Não obstante, MacCormick adverte ser nebulosa a distinção entre tais modalidades de razões em certos casos, porquanto os objetivos que os juristas estabelecem adequadamente podem tornar-se metas que asseguram a correção material da decisão. Assim, as metas que eles perseguem são, em termos de consequências universalistas, a base para resolver um caso problemático particular e qualquer outro caso similar que apareça depois, funcionando assim como razões de correção, além de objetivos a serem atingidos. Já Dworkin, ao tecer duras críticas ao pragmatismo11 e ao convencionalismo12, estabeleceu a distinção entre “argumentos de princípio” (matters of principle) e “argumentos de política” (matters of policy), cabendo a estes últimos fundamentar uma decisão calculada para promover o avanço de algum bem intrinsecamente coletivo ou alguma vantagem utilitarista, ao passo que aos primeiros caberia dar apoio a uma decisão fundamentada na integridade e na tradição do Direito já estabelecido. E, se as razões consequencialistas para fundamentar uma decisão forem boas, não poderia a política ter papel fundamental na produção de razões jurídicas? Ao responder tal questionamento, MacCormick defende que tanto as razões de correção (razões jurídicas) quanto as razões orientadas a objetivos (razões políticas ou consequencialistas) consistem nos dois lados da mesma moeda, uma vez que até mesmo os argumentos políticos devem ser, igualmente, universalizados, o que implicará o estabelecimento de uma norma de correção. Destarte, os juízes, ao perseguirem determinados valores políticos em um viés 11 POSNER concebia o pragmatismo como a disposição de basear as decisões públicas em fatos e em consequências, em vez de baseá-las em conceitualismos e em generalizações, de modo a fazer o melhor possível em vista do presente e do futuro, sem o dever de atrelar-se às decisões do passado (POSNER, Richard A. – A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins Fontes. 2012, p. 380). 12 “O pragmático adota uma atitude cética com relação ao pressuposto que acreditamos estar personificado no conceito de direito: nega que as decisões políticas do passado, por si sós, ofereçam qualquer justificativa para o uso ou não do poder coercitivo do Estado. Ele encontra a justificativa necessária à coerção na justiça, na eficiência ou em alguma outra virtude contemporânea da própria decisão coercitiva, como quando ela é tomada por juízes, e acrescenta que a coerência com qualquer decisão legislativa ou judicial anterior não contribui, em princípio, para a justiça ou para a virtude de qualquer decisão atual. Se os juízes se deixarem guiar por esse conselho, acredita ele, então a menos que cometam grandes erros, a coerção que impõem tornará o futuro da comunidade mais promissor, liberado da mão morta do passado e do fetiche da coerência pela coerência” (DWORKIN, Ronald – O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes. 1999, p. 185).

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universalizante, acabam transformando suas decisões “políticas” em decisões “de princípio”. Tais decisões, além disso, não precisam da predefinição de direitos como rota para encontrar os princípios. Ao revés, os próprios direitos é que são as consequências das decisões de princípio, e não os pressupostos delas, pois o fato de alguns direitos terem sido expressamente incorporados a determinadas Cartas de Direitos Humanos não significa que eles não existissem tradicionalmente antes de sua incorporação formal, tal como se verifica, por exemplo, nos sistemas jurídicos do Reino Unido13. Conclui-se o presente tópico, portanto, afirmando que o consequencialismo pode ser reconduzido ao universalismo. Mas isso não significa que decisões judiciais dotadas de fundamentação exclusivamente consequencialista sejam legítimas do ponto de vista da legalidade, do Estado de Direito e do protoprincípio que corporifica o Rule of Law, qual seja, a segurança jurídica. É que uma decisão não se legitima apenas por sua suposta qualidade final ou intrínseca, tampouco pelos objetivos práticos que alcança ou fomenta, mas também pelo modo de decidir, o que pressupõe o respeito ao devido processo legal e ao direito posto, como bem observam Benedito Cerezzo Pereira Filho e João Pedro de Souza Mello14.

4. Pode o legislador eximir os juízes de aplicarem a lei? Considerando que o próprio legislador brasileiro passou a exigir das instâncias controladoras uma motivação adicional a decisões supostamente amparadas em lei, percebe-se que para o próprio legislador a lei não é mais um fator decisivo nem suficiente para a adequação do provimento decisional. Em outras palavras, a conformidade com a lei já não se afigura como fator exclusivo para que uma decisão seja considerada adequada, necessária e fundamentada, pois a Lei ora em discussão exige dos órgãos decisórios que motivem “a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”, conforme se extrai do comentado art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, incluído pela Lei n.º 13.655/2018.

13 MAcCORMICK – op. cit., p. 160. 14 “Se o juiz decide em nome de uma ordem democrática, o resultado só pode ser avaliado segundo o processo por que foi alcançado. A qualidade da decisão está não apenas em seu conteúdo final, mas no modo como ela se produziu e na qualificação de quem o fez” (PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo; MELLO, João Pedro de Souza – “Uma Justiça que produz, mas não julga: das metas do CNJ à inteligência artificial”. CONJUR. Artigo publicado em 28.09.2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-set-28/pereira-filho-mello-justica-produz-nao-julga. Acesso em 24.11.2020).

