Revista Matéria Prima

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Matéria

Prima Órgão laboratorial do curso de Jornalismo da FA7 - disciplina Planejamento e Edição de Revistas. 5ª edição.

Fortaleza - CE, janeiro de 2012

94 anos de história e sabedoria de

Dona Lúcia Lucas Lima e Ítalo Gutyerrrez na luta por acessibilidade

Coração Solidário renova vida de transplantados ( 1)


p b (ponto de vista)

(bula)

Outros olhares sobre o mundo

O

São 13 histórias de superação, de retomadas e desafios nesta edição

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físico Albert Einstein é considerado o mais notável cientista do século 20, o pai da teoria da relatividade. Genialidades e teorias à parte, Einstein deixou também outro legado: a obra filosófica ‘Como vejo o mundo’. Nela, procura destacar seu ponto de vista sobre o mundo e suas ideias em questões fundamentais relacionadas à formação do homem, como o sentido da vida, o fundamento da moral, a liberdade individual e o lugar do dinheiro. Foi o ‘gancho’ que orientou o tema desta Matéria Prima: como vejo o mundo e o mundo pelo meu olhar. Este número da revista, produto laboratorial produzido pela disciplina Planejamento e Edição de Revistas, procurou o diferencial no ângulo da pauta, projetando o conteúdo temático para o futuro. O importante foi buscar a valorização das personagens, as perspectivas de vida e a relação com o outro. Assim, os estudantes de jornalismo da Faculdade 7 de Setembro (FA7) foram às ruas para descobrir histórias de vida, de quem soube, e sabe, dar a volta por cima, superando barreiras e enfrentando preconceitos. São 12 histórias sobre o mundo, de superação, de retomadas e desafios como a da professora que deixou o magistério para ser cobradora de ônibus esbanjando alegria; de dois jovens deficientes visuais, que sonham com arte e poe-

sia; de uma mãe, avó e amiga, referência aos 94 anos de idade; da nova vida de um transplantado do coração; de um jovem que se autodefine como ‘soldado do bem’; do jornalista que sonha com notícias boas; da parteira que acompanhou o nascimento de mais de cinco mil bebês; um jovem homossexual que pede ajuda a mulheres nos terminais de ônibus; o controle alimentar e combate à gordura na rotina de obesos; a superação de um paratleta; um artista travestido que faz sucesso no youtube; e a visão de mundo de um índio Pitaguary. Por último, além de desejar boa leitura, há outras novidades. O processo de edição desta revista aconteceu, pela primeira vez, em uma redação experimental do curso de Jornalismo da FA7. Professores e alunos, integrados em texto, fotografia e design, se dedicaram para fechar todas as matérias. E a revista também está disponível no site da FA7 – www.fa7.edu.br. Saiba, agora, como as pessoas vêem o mundo.

4 Jeane, a professora que é cobradora

16 Vai e vem de Robertinha do Papicu

12 Dona Lúcia Dummar, 94 anos, e muito por fazer

28 Pauta positiva de Souto Paulino

expediente Diretor Geral: Ednilton Soárez; Diretor Acadêmico: Ednilo Soárez; Vice-Diretor: Adelmir Jucá; Coordenação do Curso de Jornalismo: Dilson Alexandre; Professor Orientador e Editor: Miguel Macedo; Projeto Gráfico e Edição de Arte: Andrea Araujo; Edição de Fotografia: Jari Vieira; Participaram desta edição os alunos:Textos: Anna Regadas, Felipe Sena, João Bosco Maropo, Augustiano Xavier, Laís Brasil, Liane Alencar, Gabriela Farias, Virgínia Farias, Anderson Paixão, Mavio Braga, Thiago Jorge, Tiago Fernandes e Yara Barreto; Design das páginas: Almir Moreira, Diana Valentina, Erica Bravo, Jaciara Lima, Lúcia Lima, Nely, Taíssa Julião. Fotos: Alunos que participaram no dia Fotojornalismo: Antonio Atibones, Fernando Magnus, Giuliano Vandson, Livia Campos, Luana Oliveira, Kildare Rennan, Raoni Sousa, Rodrigo Barros, Soriel Leiros, Vicente Neto e Wirton Igor.

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(cobradora e pedagoga)

Sempre

Alegre

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Texto e fotos - Felipe Sena Design - Erica Bravo

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(cobradora e pedagoga)

forma: com um belo sorriso no rosto, independente se o passageiro está de mau humor, a trate mal, ou friamente. “Alegria é um estado permanente em minha vida. Tratar os outros com um sorriso é sempre bom”. Um dia ela pensa em voltar a dar aula, mas só quando os professores forem mais valorizados. “Todos precisam dos professores. Para ser qualquer coisa na vida, vocês passam nas mãos dos professores. Nós (professores) só somos valorizados da boca pra fora. Infelizmente é assim. Penso em voltar também porque gosto de lecionar”, ressaltou. Essa desvalorização também é lembrada por ela na hora de avaliar o ensino que a filha recebe na escola pública. “Quando ensinava, procurava sempre fazer algo diferente para movimentar meus alunos. Algo novo. Não vejo isso no ensino

Sempre com um sorriso aberto, uma cobradora de ônibus, que é pedagoga, transmite alegria aos passageiros da linha Parangaba – Papicu (Via Aeroporto) e a todos que estão ao seu redor

S

empre com um sorriso aberto, uma cobradora de ônibus, que é pedagoga, transmite alegria aos passageiros da linha Parangaba – Papicu (Via Aeroporto) e a todos que estão ao seu redor. O Sistema Integrado de Transporte de Fortaleza conta com o trabalho de aproximadamente dois mil cobradores de ônibus. Cada um deles tem sua história de superação, de lutas, de vitórias e de derrotas. Em cada catraca há uma história para ser contada. Mas, poucos deles devem viver uma alegria tão constante e contagiante quanto Jeane Mara Lima da Silva, 37 anos. Cobradora da empresa Dragão do Mar há pouco mais de um ano, Jeane

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é divorciada e mora com as duas filhas, Jéssica, três anos, e Kricia, 11 anos, além da mãe, Dona Maria, 82 anos, no Conjunto Ceará. Formada em Pedagogia, foi professora durante 19 anos do ensino primário e fundamental em colégios particulares de Fortaleza e também era professora substituta do estado. Resolveu dar um tempo na carreira em maio de 2010, para ficar mais próxima das filhas. “Trabalhava de segunda à sexta-feira em dois horários. No sábado, fazia cursos de qualificação pagos pelo colégio que ensinava. E, no domingo, além de cuidar dos afazeres domésticos, tinha que planejar as aulas da semana”, recorda Jeane.

Quando saiu do colégio em que ensinava no ano passado, não havia planejado nada. Procurou algumas oportunidades em áreas diferentes, mas só achava emprego para lecionar. Depois de receber a última parcela do seguro, uma amiga ligou e comentou sobre as vagas para cobradora, que a Dragão do Mar estava oferecendo. “Queria um emprego que não trouxesse trabalho para casa. Um emprego que, quando eu batesse o ponto, só lembrasse dele no outro dia. Aí apareceu a vaga de cobradora. Gostei muito. Acho que cobrador de ônibus não é uma profissão, mas, sim um cargo de confiança”. Sempre feliz com a vida, Jeane recebe (todos) os passageiros da mesma

cobrador de ônibus não é uma profissão, mas sim, um cargo de confiança

da Jéssica. Sempre mandava trabalhos para casa aos meus alunos. Ela chega a casa com o caderno sem qualquer tarefa. Eu que passo alguma coisa para ela fazer”, critica. Ela vê o mundo como um lugar onde Ela vê o mundo como um lugar onde nada mais tem valor. Tudo é banalizado demais. “O mundo hoje está meio perdido. Vejo crianças que, nem mesmo sabem o que é sexualidade, mudando de opção sexual. Pessoas perdendo a vida por quase nada ou até por nada mesmo. Isso realmente é muito triste”. Mas, logo depois, o sorriso volta ao rosto de Jeane. “Não consigo ficar triste. Posso chorar por algum motivo, mas, cinco minutos depois, já estou rindo de novo”. Assim é Jeane Mara, alegre e cobradora, brasileira e lutadora, mãe e professora, mas, acima de tudo, vencedora.

Professor, profissão do passado? Pesquisa realizada pela Fundação Victor Civita, em parceria com a Fundação Carlos Chagas, mostra que apenas 2% dos jovens do terceiro ano do ensino médio pretendem cursar Pedagogia ou alguma Licenciatura. Falta de paciência, baixa renumeração e falta de vocação, foram pontos destacados por alunos de escolas particulares e publicas em oito cidades brasileiras, para o desinteresse em seguir a profissão de docente. Esses números preocupam, pois, segundo o Ministério da Educação (MEC), há cerca de 600 mil professores que atuam na educação básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio), mas que não têm preparo necessário para a função.

A diminuição da procura para lecionar é vista em dados divulgados pelo próprio MEC. Na modalidade presencial, de 2005 a 2009, o número de alunos de licenciatura caiu cerca de 19 % (de 1,2 milhões para 978 mil) e de Pedagogia em aproximadamente 15% (de 288 mil para 247 mil). Mas, o que leva um jovem a seguir essa carreira? E o que mais leva a procurar outro curso superior? Segundo Dayane Lima, estudante do curso de Pedagogia da UFC, o curso é apaixonante. “Poder ensinar e transmitir conhecimento para os outros é muito bom. É apaixonante”. Já para a estudante Fabiane Freitas, do terceiro ano do colégio José Milton Dias, em Maracanaú, a questão salarial

e a falta de vocação são os principais fatores para a sua escolha por outro curso. “Não tenho vocação para professor. Além de trabalhar muito e ganhar muito pouco”. A afirmação de Fabiane é infelizmente verdade. Segundo pesquisa da UNESCO, com 38 países desenvolvidos ou em desenvolvimento, o Brasil tem o terceiro pior salário do mundo, ficando a frente apenas do Peru e da Indonésia. Um professor no Brasil recebe anualmente em média U$ 11 mil, enquanto um professor na Argentina ganha U$$ 22 mil; na Alemanha U$$ 30 mil; em Portugal U$$ 50 mil e na Coréia do Sul U$$ 60 mil. (fonte: http://www.fvc.org.br/)

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Vencer o impossível (fora preconceito)

Texto e fotos Mavio Braga Design - Taíssa Julião

Trinta segundos. Esse é o intervalo que o bip sonoro do semáforo toca. Tempo que os deficientes visuais têm para atravessar a Avenida Bezerra de Menezes e chegar ao Instituto Hélio Góes, mais conhecido como Instituto dos Cegos de Fortaleza. É lá que estudam Lucas Lima e Ítalo Gutyerrez. Para chegar à escola, os rapazes, dependem, inúmeras vezes, do aviso ressonante para cruzarem as oito pistas da avenida com segurança. ((8) 8)

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(fora preconceito)