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Exemplificando, se o Ministério Público impugna, perante um tribunal de contas ou judiciário, um contrato administrativo celebrado em manifesta contrariedade às leis cogentes que regem os negócios jurídicos da Administração Pública, o órgão competente para apreciar tal impugnação não pode mais simplesmente invalidar a avença ilegal. Deverá o juiz, antes disso, demonstrar “a necessidade e a adequação da invalidação, inclusive em face das possíveis alternativas”, como se fosse possível juridicamente manter-se ou convalidar-se uma ilegalidade em negócios públicos por decisão judicial, sem que a norma infringida pelos infratores seja declarada inconstitucional ou inaplicável ao caso. Como se vê, diversamente do que se dá no Common Law, onde as decisões judiciais impõem-se na omissão do legislador, no Brasil é este que autoriza os juízes a descumprirem a lei, quando na opinião deles a aplicação desta se mostre “desnecessária”. E se os juízes passarem a considerar “desnecessárias” as próprias inovações trazidas pela Lei n.º 13.655/2018? Essa pergunta retórica serve para demonstrar que a inovação legal ora discutida pode acabar provocando uma corrosão à normatividade das leis em geral. Percebe-se que o tema é delicado, pois, ou bem as leis são de observância obrigatória, salvo em caso de inconstitucionalidade ou inadequação ao caso, ou bem elas não precisam ser cumpridas, o que acabaria por reduzir o princípio constitucional da legalidade democrática a um mero “wishful thinking”, e a própria Constituição a uma singela carta de boas intenções. A própria noção de Estado de Direito ficaria ainda mais comprometida com tal flexibilização da força normativa das leis, ao menos nos sistemas de Civil Law15, como o Brasil, onde as leis já não costumam ser levadas a sério. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, no entanto, mostra-se simpático a abordagens menos apegadas à legalidade, sendo, a propósito, um notório e ferrenho defensor das contribuições teóricas trazidas pela escola da análise econômica do Direito. Em webinário sobre Direito Constitucional realizado em 16.11.2020 na Suprema Corte brasileira, ele destacou a

15 Já nos sistemas de Common Law, ao revés, cuja tradição foi moldada pelo pragmatismo, o princípio da legalidade nunca foi formalmente levado a sério, o que levou Richard Posner a asseverar que “magistrados e outros tomadores de decisões devem pensar sempre em termos de consequências, sem levar a sério a retórica do formalismo legal e sem esquentar a cabeça com a filosofia pragmática” (POSNER, Richard A. – Direito, pragmatismo e democracia. Rio de Janeiro: Forense. 2010, p. 299).

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importância do papel desempenhado pelo princípio da eficiência no funcionamento de todo o aparato judiciário16. Porém, para o administrativista José Vicente Santos de Mendonça, em comentário sobre o projeto que deu origem à nova lei, o provável cenário para o futuro não parece ser tão alvissareiro quanto esperavam seus autores intelectuais. Longe de inspirar o florescimento de uma nova cultura (a do pragmatismo, com a qual o Direito brasileiro não está familiarizado), a inovação legal talvez consiga apenas fazer com que os juízes passem a alterar a terminologia com a qual fundamentam seus veredictos. Assim, começariam a incorporar em seus julgados a semântica utilizada pela nova lei, tal como a expressão “consequências práticas da decisão”, com vistas a apenas promover um “cumprimento insincero desta nova Lei de Introdução”17. Essa discussão perpassa pela Teoria do Direito em âmbito universal e versa sobre a tensão entre os limites da legalidade e a busca por eficiência e efetividade (ou resultado útil, segundo uma relação funcional que o consequencialismo traça entre meios e fins). Até mesmo nos Estados Unidos da América, onde a legalidade não encontra o mesmo eco observado em países de tradição civilística, como Brasil e Portugal, começam a surgir vozes importantes a opor-se contra a perda de normatividade da lei. Cass Sunstein e Adrian Vermeule, em recente artigo, relatam a sinalização aventada por alguns magistrados da Suprema Corte dos Estados Unidos da América (SCOTUS) no sentido de, em homenagem à legalidade, retomar-se a “doutrina da não delegação” (“nondelegation doctrine”)18, 16 “Nós estamos vivendo a era da análise econômica do Direito, que procura dar respostas eficientes à sociedade pela necessidade de prestar contas”, afirmou o ministro ao indicar o ramo acadêmico que prega o conceito de eficiência diante de um ambiente de escassez, aplicando teorias econômicas no campo do Direito em todos os seus segmentos. Ele também lembrou que países com sistema jurídico eficiente são bem elencados em rankings de investimentos do Banco Mundial. Como exemplos da escola indicada, o ministro citou a aplicação do conceito de custo/ benefício ao ajuizamento de ações e à realização de autocomposições (Supremo Tribunal Federal. Disponível em http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=453505. Acesso em 14.12.2020) 17 MENDONÇA, José Vicente Santos de – “Dois futuros (e meio) para o projeto de lei do Carlos Ari”. In MENDONÇA, José Vicente Santos de; LEAL, Fernando (Coords.) – Transformações do Direito Administrativo: consequencialismo e estratégias regulatórias. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2016, p. 31. Disponível em https://www.academia.edu/31119048/Dois_futuros_e_meio_ para_o_projeto_de_lei_do_Carlos_Ari. Acesso em 24.11.2020. 18 “Four members of the U.S. Supreme Court, and possibly five, have indicated that they would like to revive the ‘nondelegation doctrine’, which would forbid Congress from granting excessively broad or uncabined discretion to administrative agencies such as the Environmental Protection Agency, the Department of Labor and the Department of Transportation” (SUNSTEIN, Cass R.; VERMEULE, Adrian – “The Very Structure of Modern Government Is Under Legal Assault”. The New York Times. Artigo publicado em 15/09/2020. Disponível em https://www.nytimes. com/2020/09/15/opinion/us-government-constitution.html. Acesso em 23.11.2020).

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segundo a qual o legislador não deveria editar leis sem conteúdos normativos que previssem expressamente os modos pelos quais a Administração Pública deveria atuar diante do administrado, sob pena de criar-se um governo paralelo ao eleito e, portanto, desprovido de legitimidade democrática. Sustein e Vermeule vislumbram, nessa sinalização feita por alguns membros da SCOTUS, um esboço de desmonte do Estado Administrativo contemporâneo, criticando que a mudança ensaiada pela Suprema Corte acabaria por enfraquecer a discricionariedade técnica e a independência que as agências reguladoras têm em relação a influxos circunstanciais ou conjunturais de natureza política que possam turvar análises técnicas. Com efeito, a lei não costuma descer a detalhes técnicos na regulação de mercados altamente especializados e sensíveis a expansões tecnológicas diárias, cuja evolução o legislador não consegue acompanhar. Daí o caráter elástico e genérico das disposições legais que, por meio de cláusulas gerais, atribuem amplos poderes a tais agências. Tais claúsulas gerais correm o risco, doravante, de serem declaradas inconstitucionais por ofensa ao princípio da legalidade e ao rule of law. Assim, de um lado, há uma perda do caráter gerencial e da consecutiva eficiência dessas agências reguladoras. De outro lado, porém, se se assumir o caminho inverso, para conferir um poder normativo cada vez mais expressivo a essas agências, a Suprema Corte se defrontará com o baixo coeficiente democrático das normas expedidas por essas agências, cujos corpos legiferantes, como se sabe, não são eleitos pelo povo, o que pode representar uma ameaça à democracia e ao Estado de Direito.

5. Conclusão Diante do exposto, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13.655/2018, veio positivar a inauguração de um paradigma segundo o qual a decisão controladora nela amparada, ao invés de voltar-se ao passado e proteger o ordenamento jurídico que é prévio a esse controle (decisão programada), passa a preocupar-se com o futuro, constituindo-se numa verdadeira decisão programante. Com isso, tem-se um paradigma a priorizar a justiça material da espécie, com um enfoque marcadamente particularista, a deixar em segundo plano a estabilidade do sistema objetivo e a segurança jurídica, o que se dá em detrimento de uma abordagem universalista e deferente ao dogma da legalidade, na medida em que as decisões passam a ser, elas mesmas, os seus próprios fundamentos de validade. O risco desse giro consequencialista é o de que as decisões de controle passem a consistir, por via oblíqua e escamoteada, em atos políticos travestidos de roupagem técnico-jurídica. Dessa forma, as decisões assim tomadas deixa92


Legalidade versus Consequencialismo: os magistrados podem pautar suas decisões em fundamentos consequencialistas?

rão de ser mera concretização de opções políticas anteriores, engendradas pelos órgãos democráticos para tanto eleitos, e passarão a constituir, elas mesmas, opções políticas, porém criadas sem lastro democrático. Se a inovação legal ora discutida for levada às últimas consequências, a concepção ali contida pode ter o condão de legitimar a inobservância, pelos agentes decisórios, de qualquer tipo de determinação legal, aqui incluídas, paradoxalmente, as previsões desse próprio diploma inovador. Em suma, a ora estimulada corrosão da normatividade das leis em geral pode voltar-se contra a própria lei que a isso estimula, de sorte que os controladores deixariam de aplicá-la caso entendessem que a violação ao princípio da legalidade causaria “prejuízo aos interesses gerais”, para valermo-nos ironicamente de expressão da nova lei.

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A LEI DE MIGRAÇÃO BRASILEIRA E AS INCONSISTÊNCIAS DE SUA REGULAMENTAÇÃO COMO IMPEDIMENTO DO EXERCÍCIO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS IMIGRANTES

Olívia Maria Cardoso Gomes1

1. Introdução A Lei n.º 13.445/2017 é a mais recente legislação de migração no Brasil e retirou do ordenamento jurídico o Estatuto de Estrangeiro, feito durante a ditadura militar. A lei anterior criminalizava diversas condutas dos estrangeiros, seguindo a doutrina interna da segurança nacional. A nova lei pretendeu cumprir com as obrigações internacionais de direitos humanos assumidas pelo Brasil. Contudo, o Decreto de sua regulamentação (Decreto n.º 9.199/2017) contraria a Lei de Migração em alguns pontos, principalmente em relação às medidas humanitárias tomadas pela lei. Diante disto, o objeto desta pesquisa são as inconsistências do decreto de regulamentação da nova lei, analisando as contradições normativas entre a lei e o decreto numa perspectiva sistemática, juntamente com os direitos fundamentais garantidos a todos pela Constituição brasileira. A pesquisa tem por objetivo ana1 Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas e mestre em Direitos Humanos pela Universidade do Minho. Advogada e professora universitária. Membro colaboradora do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov). E-mail: oliviamcgomes@hotmail.com.

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lisar a possibilidade de exercício de direitos fundamentais pelos imigrantes no país, a partir das diretrizes estabelecidas a partir da nova legislação, assim como analisar a política migratória praticada pelo Estado brasileiro, de forma geral, inclusive no período de isolamento social decorrente da pandemia da Covid-19. O tema das migrações se torna cada vez mais relevante, haja vista que os deslocamentos, incluindo aqueles forçados, atingem mais de 250 milhões de pessoas no mundo, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU)2, o que nos remete ao tratamento dispensado aos imigrantes pelos Estados soberanos. Assim, analisaremos a nova agenda brasileira para os imigrantes, abordando-a a partir de uma perspectiva humanista, considerando o respeito à dignidade da pessoa humana, ao direito a migrar e aos direitos humanos. Para a realização da pesquisa, utilizámos o método analítico-descritivo e os procedimentos de pesquisa indireta bibliográfica e documental em livros, periódicos, leis e sítios eletrônicos.