T

anto para ir à escola, quanto ao trabalho, Ítalo usa ônibus. Quando vem de casa, desce na Bezerra, avenida que precisa atravessar para chegar à Padre Anchieta, rua onde fica o Instituto. O cruzamento conta com o farol com dispositivo sonoro. Uma exceção, já que em Fortaleza existem apenas 11 semáforos deste tipo. No percurso de volta, a calçada torna-se uma ameaça. Ítalo tem que passar por oito postes, uma banca de bombons e um telefone público, até chegar à parada de ônibus. A calçada na Avenida Bezerra de Menezes não é tátil, apesar de ter sido reformada pela prefeitura, ainda em 2010. Acessibilidade, esse não é o único desafio dos deficientes visuais. O preconceito ainda é um obstáculo. Lucas sabe bem disso. Ele acredita que fora essa a razão de não ter sido aceito em um curso de radialista. O simples ato de se colocar no lugar do outro pode acabar com o preconceito. Basta usar da empatia. Ser empático, lembrar o tempo de criança. Quem, nunca brincou de “tá quente tá frio”? De olhos vendados, guiando-se pelo toque nos objetos à volta; um participante devia encontrar os outros amiguinhos, enquanto eles davam dicas, na medida que se aproximava ou se distanciava do alvo. A brincadeira talvez seja a experiência que mais se aproxime da incapacidade de ver, realidade vivida por 11,8 milhões de brasileiros com deficiência visual, dos quais cerca de 160 mil possuem incapacidade total de enxergar, de acordo com estudo realizado pelo IBGE. A informação é outra grande arma contra o preconceito. A educação é fundamental para que esses jovens consigam ter uma vida autônoma e independente. Fundado em 1942, o Instituto dos Cegos tem 236 alunos. Alguns deles de boa visão, mas a grande maioria dos estudantes são pessoas de baixa visão e deficientes. Dois mil e onze é o último ano dos amigos Ítalo e Lucas na escola, já que este ano eles concluem o ensino fundamental. Lucas até bem pouco tempo tinha

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1 11,8 milhões se dizem com algum grau de deficiëncia visual

2 160 mil se declaram cegos

baixa visão, hoje a perdeu por completo. Ele é enfático ao dizer: “Eu me sinto mais realizado do que antes”. Uma de suas vitórias é ter trazido para o Ceará, duas medalhas de bronze, por seu desempenho em provas de atletismo das Paraolimpíadas Escolares, na edição de 2011. A competição aconteceu na cidade de São Paulo, em agosto.

Ver além

Enxergar, segundo o dicionário é: ver de modo claro; entrever; divisar; observar; adivinhar; pressentir; entender de um assunto. Os deficientes visuais enxergam. Nem menos nem mais, mas simplesmente de uma maneira diferente da maioria das pessoas. Engana-se quem porventura pensa que o maior desejo desses meninos seja ver o mundo, assim como as pessoas de boa visão vêem. Ver, não seria esse o pedido de Lucas ou Ítalo, caso encontrassem o gênio da lâmpada mágica e esse lhes concedesse três pedidos. Os estudantes pediriam saúde, paz, amor. Deficiente visual desde pequeno, Ítalo diz não ter vontade de ver o mundo. Quando, às

vezes, pensa nisso, as únicas coisas que gostaria de contemplar seriam o pôr do sol, a lua, as estrelas, a natureza. “As coisas feitas por Deus”, explica o rapaz. “Consigo ver além. Vejo a alma das pessoas” – completa. Ítalo e Lucas enxergam longe. Além dos estudos, os meninos também trabalham. São, ambos, estagiários do programa Primeiros Passos, projeto social da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Governo do Estado do Ceará. Outras atividades em comum unem os amigos que compartilham o gosto pela música e pela escrita. Nas horas vagas, os jovens gostam de escrever seus pensamentos, contos e poesias.

Novas Vida de sensações Vidro Perceber o mundo de uma maneira diferente. Esse é o desafio proposto a quem visita o Instituto dos Cegos, instituição que recebe todas as quartas-feiras alunos de faculdades, escolas públicas e particulares. Descalços, os visitantes entram numa sala completamente escura. O percurso é guiado por um deficiente visual. A primeira lição é orientar-se pelo toque das mãos: enquanto uma toca a parede, a outra identifica os obstáculos, antes do próximo passo. O chão às vezes parece ser de areia, outras vezes de lona, panos e até folhas espalhadas. Na completa escuridão a audição fica mais aguçada. No meio da sala uma mesa cheia de objetos, bichos de plásticos e de pelúcia: sapos, aranhas, ursinhos. Os gritos ou risos do grupo revelam sensações de medo, coragem... surpresa. Na porta de saída o reconforto de ver, novamente, a luz.

Vivo só em minha casa Enfrentando meus fantasmas Só esperando a hora de um amor chegar Não sei bem o que eu quero Isso ainda é um mistério Vivendo e morrendo, não aguento mais Ítalo Gutyerrez

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(retrato falado)

Dona Lúcia Dummar:

94 anos de amor e dedicação

É na Mansão Castelo, entre flores, pássaros e muito verde, que mora Dona Lúcia Dummar. Um sítio às margens da lagoa de Messejana, com belo jardim que pertencera à família Rocha Dummar . Neste ambiente acolhedor são mantidas vivas histórias de uma época de ouro, dos filhos já crescidos e de um jornal bem sucedido Texto: Virginia Farias Design: Diana Valentina Fotos: Humberto Neto

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(retrato falado)

A

os 94 anos bem vividos, Dona Maria Lúcia Rocha Dummar é abençoada por uma memória espetacular e uma disposição sem igual. Rodeada por 12 empregados, eles auxiliam desde a sua locomoção até a organização do sítio. Há empregados que vivem lá há, pelo menos, 40 anos. Zé, por exemplo, chegou à mansão ainda jovem, sem saber ler nem escrever o próprio nome, mas com o conhecimento de mundo de um sertanejo. Ele sabe nome de pássaros apenas pelo canto e cuida da fauna e da flora do sítio como um especialista. E por falar em fauna e flora, o sítio tem exatos 75 tipos diferentes de frutas, 57 árvores e 104 espécies de pássaros. Dona Lúcia diz com carinho que, os animais são muito bem cuidados e, por isso, eles vão chegando e vão ficando. Ao falar da família, demonstra admiração. Conta um pouco da época em que era jovem e que seu pai, Demócrito Rocha, o fundador do jornal O Povo, sempre incentivou a independência das filhas. “Papai sempre disse que a mulher tem que ser independente e que, para ser independente, tem que saber de tudo um pouco”. Ela e a irmã, Albanisa Rocha Sarasate, sempre estiveram presentes na vida do pai em relação ao jornal, apoiando, ajudando no que fosse preciso. Tanto é que no período da Segunda Guerra Mundial, era ela que fazia as traduções das informações que chegavam. Revela que o pai a incentivou a estudar inglês, apesar de naquela época a língua mais procurada fosse o francês. O tradutor das notícias que vinham da guerra teve que voltar imediatamente para os Estados Unidos após um chamado. Então, foi Dona Lúcia, a única que entendia inglês naquela época, que ficou responsável pela tradução das informações. Depois da guerra, em 1944, casou-se com João Dummar, o precursor da rádiodifusão no Ceará, com quem teve seis filhos: Demócrito Dummar, João Dummar Filho, Lúcia Maria, Lúcia Elena, Carmem Lúcia e Albaniza Lúcia. “Criei todos os meus filhos aqui nessa casa. Quando eles começaram a se formar, fui para o Rio de Janeiro. Só ficaram aqui os mais novos, o Demócrito e a Lúcia Maria”, recorda. Em uma casa anexa na Mansão Castelo, ela guarda a história do jornal O Povo, que o pai fundou. Trata-se do Me-

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“A mulher tem que ser independente e, para ser independente, tem que saber de tudo um pouco”

morial da Família Rocha Dummar, uma espécie de museu, que conta toda a trajetória da família. Cada compartimento tem um homenageado, seus pertences, fotos com amigos, objetos e lembranças que ajudam a contar a história de cada um. Também há um rico acervo do jornal, todos os exemplares, desde o primeiro número, estão lá. A organização e os detalhes são impressionantes. Ela cuida de tudo com muito carinho e é quem organiza (com a ajuda dos empregados). Separa foto por foto, cartas, objetos pessoais e os organiza com cuidado, sem deixar faltar nada. No ambiente que conta a vida do seu marido, por exemplo, há todos os discos dele, o microfone da rádio onde trabalhava, livros, fotos etc. Já no espaço reservado para seu filho, Demócrito, que morreu em 2009, o acervo é bem maior. Além de fotos, quadros e livros, há objetos pessoais dele, como os celulares, notebook, placas de prêmios e, o mais curioso, o último terno que usou, que está exposto dentro de um armário de vidro. Dona Lúcia não hesitou em responder como surgiu a ideia de montar o memorial: “Foi depois da morte do Demócrito. Fiquei muito abalada, com raiva das pessoas, não tinha vontade de fazer mais nada. Aí, vi que eu não podia continuar assim, que ninguém tinha culpa do que havia acontecido”. Ela conta que o sonho de Demócrito era ir morar no sitio. Tinha comprado até material para construir uma casa lá, mas a esposa, Vânia, não queria. Resolveu, então, que precisava de algo que ocupasse a mente. Começou a organizar sua casa com coisas que lembrassem o Demócrito. Um quadro com a foto dele, bem grande na parede, foi o início. O memorial foi construído com o material que seria da casa que ele queria fazer no sítio. D. Lúcia relembra os momentos que antecederam a morte do filho e conta que, mais ou menos, um mês antes, havia conversado com ele sobre um programa religioso na Rede Vida que havia assistido. No programa, contavam a história do jornalista Monteiro de Barros, presidente da emissora. Ele tinha o sonho de montar uma TV e pediu para o Divino Pai Eterno, que se conseguisse realizar esse sonho, iria até a cidade de Trindade, em Goiás, pagar a promessa. Dona Lúcia con-

tou essa história para Demócrito, que também tinha o sonho de criar a TV O Povo.Mãe e filho fizeram a promessa. Dona Lúcia conta que encomendou uma imagem do santo, mas demorou tanto a chegar, que pensavam que nem vinha mais. No dia em que a encomenda chegou, recebeu a notícia da morte do seu filho amado, Demócrito Dummar. Era ele quem dirigia o jornal O Povo e viu sonho da TV O Povo ser realizado, mesmo após sua morte. “Eu criei o Demócrito para ser o sucessor de papai”, diz a mãe Dona Lúcia, com carinho e amor, que sempre pautaram a vida dessa mulher e mãe de muita fibra, ao lado da família, dos amigos e da natureza que preserva na Mansão Castelo.

75 Tipos diferentes de frutas, 57 árvores e 104 espécies de pássaros

26 razões para ter fé No ar puro da Mansão Castelo, há histórias de momentos felizes, de uma família unida, de aconchego. De pessoas como a Dona Lúcia, humilde, sonhadora e que tem muita fé. Só veste branco e possui, espalhados pelo sítio, 26 imagens de santos, todos em santuários ou capelinhas. A devoção dela é grande e vem do tempo de sua avó. Cada santo que lá está, foi dado de presente. E é ela que, cuidadosamente, escolhe o local em que cada um ficará. Muitos santos, muitas histórias, muitas crenças... convite para percorrer os arredores da Mansão Castelo.