2. A nova lei de migração brasileira A Lei n.º 13.445/2017, atual Lei de Migração, substituiu a antiga Lei n.º 6.815/1980, mais conhecida por Estatuto do Estrangeiro, além da Lei n.º 818/1949, que regulava a aquisição, a perda e a reaquisição da nacionalidade e a perda dos direitos políticos por estrangeiros. O Estatuto, criado durante o período da ditadura militar brasileira, tinha a função primordial de resguardar a soberania nacional e os interesses do país e seus trabalhadores nacionais diante de possíveis ameaças estrangeiras, logo, “tratava o não nacional como uma ameaça aos brasileiros e a imigração como uma questão de segurança nacional”3. A modificação legal na matéria foi bastante esperada desde a publicação da atual Constituição democrática, em 1988, em razão da necessidade de se obter um marco normativo compatível com os princípios de direitos humanos estabelecidos pelo constituinte nacional e afirmados em convenções internacionais. Era preciso abandonar uma legislação excludente e securitária e partir para uma normatividade integrada aos princípios humanistas, ao respeito à dignidade da pessoa humana e ao direito a migrar. A discricionariedade do Estatuto do Estrangeiro culminava na insegurança jurídica dos não nacionais no país, a exemplo da possibilidade de expulsão 2 ZEHBRAUSKAS, Adriana – Número de migrantes internacionais no mundo chega a 272 milhões. Unicef/ONU. 27 nov. 2019. [10/11/2020]. Disponível em https://news.un.org/pt/tags/relatorio-de-migracao-global-2020/audio/index.html. 3 MENDES, Aylle de Almeida; BRASIL, Deilton Ribeiro – “A Nova Lei de Migração Brasileira e sua Regulamentação da Concessão de Vistos aos Migrantes”. Sequência. N. 84 (2020), pp. 64-88. [10/10/2020]. Disponível em http://dx.doi.org/10.5007/2177-7055.2020v43n84p64.

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por nocividade à conveniência e aos interesses nacionais4, ou mesmo da concessão do visto, sua prorrogação ou transformação terem sido sempre condicionadas aos interesses nacionais5. A nova lei surgiu, inicialmente, para superar estes aspectos autoritários e de certo modo criminalizadores do ato de migrar, a fim de reconhecer plenamente os direitos fundamentais dos estrangeiros no país. Esta demanda foi crescendo na medida em que o Brasil foi se tornando um destino cada vez mais procurado, principalmente por latinos, caribenhos e africanos6. Segundo dados do Ministério da Justiça, em 2019, havia no país 1,1 milhão de imigrantes e 7 mil refugiados, majoritariamente haitianos, venezuelanos e colombianos7. O fato é que, após a redemocratização, o Estatuto do Estrangeiro se tornou insuficiente por não ser condizente com os ditames democráticos e com os direitos fundamentais garantidos a todos pela Constituição. A proposta do novo marco legal era de ajustar a política migratória nacional aos ditames dos direitos humanos, porém, alguns vetos ao projeto de lei (PL n.º 288/2013) impediram a concretização de direitos fundamentais. Um veto polêmico diz respeito ao não reconhecimento do direito humano de migrar em sua integralidade, qual seja, de reconhecer direito de livre circulação no território nacional para nacionais e estrangeiros em situação de igualdade, tratando da possibilidade de entrada no país pelos estrangeiros não como direito e sim como expectativa de direito. A lei brasileira segue a linha interpretativa do art. 13 da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, que consagra a liberdade de circulação com ênfase na emigração, permitindo a saída de pessoas de seus Estados. Contudo, não faz menção à permissão da entrada e permanência de imigrantes em território de determinado país ou a cidadania aos residentes imigrantes. Trata-se de um direito incompleto, sem possibilidade de seu pleno exercício, pois há o direito a deixar o território do Estado de origem e não há o direito a se estabelecer em outro território.

4 Art. 65, caput. É passível de expulsão o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranquilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais. 5 Art. 3.º: A concessão do visto, a sua prorrogação ou transformação ficarão sempre condicionadas aos interesses nacionais. 6 REDIN, Giuliana; BERTOLDO, Jaqueline – “Lei de migração e o «novo» marco legal: entre a proteção, a discricionariedade e a exclusão”. In REDIN, Giuliana (org) – Migrações internacionais: experiências e desafios para a proteção e promoção de direitos humanos no Brasil [e-book]. Santa Maria, RS: Ed. UFSM. 2020. pp. 41-62. 7 RIBEIRO, Victor – “Brasil já recebeu 1,1 milhão de imigrantes e 7 mil refugiados”. Agência Brasil. 19 jan. 2019. [02.10.2020]. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-01/brasil-ja-recebeu-11-milhao-de-imigrantes-e-7-mil-refugiados.