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(pela sobrevivência)

O

outro lado do

terminal Esbanjando elogios e risadas, Robertinha circula pelas filas do Terminal do Papicu divertindo quem passa por ali. É a forma que encontrou para sobreviver. Texto: Yara Barreto daSilva Design: Jaciára Lima Foto: Anderson Paixão

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(pela sobrevivência)

Ô

nibus entrando e saindo, buzinas ensurdecedoras, zumbido de apitos cortando as plataformas, pessoas cruzando de um lado para o outro. Essa é a rotina dos terminais de ônibus de Fortaleza. Nesse corre-corre constante circulam crianças, adolescentes e idosos em busca de alguns trocados. Eles percorrem as filas dos ônibus famintos, sujos e com um semblante de cansados, derrotados sem motivos para sorrir e achar que a vida vale a pena. E é nessa rotina agitada, que aparece um jovem diferente dos muitos que circulam nos terminais. Apesar de todo o sofrimento, dos dissabores, ele está sempre fazendo uma pessoa sorrir. Francisco Felipe Ferreira, 20 anos, mais conhecido por Robertinha do Papicu. Natural de São Luís, Maranhão, chegou a Fortaleza com 18 anos, quando decidiu fugir de casa. Robertinha, como prefere ser chamada, diz que sua vida era feliz, alegre como a de toda criança deve ser. A família era bem estruturada: a mãe, dona de loja; o pai, professor, atualmente mora em Manaus, e a irmã se casou e foi morar na Itália. Essa tranqüilidade, porém, mudou quando passou a ser violentado pelo padrasto. Uma das vezes, na frente da mãe, que não tomou qualquer providência diante da violência. Chegou a ficar com depressão e, então, decidiu fugir de casa. Ao chegar na cidade sem família e sem amigos, a única opção foi morar na rua. Já passou por oito abrigos, e em todos ocorria o mesmo problema - era violentado pelos colegas. “Mulher, não tinha jeito,, eu ficava só no meu cantinho, mas eles sempre vinham bulir comigo, porque eu era a única menina da casa”, conta Robertinha. Apesar de ter passado momentos ruins dentro dos abrigos, Robertinha diz que lá é um bom espaço, pois sempre há comida, cama, local para brincar e ainda oferece

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8 É O NÚMEROS de vezes que Robertinha passou por abrigos.

cursos. “É um local onde formamos uma quase família, pois na rua não temos ninguém”, diz. Na rua, Robertinha explica que já se prostituiu, teve início de DST, mas que já foi tratado. Há quatro meses é usuário de crack. “No terminal, todo mundo me conhece. Sou o único menino de rua que pode entrar na administração do terminal, mas isso porque sou diferente dos outros”, esclarece Robertinha. Comportada, educada, gentil e esbanjando sorriso é o que a faz ser diferente dos outros que moram na rua. Robertinha se descreve assim. Não fica com raiva das pessoas que olham para ela com cara feia, e nem porque não querem dá dinheiro. Pelo contrário. Ela solta elogios para todas as mulheres do terminal, mas falar com homem, de jeito nenhum, “porque nunca

vi uma raça tão ruim”, afirma Robertinha. Apesar de não gostar de pedir dinheiro para homens, ela explica que não tem raiva deles, mas queria que eles o enxergassem como uma pessoa normal, “pois ser homossexual não é problema”, diz. Mas são as mulheres que dão apoio, que dão conselho, e é assim que acaba se sentindo mais importante. “Sorrir é o que existe de melhor na vida. É a única coisa que as pessoas não podem tirar de mim”, avalia Robertinha. E é com um sorriso, buscando alegria com as pessoas, que ela consegue enxergar um mundo melhor. Conhece bem os problemas da vida, mas diz que se for encarar tudo de cara feia, a vida só vai piorar. “Muitas pessoas viram a cara pra mim, principalmente os homens. Por eu ser gay, eles não querem se aproximar, mas é com isso que tiro forças para seguir em frente”, diz ela. Apesar de todas as dificuldades, Robertinha tem esperanças de um futuro melhor, e espera que tudo melhore, para ela e para todas as pessoas que moram na rua. Mas ressalta que as coisas só podem melhorar se a pessoa fizer por onde, do contrário, tudo fica na mesma. Ser gay, morador de rua e usuário de drogas, não faz com que Robertinha perca as esperanças de uma vida melhor. Pelo contrário pretende se tratar em uma clínica de dependentes químicos, e depois trabalhar com telemarketing ou auxiliar de escritório. Durante sua passagem pelos abrigos, Robertinha fez os cursos de profissionalização, o que lhe deixa muita orgulhosa. Mas o que mais deseja é o reencontro com a mãe. Só quer que isso aconteça, porém, quando conseguir dá a volta por cima. “Quero mostrar à minha mãe que sou capaz de vencer as dificuldades da vida”, diz. O desejo de Robertinha lhe exigirá muita força de vontade, coragem e determinação. O que o futuro lhe reserva? Qual será o seu destino? Só o tempo poderá responder. O passado Robertinha não poderá apagar jamais, mas o futuro pode ser reescrito a partir de agora.

Vida passada a limpo L

á estava ele, em frente à catraca da bilheteria pedindo centavos por centavos para interar o dinheiro da passagem, e assim poder entrar no terminal da Parangaba. É dessa forma que Fransisco Estônio da Silva, de 16 anos, faz todos os dias, às 14 horas, para entrar no terminal e começar a rotina: circular fileira por fileira atrás de dinheiro, para ajudar a mãe e as três irmãs mais novas. Estônio, que também tem seu nome de guerra, Priscila Ketly, vive pelos terminais de Fortaleza desde os 10 anos, quando decidiu pedir dinheiro. Diz que não aguentava mais ver a situação da família e, principalmente da avó, falecida. Ter um apelido, pedir dinheiro apenas a mulheres e ser vaidosa são os traços que herdou da amizade com o Felipe-Robertinha. Hoje, não se falam mais, por motivos que não quis revelar, mas a vaidade das duas foi o ponto ‘x ‘para o fim da amizade. Estônio diz que na rua ninguém tem amigos e só percebeu, depois da morte da avó, que era sua fiel amiga. Só soube da morte dela semanas depois, e isso fez com que ele tomasse novo rumo na vida e começar a enxegar o mundo por outro ângulo. “Só agora percebi o que quero e tenho capacidade de ter uma vida melhor. Minha avó sempre falava isso e nunca quis ouvir”, comenta Estônio, com um tom mais sério. Apesar de ter passado dois anos direto nas ruas, hoje o jovem refaz uma nova rotina para ajudar a família. Divide o dia em três momentos: pela manhã, ajuda a mãe no trabalho doméstico e cortando ponta de linha de roupas da empresa em que ela trabalha; à tarde, vai ao terminal pedir dinheiro; e, à noite estuda na Escola Municipal Cláudio Martins, na avenida João Pessoa. “Pra mim, depois que fui pras ruas, nada tinha sentido, só pensava naquele dia, e pronto. Agora, depois que comecei a tomar decisões, a vida começou a ter novo sentido. Parar de pedir dinheiro no terminal é o que mais quero”, revela Estônio, que não parava de jogar os cabelos de um lado para o outro. O jovem ainda comentou que deseja que as pessoas não o chamem de Priscila Ketly. Essa fase da vida, quer deixar no passado, porque agora o futuro é a palavra que ele mais pensa. Trabalhar e proporcionar uma vida melhor para a família é o próximo passo.

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(nas ondas da rรกdio)

Um soldado do

bem Texto: Gabriela Farias Design: Lucia Medeiros

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(nas ondas da rádio)

Levar liberdade, que o conhecimento e a informação possuem, a detentos da Casa de Privação Provisória de Liberdade II (CPPL II), em Itaitinga. Esta é uma das atitudes que motivam o jovem Rodrigo Brito de Moraes, 28 anos, a se ver na sociedade como um soldado do bem. Para chegar a esta estágio, ele hoje é o diretor da “Rádio Livre”, o veículo de comunicação que se propõe a libertar os detentos de suas prisões individuais. Por meio da rádio comunitária, Rodrigo propõe quebrar o clima hostil entre detentos e funcionários e sintonizá-los em uma só frequência. “Entendo que o detento é privado do direito de ir e vir, mas ele não é privado do acesso à comunicação, do útil e da notícia”, diz, orgulhoso do trabalho. A Casa de Privação Provisória e o projeto da Rádio Livre são, no entanto, apenas a ponta do iceberg para quem, desde cedo, aprendeu a olhar para o próximo. O menino precoce que se envolveu com ações sociais para ajudar moradores de rua, usuários de droga e detentos, porém, nem sempre foi assim. Essa história foi escrita desde sua adolescência, quando aos quinze anos, ainda em sua cidade natal, Recife, os pais de Rodrigo se separaram. “Estava realmente desestruturado e sem referencial, me enveredando pra um caminho que não ia ser positivo (...), então fui resgatado”, relata. O seu “resgate” aconteceu por um convite para um evento religioso, onde o fez refletir e confortar o seu coração diante dos acontecimentos. “Escutei verdades que confrontaram com os meus pensamentos, naquele complexo de adolescente de pensar que não me amavam... E, então, pude saber que tenho Deus”. Tudo começou quando o adolescente Rodrigo, por uma necessidade de que todos pudessem se sentir tão confortados quanto ele, ingressou na instituição “Jovens Com Uma Missão”, o JOCUM. A organização que empenha jovens de todas as nações para a obra missionária possibilitou uma experiência significativa em Curitiba e no Paraguai, para o jovem voluntário. Levar incentivo e esperança por meio

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da palavra para os flagelados foi a sua primeira missão. Aos 19 anos, Rodrigo entrou em contato pela primeira vez com o sistema prisional. “Fui pensando em uma unidade prisional como um lugar meio temeroso, cheio de bandidos, pessoas más (...) mas quando cheguei nessa unidade, me deparei com outra realidade”, que assm pôde compreender que nem todas as pessoas que estavam naquela situação possuíam má índole, mas, sim que, muitas foram impulsionadas pela ganância e pelo dinheiro. Foi quando começou a pôr em prática o exercício de se colocar no lugar dos outros. “Pra mim, isso que é compaixão”, afirma. O pernambucano que abraçou a cidade de Fortaleza há algum tempo, encontrou espaço na instituição religiosa Igreja Batista Central (IBC), onde continuou a realizar trabalhos onde pudesse, dessa vez, “restaurar” as pessoas. O programa bíblico Celebrando Restauração (CR) é baseado em oito princípios e doze passos onde, a partir de encontros, os participantes do programa encontram ajuda para se recuperarem de seus vícios, traumas e maus hábitos. Ao realizar essas ações, Rodrigo acredita estar também crescendo e melhorando junto com todos aqueles que precisam de um acompanhamento: “Me sinto assim. Com defeitos, com falhas de caráter e também com maus hábitos, mas vivendo um dia de cada vez”. Há dois anos, o jovem Rodrigo, com 26 anos e já formado em publicidade, recebeu a proposta para montar uma rádio comunitária na CPPL II. Ele estaria então, mais uma vez, diante daquela realidade que teve a oportunidade de conhecer quando adolescente, mas agora faria parte de uma contribuição para a recuperação da identidade e da esperança de detentos provisórios. A Rádio Livre faz parte do projeto Renascer, que tem como objetivo a pacificação dos detentos através de sua reeducação, para tirá-los do clima de ódio e para contribuir com sua reinserção na sociedade. Inicialmente, o projeto começou com um grupo de seis detentos, logo passou para trinta e hoje, dos 1.127 detentos no CPPL II, 925 optaram pela pacificação. Ao longo desses dois anos do

Divulgação

fUI PENSANDO em uma unidade prisonal como um lugar cheio de bandidos, pessoas más

projeto, as histórias são inúmeras. Mas um momento especial que a rádio proporcionou foi em um natal, onde se transmitiram mensagens de paz e esperança por parte dos próprios servidores da Secretaria de Justiça e, em especial, de uma mãe de um dos detentos. “Imagine uma mãe dizer para um filho onde, duas mil pessoas estavam ouvindo, algo como: ‘meu filho, mesmo você errando, vou continuar te amando e eu acredito na sua mudança’”, ainda ressalta: “Na condição de preso, a família é muito importante, é a única coisa que eles realmente respeitam”. Neste exercício solidário de se colocar no lugar do outro, Rodrigo conheceu melhor as esferas sociais e emocionais que envolvem os detentos. “Existe certa lei entre eles. O que você fala você tem que cumprir. Porque eles já são tão frustrados em relação a sua vida que possuem uma necessidade de resgatar isso. Aprendi com eles o respeito ao próximo e o verdadeiro significado de liberdade”, completa. Segundo ele, grandes realizações e pequenas atitudes contribuem para um mundo melhor. E onde este “soldado do bem” está inserido é nesse batalhão de pessoas que acreditam sempre num futuro melhor. “Sou jovem, tenho minhas loucuras e defeitos. Mas não decidi me enveredar por esse caminho. Eu decidi ir a um presídio e ajudar pessoas”.

Cornélius Ókdili Não foi só pelo trabalho de almoxarife na Secretaria de Justiça que o ex-presidiário Cornélius Ókdili encontrou reinserção na sociedade. Esse caminho foi percorrido por fé e força de vontade. O nigeriano que cumpriu pena de quase cinco anos numa penitenciária do Ceará, como reincidente por tráfico de drogas, sofreu com a língua limitada e a escassez de visitas. Somente quando veio de Pernambuco para cumprir a pena no Ceará, foi que ele decidiu ser alfabetizado em português, com ajuda da Pastoral Carcerária. “Quando me vi naquela situação mais uma vez, pensei ‘tenho que fazer alguma coisa para mudar a minha realidade’”, afirma Cornélius, ao lembrar-se de como o estudo o ajudou na recuperação de sua identidade.

Participou do concurso de redação “Escrevendo a Liberdade”, para presidiários onde 7.800 detentos foram inscritos. Das trinta redações vencedoras, uma delas era de Cornélius, onde ele dissertou sobre a alienação da liberdade e o sistema carcerário. “Saí das grades para entrar em outro tipo de prisão”, fala da sua falta de oportunidades. Depois deste primeiro passo, o nigeriano cursou o ensino fundamental, médio e superior dentro da prisão, tornando-se logo mais, um bacharel em teologia. Hoje, Cornélius promove o livro que escreveu sobre tudo o que viveu dentro do sistema chamado “Penas mais rígidas: justiça ou vingança”.

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(solidariedade e esperança)

3 O Brasil é o terceiro país do mundo no ranking de realização de transplantes. Ao todo são 598 estabelecimentos de saúde e 1.376 equipes autorizadas a transplantar.

Coração

Solidário Com a sensibilidade de quem superou uma doença cardíaca, Farias dedica sua vida a ajudar as pessoas que necessitam de transplante de coração Texto: Ana Regadas Design: Jaciára Lima Fotos: Humberto Neto

A

vida reserva muitas surpresas, algumas boas e outras ruins. Nem sempre as pessoas estão preparadas para enfrentar as “ciladas” que aparecem em seus caminhos. Há valores, como um simples sorriso de um amigo, que fazem toda a diferença, mas que na correria do cotidiano não é dada a real importância. Francisco Antônio Mourão de Farias, 53, passou por uma dessas ciladas. Farias, como é conhecido, vivia viajando de uma cidade para outra. Trabalhava como pecuarista e cuidava da sua fazenda. Mas, a luta não parava por ai. Formado em Engenharia Civil, Farias atuava também no ramo da construção civil. E, nessa vida intensa, seu coração não aguentou! Sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC). O problema com o coração vinha de muito tempo atrás. Foi em 1982 que Farias descobriu a doença. Como o tratamento em Fortaleza ainda era deficiente, viajou para São Paulo. Lá, os médicos constataram a necessidade de uma cirurgia. Farias não deu

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“ouvidos”. E assim foi adiando. Somente em 2000, após o AVC, foi que decidiu fazer a cirurgia. Os médicos implantaram uma prótese metálica, uma espécie de válvula, que ajuda no funcionamento do coração. Após a cirurgia, Farias achou que estivesse curado e continuou na correria de sempre. Mas, o coração novamente reclamou e, em 2007, a doença atingiu as cordas vocais. Farias ficou sem falar. Os médicos, porém, disseram que o coração dele estava bem. Ele recuperou a voz, com tratamento de fonoterapia. Em 2008 o problema voltou. Ele perdera a voz novamente. Era o coração já sem aguentar, que trabalhava forçado. Os médicos constataram que o coração dele estava crescido e o encaminharam para o Hospital de Messejana. Lá, passou por uma junta médica que realizou todos os exames e foi para a lista de espera do transplante. Nesse intervalo, fez novo tratamento de fonoterapia e a voz voltou. Estava então

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(solidariedade e esperança) apto para o transplante, já que todos os outros órgãos funcionavam corretamente. Mesmo diante desse quadro, Farias não perdeu o senso de humor. Seu desejo era se curar. Para a realização do transplante, o paciente passa por uma junta médica. É entrevistado por uma assistente social e psicólogo. A mente também precisa estar bem. Mas Farias não gostou muito da entrevista. “De psicólogo não precisava, não tinha nada na cabeça. Queria era ficar bom do coração”. E, na espera pelo coração, ficou em casa recebendo todo o amor e apoio da família. Foi um simples toque de celular, que deu a Farias a esperança de uma nova vida. Após 59 dias angustiantes, apareceu um doador. No dia 30 de maio de 2009, ele realizou o transplante. A recuperação foi rápida. Em apenas cinco dias, já estava andando pelo hospital. “O meu maior desejo era passar o Natal de 2009 com minha família”. Com 18 dias internado, respondeu bem à cirurgia e recebeu alta.Farias nunca perdeu a esperança de ter uma vida mais saudável. “Quando indicado para o transplante, veio logo aquela sensação: agora vou voltar a ser o que eu era antes. Estava um pouco debilitado, mas minha cabeça só pensava em ficar bom e foi o que aconteceu. Hoje estou curado. Graças a Deus, tudo que quero fazer, eu faço”. A vida dele sempre foi marcada pelo trabalho árduo e, mesmo quando estava doente, desejava a cura para dar continuidade as suas atividades. “O meu desejo era poder ir à fazenda e retomar o trabalho que ficou largado por conta do problema que eu estava passando”. E foi essa a primeira atividade dele após a recuperação. Algum tempo depois, foi convidado para ser o presidente da Associação dos Transplantados Cardíacos do Ceará. “Quando recebi o convite para ser presidente, sabia da responsabilidade que tinha de assumir. Hoje, desenvolvemos um trabalho em função das pessoas carentes, que precisam de auxilio para a realização do transplante”. Após passar pelo sofrimento da doença e da fila de espera, ele adotou como missão ajudar as pessoas carentes que passam pelo mesmo drama. Quem vê Farias hoje, não imagina o

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Quando indicado para o transplante, veio logo aquela sensação: agora vou voltar a ser o que eu era antes. Estava um pouco debilitado, mas minha cabeça só pensava em ficar bom.”

518 Número de pessoas esperando pelo transplante de córneas. É o maior número de espera, o menor é o de pâncreas.

897 que passou. Homem ativo, que pratica esporte e, além de presidir a Associação, cuida dos negócios da fazenda. Sua única restrição é quanto à alimentação, que deve ser bastante balanceada e com pouco sal. Quer agora educar bem seus filhos, deixando para eles o legado da honestidade, respeito e dignidade. “Tento passar para eles, os verdadeiros princípios da vida, pois hoje sei que é possível mudar e procurar fazer o melhor. Basta querer”. O futuro para Farias é recuperar o tempo perdido. “O que vejo é muito trabalho, para recompensar o tempo que fiquei parado. O mais importante, porém, é aproveitar cada minuto ao lado da família, viajar e comemorar esse recomeço da vida”. A vida tem agora um valor muito especial para Francisco Antônio Mourão de Farias. Aprendeu a dar mais valor aos pequenos detalhes do cotidiano, a amar o próximo, lhes amparando quando mais precisam de ajuda. Como dizia Charles Chaplin: “Pensamos demasiadamente. Sentimos muito pouco. Necessitamos mais de humildade, que de máquinas. Mais de bondade e ternura que de inteligência. Sem isso, a vida se tornará violenta e tudo se perderá”.

Número que levou o Estado do Ceará a bater o recorde no número de transplantes realizados. É uma referência nacional.

Cardiologista João David, coordenador de Tansplantes do Hospital de Messejana e Farias: respeito e gratidão

927 Total de pessoas que estão hoje na de espera. Apesar de ter aumentado o número de doações, ainda não é o suficiente para suprir a demanda.

A Associação dos Transplantados Cardíacos do Ceará funciona como uma casa de apoio aos pacientes do interior e de outros estados que não têm condições de pagar hospedagem em Fortaleza. A casa possui três quartos, seis camas, dois banheiros e uma área externa bem espaçosa. Tem varanda e é bastante ventilada. A estrutura é bem acolhedora e remete ao clima de interior. É arborizada e tem plantação de jerimum. Como a demanda é grande, está sendo reformada para aumentar o número de quartos. As despesas e as contas de luz, telefone e internet são pagas com o dinheiro de doações e da renda obtida de uma lanchonete, que fica no Hospital de Messejana. Já a alimentação fica por conta

hoje, desenvolvemos um trabalho em função das pessoas carentes, que precisam de auxilio para a realização do transplante.

dos pacientes. Eles se juntam e fazem a feira. Cada paciente tem direito a um acompanhante, que fica responsável pela alimentação e limpeza da casa, além de cuidar do paciente. Atualmente, estão hospedadas na casa seis pessoas, entre elas três acompanhantes, um paciente transplantado e dois na fila de espera.