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Ao negar a mobilidade humana como um direito, o Estado sujeita as pessoas às suas normas de permanência, entrada e saída de forma arbitrária, sem lhes conceder o espaço de direito necessário para o desenvolvimento de suas personalidades e de uma vida digna. Há, nessa perspectiva, a constante presença do elemento estrangeiro na relação indivíduo-Estado e a consequente instrumentalização das pessoas que passam a ser objetos das leis e não sujeitos dos direitos ali declarados. Neste sentido, Redin afirma que o direito humano de imigrar é um “direito à mobilidade humana internacional, de estar, permanecer e aventurar-se ao porvir, sem uma petição de pertença ao Estado (típica das exigências de naturalização) ou petição de inclusão. [...] Ao Estado impõe-se a obrigação de respeitar esse ‘terceiro espaço’, onde está o ‘direito de imigrar’, e, consequentemente, reorganizar-se como instituição para acomodação dessa realidade”8. Contudo, a despeito dos vetos a disposições relevantes do projeto de lei, não há dúvidas quanto a urgente e importante publicação de uma norma que ultrapassasse a visão do estrangeiro como uma ameaça e que não mais o tratasse apenas pelo viés trabalhista das relações humanas. Assim, a nova Lei de Migração trouxe mudanças significativas, a começar pela nomenclatura da lei: havia um estatuto para os estrangeiros, ou seja, uma norma voltada para disciplinar as condições de permanência dos não nacionais no país, deixando bem clara sua estrangeiridade9, o que enseja xenofobia e dificuldades de integração e passa-se para o termo migrante na nova lei. Embora não tenha havido o reconhecimento expresso do direito humano a migrar, há, com a escolha do termo “migração”, a ideia de integração do estrangeiro ao país de acolhimento. Além disto, a nova lei definiu termos importantes como imigrantes, emigrantes, residente fronteiriço e apátrida, de acordo com a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 195410. Estabeleceu novos princípios e diretrizes que devem permear a política migratória, em consonância com a Constituição Federal de 1988 e com tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, a ex8 REDIN, Giuliana – Direito de imigrar: direitos humanos e espaço público. Florianópolis: Conceito. 2013. p. 17. 9 SAYAD, Abdelmalek – Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp. 1998. 10 Art. 1.º: Esta Lei dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante. § 1.º Para os fins desta Lei, considera-se: I - (vetado); II - imigrante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil; III - emigrante: brasileiro que se estabelece temporária ou definitivamente no exterior; IV - residente fronteiriço: pessoa nacional de país limítrofe ou apátrida que conserva a sua residência habitual em município fronteiriço de país vizinho; V - visitante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que vem ao Brasil para estadas de curta duração, sem pretensão de se estabelecer temporária ou definitivamente no território nacional; VI - apátrida: pessoa que não seja considerada como nacional por nenhum Estado, segundo a sua legislação, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954.

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emplo dos princípios da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação; não criminalização da migração, dentre outros11. É importante salientar o inédito princípio da não criminalização da migração no ordenamento jurídico brasileiro, em oposição expressa à ideia contida no Estatuto de 1980: do estrangeiro como uma ameaça a ser repelida a bem da soberania e dos interesses nacionais. Prevê, ainda, em condições de igualdade, direitos aos migrantes no território brasileiro, como a inviolabilidade dos direitos à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade, assim como o direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro, filhos, familiares e dependentes12, uma inovação na política migratória brasileira, já que antes não havia esta possibilidade jurídica de residência permanente por acolhida humanitária. Há também uma limitação no poder do Estado dentro dos processos de deportação e expulsão, que passam a balizar-se pelo devido processo legal, procurando se afastar da pura discricionariedade do Estado13. Por fim, a nova lei criou o visto temporário para acolhida humanitária14, inexistente na legislação anterior, mas amplamente praticado pelo Ministério da Justiça desde 2010 quando da intensa chegada de haitianos ao país, com fundamento em resolução do próprio Ministério. Este visto é considerado uma das inovações mais importantes da nova lei, por contemplar a situação fática dos imigrantes que protagonizam os últimos fluxos no país, pessoas forçosamente deslocadas por razões políticas e econômicas oriundas de países fronteiriços, principalmente da Venezuela e Colômbia.

3. O Decreto n.º 9.199/2017 e as inconsistências na regulamentação da nova lei: discricionariedade e segregação A Lei n.º 13.445/2017 foi regulamentada pelo Decreto n.º 9.199/2017, que, em linhas gerais, instrumentaliza as formas de acesso aos direitos contidos na Lei de Migração, atribuindo-lhes critérios e índices objetivos. 11 Art. 3.º da Lei n.º 13.445/2017. 12 Art. 4.º da Lei n.º 13.445/2017. 13 MINCHOLA, Luís Augusto Bittencourt – “Que lei de migração é essa?”. In REDIN, Giuliana (org.) – Migrações internacionais: experiências e desafios para a proteção e promoção de direitos humanos no Brasil [e-book]. Santa Maria, RS: Ed. UFSM. 2020. pp. 63-85. 14 Art. 14, § 3.º, da Lei n.º 13.445/2017: “O visto temporário para acolhida humanitária poderá ser concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de regulamento”.