Serviço Associação dos Transplantados Cardíacos do Ceará Rua Domingos Rayol-216, Bairro Messejana (85) 3459.00.86

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(mídia positiva)

Com a visão de um mundo mais justo e igualitário, o professor Souto Paulino sonha com um jornalismo de notícias positivas e de interesses sociais através da Agência da Boa Notícia Texto - Liane Braga Foto- Priscila Feitosa Design - Taíssa Julião

T

O quê da

notícia

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odos os dias leitores vão a bancas de jornais e revistas em busca de novas notícias. Essa é a função de um jornal. Mas, quando se para nas bancas percebe-se que grande parte dessas notícias são negativas. O assalto na padaria do Seu Joaquim, a agressão física sofrida pela estudante e, claro, morte, muitas mortes. Há quem não ligue, há quem goste e há quem luta diariamente para mudar essa realidade. Construir uma imprensa de paz. Esse passou a ser o lema e a meta do jornalista e professor Francisco Souto Paulino, 65. Com esperança neste desejo, ele e amigos se juntaram e, depois de muitas reuniões, chegaram à conclusão de que queriam fazer algo diferente. Mesmo colocando no papel todas as dificuldades que iriam enfrentar, levaram em conta que a desistência seria pior, e o sonho desse grupo tornou-se realidade em 2007, ano de fundação da Agência da Boa Notícia (ABN) – A paz pela comunicação. Hoje, a Agência possui sede própria em Fortaleza, e é gerida por uma diretoria, funcionando diariamente com a estrutura de dois jornalistas, uma secretária e estagiário. Aposentado, Souto Paulino está no terceiro mandato da presidência. E dedica os seus dias em prol dessa causa. “Queremos que todos os estados tenham uma Agência também, pois assim a paz ficará cada vez mais fortalecida”, vislumbra Souto. A sede da ABN foi emprestada por um dos diretores e os gastos básicos são arrecadados pelos colaboradores.

Com a larga experiência e senso crítico, Souto avalia a imprensa que nos bombardeia de notícias. E acredita que estamos atrasados perante a tecnologia que é disponível. “Hoje recebemos notícias de todos os meios. Mas, nem todas as pessoas têm a capacidade de captar tudo. Precisamos de uma imprensa mais social e acessível”, deseja o professor, que é casado com a também jornalista Lêda Maria, colunista do jornal Diário do Nordeste. Por ter ajudado a fundar o Curso de Jornalismo de uma faculdade localizada em Fortaleza, Souto também faz avaliação sobre os cursos de comunicação social de todo o Brasil. “Eles estão atrasados. Os futuros profissionais ainda possuem disciplinas que eram dadas antigamente, e não existem disciplinas que aprofundem mais esses alunos sobre os problemas da atualidade, como por exemplo o meio ambiente”, lamenta. Com gestos lentos e voz digna de orador, o professor conta como é feito o trabalho da agência, que surgiu com o intuito de transformar a sociedade, para torná-la mais justa e igualitária. Todos os dias chegam à Agência, em torno de 20 boas notícias. Os jornalistas responsáveis checam todos os dados, ligam para as fontes, e escolhem as pautas que passarão por um aprofundamento na apuração. Em seguida, as pautas aprofundadas são enviadas para cerca de 7.500 e-mails. São endereços de jornalistas, estudantes de comunicação, órgãos de comunicação e pessoas interessadas que se cadastram no site.

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(mídia positiva)

Prêmio Gandhi de

Comunicação

A

pauta é enviada toda checada, cabendo aos interessados marcar encontro com as fontes e produzir a matéria. Hoje o trabalho passa a ser conhecido e valorizado. Mas, quando surgiu, era visto como concorrência por alguns meios de comunicação. “As empresas achavam que queríamos fazer oposição e concorrência. Hoje sabem o nosso verdadeiro desejo: somos os assessores de imprensa das boas notícias. Queremos atingir os profissionais para que eles façam um jornalismo mais social”, comemora Souto. Realmente, há motivos para comemoração. Muitos veículos de comunicação diminuíram o uso do sensacionalismo, e são parabenizados por isso. “O programa Barra Pesada, da TV Jangadeiro, por exemplo, já mudou um pouco seu estilo. Após várias pautas mandadas e muitas fiscalizações, hoje o programa foca mais em notícias sociais do que em sangue. Eles levaram em consideração que nem todo mundo gosta de sensacionalismo”. Souto

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Quero que chegue o dia em que irei abrir o jornal e me deparar com várias notícias positivas também é convidado frequentemente por rádios cearenses para participar de debates sobre a cultura de paz. Com maior conhecimento e reconhecimento desse trabalho, o site da Agência da Boa Notícia é cada dia mais visitado. Os acessos são também de outros países como Portugal, Espanha, Estados Unidos e Argentina. A partir de 2012, o site será adaptado para a versão bilíngue, podendo ser acessado também em espanhol. O comprometimento da ABN é tão grande que várias pautas já foram

enviadas para o exterior, sendo divulgadas por grandes jornais mundo afora. O oposto também é feito. Semanalmente a equipe da Agência reúne-se para montar o boletim “Boas Notícias do Mundo”, ou seja, as boas notícias, que são divulgadas nos jornais de todo o mundo, são reunidas no boletim e enviadas para todos os contatos da Agência. Outro trabalho da ABN é a produção de cursos e fóruns sobre a paz. Esses eventos geralmente ocorrem em faculdades, e têm como objetivo uma medida educacional. É uma tentativa de mostrar aos alunos o trabalho que a Agência faz, potencializando um jornalismo ético, positivo, plural e humanitário. “O mundo sempre é o mesmo, a humanidade é quem muda”, essas são as palavras que Souto Paulino pensa para o futuro. Ele sonha em ver um mundo melhor, mais igual e verdadeiro. Nem mesmo o assalto que sofreu em 2007 o fez mudar de ideia. O professor luta para que os profissionais de comunicação e estudantes aprofundem-se mais em assuntos de interesse social. E claro, as boas notícias com ênfase em todos os meios de comunicação. “Queremos transformar a sociedade. Queremos pessoas mais preocupadas em fortalecer a paz do que combater a violência. Quero que chegue o dia, em que irei abrir o jornal e me deparar com várias notícias positivas”, conclui Souto, um amigo da paz.

Ao entrar no escritório do professor Souto Paulino, a primeira visão é para um belo quadro, que retrata a imagem serena e sábia: o memorável Mahatma Gandhi. O líder foi escolhido como exemplo disseminador da paz e homenageado pela ABN, com o nome de um projeto. É o Prêmio Gandhi de Comunicação, que tem por objetivo incentivar os estudantes e profissionais da comunicação a elaborarem conteúdos que falem de coisas boas, fortaleçam a paz e tragam contribuições para a sociedade. Acontece anualmente e há várias categorias. As premiações são feitas com troféus (uma miniatura do Gandhi) e valores em dinheiro, arrecadados por meio de patrocínio dos colaboradores.

A Diretoria da Agência da Boa Notícia tem a seguinte composição: Presidente: Souto Paulino; Diretor Financeiro: Luís Eduardo Girão; Diretora de Comunicação: Ângela Marinho; Diretor Institucional e de Projetos: Eduardo Bandeira Araújo; Secretário Geral: Moacir Maia. O Conselho Fiscal é formado por Fernando Lobo, Érico Silveira e Odilon Camargo. No site da ABN há dicas de livros, filmes e artigos ligados à ação.

Serviço Agência da Boa Notícia Avenida Desembargador Moreira, 2120, Sala 1307 – Bairro Aldeota Prédio Trade Center CEP: 60170-002 - Fortaleza - Ceará Fone/Fax: (85) 3224.5509 E-mail: boanoticia@boanoticia.org.br - Site: http://www.boanoticia.org.br

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(vida de parteira)

Cuidadoras, de fato! "Eu nasci para sofrer e tu nasceu pra viver. Porque tu vives, todo dia tu está dando vida ao mundo, todo dia tu está dando vida pra esse povo". De Patativa do Assaré para Mãe Inês.

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(vida de parteira) Texto: Augustiano Xavier Design: Lucia Medeiros Fotos: Caio Túlio, Gabriela Maciel e Jari Vieira

Desde a antiguidade, há registros da arte de partejar. O papel delas sempre foi o de ajudar no nascimento, assistindo às mães no parto. Desde os primórdios, portanto, as parteiras não medem esforços quando o assunto é ajudar a trazer mais um ser humano ao mundo. Na maioria, são mulheres humildes, que vivem por diferentes lugares e enfrentam muitas dificuldades. Tudo para dar apoio e suporte às futuras mamães na hora em que mais precisam. Mas, como essas mulheres, guerreiras, que lutam para ajudar outras, percebem o mundo atual? Suas esperanças são fortalecidas sempre que acolhem uma criança em seus braços? Essas são apenas algumas das muitas questões que Mãe Inês, uma jovem senhora de 71 anos, que desde os 14 atua como parteira, irá revelar. Inês das Neves de Oliveira, Mãe Inês, como gosta de ser chamada, nasceu em Juazeiro do Norte, no dia 18 de julho de 1940. Filha de Manuel Bezerra de Oliveira e de Maria José de Oliveira veio para Fortaleza em 1958, quando estava cursando a Faculdade de Direito. Ao chegar à capital, porém, não conseguiu dar continuidade aos estudos. Foi ajudando a tia que Mãe Inês realizou seu primeiro parto. "Minha tia estava sofrendo pra descansar. Aí, peguei na mão dela e ela pediu para eu não sair de lá. Disse que não podia ficar. Então, ela disse: “Minha filha, saia daqui não”. Isso me vestiu de uma força, de um jeito que não sei quem eu era. Naquele momento o parto aconteceu. Fiz o parto, fiz tudo. Só fui "acordar" quando estava entregando o bebe para minha tia”, lembra Mãe Inês. Sofrendo muitos preconceitos, Mãe Inês chegou ao ponto de ter de abandonar a escola, devido aos partos que realizava. "Sofri muito. As pessoas não aceitavam uma garota de 14 anos fazendo o que eu fazia. Tive até que sair da escola”, lembra. Com aproximado de cinco mil partos já realizados, Mãe Inês diz que cada parto é uma ocasião diferente, especial, e que

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HOJE O MUNDO é completamente diferente do que era antigamente.

MEU PAI não concordava muito, mas em primeiro lugar estavam as mãezinhas e os partos e, em segundo, todo o resto.

sempre se emociona quando acolhe um bebe que chega. "É a melhor coisa do mundo. Quando ele chora, e olha pra gente, é tão lindo", diz emocionada. Defensora do parto natural, Mãe Inês diz que é a melhor forma de dar a luz, uma vez que a mãe tem uma recuperação mais acelerada e com mais tranquilidade. "Com o parto natural, depois que o bebê nasce, a mãezinha já fica de pé, uma hora depois. Ela se levanta alegre e satisfeita, esse é o parto natural. É aquele que amanhã a mulher já está bem e fica naturalmente boa", destaca. Mãe Inês acredita que o parto é um momento mágico na vida de qualquer mulher. "As mulheres têm o direito de ter alguém da sua família na hora do parto. Isso é um direito delas e deve ser respeitado", defende. Mesmo com toda a dedicação das parteiras, Mãe Inês conta que existem alguns médicos que não as aceitam como profissionais importantes na hora

do parto. "Eles acham que as parteiras não têm a teoria que eles têm. Que não têm a sabedoria deles. Acham que as parteiras são atrevidas, enxeridas e curiosas. Por que estudaram pelo livro? Eu estudei pela mentalidade, pela teoria e sabedoria. E tudo de parto eu sei. Minha faculdade foi feita por Deus", diz Mãe Inês. Religiosa, Mãe Inês diz que assim que vê o bebê nascendo e chorando, a primeira coisa que faz é abençoar e pedir para que seja uma boa pessoa. "Deus te abençoe e te faça um ser humano de moral e de vergonha, que você consiga tudo que precisa na vida, sem fazer mal a ninguém”. Comprometida com muitas questões, Mãe Inês tem esperança em dia melhores, que o mundo poderá, sim, ter um futuro bem melhor. Mas isso só acontecerá se os pais e a sociedade entenderem o seu papel para com as crianças que chegam a nossas vidas, fazendo com que se tornem seres humanos com caráter e dignidade. "Não vejo algo muito diferente, um mundo melhor, se não nos empenharmos na missão de ser pai e mãe de verdade. As autoridades têm de entender que é pela educação que o mundo ficará melhor", ensina Mãe Inês. A sensibilidade dela se mistura com a dedicação de uma profissional que desde muito tempo sabe a dimensão e a importância de seu ofício para a sociedade. Os partos feitos por Mãe Inês vão além de técnicas médicas. Ela estabelece forte relação com as mães e suas famílias, bem como com a comunidade da qual faz parte. Assim é Mãe Inês que, como já dizia Patativa do Assaré, vai dando vida ao mundo. Todo dia ela está dando vida para esse povo.

Por partos mais humanizados No Brasil, o número de partos por cesariana em hospitais particulares é cinco vezes maior do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde, chegando ao alarmante índice de 80%. Além disso, os casos de violência são uma triste realidade. Um estudo denominado “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, aponta que 27% das mulheres que deram a luz na rede pública e 17% daquelas que pariram em rede privada relataram alguma forma de violência durante seu parto. O Brasil possui uma forte rede de pessoas que lutam pela Humanização do Parto e do Nascimento. O trabalho das parteiras tende a minimizar as intervenções desnecessárias durante o parto, de acordo com dados do movimento Marcha das Parteiras.

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(acima do peso)

O futuro

sob um olhar de

peso

Patrícia e Ricardo não se conhecem, mas partilham de uma mesma condição física que, não poucas vezes, os tornou vítimas de preconceito e incompreensão: a obesidade Texto: Tiago Fernandes Design: Almir Moreira Imagens: Fernando Botero

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(acima do peso)

O

despertador toca geralmente às 5:30. O professor de inglês Ricardo Probo, 41, nem sempre se dá ao luxo de tomar o café da manhã, pois para chegar ao trabalho precisa pegar o ônibus antes que esteja lotado. Isso deixaria atitudes simples como passar a roleta e sentar-se ao lado de outra pessoa algo ainda mais penoso e constrangedor. Para a publicitária Patrícia Cordeiro, 27, o trajeto até a empresa onde trabalha é menos penoso, pois faz o trajeto de carro. No entanto, já cedo se sente cansada e seus joelhos começam a reclamar das escadas que a levam até a sua sala. Dificuldades a parte da sua condição de obeso, Ricardo é um daqueles caras inteligentes, divertidos e comunicativos. Tem sempre uma frase que faz todos rirem. E mais, não lhe faltam palavras e gestos para apoiar e cuidar de quem precisa. Não por acaso, sua companhia é disputada pelos amigos e familiares. Patrícia é uma mulher linda, vaidosa, batalhadora. Normalmente maquila-se e veste-se impecavelmente. É de sorriso fácil. Lágrimas também. Foi na mesa de um café da cidade que Patrícia falou por mais de uma hora. Entre sorrisos discretos e olhos muitas vezes marejados ela narrou um pouco da sua trajetória e suas perspectivas de futuro. Aos seis anos Patrícia começou a ter consciência da sua obesidade. Foi quando começou a frequentar, levada pela mãe, consultórios de endocrinologistas, nutricionistas e psicólogos. O pai, por sua vez, não via qualquer problema na garotinha. “Ele achava lindo me ver comendo. Sempre me dizia que eu era linda do jeito que eu era”, relembra, com olhar saudoso, a publicitária de 25 anos. Há cinco anos ela perdeu o pai. Como a maioria das crianças obesas, Patrícia teve um infância difícil: era a última a ser escolhida nas brincadeiras e jogos da infância ou adolescência ou simplesmente era deixada de fora. Os apelidos depreciativos eram corriqueiros. Para Ricardo, a consciência da obesidade só veio aos 35 anos, mais ou menos. A insistência das pessoas em convencê-lo da sua condição foi decisiva. “Até então, eu não me via como obeso. Apenas como alguém que estava acima do peso”, conta. Foi nesse mesmo período que passou a executar com dificuldade atividades simples como levantar da cama e amarrar o tênis. Certa vez, ele estava num bar com um grupo de amigos e conhecidos. Todos haviam combinado de, em seguida, continuarem a noite em outro estabelecimento. Percebeu, então, certo constrangimento no grupo. Um amigo confessou que pelo fato de ser gordo, o professor não poderia ir no carro, pois ocuparia muito espaço. “Aquela ainda é uma noite difícil de esquecer”. Ir às compras costuma ser uma atividade prazerosa para a maioria das pessoas. Mas quem nunca experimentou o desconforto de ser mal atendido,

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“Gordos têm dificuldades em encontrar parceiros. Ser gordo não é ser gente”.

“Impossível ser magro, mas preciso ser saudável. Eu quero durar”. por qualquer motivo, em algum estabelecimento comercial? Se a má qualidade do atendimento for motivada pela obesidade, pode ser ainda pior. Numa loja de roupa feminina, ao abordar a vendedora, a jovem publicitária recebeu como resposta um sonoro: “Ah, não temos roupa pra você aqui.” Sentindo-se humilhada, agradeceu e saiu.

Quanto ao futuro...

Indagado como enxerga o seu futuro, Ricardo silencia. Corta, então, mais um pedaço do bolo que está em cima da mesa. “Sei apenas que se eu falhar no meu presente terei um futuro ainda mais nebuloso”. E o que ele chama de falhar. “Falhar”, responde, “é não conseguir ser útil e relevante para a sociedade”. Estudante do 4º período do curso de Enfermagem, seu objetivo é concluir a graduação, ingressar imediatamente em uma pós-graduação e trabalhar em um hospital de referência ou mesmo, aproveitando sua fluência na língua inglesa, trabalhar na Europa ou Estados Unidos. Ricardo não escolheu o curso de Enfermagem aleatoriamente. Sua vocação, assegura, é cuidar. Desde cedo ajudou na criação dos sobrinhos mais velhos. Hoje, se divide entre o desejo e o receio de ser pai. Seu

medo é repetir a violência moral a que foi submetido pelos pais. Refere-se às ofensas que sofreu por ser gay e, mais tarde, por ser obeso. O desejo de constituir família é uma realidade. O futuro enfermeiro, no entanto, parece não ter muitas esperanças. “Gordos têm dificuldades em encontrar parceiros. Ser gordo não é ser gente”. Certa vez, um dos seus paqueras sugeriu que ele emagrecesse, pois, “ficaria perfeito”. Mesmo que Ricardo concordasse, não daria tempo. O paquera sumiu. “Parece até que para muitos, perde-se a humanidade quando se é obeso”. As convenções sociais e seus efeitos nocivos estão fortemente presentes no discurso de Ricardo. Acredita que dificilmente haverá um futuro próximo onde a sociedade estará preparada para conviver com a obesidade. Segundo ele, há um modelo vigente em que o magro é o belo e gordo é o feio. Antes de falar sobre a possibilidade de emagrecer no futuro, mais silêncio. Suspiros, olhar inquieto. A dificuldade em responder é notória. Uma coisa é certa, dificilmente fará uma cirurgia bariátrica (redução de estômago). Para ele, poucos se mantêm magros. Outros morrem e alguns desenvolvem a Síndrome de Dumping (ver coordenada). “Impossível ser magro, mas preciso ser saudável. Eu quero durar”. Patrícia é casada há três anos. Conta que o próximo passo é ter filhos, mas só depois de emagrecer. Com o peso atual, teria uma gravidez muito mais complicada. “Quando eu tiver filhos, farei de tudo para que eles não passem pelo que eu já passei e ainda passo”. O sonho dela é abrir o próprio negócio. Quer uma loja de moda feminina. Para isso, iniciou uma pós-graduação e faz cursos na área de gestão e marketing. Vê nesse sonho, contudo, o desafio de emagrecer. O peso pode impactar diretamente na vida profissional, pois compromete o desempenho físico. Além do mais, confessa, “a gordura deixa a pessoa feia”. Diferentemente de Ricardo, Patrícia vê o futuro com mais otimismo. Para ela, é mais fácil ser obeso hoje, pois o preconceito é menor. A mídia, opina, fala muito sobre o assunto e isso ajuda a diminuir o preconceito. “Mas eu preciso encontrar um novo caminho para emagrecer. Já conheço muitos”.

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(esporte sem limites)

O mundo de

Silgene Texto: Thiago Jorge Fotos: Vicente Neto

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A

vida dela poderia ser diferente, se não fosse uma séria lesão que sofreu na coluna no momento de nascer quando, num movimento brusco, a parteira a trouxe ao mundo. Nos primeiros meses, o bebê Silgene não havia ainda manifestado as sequelas que viria a apresentar futuramente, mas, algum tempo depois, diante de tantos médicos e inúmeros exames, o problema foi gradativamente sendo descoberto. Começou a fazer várias sessões de fisioterapia para amenizar as consequências do parto. Para surpresa do médico, apresentou apenas danos físicos como espasticidade e encurtamento de tendões, bem como a incapacidade de manter o equilíbrio. Desde a infância, foi constantemente instruída por sua mãe de que não seria igual às outras crianças, que elas iriam vê-la com olhar penoso e que Silgene sempre teria de explicar o que realmente havia acontecido com ela, que se acostumasse com essa vida, e que iria precisar de muletas para se locomover. “Cresci vendo o mundo de pessoas “normais” como diferentes, como pessoas que precisavam entender que eu era feliz e o fato de ter quatro “pernas” não me tornava incapaz”. Na escola, os estudos foram iniciados aos 7 anos de idade e, logo no primeiro dia, lembra Silgene, ficou sozinha. Nos finais de semana costumava dormir na casa de amigas e até viajar com as famílias. Não tinha a mínima ideia de que o fato de aceitar a vida como ela era, fazia com que todos a encarassem de forma natural e sem sinais de preconceito. “Acho que todas as crianças especiais deveriam crescer assim, sabendo que a vida é diferente para todos. A melhor parte disso, no entanto, é fazer das diferenças a força para realizar os sonhos”.