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A Constituição Federal brasileira, em seu art. 84, inciso VI15, atribui ao Presidente da República a competência privativa para emitir decretos nas matérias especificamente determinadas em seu texto. A norma constitucional admite expressamente os decretos regulamentares, ou de execução, que podem ser gerais ou individuais16. É o caso do decreto em estudo: um decreto de regulamentação geral, voltado para a complementação e detalhamento da lei. Sucede que o decreto regulamentar padece de algumas inconsistências e omissões relativas à legislação geral, chegando a criar normas não contempladas na lei de migração. Uma destas consiste na possibilidade de prisão por razões migratórias prevista apenas no Decreto n.º 9.199/1717, ao passo que a lei de migração apenas admite a prisão cautelar nos casos de extradição18. O Decreto prevê a prisão cautelar para o expulsando ou deportando no país. Segundo a lei de migração, será passível de expulsão o imigrante que tiver cometido um crime de competência do Tribunal Penal Internacional – crime de genocídio, crime de guerra, crime contra a humanidade e crime de agressão – ou um crime doloso punido com pena privativa de liberdade no país; e será deportado o imigrante que entrou ou que permanece no país em situação irregular19. O regulamento é contra legem, pois contraria o princípio da “não criminalização da migração”, assim como seu art. 123, que veda explicitamente a prisão por razões migratórias, além de agir fora da lei, ou seja, prater legem20, ao criar regra de forma autônoma. Os decretos autônomos não eram permitidos no país até a Emenda Constitucional n.º 32/2001. Parte da doutrina pátria entende que a referida Emenda 15 Art. 84: Compete privativamente ao Presidente da República: (...) VI - dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 32, de 2001). 16 CARVALHO FILHO, José dos Santos – Manual de direito administrativo. 34.ª ed. São Paulo: Atlas. 2020. 17 Art. 211: O delegado da Polícia Federal poderá representar perante o juízo federal pela prisão ou por outra medida cautelar, observado o disposto no Título IX do Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal. § 1.º A medida cautelar aplicada vinculada à mobilidade do imigrante ou do visitante deverá ser comunicada ao juízo federal e à repartição consular do país de nacionalidade do preso e registrada em sistema próprio da Polícia Federal. § 2.º Na hipótese de o imigrante sobre quem recai a medida estar preso por outro motivo, o fato deverá ser comunicado ao juízo de execuções penais competente, para determinar a apresentação do deportando ou do expulsando à Polícia Federal. 18 Art. 84 da Lei n.º 13.445/2017. 19 Arts. 54 e 50 da Lei n.º 13.445/2017, respectivamente. 20 RAMOS, André de Carvalho [et al.] – “Regulamento da nova Lei de Migração é contra legem e praeter legem”. Revista Consultor Jurídico. 23 nov. 2017. [08.10.2020]. Disponível em https://www. conjur.com.br/2017-nov-23/opiniao-regulamento-lei-migracao-praetem-legem.

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passou a admitir o decreto autônomo somente para as hipóteses constitucionais do art. 84, VI, possuindo efeitos análogos ao de uma lei ordinária. Ainda há divergência de entendimento doutrinário acerca do acolhimento do decreto autônomo pela Emenda n.º 32/200121: Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que, mesmo com a modificação inserida pela Emenda Constitucional, não há lugar no ordenamento jurídico brasileiro para os regulamentos autônomos. Ao contrário, o professor Hely Lopes Meirelles, em posição doutrinária minoritária, diz que o nosso ordenamento admite duas modalidades de decreto, entre eles, o autônomo, contudo este estaria superado com a promulgação de lei posterior22. De todo modo, o Decreto n.º 9.199/2017 não trata de matéria de administração pública, sendo, indubitavelmente, um decreto de natureza regulamentar. Logo, não pode criar normas para além daquelas dispostas pela lei objeto de sua regulamentação. Ademais, constitui violação do princípio da separação dos poderes a legislação autônoma feita pelo poder executivo quando esta é uma função típica do poder legislativo e não há autorização constitucional para este ato. Por tais razões podemos afirmar que o Decreto é formal e materialmente inconstitucional. No que tange aos vistos temporários previstos no art. 14 da Lei de Migração, o Decreto, em seu art. 34, condicionou sua concessão ao deferimento, pelo extinto Ministério de Trabalho, de autorização de residência prévia, agindo de forma arbitrária e ilógica. Não faz sentido exigir autorização de residência para fins de emissão de visto. Ademais, o extinto Ministério do Trabalho não tem competência para “selecionar” migrantes para o ingresso regular no território nacional, o que representa um retrocesso e nos remete à lógica normativa do autoritário Estatuto do Estrangeiro. Ainda no que tange ao visto temporário, o Decreto não regulamentou o visto de acolhida humanitária, considerado uma das garantias mais importantes criadas pela Lei de Migração. De acordo com o texto do art. 36, §1.º, do Decreto, a definição dos detalhes para concessão do visto, como condições, prazos e requisitos, dependerá de um ato conjunto dos Ministros de Estado da Justiça e Segurança Pública, das Relações Exteriores e do Trabalho. Somente após essa regulamentação seria possível a concessão do visto. Com efeito, o Decreto regulamentar não tratou das questões objetivas necessárias para a concessão do visto, condicionando-o a outra regulamentação, de forma

21 CARVALHO FILHO – op. cit. 22 COSTA, Ana Cláudia Montenegro – “A alteração imposta pela EC32/01. A reintrodução do decreto autônomo”. DireitoNet. 20 ago. 2003. [20.10.2020]. Disponível em https://www.direitonet. com.br/artigos/exibir/1260/A-alteracao-imposta-pela-EC32-01-A-reintroducao-do-decreto-autonomo.

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subjetiva, restringindo o instituto da acolhida humanitária a ponto de ocorrer seu esvaziamento, uma vez que não define as formas de obtê-lo. Atualmente está em vigor a Portaria Interministerial n.º 13, de 16 de dezembro de 2020, dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores, que trata sobre a concessão de visto temporário e de autorização de residência para fins de acolhida humanitária para cidadãos haitianos e apátridas residentes na República do Haiti. Para guardar consonância com a Lei de Migração, o Decreto deveria se preocupar em estabelecer um rol exemplificativo de hipóteses de concessão de acolhida humanitária, bem como a competência da autoridade interna para decidir sobre os casos, fixar os parâmetros para identificação de uma crise humanitária, definir o procedimento para a concessão do visto e, ainda, destacar que as hipóteses de acolhida humanitária não podem ser restritas às do refúgio definidas pela Convenção de 195123, pois precisam ser mais amplas em razão da variedade de situações não contempladas pela Convenção e que estão presentes nas sociedades atuais. Ainda no tocante aos vistos, o Decreto age de forma arbitrária, ao determinar que podem ser negados no caso de prática de “ato contrário aos princípios e aos objetivos dispostos na Constituição”24. A subjetividade contida nessa norma nos remete, mais uma vez, à ideia base do Estatuto do Estrangeiro durante o período ditatorial, a de que a soberania e os interesses nacionais se sobrepõem aos direitos individuais dos imigrantes, tornando sua relação com o Estado brasileiro uma relação frágil e de não integração. A despeito de a nova lei preconizar as normas de direitos humanos como o ponto de partida para o desenvolvimento da política migratória brasileira, vemos no Decreto, em muitos momentos, o retorno à visão securitária das migrações a partir de regras que transitam entre proteção e exclusão25.