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“A melhor parte é fazer das diferenças a força para realizar os sonhos”

Com limitações físicas ou não, a adolescência é o período mais difícil de qualquer jovem. É nessa idade que as emoções e os desejos ficam mais fortes. A rebeldia vez ou outra toma conta e os conflitos são constantes. Não foi diferente com Silgene. Os rapazes olhavam as meninas de forma diferente. Algumas nem queriam mais brincar de boneca, e sim ir às festas e aproveitar a noite. Nesse tempo, um episódio marcou muito a vida dela: ao dançar com um garoto numa festa, antigamente chamada de tertúlia, Silgene caiu no chão por não saber equilibrar-se corretamente em pé. Ficou sem reação. Ao tentar se levantar foi ajudada por alguns colegas de turma, mas logo depois percebeu que as outras pessoas da festa a olhavam com desdém, como se a chamassem de “coitadinha”, por não saber andar bem e dançar normalmente como os outros jovens de sua idade. Imediatamente, saiu da festa e foi direto para casa. Ao chegar, a mãe de Silgene ficou sabendo o que aconteceu na festa e disse-lhe algo que ficou na memória para sempre. “Você tem duas opções; passar a vida sozinha lamentando o que não tem ou tirar o melhor proveito daquilo que Deus te deu”, recorda. A partir desse momento, a jovem Silgene passou a ver o mundo de uma forma mais ampla, aproveitando cada oportunidade que lhe aparecia. “Sou o que sou. Quem quisesse fazer parte do meu grupo era bem vindo, quem não me

“Sempre gostei de cuidar de crianças e meu amor por elas se estende às bonecas”

aceitasse, ficaria de fora. Com os adultos adotei a mesma estratégia de criança, paciência com todos para explicar e aceitar o fato de não me entenderem”, diz ela, com entusiasmo. Dessa forma, aprendeu inglês, japonês, primeiros socorros e também a fazer bonecas no estilo “reborn”. Aos 46 anos, Silgene hoje é telefonista em uma rede internacional de hotéis no Brasil. Trabalha de domingo a domingo, com uma folga a cada sete dias. Ela acredita que as condições de trabalho são favoráveis, mas que podiam melhorar bem mais. Alguns aspectos e detalhes do hotel foram modificados para que ela pudesse ter acesso às ações mais básicas do dia a dia do trabalho, como bater o ponto ou

subir uma rampa. O aparelho do ponto eletrônico foi estrategicamente colocado a uma altura na qual ela possa inserir o dedo de forma confortável e, na entrada de funcionários do hotel, há uma pequena rampa para que ela possa subir e descer sem dificuldades. Silgene tem outros planos e outras ocupações. Nas horas vagas, ela vai trabalhar na Lan House que mantém junto com sua família. Em casa, ela também fabrica os bebês chamados “reborn”. Fazer um Bebê Reborn é criar uma boneca com as características de um bebê humano dando a máxima realidade possível. O cabelo que pode ser de fibra sintética, cabelo humano ou tirado do pelo da cabra angorá que é conhecido mundialmente por ser forte e brilhoso é tratado

e colorido para depois ser implantado fio a fio com uma agulha especialmente produzida para isso. O implante é um processo delicado que exige técnica, paciência e tempo para terminar uma só cabeça. Há também a opção da peruca para quem deseja um bebê com mais cabelo. Mas o amor por bonecas reborn não é por acaso. Silgene sempre foi muito apegada a crianças. Na adolescência, cuidava de seus irmãos mais novos com muito carinho. “Sempre gostei muito de cuidar de crianças, e meu amor por elas se estende às bonecas. A primeira que fiz se chama Aiko e é o meu grande amor”. Silgene acha que a forma como o mundo vê os deficientes já melhorou muito, mas ainda falta muito mais para que direitos e respeito sejam iguais. Quanto as suas expectativas futuras, ela sonha em algum dia adotar uma criança e se tornar uma mãe, assim como ela fabrica e cuida de seus bebês reborn.

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Força de vontade e

supe ração ( 44 )

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(esporte sem limites)

A decisão precipitada de uma enfermeira em não vacinar contra poliomielite mudou para sempre o destino do pequeno Claudemir. Desde então, ele enfrenta o preconceito praticando esporte para superar os limites da paralisia. Texto: Lais Brasil Design: Almir Moreira Foto: Lais Brasil

O

desentendimento entre uma enfermeira com algumas pessoas, na fila de um posto de vacinação, em Sobral, mudou para sempre a vida de Claudemir Duarte de Farias. Como consequência, ele deixou de ser vacinado contra poliomielite, ou paralisia infantil, aos oito meses de idade. A enfermeira discutiu com uma das mulheres que estavam na fila e decidiu não vacinar mais qualquer criança naquele dia, e disse para voltarem no dia seguinte. Claudemir e sua mãe voltaram, então, para a cidade onde moravam, Cariré, próxima de Sobral e a 287 km de distância de Fortaleza. Mãe e filho não voltaram ao posto no dia seguinte, porque não tinham condições de alugar, mais uma vez, um carro para os levarem até o posto. Uma semana depois de não ter sido vacinado, o pequeno Claudemir teve febre. A mãe começou a tratá-lo como se fosse uma febre normal, como qualquer outra. Mas a febre não cessava. Resolveu, assim, levar o filho para um hospital. Descobriu que ele estava com paralisia infantil. Os médicos queriam amputar as pernas do menino, mas a mãe fugiu do hospital, antes que isso pudesse acontecer. Com um ano de idade, Claudemir e a família se mudaram para Fortaleza. A partir de então, passou a ser tratado por um casal de médicos, que cuidou dele até a adolescência. Do primeiro ano de nascido aos dez anos, fez quatro cirurgias. “Quando voltava pra casa, ficava com o gesso. Em cada cirurgia passava quase um ano com ele. Todo mês colocava e tirava o gesso.” Ele recorda também que não teve infância porque permanecia muito tempo no hospital. “Passava seis meses do ano no hospital.” Tinha preconceito com a sua própria paralisia e achava que não ia ter convívio com as pessoas por esse motivo.

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1 “ Fico com eles durante o dia, dou banho, cuido do almoço, coloco pra dormir, “faço a mãe.”

2 “ Tenho o esporte como uma lição de vida e não deixo de fazer, só quando meu corpo não agüentar mais.”

3 “Existem algumas pessoas deficientes que se sentem presas, não sabe se expressar com as pessoas, eu observo muitas pessoas deficientes não sabe pedir um obrigado.”

Por causa disso, até 15 anos, os amigos eram os da sua rua, apenas. A partir daí, começou a frequentar o Centro Social César Cals (CSU) e os amigos, agora, também eram de lá. Foi no CSU que descobriu a paixão pelo esporte, mais precisamente pelo basquete, que há 20 anos pratica. “Tenho o esporte como uma lição de vida e não deixo de praticar. Só quando meu corpo não aguentar mais. Às vezes, até brigo com minha esposa, porque ela não quer que eu vá treinar, mas digo que ela já me conheceu no esporte. É algo que eu não abro mão”. No basquete para cadeirantes, o atleta precisa ter muita força nos braços. Ele nunca teve qualquer lesão relacionada ao esporte. O time de basquete que Claudemir participa não tem patrocínio fixo. Eles têm ajuda do governo do estado, da prefeitura e um convênio com a Expresso Guanabara, que patrocina 20 atletas com um salário mínimo. “Somos funcionários da Guanabara, mas não trabalhamos pra ela, nosso trabalho é treinar. Uma vez por mês somos chamados pra uma reunião. Participamos dos eventos da empresa, e vamos divulgar o trabalho social que ela faz”. Hoje, aos 35 anos, Claudemir sonha em poder ter uma equipe, criar um clube grande, dar ajuda financeira para que os deficientes possam treinar. Antigamente as dificuldades para os cadeirantes, eram bem maiores. Tanto em relação à arquitetura da cidade e aos ônibus, quanto às pessoas. “Em uma praça, se há uma rampa, alguém vai e estaciona o carro na rampa, impedindo os cadeirantes de usarem a praça. Há um espaço todo, mas o motorista estaciona na rampa. Você já percebeu isso?” Para ele, um dos piores lugares para o deficiente físico é o Centro da cidade. São muitas calçadas altas e desestruturadas. Algumas vezes ele precisa da ajuda de pessoa, e, quando precisa, não tem

vergonha de pedir e nem de agradecer. Hoje, já existem muitos ônibus com elevador e mais rampas na cidade, facilitando assim a vida dos deficientes, que já podem passear em praças, shoppings e outros lugares públicos. Diferentemente de alguns anos atrás, quando as pessoas com deficiência só podiam sair de carro, táxi e na companhia de alguém. O cadeirante deseja que se amplie, mais ainda, o número de coletivos adaptados. Gostaria mesmo que, aliás, tudo fosse acessível, que não fosse mais preciso andar no meio da rua, e que os deficientes tivessem mais acesso à praia. Uma vontade de Claudemir é continuar os estudos, (ele só estudou até o 3º ano do ensino médio), fazer faculdade de Educação Física e ser técnico de basquete. Fora seu amor pelo esporte, também ama a família. Está casado há dez anos e tem um casal de filhos. Ele teve todo o cuidado com a vacinação dos filhos. Não só com a vacinação, mas tem cuidado de deixá-los e pegá-los no colégio sempre que pode. “Eu que fico com eles durante o dia, dou banho, cuido do almoço, coloco pra dormir. “Faço a mãe. A noite é a vez da mãe deles.” No tempo livre, gosta de assistir a filmes em casa, e ir à praia. “Sou um pouco reservado. Não gosto muito de sair. Já fui de sair muito”. Atualmente atua no ramo de monitoramento de empresa de segurança, mas já trabalhou como cobrador de ônibus, caixa de supermercado e no suporte de internet. Claudemir espera que, com a Copa do Mundo, a situação fique melhor, já que Fortaleza será um dos palcos do Mundial. “Espero que a situação melhore e que não seja somente durante a Copa”, disse o paratleta com esperança no futuro.

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(estilo de arte)

Verônica Valentino: talento x preconceito

Performática, carismática e talentosa. Verônica Valentino, personagem travestido de Jomar Carramanhos é a prova confessa de como uma realidade adversa pode moldar e redesenhar a alma de um artista, superar preconceitos, quebrando paradigmas por meio da universalidade inerente na música e no humor. Texto: João Bosco Design: Diana Vakentina Fotos: Divulgação

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(estilo de arte) tem uma trava’. Essa mídia, creio que é conquistada. Mas, enfim, acho que tudo pode ser manuseado”. Um ponto a destacar é que Verônica diz que não pretende ser reconhecida por suas “p.”, mas diz que hoje pela “p.” chega e diz que é “aquela travesti do vídeo” e consegue mostrar seu trabalho. A luta da personagem é fazer com que o público que gosta do seu trabalho consiga respeitar a figura o travesti. “Não importa o que faço, não importa no que creio, não importa do que vivo, você tem que me respeitar pelo que sou”, ressalta. Sobre a família, Verônica diz que após tempos complicados, hoje sua mãe é tranquila e chega até a ajudá-la com seu material de montagem, pois ela continua sendo evangélica e encara que o seu filho é um artista e vive disso, não se traveste para fazer um programa.

Travestis e a prostituição

S

ua trajetória começa em 2004, quando ainda jovem e pertencente a uma comunidade evangélica, fruto de convicções familiares, participava ativamente de atividades artísticas: dança, música e teatro com professor. Aos 20 anos, após aprovação no curso de artes cênicas no IFCE, ocorre o primeiro choque e decepção com seus companheiros de culto, os quais o incentivaram a largar o curso, já que ele atrapalharia o andamento de suas atividades na igreja e também pela taxativa discriminação com a área. Esse episódio foi decisivo para o seu desligamento das tradições religiosas. Em uma viagem com colegas do curso para o festival de teatro de Guaramiranga, Verônica se permitiu conhecer a si mesma por completa: “Decidi fazer tudo que considerava errado: fumei meu primeiro cigarro, bebi minha primeira bebida, beijei meu primeiro homem”, diz o artista. Nessa jornada de auto-descoberta no último período da faculdade recebeu convite do diretor Silveiro Pereira para o espetáculo “Cabaré da Dama”.

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“É sonho, cara, e se é aquilo que te move, tu tem que ir” Na peça, ovacionada pela platéia, encarnou Edith Piaf, símbolo da época de ouro da música francesa, onde fez sua primeira experiência travestido. Foi seu primeiro trabalho na noite teatral, onde teve contato com grandes artistas do cenário local e teve a primeira experiência de “montagem”. Logo após uma temporada fazendo o “Cabaré da Dama”, foi convidada para atuar no “Engenharia Erótica”, onde Verônica tinha músicas que eram executadas ao vivo. Realiza, então, um sonho antigo de interagir com o público musicalmente. Nessa época com o sucesso advindo de suas apresentações, entrou em contato com Jonas Dário, que já era seu amigo de longa data, e a partir disso

surgiu a ideia de formar uma banda de rock. “Verônica decide morrer” é uma alusão escachada do próprio personagem por essa distorção do imaginário que como travesti, ela teria uma pegada mais puxada para o pop. Desmente a ideia de que o nome da banda seja uma referência à obra do escritor Paulo Coelho. A personagem ficou famosa com a vinculação de um vídeo no youtube denominado “Glossário sobre Travesti”, que lhe rendeu uma participação no programa da Eliana nas tardes de domingo. Seu maior desejo como artista é desvirtuar a ideia associada ao travesti com prostituição e ser reconhecida e amparada somente pelo seu trabalho. Veronica diz que um de seus objetivos é mostrar o humor gay para as pessoas, sem usar da discriminação como ferramenta. Sobre a banda, a personagem diz: “Acho que tudo é conquistado. [...] A gente tem uma visibilidade bacana pra muito pouco tempo. Aquelas que não viram, já ouviram falar, aquelas que não ouviram falar, vão saber porque alguém vai dizer ‘ah, tem uma banda de rock que

Largam o estudo cedo, na 6ª ou 8ª série. Alguns frequentaram a escola e, em geral, foram ridicularizados por colegas e professores. Dizem que se prostituem pelo dinheiro “fácil” - ganham até R$ 4.000 por mês -, e garantem que largarão essa vida depois de juntar muito dinheiro. A vida deles é marcada por falta de aceitação, preconceito e, às vezes, segredos. A imagem da travesti é comumente relacionada à prostituição. Essa ligação tem um pé na realidade: muitas travestis se prostituem. Contudo, esse dado precisa obrigatoriamente ser acompanhado de outro, tão importante quanto. É difícil, para a travesti, encontrar espaço no mercado de trabalho. O preconceito, embora nem sempre explícito, é real. Aquelas que conseguem transpor essa barreira também têm um destino traçado. Com raríssimas exceções, tornam-se cabeleireiras, diaristas e cozinheiras. A falta de espaço no mercado leva muitos travestis a se entregarem à vida “fácil” da prostituição, onde terão oportunidade de ganhar dinheiro para se manter, sem sofrer preconceito pelo que são - já que os que buscam normalmente estão cientes da sexualidade do ser.

Serviço

2345422 é o número de visualizações no site YouTube do vídeo mais famoso de Verônica, o Glossário.

Banda Verônica Decide Morrer Gênero: Rock’n’Roll Rhythm Blues Contato: Malu Machado Tel: (85) 87223837 Emaill: malu_23_ce@yahoo.com.br

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(nação e identidade)

Futuro

Pi ta gua ry ( 52 )

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(nação e identidade)

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Textos e fotos: Anderson Paixão Design: Lucia Amaral

N

ão é de agora que os índios estão lutando para não perder seus costumes e sua cultura, e para se adaptar ao mundo atual. A história registra que eles foram obrigados a se adequar ao mundo que não os pertencia. Com os índios Pitaguary não foi diferente. A luta começou há muito tempo, desde quando saíram da Parangaba atrás de novas terras. Eles batalharam muito até chegar ao sopé da serra da Aratanha, em Pacatuba, lugar onde hoje habitam. Foram tratados de forma desumana, nas palavras do pajé Barbosa, 43 anos. Como não sabiam ler, nem escrever, eram tratados como sem alma, sem espírito. Só queriam manter, na verdade, sua língua, cultura e religião. “Dá até vontade de chorar quando lembro que tínhamos a nossa própria língua e tivemos que aprender o português e deixar pra trás toda a nossa história”, lamenta. Os índios Pitaguary vivem de personagens. Têm que se vestir como homem branco para não sofrer represália nas ruas. “Quando saio da aldeia, não sou mais o pajé Barbosa, sou o Raimundo Carlos da Silva, funcionário da prefeitura”, ressalta. E é com o pensamento no futuro da aldeia e das crianças indígenas, que eles pretendem mudar a realidade. Os Pitaguary, do município de Pacatuba, estão dando atenção especial para as crianças. Elas são fundamentais para manter a cultura que ainda existe e passar adiante às próximas gerações indígenas. Até pouco tempo, os índios mais velhos se reuniam embaixo dos cajueiros e castanholeiras para ensinar os pequenos. O lanche eram os cajus e as castanholas que caíam das árvores. Após muitas batalhas, idas e vindas aos governantes, com muito esforço e obstinação conseguiram instalar, em 2009, em parceria com o Governo do Estado do Ceará a Escola Diferenciada de Ensino Fundamental e Médio Ita-Ara, na aldeia Pitaguary, em Pacatuba. Desde quando a escola Ita-Ara foi pensada, o objetivo foi expandir o atendimento à população indígena, para beneficiar as etnias presentes no território cearense. São ensinadas as disciplinas regulares como português, matemática, ciências e, também, as de cultura e religião indígena e a língua mãe, o Tupi. A escola conta também com um laboratório

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A desigualdade sempre vai haver, mas os índios têm que ser mais vistos

Pajé Barbosa: luta por melhores condições de vida para os povos indígenas

2 Temos que ter um espaço aberto para nós, índios, mostrarmos a nossa cultura

3 Se o mercado de trabalho já está ruim para os brancos, imagine pra nós índios

de informática educativa, onde os alunos da educação infantil, jovens e adultos têm a oportunidade de conhecer o mundo tecnológico. Para o pajé, as crianças vão poder agora ter liberdade educativa, “que elas não podiam ter em escolas normais, pois tinham que se adaptar a viver como os brancos. Na Ita-Ara, tanto preparamos para o futuro, para passar num vestibular, para trabalhar em empresas públicas e privadas, como também resgatamos o nosso passado, que é fundamental para nos mantermos como índios”. Na aldeia dos Pitaguary há, atualmente, três mil e trezentos índios e muitos deles ainda não sabem ler. Tinham medo das escolas convencionais, dos professores e da repressão que sofreriam. Outro diferencial da escola Ita-Ara é a inclusão. São aceitas qualquer criança, independente de cor, raça, religião: negros, índios, brancos e crianças com necessidades especiais, mantendo sempre o respeito com a diversidade de cada um. O pajé é a favor também da criação da disciplina de relações humanas nas escolas, ensinando a todos, como se adaptar às outras culturas, respeitando o próximo, caminhando para um futuro mais civilizado. “Temos que ter um espaço aberto para nós, índios, mostrarmos a nossa cultura”, defende. Saúde indígena São muitas as mudanças que os índios querem para poder ter um futuro mais digno e melhor. Quando buscam continuidade às lutas indígenas, estão cada vez mais atuantes no governo. Junto com a Fundação Nacional do Índio (Funai) criam organizações para enfrentar os poderosos e lutar por seus ideais. O Conselho Distrital Indígena, do qual o pajé Barbosa faz parte, junto com a Funai, criaram a Secretaria Especial de Saúde Indígena, com o objetivo de administrar e fazer com que o processo de gestão do subsistema dê a atenção necessária para a saúde indígena. Para o pajé, a criação da Secretaria é o primeiro passo para uma saúde mais digna para os índios. “No futuro, quero trazer

para a nossa comunidade um hospital diferenciado, que junte as mais avançadas formas de medicina mundial com os nossos saberes indígenas, que interagindo possa dar mais esperança e conforto para o nosso povo. Um hospital todo adaptado, onde possa ser respeitada a nossa cultura”. No projeto do hospital diferenciado, está a implantação de uma farmácia com remédios naturais indígenas, redes, ao invés de camas, a participação das rezadeiras e do pajé como um complemento à medicina tradicional. “A desigualdade sempre vai haver, mas nós, índios, temos que ser mais vistos”. Mercado competitivo “Se o mercado de trabalho já está ruim para os brancos, imagine pra nós, índios.” É assim que o pajé vê o cenário atual. Para ele, os índios têm que se capacitar para se engajar nesse mercado competitivo. Mas, na aldeia Pitaguary, é diferente. Ele mesmo incentiva os índios maiores de dezoito anos, a procurarem cursos profissionalizantes, melhorando, assim, sua qualificação e ficando mais fácil de, no futuro, se inserir no mercado de trabalho. Considera também a relação com os grandes empresários. “O homem branco vem ao encontro dos índios querendo progresso, mas a forma de progresso que eles querem, destruindo a natureza, criando indústrias e mais indústrias, vai acabar com o mundo”, ensina pajé Barbosa.

Direitos iguais A Fundação Nacional do Índio (Funai) é o órgão do governo brasileiro que, junto com os índios, desenvolve ações em defesa dos direitos indígenas. Promove a educação básica dos índios, demarca, assegura e protege as terras por eles tradicionalmente ocupadas, estimula o desenvolvimento de estudos e levantamentos sobre os grupos indígenas.

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@comsocialfa7 comunicacaosocial@fa7.edu.br www.fa7.edu.br facebook.com/fa7comunicacaosocial

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