4. A política migratória brasileira Até 2017, com o advento da nova Lei de Migração, a política migratória brasileira pós-redemocratização foi administrada por decisões esparsas através de resoluções normativas do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), ligado ao Ministério do Trabalho em Emprego, do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e de portarias interministeriais dos Ministérios da Justiça, do Trabalho e das Relações Exteri23 MENDES; BRASIL – op. cit. 24 Art. 28, inciso V, do Decreto n.º 9.199/2017. 25 REDIN; BERTOLDO – op. cit.

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ores, as quais deram vazão parcial à demanda dos imigrantes, buscando soluções pontuais para os casos concretos à medida em que surgiam. Isto porque o Estatuto do Estrangeiro, de matriz autoritária, era insuficiente para tratar das questões migratórias que foram crescendo no país, especialmente na última década, em razão de problemas sociais e políticos fraturantes em países fronteiriços que culminaram no fluxo migratório recente no país. A acolhida humanitária foi, após 1988, uma marca na política migratória praticada no Brasil. Exemplos disso são a criação do CONARE, através da Lei n.º 9.474/1997, a política para integração e reassentamento de refugiados realizados em parceria entre o governo brasileiro e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), a concessão de vistos para haitianos, em quotas, inicialmente, e de forma permanente, desde 2019. Entretanto, a tomada de ações isoladas também marcou a atuação do Estado na temática até a entrada em vigor da nova lei, em 2017. Pretendeu-se, dentre outros objetivos, uniformizar as ações e pautá-las por um marco legal condizente com o Estado democrático. Contudo, o que houve após a criação da nova lei foi sua regulamentação disfuncional, omissa, segregadora, ilegal, inconstitucional e que não rompeu completamente com o modelo estatutário anterior, quando prevê, por exemplo, a possibilidade de prisão por razões migratórias e determina que os presos fiquem detidos em estabelecimento prisional dedicado àqueles que cometeram ilícitos penais, demonstrando a clara criminalização do ato de migrar. A despeito da nova legislação e do intuito de superar a política praticada anteriormente, a leviandade estatal para com os imigrantes, que os impede de exercer direitos fundamentais, continua. Em 2019, o país anunciou sua saída do Pacto das Migrações, um acordo multilateral firmado em 2018, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de tornar os fluxos migratórios mundiais mais seguros e ordenados. A saída se deu sob o argumento de que o Pacto fere a soberania do país por permitir uma imigração indiscriminada, o que não encontra nenhum respaldo fático ou teórico, prejudicando os emigrantes brasileiros residentes no exterior, que se tornam mais vulneráveis nas políticas de reciprocidade e estão em maior número comparativamente aos 0,4% de imigrantes no Brasil26, além de afetar a reputação do Estado brasileiro na sociedade internacional. À época, o então ministro das Relações Exteriores afirmou que as migrações não são uma questão a ser tratada de forma global, mas sim na seara

26 G1 NOTÍCIAS – “Brasil informa à ONU que vai deixar Pacto de Migração”. 08 jan. 2019. [02.10.2020]. Disponível em https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/01/08/brasil-informa-a-onu-que-vai-deixar-pacto-de-migracao.ghtml.

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das soberanias dos Estados27. Afastar-se do multilateralismo em várias matérias importantes, como o meio-ambiente ou aquelas relacionadas com os direitos humanos é uma das características do atual modelo político brasileiro. Esta opção afeta diretamente a vida dos imigrantes, tratados novamente como uma ameaça ao Estado. Atualmente, em decorrência da pandemia da COVID-19 e da necessidade de isolamento social, as fronteiras de vários países foram fechadas. No Brasil, a proibição de entrada de estrangeiros de qualquer nacionalidade se deu a partir de maio de 2020 e desde março o Congresso Nacional aprovou um auxílio emergencial através da Lei n.º 13.982/2020, a ser pago para trabalhadores mais vulneráveis impossibilitados de continuar suas atividades por conta do avanço do coronavírus no país. Naturalmente os imigrantes, que trabalham majoritariamente em atividades autônomas informais, foram contemplados pelas hipóteses legais de concessão do auxílio. O direito dos estrangeiros a benefícios assistenciais no país já foi discutido e tem entendimento pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, em acórdão proferido no Recurso Extraordinário RE n.º 587.970/201728, sob o fundamento de que brasileiros e estrangeiros têm, de acordo com o art. 5.º da Constituição Federal, a garantia da igualdade de direitos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, incluindo os direitos à inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. De igual modo, cabe o recebimento do auxílio emergencial oriundo da pandemia e suas consequências para os imigrantes no país, conforme se depreende de sentença judicial de juiz federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região29. Ocorre que, na prática, os imigrantes têm enfrentado problemas burocráticos relativos aos seus documentos, que os impedem de receber o valor do auxílio. Isto porque a instituição pagadora, a Caixa Econômica Federal, tem exigido a apresentação de um documento emitido pela política de fronteira nacional, a Polícia Federal, que são o Registro Nacional de Migração (RNM) juntamente com o número de registro fiscal, ou Cadastro de Pessoa Física (CPF). Entretanto, a Polícia Federal, responsável por emitir o RNM, suspendeu suas atividades de atendimento ao público em razão das medidas de isolamento social e, portanto, não emitiu novos registros. 27 Idem, ibidem. 28 Acórdão do Supremo Tribunal Federal, REx n.º 587.970/São Paulo, de 20 de abril de 2017. Supremo Tribunal Federal (STF). Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13649377. 29 Sentença do Juizado Especial Federal da 3ª Região, processo n.º 0001206-29.2020.4.03.6305, de 2 de outubro de 2020. Tribunal Regional Federal da 3.ª Região. Disponível em https://www.trf3.jus. br/documentos/acom/banner/Decisao_JEF_Registro.pdf.

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Logo, muitos imigrantes ficaram impossibilitados de obter o auxílio-emergencial porque a instituição pagadora não podia concedê-lo sem os documentos exigidos, não levando em consideração a suspensão das atividades da polícia de fronteira nacional. Por esta razão, a Defensoria Pública da União publicou, em abril de 2020, o Ofício Circular n.º 3578466/2020, solicitando a tomada de medidas para facilitar o acesso ao auxílio por imigrantes indocumentados, dentre estas a possibilidade de concessão do auxílio a “pessoas imigrantes mediante a apresentação de documentos de identificação emitidos no país, ainda que com prazo de validade expirado, ou documentos de seus países de origem - passaporte, cédula de identidade e/ou cédula/cartão consular – sem a necessidade de apresentação de documentos brasileiros com foto ou que comprovem sua regularização migratória”30. A iniciativa da Defensoria Pública atenta para ao agravamento da vulnerabilidade dos imigrantes no país no momento da pandemia, que vivenciam usualmente situações precárias e dificuldades relacionadas a trabalho, moradia, alimentação, etc. As medidas judiciais e extrajudiciais são de extrema relevância porque buscam resguardar direitos fundamentais relacionados à subsistência básica dos imigrantes, em que é preciso garantir minimamente os direitos à moradia, à saúde e à alimentação num momento distinto para todos e em que há o agravamento da crise econômica. A assistência social é um direito e deve ser tratado como tal.

5. Considerações finais A nova política migratória criada pela Lei de Migração reflete, sem dúvida, a virada de pensamento humanista sobre os estrangeiros no país, partindo do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana. Estabelece direitos antes negados, prevê a acolhida humanitária e inova ao proibir a criminalização da imigração. Porém, a nova agenda de direitos previstos pela lei e pelo seu regulamento não abandonaram a lógica do controle do Estado, ou seja, a ideia da matéria migratória como um problema de segurança. Presente sobretudo no texto do Decreto regulamentar, a burocratização da documentação e a manutenção do poder discricionário da administração pública são temas que não foram superados, apesar de toda a inspiração normativa da Lei de Migração e apesar de o Brasil ter passado por significativas mudanças na sua política migratória31. 30 Ofício circular da Defensoria Pública da União n.º 3578466/2020, de 16 de abril de 2020. Defensoria Pública da União. Disponível em https://d28.923.myftpupload.com/wp-content/uploads/2020/04/oficio-circular-DPU-pagamento-de-auxilio-emergencial-a-imigrantes-1.pdf. 31 MINCHOLA – op. cit.

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O fato é que a despeito do significativo avanço, em geral, o novo marco legal não condiz com os princípios democráticos e humanistas de direito. Para além disto, a atual política migratória é pautada por atos de um governo de extrema direita que minimiza cooperações internacionais e temas importantes de direitos humanos e de grupos invisibilizados, como estrangeiros, mulheres, índios, dentre outros. Esta perspectiva nacionalista voltada para a segurança do Estado e de sua soberania acaba por agravar a situação de violação de direitos fundamentais dos imigrantes, mantendo-os em constante sujeição diante do Estado e de seu agir discricionário. Os Estados têm o controle de suas fronteiras e podem atuar com discricionariedade ao regular as condições de entrada, permanência e saída dos imigrantes de seu território. Entretanto, ao fazê-lo, devem se nortear pelos tratados internacionais aos quais estão obrigados e pelos princípios constantes em suas próprias Constituições. Assim, verificamos que o Decreto regulamentar não condiz com os ditames de um Estado democrático, dando parcial continuidade ao regramento autoritário da matéria, e, portanto, deve se submeter aos controles de constitucionalidade e legalidade, uma vez que viola normas constitucionais e a norma legal a ser regulamentada. As controvérsias, omissões e arbitrariedades do Decreto impedem o pleno exercício de direitos fundamentais pelos imigrantes em território nacional, tornando-os ainda mais vulneráveis diante do controle securitário do Estado. As condições internas destes imigrantes não podem ser apenas de estadia ou permanência, mas sim de acolhimento e integração. Não se tratar somente de estar num país, mas sim de ser parte dele. Com efeito, ainda estamos distantes de uma legislação amplamente acolhedora dos imigrantes e seguimos dependendo da atuação pontual de órgãos judiciais e extrajudiciais para buscar garantir seus direitos fundamentais no país e para, então, pôr em prática normas constitucionais e aquelas constantes de instrumentos internacionais de direitos humanos.

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Título

Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho 2020

Edição

Escola de Direito da Universidade do Minho

Comissão Organizadora

Anabela Gonçalves | Larissa Coelho | Maria João Lourenço | José Vegar Velho | Tiago Branco

Comissão Científica

JusGov - Centro de Investigação em Justiça e Governação

Data

Julho 2021

ISBN

978-989-54587-8-3


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